Acessibilidade / Reportar erro

A comorbidade entre cefaleia crônica e depressão tratada com toxina botulínica: revisão da literatura

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

Estima-se que até 40% dos pacientes com migrânea apresentam, pelo menos, um episódio de depressão maior ao longo da vida. Por outro lado, pacientes com depressão apresentam duas vezes mais chance de ter migrânea quando comparados à população sem transtorno de humor. A comorbidade dos dois quadros aumenta a frequência das crises de dor e a incapacidade do indivíduo. Uma terapêutica que pudesse agir nos transtornos, quando simultâneos, ofereceria vantagens, por uma ação mais ampla e eficaz, a exemplo da toxina botulínica (TXB). Por faltar ainda uma clara definição sobre o tema, o objetivo deste estudo foi revisar como se comporta o tratamento concomitante das duas morbidades com a TXB.

CONTEÚDO:

Foi realizada revisão de artigos indexados nas bases de dados Pubmed/Medline, LILACS, Scielo nos idiomas inglês, português e espanhol. Dos oito artigos selecionados, a maioria dos indivíduos foram mulheres de 40 a 50 anos. O tamanho das amostras variou de 30 a 715 pacientes. A predominância foi de estudos prospectivos. Todos os estudos encontraram redução significativa da dor. Seis trabalhos encontraram diminuição significativa da depressão. A frequência dos efeitos adversos variou de 4,1% a 30%, sendo ptose palpebral e dor de cabeça os mais frequentes.

CONCLUSÃO:

A TXB parece ser útil para tratamento da cefaleia crônica e depressão. Houve uma tendência a relacionar a melhora da depressão com a diminuição da dor. A ação específica da toxina no tratamento da depressão foi inconclusiva. Novos estudos, com alto rigor metodológico, assim como revisões sistemáticas, deve ser realizados para alcançar maior aprofundamento do assunto, a fim de determinar a real eficácia da TXB no alívio da cefaleia e depressão concomitantes.

Descritores:
Depressão; Toxina botulínica tipo A; Transtornos de enxaqueca

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

It is estimated that up to 40% of patients with migraine have at least one episode of major depression during their lifetime. On the other hand, patients with depression are twice as likely to suffer from migraine when compared to the population without the mood disorder. The comorbidity of both conditions increases the frequency of pain crises and the individual’s disability. A therapy that could act on the disorders, when simultaneous, would offer advantages through a broader and more effective action, such as botulinum toxin (BTX). Due to the lack of a clear definition on the subject, the objective of this study was to review how the concomitant treatment with BTX of the two morbidities behaves.

CONTENTS:

A review of articles in English, Portuguese, and Spanish indexed in Pubmed/Medline, LILACS and Scielo databases was carried out. Of the eight articles selected, most individuals were women aged 40 to 50 years. The sample size ranged from 30 to 715 subjects. The predominance was of prospective studies. All studies found a significant reduction in pain. Six studies found a significant decrease in depression. The frequency of adverse effects ranged from 4.1% to 30%, with eyelid ptosis and headache being the most frequent.

CONCLUSION:

BTX seems to be useful for the treatment of chronic headache and depression. There was a tendency to relate the improvement in depression with the decrease in pain. The specific action of the toxin in the treatment of depression was inconclusive. New studies, with high methodological rigor, as well as systematic reviews, should be carried out to reach a greater depth of comprehension of the subject and to determine the real efficacy of BTX in relieving concomitant headache and depression.

Keywords:
Depression; Botulinum toxins type A; Disorder headache

INTRODUÇÃO

O termo cefaleia reúne todos as dores de cabeça existentes. Estima-se que mais de 90% da população apresente algum tipo de cefaleia ao longo da vida11 Teixeira AL, Gomez RS. Cefaleias na prática clínica. Belo Horizonte: Folium; 2017.. Pode se manifestar como dor crônica, interferindo substancialmente na qualidade de vida e capacidade de trabalho22 Zukerman E. Cefaleia e qualidade de vida. Einstein. 2004;2(Suppl 1):S73-5.. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS)33 Organização Mundial da Saúde (OMS). Relatório sobre a saúde no mundo. Saúde mental: nova concepção, nova esperança. Genebra: World Health Organization, 2001., as cefaleias figuram entre as 10 condições mais incapacitantes para os dois sexos, embora esteja entre as cinco piores para as mulheres, mesmo porque são elas as mais frequentemente afetadas pelo transtorno11 Teixeira AL, Gomez RS. Cefaleias na prática clínica. Belo Horizonte: Folium; 2017..

As cefaleias primárias são entendidas como a doença em si, sem uma causa subjacente clara, como um tumor, infecção ou trauma44 Krymchantowski, AV. Condutas em cefaleias. São Paulo: Wolters Kluwer Health; 2008.. Dentre as cefaleias primárias, as mais prevalentes são migrânea e a cefaleia do tipo tensional. No Brasil, a ocorrência de migrânea fica em torno de 15,8%, já a cefaleia do tipo tensional pode chegar a 22,9%. No entanto, a migrânea causa um forte impacto na qualidade de vida do indivíduo, o que o motiva a maior busca por tratamento11 Teixeira AL, Gomez RS. Cefaleias na prática clínica. Belo Horizonte: Folium; 2017..

A associação entre dor crônica e transtornos mentais, especialmente a depressão, tem sido relatada na literatura55 Lovibond PF, Lovibond SH. The structure of negative emotional states: comparison of the Depression Anxiety Stress Scales (DASS) with the Beck Depression and Anxiety Inventories. Behav Res Ther. 1995;33(3):335-43.,66 Krishnan RRK. France RD, Pelton S, McCann UD, Davidson J, Urban BJ. Chronic pain and depression. II. Symptoms of anxiety in chronic low back pain patients and their relationship to subtypes of depression. Pain. 1985;22(3):289-94.. Em algumas revisões, a ocorrência concomitante entre dor e depressão chega a oscilar entre 30% e 60%77 Bair MJ, Robinson RL, Katon W, Kroenke K. Depression and pain comorbidity: a literature review. Arch Intern Med. 2003;163(20):2433-45.,88 Gallagher RM, Verma S. Managing pain and comorbid depression: a public health challenge. Semin Clin Neuropsychiatry. 1999;4(3):203-20.. Em artigo analisou 1.000 pacientes de um determinado plano de saúde, aqueles com, pelo menos, uma condição de dor, tinham mais depressão e ansiedade do que indivíduos sem dor99 Fields HL. Pain modulation: expectation, opioid analgesia and virtual pain. Prog Brain Res. 2000;122:245-53.. Em pacientes internados, tal ligação torna-se ainda mais evidente1010 Levenson JL, Hamer R, Silverman JJ, Rossiter L F. Psychopathology in medical inpatients and its relationship to length of hospital stay: a pilot study. Int J Psychiatry Med. 1986-1987:16(3):231-6.. No caso das dores de cabeça, sua relação forte com depressão é também afirmada por outros autores. A concomitância dos dois quadros provoca aumento da frequência de crises de dor, como também maior incapacitação do paciente. Essa conexão parece ser bidirecional. Estima-se que até 40% dos pacientes com migrânea apresentam, pelo menos, um episódio de depressão maior ao longo da vida. Além disso, pacientes migranosos têm o risco três vezes maior que a população geral de desenvolver depressão. Por outro lado, pacientes com depressão apresentam duas vezes mais chance de desenvolver migrânea quando comparados à população sem o transtorno de humor11 Teixeira AL, Gomez RS. Cefaleias na prática clínica. Belo Horizonte: Folium; 2017.,1111 Merikangas KR, Stevens DE, Angst J. Psychopathology and headache syndromes in the community. Headache. 1994;34(8):S17-S22.,1212 Mercante J P, Peres M F, Guendler V, Zukerman E, Bernik MA. Depression in chronic migraine: severity and clinical features. Arq Neuropsiquiatr. 2005;63(2A):217-20.,1313 McLean G, Mercer S W. Chronic migraine, comorbidity, and socioeconomic deprivation: cross-sectional analysis of a large nationally representative primary care database. J Comorb. 2017;7(1):89-95.,1414 Moschiano F, D’Amico D, Canavero I, Pan I, Micieli G, Bussone G. Migraine and depression: common pathogenetic and therapeutic ground? Neurol Sci. 2011;32(Suppl 1):S85-8.,1515 Breslau N, Davis GC, Schultz LR, Peterson EL. Joint 1994 Wolff Award Presentation. Migraine and major depression: a longitudinal study. Headache. 1994;34(7):387-93..

O objetivo deste estudo foi expor, com algum detalhamento, a fisiopatologia da associação entre enxaqueca com depressão maior como exemplo e a título de ilustração de como se entende a ligação das cefaleias com os transtornos psiquiátricos de humor. Assim será feito porque os mecanismos de como se dão a comorbidade da enxaqueca com a depressão maior estão mais claros.

O quadro chamado de depressão maior (cuja prevalência na população pode chegar a 17% ao longo da vida)1616 Sadock B, Sadock VA, Ruiz P. Compêndio de psiquiatria: ciência do comportamento e psiquiatria clínica. 11ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2017. se constitui, segundo o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5)1717 DSM-5/American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2014., pelos seguintes critérios expostos na tabela 1.

Tabela 1
Critérios diagnósticos de episódio depressivo maior

A migrânea, com frequência, é acompanhada por fotofobia e/ou vômitos; é bastante intensa, unilateral e pulsátil. Sua crise pode durar até 72h se não tratada adequadamente1818 Martins NM, Oliveira OWB, Dutra LQ, Rezende AQM, Dantas EF, Pereira ABC. Migrânea com aura, qualidade de vida e tratamento: um relato de caso. Rev Saúde. 2010;1(1):15-24..

Vários elementos estão envolvidos em seu surgimento, assim como na sua cronificação, quais sejam genéticos, hormonais, inflamatórios, ambientais, alimentares, sono, psicológicos e psiquiátricos11 Teixeira AL, Gomez RS. Cefaleias na prática clínica. Belo Horizonte: Folium; 2017.,1919 Natoli JL, Manack A, Dean B, Butler Q, Turkel CC, Stovner L, Lipton RB. Global prevalence of chronic migraine: a systematic review. Cephalalgia. 2010;30(5):599-609.,2020 Buse DC, Silberstein SD, Manack AN, Papapetropoulos S, Lipton RB. Psychiatric comorbidities of episodic and chronic migraine. J Neurol. 2013;260(8):1960-9.. Todos esses elementos, de alguma maneira, fazem intersecção com os mecanismos geradores de depressão.

Pelo ângulo da genética, pesquisas também reafirmam a forte ligação entre depressão maior e migrânea. Estudo recente mostrou maior associação (ao analisar todo o genoma) da migrânea com transtornos psiquiátricos, se comparados aos demais transtornos neurológicos2121 Antilla V, Bulik-Sullivan B, Finucane HK, Walters RK, Bras J, Duncan L, Escott-Price V, et al. Analysis of shared heritability in common disorders of the brain. Science. 2018;360(6395):eaapp8757.. Tanto a migrânea como a depressão possuem cerca de 20% de sua variabilidade atribuída a genes compartilhados, é o que sugere um estudo com gêmeos2222 Ligthart L, Nyholt DR, Penninx BW, Boomsma DI. The shared genetics of migraine and anxious depression. Headache. 2010;50(10):1549-60.,2323 Schur EA, Noonan C, Buchwald D, Goldberg J, Afari N. A twin study of depression and migraine: evidence for a shared genetic vulnerability. Headache. 2009;49(10):1493-502.. Além disso, um polimorfismo no gene relacionado ao transportador de serotonina foi associado à migrânea, assim como à depressão2424 Marino E, Fanny B, Lorenzi C, Pirovano A, Franchini L, Colombo C, et al. Genetic bases of comorbidity between mood disorders and migraine: possible role of serotonin transporter gene. Neurol Sci. 2010;31(3):387-91.. A alteração por metilação do DNA do fator de liberação da corticotropina no eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA) aponta para uma hipersensibilidade à dor causada por estresse2525 Duailibi K. Depressão e seus impactos. São Paulo: Editora Omnifarma; 2018.. O estresse psicossocial, por sua vez, é apontado como um importante fator de influência tanto para a depressão como para enxaqueca2626 Tsuji SR, Carvalho SD. Aspectos psíquicos das cefaleias primárias. Rev Neuroci. 2002;10(3):129-36.,2727 Haque B, Rahman KM, Hoque A, Hasan AT, Chowdhury RN, Khan SU, et al. Precipitating and relieving factors of migraine versus tension type headache. BMC Neurol. 2012;12:82..

Sabe-se que a reação ao estresse, a princípio, é uma resposta saudável do organismo. Situações amedrontadoras e que se mostram como desafio exigem ação mobilizadora do ser humano. A reação ao estresse pode proporcionar um comportamento mais ativo, vigoroso e produtivo. No entanto, em excesso e/ou quando se prolonga, pode acarretar prejuízos2828 Lipp M, Malagris L. O stress emocional e seu tratamento. Terapias cogntivo-comportamentais: um diálogo com a psiquiatra. São Paulo: Artmed; 2001. 475-89p.,2929 Ebrecht M, Hextall J, Kirtley LG, Taylor A, Dyson M, Weinman J. Perceived stress and cortisol levels predict speed of wound healing in healthy male adults. Psychoneuroendocrinology. 2004;29(6):798-809.. Nos momentos de ameaça, o sistema nervoso autônomo simpático e o eixo HHA são ativados, o que gera liberação de catecolaminas (principalmente adrenalina) e secreção de cortisol pela adrenal.

Quando a situação estressante cessa, há retorno dessas substâncias ao seu ponto inicial. Mas se perdurar, os hormônios do estresse levam a uma sobrecarga do organismo com consequências cardiovasculares, alteração da densidade óssea, perda de peso, amenorreia e alteração na regulação das futuras respostas ao estresse, ansiedade, depressão3030 McEwen BS. Protective and damaging effects of stress mediators. N Engl J Med. 1998;338(3):171-9.. A modificação na responsividade do eixo HHA resulta em um desajuste na secreção do cortisol, influenciando nas reações inflamatórias. Entre outras consequências, há aumento de citocinas, propiciando facilitação para desenvolvimento de doenças autoimunes e inflamatórias2626 Tsuji SR, Carvalho SD. Aspectos psíquicos das cefaleias primárias. Rev Neuroci. 2002;10(3):129-36. que podem cursar com dor.

A atividade do eixo HHA aumentada também pode induzir mudanças funcionais nos neurônios e consequente morte neuronal, acompanhada de alterações estruturais no córtex cerebral, como atrofia ou diminuição de seu volume. Tal situação pode ter consequências no comportamento, incluindo rebaixamento do humor. Uma parcela significativa de pacientes deprimidos apresenta evidente atividade aumentada do eixo HHA: 20% a 40% daqueles atendidos em ambulatórios e 40% a 60% dos internados1616 Sadock B, Sadock VA, Ruiz P. Compêndio de psiquiatria: ciência do comportamento e psiquiatria clínica. 11ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2017..

De fato, pela visão neurofuncional, estruturas cerebrais são apontadas como agindo em comum na dor e na depressão. O córtex cingulado anterior, o tálamo, a amígdala, a substância cinzenta periaquedutal, além de regiões que, a princípio, não estariam relacionadas ao processamento da dor, como giro para-hipocampal e fusiforme, córtex retrosplenal, córtex cingulado posterior e estriado, parecem envolvidos ora na experiência da dor propriamente; ora em seus componentes emocionais, contribuindo para sua cronificação; ora, ainda, no próprio aparecimento do transtorno depressivo3131 Doan L, Manders T, Wang J. Neuroplasticity underlying the comorbidity of pain and depression. Neural Plast. 2015;2015:504691.,3232 Maizels M, Aurora S, Heinricher M. Beyond neurovascular: migraine as a dysfunctional neurolimbic pain network. Headache. 2012;52(10):1553-65..

Além disso, é preciso citar que algumas dessas estruturas, como a substância cinzenta periaquedutal, somadas ao hipotálamo, núcleos da rafe e locus coeruleus, compõem um sistema de modulação central da dor, do qual a serotonina e a noradrenalina são os principais neurotransmissores. Esse sistema pode inibir ou amplificar os sinais nociceptivos da periferia. A desregulação de tais neurotransmissores têm sido usada para explicar a depressão e pode contribuir para surgimento de sintomas dolorosos/migranosos concomitantes ao transtorno mental3333 Lynch ME. Antidepressants as analgesics: a review of randomized controlled trials. J Psychiatry Neurosci. 2001;26(1):30-6.,3434 Von Korff M, Dworkin S F, Le Resche L, Kruger A. An epidemiologic comparison of pain complaints. Pain. 1988;32(2):173-83.,3535 Wise TN, Fishbain DA, Holder-Perkins V. Sintomas físicos dolorosos na depressão: um desafio clínico. Pain Med. 2007;8(S2):S75-S76..

Por outro lado, fatores inflamatórios já descritos devem ser lembrados na etiologia da migrânea e da depressão. Não apenas a lesão tecidual e/ou uma infecção podem liberar citocinas pró-inflamatórias. A desregulação crônica do cortisol, por exemplo, também pode induzi-las (como já visto). Essas citocinas podem ultrapassar a barreira hematoencefálica e atuar no encéfalo3636 Walter AK, Kavelaars A, Heijnen CJ, Dantzer R. Neuroinflammation and comorbidity of pain and depression. Pharmacol Rev. 2013;66(1):80-101.. Observações do aparecimento de sintomas depressivos em pacientes que tratam com citocinas, como interferon, mostrou a ligação entre inflamação e depressão. A dor é uma forma de resposta tissular que promove reações comportamentais de defesa. No entanto, quando a dor se torna crônica, não se relacionando com a lesão ao tecido propriamente, se transforma em um problema. Da mesma forma, quando sintomas depressivos se mantêm, apesar da ausência de causa clara ou luto, são considerados patológicos2525 Duailibi K. Depressão e seus impactos. São Paulo: Editora Omnifarma; 2018..

Um aspecto ainda muito controverso sobre a relação da migrânea com sintomas psiquiátricos/psicológicos é a possibilidade de existirem características específicas de personalidade daqueles que sofrem com migrânea. Um dos trabalhos mais antigos nessa linha3737 Wolff HG. Personality features and reactions of subjects with migraine. Arch Neurol Psychiatry. 1937;37(4):895-921. discorre sobre a “personalidade migranosa”, que se comporia por traços de rigidez, compulsividade, perfeccionismo, ambição, competitividade, ressentimento crônico e centralização de tarefas por impossibilidade de delegá-las.

Atualmente, estudos sugerem que pacientes com migrânea apresentariam traços do transtorno da personalidade evitativa DSM51717 DSM-5/American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2014.. Seriam pessoas excessivamente preocupadas, temerosas, inseguras, com alta sensibilidade ao estresse e, por conseguinte, propensas a desenvolver ansiedade e depressão. Ainda há, porém, dúvidas se tais traços seriam responsáveis pela associação entre migrânea e depressão11 Teixeira AL, Gomez RS. Cefaleias na prática clínica. Belo Horizonte: Folium; 2017..

Seja por quaisquer dos elementos citados ou por outro motivo, o fato é que a comorbidade entre os dois quadros, cefaleia (em particular a migrânea) e depressão é frequente. Dessa forma, uma estratégia terapêutica que pudesse agir em ambos os transtornos, quando ocorrem simultaneamente, ofereceria vantagens através de uma ação mais ampla e eficaz, a exemplo da toxina botulínica (TXB).

A TXB é um agente produzido a partir da fermentação do Clostridium botulinum, uma bactéria anaeróbica gram-positiva em forma de esporo, comum no solo e em ambientes marinhos3838 Wenzel RG. Pharmacology of botulinum neurotoxin serotype A. Am J Health Syst Pharm. 2004;61(22 Suppl 6):S5-S10.. Na sua composição, são identificados oito sorotipos imunologicamente distintos. Destes, sete são neurotoxinas (A, B, C1, D, E, F, G)3939 Setler PE. Therapeutic use of botulinum toxins: background and history. Clin J Pain. 2002;18(6):S119-24.. Sua ação consiste em inibir a liberação da acetilcolina na fenda sináptica e a TXB-A é a mais estudada e aplicada na clínica.

Para exercer seu efeito, a TXB, uma vez possuindo uma alta afinidade pelas sinapses colinérgicas, penetra no neurônio motor que inerva os músculos esqueléticos. Dentro do citoplasma, se liga especificamente ao complexo proteico SNARE. Semelhante a enzimas, a toxina promove uma clivagem nas ligações peptídicas das proteínas SNARE3939 Setler PE. Therapeutic use of botulinum toxins: background and history. Clin J Pain. 2002;18(6):S119-24.. Em consequência, não se dá a ancoragem da vesícula sináptica na superfície interna da membrana celular, bloqueando a fusão vesicular, condição necessária para a liberação de acetilcolina. A partir de então, ocorre uma paralisia flácida nas fibras musculares atingidas (denervação química)4040 Dressler D, Saberi FA. Botulinum toxin: mechanisms of action. Eur Neurol. 2005;53(1):3-9..

A ação da TXB aparece em dois a cinco dias em média e pode perdurar por até seis meses (mais comumente, cerca de quatro meses). A restauração da fisiologia normalmente acontece por dois mecanismos conhecidos. O primeiro ocorre através da formação de novos brotos axonais com a formação de novas placas terminais menores, acarretando a reinervação temporária. O segundo advém da regeneração das proteínas do complexo SNARE, permitindo o retorno do acoplamento das vesículas de acetilcolina na face interna da membrana neuronal4141 Cardoso F. Toxina botulínica tipo B no manejo de distonia não-responsiva a toxina botulínica tipo A. Arq Neuropsiquiatr. 2003;61(3A):607-10..

A contribuição da TXB no tratamento das cefaleias resulta (embora sem confirmação definitiva) do relaxamento da musculatura atingida pela substância. Também é apontada diminuição da pressão sobre as raízes do nervo trigêmeo4242 Smuts JA, Schultz DB, Barnard A. Mechanism of action of botulinum toxin type A in migraine prevention: a pilot study. Headache. 2004;44(8):801-5.. E, mais recentemente, há evidência de que a toxina atue na liberação de substâncias e neurotransmissores envolvidos na inflamação e na nocicepção4343 de Mello Sposito MM. Toxina botulínica do tipo A: mecanismo de ação. Acta Fisiátrica. 2009;16(1):25-37..

No caso da depressão, igualmente, a TXB contribui para melhora dos sintomas disfóricos4444 Finzi E, Wasserman E. Treatment of depression with botulinum toxin A: a case series. Dermatol Surg. 2006;32(5):645-50.,4545 Wollmer MA, de Boer C, Kalak N, Beck J, Götz T, Schmidt T, et al. Facing depression with botulinum toxin: a randomized controlled trial. J Psychiatr Res. 2012;46(5):574-81.. Tal ação se baseia no efeito chamado feedback facial. A hipótese propõe uma ligação bidirecional entre os centros reguladores das emoções no cérebro e os músculos faciais4646 Niedenthal P M. Embodying emotion. Science. 2007;316(5827):1002-5.. Parece natural concluir que as nossas expressões faciais sejam influenciadas por nosso estado emocional, porém o inverso não é tão fácil de ser aceito. No entanto, pesquisadores4747 Larsen RJ, Kasimatis M, Frey K. Facilitating the furrowed brow: an unobtrusive test of the facial feedback hypothesis applied to unpleasant affect. Cogn Emot. 1992;6(5):321-38.,4848 Ekman P, Levenson RW, Friesen WV. Autonomic nervous system activity distinguishes among emotions. Science. 1983;221(4616):1208-10.,4949 Strack F, Martin LL, Stepper S. Inhibiting and facilitating conditions of the human smile: a nonobtrusive test of the facial feedback hypothesis. J Pers Soc Psychol. 1988;54(5):768-77. detectaram que, independentemente do motivo, exprimir uma face mais sisuda ou mais sorridente afeta nossas emoções. No primeiro caso, franzir a testa, contraindo os músculos corrugadores na região glabelar pode levar a uma visão mais negativista. Do contrário, no segundo caso, contrair os músculos zigomáticos para dar um sorriso proporcionaria mais alegria e otimismo. Portanto, em linhas gerais, evidências se somam na afirmação de um efeito significativo dos músculos faciais no humor.

Estudo5050 Finzi E, Rosenthal NE. Emotional proprioception: treatment of depression with afferent facial feedback. J Psychiatr Res. 2016;80:93-6. sugere uma hipótese de como essa influência se daria, sobretudo para a depressão. O mesmo mecanismo, segundo os autores, explicaria a ação antidepressiva da TXB. A atividade dos músculos na região das sobrancelhas agiria na propriocepção do ramo óptico do nervo trigêmeo. A partir daí, através do núcleo trigêmeo mesencefálico, haveria ativação do córtex pré-frontal ventromedial e do locus coeruleus e, deste último, para a amígdala (estruturas importantes na regulação emocional)5151 Matsuo K. Ban R, Hama Y, Yuziriha S. Eyelid opening with trigeminal proprioceptive activation regulates a brainstem arousal mechanism. PLoS One, 2015;10(8):e0134659.. Na medida em que se administra TXB na testa na região glabelar, paralisando o músculo corrugador, o sinal proprioceptivo enviado pelo ramo óptico do nervo trigêmeo até o cérebro seria alterado. Em decorrência, haveria a mudança do humor.

O objetivo deste estudo foi observar se a melhora dos sintomas depressivos possibilitaria o alívio da dor. Por outro lado, pela relação bidirecional entre cefaleia e depressão, observar se a melhora da dor teria um efeito nos sintomas psiquiátricos. Alguns estudos avaliam o tratamento com a TXB em pacientes com ambos os quadros, mas não há uma clara definição sobre o tema.

CONTEÚDO

Foi realizada uma revisão de artigos indexados nas bases de dados Pubmed/Medline, LILACS, Scielo nos idiomas inglês, português e espanhol. Para a busca, foram utilizadas as seguintes palavras-chave: botulinun toxin, headache, depression, migraine e seus correlatos em português e espanhol.

O período de pesquisa se concentrou entre março e junho de 2020. Não houve restrição em relação à data de publicação dos artigos. Na busca encontraram-se, inicialmente, 1893 trabalhos. Destes, foram selecionados oito artigos, pois discutiam a ação da TXB nas duas morbidades: a depressão e a cefaleia.

Os oito estudos selecionados foram analisados segundo os dados: número da amostra; sexo predominante; média de idade; porcentagem de doença depressiva na linha de base; tipo de estudo; método de avaliação tanto da cefaleia como da depressão; uso de fármaco via oral para o tratamento da cefaleia e da depressão concomitante ao uso da TXB; efeitos adversos da TXB; resultados obtidos com o uso da toxina tanto na depressão como na cefaleia; e período de follow-up. Essas informações estão expostas nas tabelas 2, 3 e 4.

Tabela 2
Estudos selecionados para inclusão na revisão
Tabela 3
Tipo de estudo, tamanho da amostra, avaliação de desfecho, fármacos por via oral concomitante, período de seguimento
Tabela 4
Eventos adversos informados nos estudos

Todos os estudos selecionados permitiram uso de fármaco por via oral (antidepressivos) para tratamento da depressão em concomitância ao uso da toxina.

Os critérios de inclusão e exclusão foram heterogêneos entre os estudos, permitindo, assim, que na composição das amostras ocorressem vários tipos de cefaleia. Porém, todos trabalharam com pacientes com cefaleia primária crônica, segundo os critérios da Headache Classification Committee of the International Headache Society (ICHD-3)5252 Headache Classification Committee of the International Headache Society – IHS. Classificação internacional de cefaleias. 3rd ed. (ICHD). Sinapse. 2018;18(2):1-170.. Outras variáveis foram avaliadas nos estudos, tais como sono, ansiedade, estresse e repercussões da dor na qualidade de vida e no trabalho.

DISCUSSÃO

Por se constituir uma proposta de tratamento inovadora e pouco usual, era de se esperar um número reduzido de artigos que abordassem o tema. No conjunto dos oito trabalhos selecionados, sete usaram como modelo de aplicação para as injeções de TXB o estudo PREEMPT6161 Dodick D W, Turkel CC, DeGryse RE, Aurora SK, Silverstein SD, Lipton RB, et al. OnabotulinumtoxinA for treatment of chronic migraine: pooled results from the double-blind, randomized, placebo‐controlled phases of the PREEMPT clinical program. Headache. 2010;50(6);921-36., padronizando os experimentos. O modelo preconiza a aplicação de 155 UI de TXB em 31 regiões da cabeça e do pescoço, podendo haver, conforme o caso, uma dose adicional de 45 UI, tomando outros pontos, seguindo uma estratégia chamada de “siga a dor”.

Apenas um estudo5454 Zhang H, Zhang H, Wei Y, Lian Y, Chen Y, Zheng Y. Treatment of chronic daily headache with comorbid anxiety and depression using botulinum toxin A: a prospective pilot study. Int J Neurosci. 2017;127(4):285-90. não seguiu o modelo já mencionado. Neste caso, as aplicações foram feitas usando 5 a 10 UI da TXB em cada região, a saber, frontal, temporal, glabelar, epicraniana, aponeurose e occipital. A dose total variou de 40 a 120 UI. Portanto, uma dose aquém das usadas nos demais estudos. No entanto, obteve resposta favorável para diminuição da dor de cabeça e melhora dos sintomas do humor. Esse estudo salienta a possibilidade de uma dose menor de TXB para o tratamento das dores de cabeça, assim como da depressão.

Resultados positivos para a melhora da dor apareceram igualmente nos outros sete estudos. Entretanto, alguns autores5555 Aydinlar EI. Dikmen PY, Kosak S, Kocaman AS. On a botulinumtoxin A effectiveness on chronic migraine, negative emotional states and sleep quality: a single-center prospective cohort study. J Headache Pain. 2017;18(1):1-10.,5656 Guerzoni S, Pellesi L, Baraldi C, Cainazzo MM, Negro A, Martelletti P, et al. Long-term treatment benefits and prolonged efficacy of on a botulinum toxin A in patients affected by chronic migraine and medication overuse headache over 3 years of therapy. Front Neurol. 2017;8:586. não detectaram melhora da depressão, os quais usaram escalas menos comuns para avaliação dos sintomas de humor, tais como escala DASS-215555 Aydinlar EI. Dikmen PY, Kosak S, Kocaman AS. On a botulinumtoxin A effectiveness on chronic migraine, negative emotional states and sleep quality: a single-center prospective cohort study. J Headache Pain. 2017;18(1):1-10. e ZUNG-D5656 Guerzoni S, Pellesi L, Baraldi C, Cainazzo MM, Negro A, Martelletti P, et al. Long-term treatment benefits and prolonged efficacy of on a botulinum toxin A in patients affected by chronic migraine and medication overuse headache over 3 years of therapy. Front Neurol. 2017;8:586., diferentemente dos demais estudos.

Em um destes estudos5555 Aydinlar EI. Dikmen PY, Kosak S, Kocaman AS. On a botulinumtoxin A effectiveness on chronic migraine, negative emotional states and sleep quality: a single-center prospective cohort study. J Headache Pain. 2017;18(1):1-10., os autores especulam que a melhora da depressão pode estar mais relacionada à melhora do sono do que à melhora da dor propriamente dita. Neste estudo, o sono também não melhorou, apesar da diminuição da dor, permitindo que os autores postulassem sobre a possibilidade de uma maior influência do sono na melhora ou piora da depressão.

Autor5656 Guerzoni S, Pellesi L, Baraldi C, Cainazzo MM, Negro A, Martelletti P, et al. Long-term treatment benefits and prolonged efficacy of on a botulinum toxin A in patients affected by chronic migraine and medication overuse headache over 3 years of therapy. Front Neurol. 2017;8:586. lembra que o tratamento da depressão através da TXB ainda é polêmico e controverso. Justifica sua posição ao argumentar sobre autores que obtiveram resultados positivos e outros não. Ainda é uma técnica relativamente recente, em desenvolvimento e com potencial futuro para pesquisa, levando muitas vezes a achados contraditórios nos estudos.

No presente estudo, a controvérsia descrita também surgiu. Estudo5959 Maasumi K, Thompson NR, Kriegler JS, Tepper SJ. Effect of on a botulinum toxin A injection on depression in chronic migraine. Headache. 2015;59(9):1218-24. avaliou 359 pacientes através da escala HIT-6 para dor de cabeça e a escala PHQ-9 para os outros aspectos de saúde (incluindo os sintomas de humor). Permitiu-se uso de antidepressivos aos pacientes. A escala HIT-6 detectou melhora de 30,1% para intensidade de dor e PHQ-9 mostrou 38% de melhora para outros aspectos de saúde. Chamou a atenção que, daqueles que não apresentaram redução de dor na escala HIT-6 (cerca de 70%), 9,6% melhoraram na PHQ-9. Ou seja, aproximadamente 10% dos pacientes da amostra melhoraram da saúde geral e do humor, apesar da dor não ter diminuído. Todavia, após as devidas correções estatísticas, o estudo apontou que pacientes com redução de dor têm 5,9 vezes mais chances de melhora significativa da depressão. Os autores concluíram, então, que a melhora da depressão em pacientes com enxaqueca crônica tratados com TXB foi relacionada com a melhora da dor.

Um estudo5858 Blumenfeld AM, Tepper SJ, Robbins LD, Manack Adams A, Buse DC, Orejudos A, et al. Effects of on a botulinum toxin A treatment for chronic migraine on common comorbidities including depression and anxiety. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2019;90(3):353-60. incluiu 715 pessoas com doença depressiva de leve a moderada, observando melhora dos sintomas depressivos, mesmo naqueles pacientes com pequena redução da frequência dos dias de dor de cabeça, sugerindo efeito positivo nos sintomas de humor independentemente dos efeitos analgésicos da toxina.

Nos demais estudos, a melhora de dor e da depressão ocorreu concomitantemente, sem haver condições (a partir da análise dos resultados) de afirmar que a melhora da depressão fosse independente daquela da dor, por uma ação da TXB antidepressiva específica. Estudos acontecem no momento que focam o efeito da TXB na depressão resistente6262 Charles E. Infiltrations of on a botulinum toxin in resistant depression: comparison of two facial injection sites. https://www.Clinicaltrials.gov: NCT03484754. Última atualização postada: 5 de out de 2021. Diponível em: <https://www.clinicaltrials.gov/ct2/resultis?-cond=Depression&term=BOTULINUMTOXIN&cntry=&state=&city=&dist=>. Acesso em 10 de jan 2021.
https://www.Clinicaltrials.gov...
,6363 Helse Stavanger H F. Glabellar botulinum toxin injections for the treatment of geriatric depression. https://www.Clinicaltrials.gov:NCT03833063. Última atualização postada: 11 de ago de 2021. Disponível em:<https://clinicaltrials-gov.translate.goog/ct2/show/NCT03833063?term=botulinum+toxin&cond=Depression&draw=2&rank=2&_x_tr_sl=auto&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt>. Acesso em 10 de jan 2021.
https://www.Clinicaltrials.gov...
. Tais trabalhos poderão trazer maiores esclarecimentos sobre o assunto.

Todos os estudos referiram a presença de, pelo menos, algum tipo de efeito adverso. Sua frequência variou de 4,1%5959 Maasumi K, Thompson NR, Kriegler JS, Tepper SJ. Effect of on a botulinum toxin A injection on depression in chronic migraine. Headache. 2015;59(9):1218-24. a 30%5353 Boudreau G P, Grosberg BM, McAllister PJ, Lipton RB, Buse DC. Prophylactic on a botulinumtoxin A in patients with chronic migraine and comorbid depression: an open-label, multicenter, pilot study of efficacy, safety and effect on headache-related disability, depression, and anxiety. Int J Gen Med. 2015;8:79-86.. Todos os trabalhos salientaram a segurança do tratamento. Os efeitos adversos surgiram sem gravidade e tenderam a desaparecer com o passar do tempo. Apesar desse fato, autores5858 Blumenfeld AM, Tepper SJ, Robbins LD, Manack Adams A, Buse DC, Orejudos A, et al. Effects of on a botulinum toxin A treatment for chronic migraine on common comorbidities including depression and anxiety. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2019;90(3):353-60. apontaram que 3,5% dos pacientes avaliados abandonaram o estudo devido a algum efeito adverso. As limitações foram o número restrito de estudos (oito apenas) o que restringe a possibilidade de conclusões mais robustas com o intuito de uma ampliação à prática clínica em geral. Os estudos analisados usaram amostras com variados critérios de inclusão e exclusão, agrupando pacientes com características diferentes, dificultando a comparação. Em particular, salienta-se a dificuldade de comparar os vários tipos de dor de cabeça nas diferentes amostras, além de variada gravidade de sintomas em relação à cefaleia e à depressão. O uso de fármaco concomitante ao tratamento com a TXB também deve ser lembrado, pois essa prática pode influenciar no resultado, já que, a princípio, soma seus efeitos aos da toxina avaliada.

Apenas um estudo5353 Boudreau G P, Grosberg BM, McAllister PJ, Lipton RB, Buse DC. Prophylactic on a botulinumtoxin A in patients with chronic migraine and comorbid depression: an open-label, multicenter, pilot study of efficacy, safety and effect on headache-related disability, depression, and anxiety. Int J Gen Med. 2015;8:79-86. limitou o uso de fármaco analgésico. Nenhum estudo usou grupo controle e placebo, expondo, assim, um viés metodológico extremamente importante. Esse viés impede que sejam elucidadas as dúvidas sobre o fenômeno da melhora espontânea e/ ou ocasionada pela ação de algum outro elemento que não do fármaco específico (a toxina, no caso). No entanto, para esse trabalho, por se tratar de uma revisão integrativa, não houve a preocupação de se aprofundar na análise da qualidade de evidências.

Por outro lado, houve quase unanimidade na forma de uso da toxina, ou seja, como já descrito, sete estudos usaram o protocolo PREEMPT como modelo de aplicação da toxina, contribuindo para a análise comparativa. Por fim, existe a limitação do idioma, pois a pesquisa se concentrou nos artigos em inglês, português e espanhol.

CONCLUSÃO

A TXB parece ser útil para o tratamento da cefaleia crônica e depressão. Porém, houve uma tendência a relacionar a melhora da depressão com a diminuição da dor. A ação específica da toxina no tratamento da depressão foi inconclusiva. Devido ao aparente potencial positivo, novos estudos do tipo ensaio clínico com alto rigor metodológico e revisões sistemáticas devem ser realizados para maior aprofundamento, a fim de determinar a real eficácia no tratamento da TXB na comorbidade entre cefaleia e depressão. Este estudo espera, dentro de suas limitações, ter contribuído para a elucidação do tema.

REFERENCES

  • 1
    Teixeira AL, Gomez RS. Cefaleias na prática clínica. Belo Horizonte: Folium; 2017.
  • 2
    Zukerman E. Cefaleia e qualidade de vida. Einstein. 2004;2(Suppl 1):S73-5.
  • 3
    Organização Mundial da Saúde (OMS). Relatório sobre a saúde no mundo. Saúde mental: nova concepção, nova esperança. Genebra: World Health Organization, 2001.
  • 4
    Krymchantowski, AV. Condutas em cefaleias. São Paulo: Wolters Kluwer Health; 2008.
  • 5
    Lovibond PF, Lovibond SH. The structure of negative emotional states: comparison of the Depression Anxiety Stress Scales (DASS) with the Beck Depression and Anxiety Inventories. Behav Res Ther. 1995;33(3):335-43.
  • 6
    Krishnan RRK. France RD, Pelton S, McCann UD, Davidson J, Urban BJ. Chronic pain and depression. II. Symptoms of anxiety in chronic low back pain patients and their relationship to subtypes of depression. Pain. 1985;22(3):289-94.
  • 7
    Bair MJ, Robinson RL, Katon W, Kroenke K. Depression and pain comorbidity: a literature review. Arch Intern Med. 2003;163(20):2433-45.
  • 8
    Gallagher RM, Verma S. Managing pain and comorbid depression: a public health challenge. Semin Clin Neuropsychiatry. 1999;4(3):203-20.
  • 9
    Fields HL. Pain modulation: expectation, opioid analgesia and virtual pain. Prog Brain Res. 2000;122:245-53.
  • 10
    Levenson JL, Hamer R, Silverman JJ, Rossiter L F. Psychopathology in medical inpatients and its relationship to length of hospital stay: a pilot study. Int J Psychiatry Med. 1986-1987:16(3):231-6.
  • 11
    Merikangas KR, Stevens DE, Angst J. Psychopathology and headache syndromes in the community. Headache. 1994;34(8):S17-S22.
  • 12
    Mercante J P, Peres M F, Guendler V, Zukerman E, Bernik MA. Depression in chronic migraine: severity and clinical features. Arq Neuropsiquiatr. 2005;63(2A):217-20.
  • 13
    McLean G, Mercer S W. Chronic migraine, comorbidity, and socioeconomic deprivation: cross-sectional analysis of a large nationally representative primary care database. J Comorb. 2017;7(1):89-95.
  • 14
    Moschiano F, D’Amico D, Canavero I, Pan I, Micieli G, Bussone G. Migraine and depression: common pathogenetic and therapeutic ground? Neurol Sci. 2011;32(Suppl 1):S85-8.
  • 15
    Breslau N, Davis GC, Schultz LR, Peterson EL. Joint 1994 Wolff Award Presentation. Migraine and major depression: a longitudinal study. Headache. 1994;34(7):387-93.
  • 16
    Sadock B, Sadock VA, Ruiz P. Compêndio de psiquiatria: ciência do comportamento e psiquiatria clínica. 11ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2017.
  • 17
    DSM-5/American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2014.
  • 18
    Martins NM, Oliveira OWB, Dutra LQ, Rezende AQM, Dantas EF, Pereira ABC. Migrânea com aura, qualidade de vida e tratamento: um relato de caso. Rev Saúde. 2010;1(1):15-24.
  • 19
    Natoli JL, Manack A, Dean B, Butler Q, Turkel CC, Stovner L, Lipton RB. Global prevalence of chronic migraine: a systematic review. Cephalalgia. 2010;30(5):599-609.
  • 20
    Buse DC, Silberstein SD, Manack AN, Papapetropoulos S, Lipton RB. Psychiatric comorbidities of episodic and chronic migraine. J Neurol. 2013;260(8):1960-9.
  • 21
    Antilla V, Bulik-Sullivan B, Finucane HK, Walters RK, Bras J, Duncan L, Escott-Price V, et al. Analysis of shared heritability in common disorders of the brain. Science. 2018;360(6395):eaapp8757.
  • 22
    Ligthart L, Nyholt DR, Penninx BW, Boomsma DI. The shared genetics of migraine and anxious depression. Headache. 2010;50(10):1549-60.
  • 23
    Schur EA, Noonan C, Buchwald D, Goldberg J, Afari N. A twin study of depression and migraine: evidence for a shared genetic vulnerability. Headache. 2009;49(10):1493-502.
  • 24
    Marino E, Fanny B, Lorenzi C, Pirovano A, Franchini L, Colombo C, et al. Genetic bases of comorbidity between mood disorders and migraine: possible role of serotonin transporter gene. Neurol Sci. 2010;31(3):387-91.
  • 25
    Duailibi K. Depressão e seus impactos. São Paulo: Editora Omnifarma; 2018.
  • 26
    Tsuji SR, Carvalho SD. Aspectos psíquicos das cefaleias primárias. Rev Neuroci. 2002;10(3):129-36.
  • 27
    Haque B, Rahman KM, Hoque A, Hasan AT, Chowdhury RN, Khan SU, et al. Precipitating and relieving factors of migraine versus tension type headache. BMC Neurol. 2012;12:82.
  • 28
    Lipp M, Malagris L. O stress emocional e seu tratamento. Terapias cogntivo-comportamentais: um diálogo com a psiquiatra. São Paulo: Artmed; 2001. 475-89p.
  • 29
    Ebrecht M, Hextall J, Kirtley LG, Taylor A, Dyson M, Weinman J. Perceived stress and cortisol levels predict speed of wound healing in healthy male adults. Psychoneuroendocrinology. 2004;29(6):798-809.
  • 30
    McEwen BS. Protective and damaging effects of stress mediators. N Engl J Med. 1998;338(3):171-9.
  • 31
    Doan L, Manders T, Wang J. Neuroplasticity underlying the comorbidity of pain and depression. Neural Plast. 2015;2015:504691.
  • 32
    Maizels M, Aurora S, Heinricher M. Beyond neurovascular: migraine as a dysfunctional neurolimbic pain network. Headache. 2012;52(10):1553-65.
  • 33
    Lynch ME. Antidepressants as analgesics: a review of randomized controlled trials. J Psychiatry Neurosci. 2001;26(1):30-6.
  • 34
    Von Korff M, Dworkin S F, Le Resche L, Kruger A. An epidemiologic comparison of pain complaints. Pain. 1988;32(2):173-83.
  • 35
    Wise TN, Fishbain DA, Holder-Perkins V. Sintomas físicos dolorosos na depressão: um desafio clínico. Pain Med. 2007;8(S2):S75-S76.
  • 36
    Walter AK, Kavelaars A, Heijnen CJ, Dantzer R. Neuroinflammation and comorbidity of pain and depression. Pharmacol Rev. 2013;66(1):80-101.
  • 37
    Wolff HG. Personality features and reactions of subjects with migraine. Arch Neurol Psychiatry. 1937;37(4):895-921.
  • 38
    Wenzel RG. Pharmacology of botulinum neurotoxin serotype A. Am J Health Syst Pharm. 2004;61(22 Suppl 6):S5-S10.
  • 39
    Setler PE. Therapeutic use of botulinum toxins: background and history. Clin J Pain. 2002;18(6):S119-24.
  • 40
    Dressler D, Saberi FA. Botulinum toxin: mechanisms of action. Eur Neurol. 2005;53(1):3-9.
  • 41
    Cardoso F. Toxina botulínica tipo B no manejo de distonia não-responsiva a toxina botulínica tipo A. Arq Neuropsiquiatr. 2003;61(3A):607-10.
  • 42
    Smuts JA, Schultz DB, Barnard A. Mechanism of action of botulinum toxin type A in migraine prevention: a pilot study. Headache. 2004;44(8):801-5.
  • 43
    de Mello Sposito MM. Toxina botulínica do tipo A: mecanismo de ação. Acta Fisiátrica. 2009;16(1):25-37.
  • 44
    Finzi E, Wasserman E. Treatment of depression with botulinum toxin A: a case series. Dermatol Surg. 2006;32(5):645-50.
  • 45
    Wollmer MA, de Boer C, Kalak N, Beck J, Götz T, Schmidt T, et al. Facing depression with botulinum toxin: a randomized controlled trial. J Psychiatr Res. 2012;46(5):574-81.
  • 46
    Niedenthal P M. Embodying emotion. Science. 2007;316(5827):1002-5.
  • 47
    Larsen RJ, Kasimatis M, Frey K. Facilitating the furrowed brow: an unobtrusive test of the facial feedback hypothesis applied to unpleasant affect. Cogn Emot. 1992;6(5):321-38.
  • 48
    Ekman P, Levenson RW, Friesen WV. Autonomic nervous system activity distinguishes among emotions. Science. 1983;221(4616):1208-10.
  • 49
    Strack F, Martin LL, Stepper S. Inhibiting and facilitating conditions of the human smile: a nonobtrusive test of the facial feedback hypothesis. J Pers Soc Psychol. 1988;54(5):768-77.
  • 50
    Finzi E, Rosenthal NE. Emotional proprioception: treatment of depression with afferent facial feedback. J Psychiatr Res. 2016;80:93-6.
  • 51
    Matsuo K. Ban R, Hama Y, Yuziriha S. Eyelid opening with trigeminal proprioceptive activation regulates a brainstem arousal mechanism. PLoS One, 2015;10(8):e0134659.
  • 52
    Headache Classification Committee of the International Headache Society – IHS. Classificação internacional de cefaleias. 3rd ed. (ICHD). Sinapse. 2018;18(2):1-170.
  • 53
    Boudreau G P, Grosberg BM, McAllister PJ, Lipton RB, Buse DC. Prophylactic on a botulinumtoxin A in patients with chronic migraine and comorbid depression: an open-label, multicenter, pilot study of efficacy, safety and effect on headache-related disability, depression, and anxiety. Int J Gen Med. 2015;8:79-86.
  • 54
    Zhang H, Zhang H, Wei Y, Lian Y, Chen Y, Zheng Y. Treatment of chronic daily headache with comorbid anxiety and depression using botulinum toxin A: a prospective pilot study. Int J Neurosci. 2017;127(4):285-90.
  • 55
    Aydinlar EI. Dikmen PY, Kosak S, Kocaman AS. On a botulinumtoxin A effectiveness on chronic migraine, negative emotional states and sleep quality: a single-center prospective cohort study. J Headache Pain. 2017;18(1):1-10.
  • 56
    Guerzoni S, Pellesi L, Baraldi C, Cainazzo MM, Negro A, Martelletti P, et al. Long-term treatment benefits and prolonged efficacy of on a botulinum toxin A in patients affected by chronic migraine and medication overuse headache over 3 years of therapy. Front Neurol. 2017;8:586.
  • 57
    Kollewe K, Escher CM, Wulff DU, Fathi D, Paracka L, Mohammadi B, et al. Long-term treatment of chronic migraine with on a botulinum toxin A: efficacy, quality of life and tolerability in a real-life setting. J Neural Transm. 2016;123(5):533-40.
  • 58
    Blumenfeld AM, Tepper SJ, Robbins LD, Manack Adams A, Buse DC, Orejudos A, et al. Effects of on a botulinum toxin A treatment for chronic migraine on common comorbidities including depression and anxiety. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2019;90(3):353-60.
  • 59
    Maasumi K, Thompson NR, Kriegler JS, Tepper SJ. Effect of on a botulinum toxin A injection on depression in chronic migraine. Headache. 2015;59(9):1218-24.
  • 60
    Demiryurek BE, Erten DH, Tekin A, Ceylan M, Aras YG, Gungen BD. Effects of onabotulinumtoxinA treatment on efficacy, depression, anxiety, and disability in Turkish patients with chronic migraine. Neurol Sci. 2016;37(11):1779-84.
  • 61
    Dodick D W, Turkel CC, DeGryse RE, Aurora SK, Silverstein SD, Lipton RB, et al. OnabotulinumtoxinA for treatment of chronic migraine: pooled results from the double-blind, randomized, placebo‐controlled phases of the PREEMPT clinical program. Headache. 2010;50(6);921-36.
  • 62
    Charles E. Infiltrations of on a botulinum toxin in resistant depression: comparison of two facial injection sites. https://www.Clinicaltrials.gov: NCT03484754. Última atualização postada: 5 de out de 2021. Diponível em: <https://www.clinicaltrials.gov/ct2/resultis?-cond=Depression&term=BOTULINUMTOXIN&cntry=&state=&city=&dist=>. Acesso em 10 de jan 2021.
    » https://www.Clinicaltrials.gov» https://www.clinicaltrials.gov/ct2/resultis?-cond=Depression&term=BOTULINUMTOXIN&cntry=&state=&city=&dist=
  • 63
    Helse Stavanger H F. Glabellar botulinum toxin injections for the treatment of geriatric depression. https://www.Clinicaltrials.gov:NCT03833063. Última atualização postada: 11 de ago de 2021. Disponível em:<https://clinicaltrials-gov.translate.goog/ct2/show/NCT03833063?term=botulinum+toxin&cond=Depression&draw=2&rank=2&_x_tr_sl=auto&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt>. Acesso em 10 de jan 2021.
    » https://www.Clinicaltrials.gov» https://clinicaltrials-gov.translate.goog/ct2/show/NCT03833063?term=botulinum+toxin&cond=Depression&draw=2&rank=2&_x_tr_sl=auto&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt
  • Fontes de fomento: não há.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2021
  • Aceito
    09 Maio 2022
Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor Av. Conselheiro Rodrigues Alves, 937 Cj2 - Vila Mariana, CEP: 04014-012, São Paulo, SP - Brasil, Telefones: , (55) 11 5904-2881/3959 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: dor@dor.org.br