Resumo
O objetivo deste estudo foi avaliar simultaneamente biomarcadores no sangue e no líquido peritoneal (LP) de bovinos com enfermidades intestinais (GI n=14) e reticulites traumáticas (GII n=13). O exame clínico e a coleta de sangue e de LP foram realizadas e, posteriormente, análise física e citológica do LP, bem como as determinações bioquímicas no sangue e no LP. Empregou-se a análise de variância ao nível de 5% de probabilidade comparando os grupos e comparando o sangue e o LP. Em ambos os grupos foram evidenciados sinais de apatia, desidratação e hipomotilidade reticuloruminal, porém os animais do GI apresentaram alterações clínicas mais expressivas. À análise citológica do LP No sangue as concentrações de PT, globulina, colesterol e GGT foram superiores no GII (P<0,05), e a relação A/G foi maior no GI (P<0,05). No LP a albumina e a CK foram superiores no GI (P<0,05). Na comparação entre o sangue e LP, destacou-se o aumento significativo do lactato L no LP de ambos os grupos (P<0,05), caracterizando a gravidade das alterações presentes na cavidade abdominal. Recomendase a avaliação simultânea no sangue e no LP do lactato L como informação de auxílio diagnóstico e prognóstico das enfermidades digestivas dos bovinos.
Palavras-chave: Bioquímica clínica; lactato L; peritonite; sistema digestivo; vacas
Abstract
The objective of this study was to simultaneously evaluate biomarkers in the blood and peritoneal fluid (PF) of cattle with intestinal diseases (GI n=14) and traumatic reticulitis (GII n=13). A clinical examination and blood collection and PF were performed and subsequently, physical and cytological analysis of PF, as well as biochemical determinations in blood and PF. The analysis of variance was used at a 5% probability level comparing the groups and comparing blood and PF. In both groups, signs of apathy, dehydration and reticuloruminal hypomotility were evidenced, but the GI animals presented more expressive clinical alterations. In the cytological analysis of PF, a predominance of polymorfhonuclear was observed in both groups. Blood TP, globulin, cholesterol and GGT concentrations were higher in GII (P<0.05), and the A/G ratio was higher in GI (P <0.05). In PF, albumin and CK were higher in GI (P<0.05). In the comparison between blood and PF, the significant increase of L-lactate in the PF of both groups (P<0.05) was observed, characterizing the severity of the alterations present in the abdominal cavity. It is recommended the simultaneous evaluation of L-lactate in the blood and PF, as a tool for diagnosis and prognosis of bovine digestive diseases.
Keywords: Digestive system; cattle; peritonitis; clinic biochemical; L-lactate
Introdução
O aumento da produtividade na pecuária trouxe grandes benefícios econômicos, no entanto, concomitante a este avanço, aumentaram-se os fatores de risco e a vulnerabilidade dos animais à ocorrência de enfermidades digestivas, devido principalmente ao intenso incremento nutritivo com dietas pobres em fibras e ricas em concentrados. Aliado a essa situação, na região semiárida do país observa-se o agravo da introdução de alimentação alternativa de baixa qualidade nos períodos de estiagem prolongada(1,2). As enfermidades digestivas estão entre as doenças que mais acometem os bovinos em todo o mundo(3). Recente estudo na região nordeste do Brasil relata que a média de atendimento de bovinos com enfermidades desse tipo em rotina clínica hospitalar chega a 18%(2). Estudos vêm sendo desenvolvidos na busca de marcadores bioquímicos menos onerosos, de fácil execução, rápidos e precisos para serem utilizados nos diferentes fluidos corpóreos, entre os quais o líquido peritoneal, aumentando a confiabilidade e fornecendo informações adicionais específicas de conclusão diagnóstica(4-7).
Nos bovinos acometidos com enfermidades digestivas, diferentemente de outras espécies animais(8-10), ainda são escassas as informações, qualitativas e quantitativas, referentes aos principais componentes bioquímicos mensurados simultaneamente no sangue e no LP. Grande parte dos estudos existentes sobre marcadores bioquímicos no sangue de bovinos com enfermidades digestivas é relacionada às abomasopatias(11,6,12), reticuloperitonite traumática e pericardite traumática(13-15), existindo ainda poucos relatos relacionados às enfermidades intestinais e às diferentes reticulites traumáticas. Quando se trata da avaliação bioquímica do LP de bovinos portadores dessas enfermidades, a literatura se torna ainda mais escassa.
Diante do exposto, este estudo teve por objetivo avaliar simultaneamente as variáveis sanguíneas e do LP de bovinos, comparando as alterações resultantes das enfermidades intestinais e das reticulites traumáticas, visando a identificar biomarcadores que possam ser empregados na rotina clínica buiátrica.
Material e métodos
O estudo obteve parecer favorável da Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA), da Universidade Federal Rural de Pernambuco com a licença nº 044/2015 CEPE/ UFRPE, de acordo com as normas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA) e National Institute of Health Guide for Care and Use of Laboratory Animals.
Foram avaliados 27 bovinos de leite acometidos com enfermidades digestivas, distribuídos em dois grupos: GI (n=14) portadores de enfermidades intestinais e GII (n=13) portadores de reticulites traumáticas. Ambos os grupos foram compostos por animais mestiços, em sua maioria fêmea, adulta e submetida ao sistema de criação semi-intensivo. Os animais foram submetidos ao exame clínico(16), de acordo com o protocolo estabelecido pela unidade hospitalar onde os animais se encontravam internados.
As amostras de sangue total foram colhidas por punção jugular externa com o auxílio de agulhas 25x8 mm em tubos siliconizados estéreis do tipo vacutainer (Vacutainer®, Becton Dickinson, Franklin Lakes, NJ, USA.) contendo anticoagulante K3EDTA e fluoreto de sódio para a mensuração de glicose (Glicose Liquiform - Labtest Diagnostica S.A.) e de lactato L (Lactato enzimático - Labtest Diagnóstica S.A.). Uma segunda alíquota foi colocada em tubos sem anticoagulante para posterior obtenção do soro.
O LP foi obtido por abdominocentese em dois locais seguindo as recomendações da literatura(17,18). A colheita foi realizada empregando-se agulha 40x12 mm, sempre que necessário guiado por ultrassom (Ultrassom GE, modelo Logic 100 PRO, Av. Mario Coelho Aguiar, 215, São Luiz, São Paulo, SP, 05804-900.) e o LP acondicionado em tubos estéreis (Vacutainer®, Becton Dickinson, Franklin Lakes, NJ, USA.) sem e com anticoagulante (K3EDTA). Na impossibilidade de colheita de LP in vivo, o material foi obtido imediatamente após o óbito.
Para a obtenção do plasma e soro, respectivamente, as amostras de sangue bem como as amostras de LP foram centrifugadas (Centrífuga Fanem Ltda Baby I, Mod. 206. Av. General Ataliba Leonel 1790, São Paulo, SP, Brasil.) a 1.000 x g, durante 10 minutos, e o soro sanguíneo e o sobrenadante do LP foram armazenados sob a forma de alíquotas em tubos tipo eppendorf em ultrafreezer (Ultralow freezer NuAire Inc., 2100 Fernbrook Lane N. Plymouth, MN 55447, USA.) a -80 ºC, para posteriores análises bioquímicas.
As análises física, química e citológica do LP foram realizadas imediatamente após a colheita. A contagem total de células nucleadas (CTCN) e a análise citológica foi realizada conforme preconizado pela literatura(19,20). Quando a CTCN era inferior a 5.000 céls/μL, a amostra era submetida a citocentrifugação (Centrífuga citológica Fanem Ltda, Mod. 248C. Av. General Ataliba Leonel 1790, São Paulo, SP, Brasil). A concentração da proteína total foi determinada por refratometria (Refratômetro portátil Mod. rTp-20 ATC.)(19,20) e por prova bioquímica empregando o método do biureto (Proteína Total, Labtest Diagnóstica S.A., Av. Paulo Ferreira da Costa 600, Lagoa Santa, MG 33400-000, Brasil). As amostras do LP em que a concentração proteica era inferior à linearidade do teste (≤1,0 g/dL) foram submetidas ao método do vermelho de pirogalol (Sensiprot, Labtest Diagnóstica S.A., Av. Paulo Ferreira da Costa 600, Lagoa Santa, MG 33400-000, Brasil).
No soro sanguíneo e no LP foram mensuradas as variáveis albumina (Albumina - Labtest Diagnóstica S.A.), globulina, ureia (Ureia CE - Labtest Diagnóstica S.A.), creatinina (Creatinina - Labtest Diagnóstica S.A.), colesterol (Colesterol Liquiform-Labtest Diagnóstica S.A.), triglicérides (Triglicérides Liquiform - Labtest Diagnóstica S.A.), cloretos (Cloreto - Labtest Diagnóstica S.A.), as atividades séricas das enzimas aspartato aminotransferase (AST) (AST/GOT Liquiform - Labtest Diagnóstica S.A.), gama glutamiltransferase (GGT) (Gama GTLiquiform - LabtestDiagnóstica S.A.), creatinoquinase (CK) (CK-NAC Liquiform - Labtest Diagnóstica S.A.) e lactato desidrogenase (LDH) (LDH Liquiform - Labtest Diagnóstica S.A.) e os íons cálcio, sódio e potássio (Analisador de eletrólitos 9180, Roche Diagnostica do Brasil). No plasma e no LP foram determinadas a glicose (Glicose Liquiform - Labtest Diagnóstica S.A.) e o lactato L (Lactato enzimático -Labtest Diagnóstica S.A.). Todas as leituras foram efetuadas em analisador bioquímico semiautomático (Labquest Bio 2000, Labtest Diagnóstica S.A, Lagoa Santa, MG).
Foi realizada a comparação das variáveis bioquímicas mensuradas no sangue e no líquido peritoneal em cada grupo e, também, foi realizada a comparação entre os grupos. Inicialmente os dados foram testados quanto à distribuição normal pelo teste de Kolmogorov-Smirnov. Os dados que não atenderam às premissas de normalidade e homogeneidade foram submetidos à transformação logarítmica (LogX+1) ou pela raiz quadrada [RQ (X+1/2)]. Em seguida, foram submetidos à análise de variância (Teste F). Os dados foram analisados utilizando-se o procedimento General Lineares Model (GLM) do programa computacional Statistical Analysis System(21). Foi adotado para todas as análises estatísticas o nível de 5% de probabilidade.
Resultados e discussão
No grupo composto pelos animais acometidos com enfermidades intestinais (GI), foram diagnosticadas as seguintes enfermidades: enterites (4/14), intussuscepção (3/14), obstrução por fitobezoário (2/14) sendo um no intestino delgado (jejuno) e outro no intestino grosso (colón); torção de intestino delgado (2/14), colite ulcerativa (2/14) e abscesso mesentérico (1/14). No grupo dos animais com reticulites traumáticas (GII), observou-se: reticulopericardite traumática (5/13), reticuloperitonite traumática (4/13), reticulite traumática (2/13), reticulohepatite traumática (1/13) e reticulomiocardite traumática (1/13). As enfermidades intestinais e as reticulites traumáticas são graves enfermidades que, na maioria das vezes resultam em peritonite, focal ou difusa, conforme também observado neste estudo, sendo responsáveis por inúmeros prejuízos econômicos à bovinocultura(22-26).
De maneira geral, os animais do GI apresentaram alterações clínicas mais expressivas, o que poderia estar associado à evolução clínica mais aguda das enfermidades intestinais, quando comparado às reticulites traumáticas(27,2). Dentre as alterações, destacaram-se a apatia e a inapetência que, apesar de estarem presentes em ambos os grupos, apresentou maior frequência no grupo das enfermidades intestinais. A desidratação também foi mais intensa no GI, no qual os animais apresentaram em sua maioria entre 8 a 12%, o que pode ser atribuído ao sequestro de líquidos para o interior do trato digestório, como ocorre em casos de obstruções intestinais(28). Achados semelhantes foram também descritos em bovinos acometidos com intussuscepção, obstrução por fitobezoário e outras obstruções intestinais(27,22,29,30,25).
A taquicardia, observada em ambos os grupos, também foi relatada previamente em outros trabalhos com bovinos obstruídos por fitobezoários e bovinos acometidos com reticulopericardite traumática(27,31). No GII, mais da metade dos animais se apresentaram taquipneicos. Este achado é observado nas enfermidades que cursam com distensões dos pré-estômagos e nos casos de ascite(16). A dor visceral(32), dentre outros sinais clínicos, pode ser demonstrada pela taquicardia e taquipneia, sinais estes também observados em bovinos com peritonite(30). No entanto, frequência respiratória normal foi relatada na maioria dos animais com reticulites traumáticas(14,31).
A hipomotilidade ruminal e intestinal foram observadas em ambos os grupos, em grande parte dos animais, chamando atenção para o aumento da tensão abdominal e presença de som de líquido ao balotamento no antímero direito do abdômen, mais evidente nos animais com enfermidades intestinais (GI). Estudos associaram essa hipomotilidade à inflamação peritoneal(14,25). O som de líquido ao balotamento estava presente em maior frequência nos animais do GI estando de acordo com autores que observaram esse achado em 82,6% dos bovinos acometidos com enfermidade intestinal(29). Quanto às características das fezes, ressalta-se a presença de muco, coloração escura e mínima produção a ausência de fezes na ampola retal dos animais do GI. Observações semelhantes foram evidenciadas em casos de intussuscepção, e os pesquisadores relataram que a passagem de fezes nas primeiras 12 horas após a ocorrência deste evento pode ser normal, no entanto, a produção de fezes é mínima e que, após 24 horas, a presença de sangue e muco no reto são achados comuns nestes casos(22).
Quanto à análise física do LP, foi observado em ambos os grupos um líquido de coloração amarelada, variando de intensidade com leve turvação. Esta alteração também foi relatada por outros autores ao analisarem o LP de vacas com peritonite e bezerros com hérnia umbilical(33,30). Alterações na coloração do LP são sugestivas de comprometimento abdominal(23,37,19). Observou-se volume de LP superior ao considerado normal(17) na maioria dos animais de ambos os grupos. O volume de LP acima do normal é resultante da diminuição da pressão oncótica e ao aumento da permeabilidade vascular(34) que podem vir a ocorrer nas doenças crônicas e/ou nos processos digestórios obstrutivos(37). Em estudo sobre constituintes bioquímicos no LP de bovinos, pesquisadores encontraram volume de LP inferior a dez mililitros em bovinos adultos sadios, enquanto, em bovinos com peritonite, encontraram volume superior a 200 mL, semelhante ao relatado em bovinos com enfermidades abdominais(19). Vale ressaltar que nos bovinos sadios o volume de LP é bastante escasso, somente o necessário para a lubrificação e proteção das vísceras abdominais(17).
A densidade do LP em ambos os grupos apresentou valores superiores a 1,015 que é o valor limite para a normalidade do LP de bovinos sadios(17). Em vacas com peritonite(30), pesquisadores encontraram média de 1,027 para a densidade no LP. A densidade do LP é decorrente do aumento da concentração proteica e da celularidade(35) e este aumento está relacionado ao processo inflamatório local na cavidade peritoneal, podendo refletir que, quanto maior a densidade do LP, mais grave é a enfermidade digestória(33,19).
Na avaliação da concentração proteica de ambos os grupos, foi possível observar um aumento na concentração média (3,0 g/dL). Tais valores são considerados anormais para a espécie(17,19). Em bovinos com peritonite e em bezerros submetidos à herniorrafia, foi observado aumento na concentração proteica no LP e os achados foram atribuídos ao processo inflamatório local por aumento da permeabilidade vascular(34,33,30).
Na análise citológica do LP, observou-se valor médio da CTCN (Tabela 01) no limite superior para a espécie bovina(17), não se mostrando representativo do quadro clínico, tendo em vista o processo inflamatório presente em ambos os grupos. Esta observação também foi relatada em outros estudos com vacas com e sem peritonite(23,37,36) que também verificaram variabilidade na CTCN no LP dos animais avaliados em seus estudos, destacando-se observações já realizadas por outros pesquisadores(36) que relataram que só a CTCN não é confiável para a determinação da real situação de gravidade do LP. No que diz respeito à celularidade presente no LP, destaca-se o maior percentual de PMN em ambos os grupos (Tabela 1), semelhantemente ao que já foi observado em outra pesquisa com LP de vacas com enfermidades digestivas(19). Diante do quadro clínico que os animais de ambos os grupos apresentavam, a avaliação qualitativa da celularidade foi mais confiável, ratificando a recomendação de aliar a informação da CTCN à contagem diferencial nos casos suspeitos de peritonite(36).
Valores médios, desvios padrão (x±s) e nível de significância (P) da Contagem Total de Células Nucleadas e percentual de polimorfonucleares presentes no líquido peritoneal dos bovinos acometidos com enfermidades intestinais (GI) e reticulites traumáticas (GII)
Os resultados da análise bioquímica realizada no sangue e no LP dos animais do GI) e do GII estão descritos nas Tabelas 2 e 3, respectivamente. Nas Tabelas 4 e 5 encontram-se os resultados das variáveis mensuradas no sangue e no LP, respectivamente, comparando-se os grupos GI e GII.
Valores médios, desvios padrão (x±s) e nível de significância (P) das variáveis bioquímicas mensuradas simultaneamente no sangue e no líquido peritoneal (LP) de bovinos acometidos com enfermidades intestinais (GI)
Valores médios, desvios padrão (x±s) e nível de significância (P) das variáveis bioquímicas mensuradas simultaneamente no sangue e no líquido peritoneal (LP) de bovinos acometidos com reticulites traumáticas (GII)
Valores médios, desvios padrão (x±s) e nível de significância (P) das variáveis bioquímicas mensuradas no sangue de bovinos acometidos com enfermidades intestinais (GI) e reticulites traumáticas (GII)
Valores médios, desvios padrão (x±s) e nível de significância (P) das variáveis bioquímicas mensuradas no líquido peritoneal (LP) de bovinos acometidos com enfermidades intestinais (GI) e reticulites traumáticas (GII)
No soro sanguíneo, as concentrações de PT e globulina foram superiores no GII em relação ao GI, consequentemente menor a relação A/G nos animais do grupo GII (Tabela 4). A concentração proteica sérica no GII situou-se pouco acima do considerado normal para a espécie(37). Esta elevação da PT se deve à hiperglobulinemia observada em ambos os grupos, no entanto em maior magnitude nos animais do GII (Tabela 4). Tal achado está relacionado ao caráter crônico das reticulites traumáticas(26), quando comparado às enfermidades intestinais, o que consequentemente causou maior estímulo antigênico(38-40). A hipoalbuminemia observada em ambos os grupos (Tabela 4) pode estar relacionada à diminuição da capacidade de síntese hepática, seja pelo comprometimento funcional, seja pelo fato de a albumina ser uma proteína de fase aguda negativa e nestes casos se encontrar diminuída(39,37). Resultados semelhantes para essas variáveis foram observados em estudos com bovinos e bubalinos acometidos por reticuloperitonite traumática e pericardite traumática(13,14,41) e por obstruções intestinais(25).
No LP, a concentração proteica estava elevada em ambos os grupos, apresentando valores médios próximos a 4,0g/dL (Tabela 5). Observa-se em ambos os grupos que a elevação proteica foi decorrente, em grande parte, da elevação da globulina. Apesar da concentração da albumina ser maior no GI, não foi observada diferença estatística no valor da relação A/G entre os grupos. Em estudos com bovinos com graves enfermidades digestivas e com peritonite, foram observadas médias de PT no LP acima de 3,0 g/ dL(23,30,42,36,37), assim como a concentração da globulina e albumina superior nas vacas com peritonite, quando comparadas às vacas saudáveis(23,37), semelhante ao observado neste estudo. O aumento da concentração proteica no LP pode ser associado aos processos inflamatórios locais ocasionados pelas enfermidades digestivas observadas na cavidade abdominal dos animais estudados, causando o aumento da permeabilidade vascular e consequentemente extravasamento e aumento da concentração proteica no LP(35,34,33).
Quando se comparam os valores das concentrações proteicas simultaneamente no LP e no soro sanguíneo em ambos os grupos (Tabelas 2 e 3), verifica-se no GI maior magnitude da concentração de PT, de albumina e de globulina no LP, em torno de 70% da concentração sanguínea. Em seres humanos, a relação entre [PT] do LP / [PT] do soro sanguíneo > 0,5 é indicativa de alteração(43-45). Resultados semelhantes também foram verificados em vacas com peritonites(37). Geralmente em bovinos hígidos a concentração proteica do LP corresponde a algo em torno de 30% da concentração proteica sanguínea(23,37,6). A realização da avaliação simultânea da concentração proteica do LP e do soro sanguíneo ratifica sua utilidade como informação auxiliar de diagnóstico e prognóstico dos casos de peritonite nos bovinos.
Não foi observada diferença estatística na concentração sanguínea e do LP na de ureia e creatinina nos animais de ambos os grupos (Tabelas 2 e 3), assim como entre as diferentes enfermidades (Tabelas 4 e 5).
Os valores médios das variáveis permaneceram dentro da normalidade(46), não desencadeando alteração da funcionalidade renal. A desidratação observada em diferentes graus não acarretou quadro de azotemia pré-renal, conforme verificado em bovinos com RPT e pericardite traumática(15). Nos casos de enfermidades abdominais em que há suspeita de uroperitônio, é de grande importância a avaliação da ureia e da creatinina tanto sérica quanto peritoneal para a confirmação do diagnóstico(47), alteração esta não observada neste estudo.
Não foi observada diferença significativa entre a concentração da glicose sanguínea e do LP (Tabelas 2 e 3), assim como entre os grupos (Tabelas 4 e 5). O valor médio da glicemia dos animais estudados foi de 71,58 mg/dL (Tabela 4), semelhante ao observado em vacas sadias(37). Houve aumento da glicose plasmática em bovinos e bubalinos com obstrução intestinal e tais achados foram atribuídos ao estresse causado pela enfermidade intestinal(25), alteração esta não observada nos animais deste estudo.
A concentração da glicose mensurada no LP de ambos os grupos (Tabela 5) não apresentou diferenças significativas em ambos os grupos, e corroborou com um estudo com enfermidades do abomaso, onde não foram verificadas alterações na concentração da glicose no LP(42). No entanto, em outro estudo houve a diminuição da concentração da glicose no LP de vacas com peritonite séptica em relação ao grupo de vacas com peritonite não séptica e estes pesquisadores ainda observaram diminuição significativa em relação a concentração da glicose no LP de vacas sadias em seu estudo(37).
Foi observado, em ambos os grupos, valores superiores de lactato L no LP quando comparado aos níveis sanguíneos (Tabelas 2 e 3). O valor da média geral da concentração do lactato L no LP foi de 73,52 mg/dL (Tabela 5), ou seja, mais de dez vezes superior ao encontrado em vacas sadias(37). Na espécie bovina, numa condição fisiológica, observam-se valores semelhantes, ou mesmo inferiores, no LP quando comparados à concentração sanguínea(37). Em equinos hígidos, a concentração de lactato L no LP corresponde a aproximadamente metade da concentração plasmática(48). Avaliando a relação [lactato L] LP/[lactato L] plasma sanguíneo dos bovinos deste estudo, percebe-se a magnitude da concentração desta variável no LP, pois em ambos os grupos os valores médios da relação foram superiores a 2,5, podendo este achado ser resultante das lesões isquêmicas devido à gravidade das enfermidades digestivas envolvidas(37). Outros pesquisadores observaram valor de relação de 0,61 em bovinos sadios e 1,01 nos animais com peritonite, ainda assim inferior à relação observada neste estudo. O lactato L é produto do metabolismo anaeróbico dos tecidos durante episódios isquêmicos, entre os quais intestinais, resultando no aumento da concentração de lactato L no LP(37), semelhante também ao descrito na espécie equina(48).
Não foi observada diferença nos níveis sanguíneo e no LP de lactato L entre os grupos, estando, em ambos os espécimes clínicos, elevados para a espécie bovina, com médias de 27,78 mg/dL e 73,52 mg/dL, respectivamente(23). A elevação do lactato L no sangue e no LP foi descrita em bovinos com peritonite(37) e com abomasopatias(42). Autores citaram que a concentração plasmática do lactato L foi o melhor marcador na avaliação da gravidade da isquemia mesentérica em humanos(49).
Quando comparada à atividade enzimática da AST, GGT, LDH e CK no sangue com a atividade no LP, observa-se não haver diferença nos animais do GI (Tabela 2). No entanto, nos animais acometidos com reticulites (GII), os valores séricos foram superiores aos do LP para as enzimas avaliadas, com exceção da CK (Tabela 3).
Ao comparar a atividade sérica enzimática entre os grupos avaliados, verifica-se não haver diferença entre eles, com exceção da GGT que apresentou valores superiores no GII (Tabela 4). No que diz respeito ao LP, apenas a CK diferiu estatisticamente, sendo superior nos animais portadores de enfermidades intestinais (GI) (Tabela 5).
Em ambos os grupos, no sangue e no LP, obtiveram-se valores médios de AST, GGT, LDH e CK superiores aos observados em bovinos sadios(46,23,50,6). Resultados semelhantes foram relatados em bovinos acometidos com graves distúrbios digestórios e peritonite(23,6).
Os resultados elevados de AST, GGT e LDH em ambos os grupos são indicativos de comprometimento da funcionalidade hepática, ratificado pela hipoalbuminemia e pela concentração do colesterol no limite inferior(51,15,52). Vale salientar a concentração elevada da GGT sérica nos animais acometidos com reticulites traumáticas, comparado aos animais com enfermidades intestinais. Os diferentes tipos de reticulites traumáticas observadas no presente estudo têm caráter evolutivo crônico(26). Como a GGT tem alta especificidade para lesões hepáticas e maior persistência durante os processos crônicos, comparada às outras enzimas avaliadas(52), essa observação de aumento significativo no grupo das reticulites traumáticas reflete o dano hepático crônico sofrido pelos animais deste grupo.
A CK foi a única enzima que teve o valor médio mais elevado no LP dos bovinos acometidos com enfermidades intestinais comparado ao grupo das reticulites traumáticas (Tabela 5). Em outros estudos com enfermidades digestivas (abomasopatias e peritonite) em bovinos também foram observados aumentos da atividade da CK no LP(23,6). Esse aumento pode estar relacionado às lesões da musculatura intestinal, já que esta enzima pode aumentar sua atividade na ocorrência de lesões intestinais, conforme observado em cães(53).
A concentração do colesterol no LP foi inferior à concentração sanguínea em ambos os grupos, sendo mais expressiva no GII (Tabelas 2 e 3). Não foi observada diferença no comportamento dessa variável, tanto no sangue (Tabela 4) como no LP (Tabela 5) entre os grupos estudados.
Quanto aos níveis do colesterol sérico nos animais de ambos os grupos (Tabela 4), observa-se valor médio pouco abaixo da normalidade para espécie bovina(54). Essa diminuição pode estar associada à ocorrência de hepatopatias nesses animais, pois o fígado é o principal local de síntese do colesterol, consequentemente estará limitada a sua produção(55). A hipocolesterolemia pode ser observada em doenças hepáticas crônicas e graves, pois, além da diminuição da síntese do colesterol sua absorção intestinal, também pode estar comprometida, aliado ao aumento da conversão do colesterol em ácidos biliares(39). A observação da hipoalbuminemia e elevação da atividade sérica da GGT nesses animais ratifica o dano hepático sofrido por eles(56,52).
Em relação ao colesterol no LP, a média geral observada (Tabela 5) estava dentro dos limites fisiológicos para a espécie(37), não sendo observada diferença entre os grupos. Como observado em outro estudo, a mensuração do colesterol no LP não foi útil para o diagnóstico da peritonite em vacas leiteiras(23).
As concentrações sanguínea e do LP dos triglicérides foram semelhantes, não havendo diferença entre elas (Tabelas 2 e 3), bem como não havendo diferença entre os grupos no comportamento dessa variável tanto no sangue quanto no LP (Tabelas 4 e 5).
Os valores médios observados no sangue em ambos os grupos se encontravam dentro do intervalo considerado normal para a espécie bovina(54,46). A mensuração dos triglicérides no LP é empregada nos casos suspeitos de quiloperitôneo, o que não foi evidenciado nos animais do presente estudo, ratificado pela ausência das características físicas de um fluido rico em quilomícrons, ou seja, de aspecto leitoso e com concentração de triglicérides maior do que 1000 mg/dL ou de duas a oito vezes maior que a concentração plasmática(57).
Quanto aos íons cálcio, sódio, potássio e cloretos, não foram observadas diferenças entre os níveis sanguíneos e no LP (Tabelas 2 e 3) dos animais estudados; com exceção do potássio. Não foi observada diferença entre os grupos estudados, apresentando em ambos o mesmo comportamento, tanto no sangue como no LP (Tabelas 4 e 5).
Os bovinos de ambos os grupos se apresentavam levemente hipoclorêmicos (Tabela 4) comparados aos níveis de cloretos (Cl-) séricos em bovinos saudáveis(50,12). A hipocloremia observada pode estar relacionada à concomitante hiponatremia existente nesses animais, ambas causadas pela diminuição da ingestão de alimentos, hipomotilidade gastrointestinal e, consequentemente, diminuição da absorção desses componentes(6,12,58).
O cálcio ionizável sérico (Ca2+) em ambos os grupos (Tabela 4) se apresentou com médias gerais no limite inferior para a normalidade da espécie(59). Nos distúrbios digestórios, frequentemente ocorre hipomotilidade ou mesmo estase gastrointestinal, sinais clínicos observados em ambos os grupos estudados e que comprometem a absorção do cálcio bem como de outros minerais(15).
Com relação ao sódio (Na+) sérico, o resultado observado em ambos os grupos (Tabela 4) está abaixo do encontrado em bovinos sadios(12). A maioria dos animais do presente estudo apresentava aumento de volume do líquido abdominal e, possivelmente, esse evento contribuiu para a hiponatremia observada, pois o acúmulo de líquidos cavitários ocasiona perda do Na+ e de outros eletrólitos plasmáticos(58). No LP, o comportamento do Na+ foi semelhante ao do sangue em ambos os grupos (Tabela 5). As concentrações de Na+ frequentemente presentes nos derrames peritoneais são semelhantes ou levemente mais baixas do que as concentrações no plasma(60).
Quanto ao potássio (K+) sérico, ambos os grupos (Tabela 4) apresentaram valores médios dessa variável pouco inferior ao relatado na literatura para animais sadios(50,12). A hipocalemia é um dos principais distúrbios eletrolíticos em pacientes graves na medicina veterinária, no entanto, sua causa nem sempre é identificada, tendo como principais fatores predisponentes a diminuição da ingestão de alimentos e perda gastrintestinal(58).
No LP, o K+ apresentou valores médios significativamente superiores aos do sangue em ambos os grupos(61). Pesquisadores relataram que esse eletrólito sofre influência quando há alterações na cavidade abdominal, pois os valores de K+ no LP de caprinos submetidos a ruminotomia também aumentaram significativamente após o procedimento, sugerindo que as alterações na cavidade modificam as concentrações bioquímicas, celulares e físicas no local, como também já foi observado e relatado em outro estudo com líquido peritoneal de bezerros submetidos a herniorrafia umbilical(33). Em camelos saudáveis, valores superiores de K+ no LP também foram encontrados quando comparados aos valores sanguíneos destes animais(56). Vale ressaltar a escassez de informações sobre os componentes eletrolíticos no LP de bovinos.
Conclusão
Bovinos com enfermidades intestinais apresentaram concentração da albumina e atividade da creatinoquinase no líquido peritoneal superiores a animais com reticulites.
A magnitude da concentração do lactato L no líquido peritoneal demonstrou estar relacionada à gravidade das alterações presentes na cavidade abdominal.
Recomenda-se a avaliação simultânea no sangue e no líquido peritoneal da concentração proteica e do lactato L, assim como a citologia do líquido peritoneal como informação de auxílio diagnóstico e prognóstico das enfermidades digestivas dos bovinos.
Agradecimentos
À Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE) pela concessão da bolsa de doutorado (IBPG nº 0586-5.05/13/1).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Jun 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
31 Dez 2017 -
Aceito
25 Set 2019 -
Publicado
13 Mar 2020