Resumo
O modelo de terapias especializadas para aquisição de habilidades para crianças, especialmente autistas, tem crescido sob a lógica neoliberal. Profissionais da saúde vivenciam a precarização do trabalho, com repercussões tanto para sua própria saúde como para o cuidado das crianças e famílias. Para aprofundar a compreensão desses aspectos, esta pesquisa documental e retrospectiva, de abordagem qualitativa, analisou 131 relatos de terapeutas em uma mídia social. Os resultados são apresentados em dois eixos: (1) o trabalho e sua precarização e (2) a assistência prestada às crianças. Discute-se como a relação entre trabalho precário e assistência no “Complexo Industrial do Autismo” afeta profissionais, crianças e suas famílias. Para superar condutas historicamente institucionalizantes e promover um cuidado efetivo, é urgente o envolvimento de todos os interessados na busca por soluções dignas diante da gravidade do problema, incluindo a ampliação de regulamentações e políticas públicas.
Palavras-chave:
Cuidado da Criança; Experiências Adversas da Infância; Transtornos do Neurodesenvolvimento; Precarização do Trabalho
Abstract
The model of specialized therapies for skill acquisition in children, particularly autistic children, has been expanding under neoliberal logic. Healthcare professionals experience employment precarity, with repercussions for both their own health and the care provided to children and families. To deepen the understanding of these aspects, this qualitative, retrospective documentary research analyzed 131 therapists’ reports from a social media platform. The results are presented in two themes: (1) the precarization of work and (2) the assistance provided to children. The discussion explores how the relationship between employment precarity and precarious care in the “Autism Industrial Complex” affects professionals, children, and their families. To overcome historically institutionalizing practices and promote effective care, the involvement of all stakeholders is urgently needed in the search for dignified solutions to the severity of the issue, including the expansion of regulations and public policies.
Keywords:
Child Care; Adverse Childhood Experiences; Neurodevelopmental Disorders; Job Security
Introdução
Este artigo busca lançar luz sobre questões cruciais no cuidado em saúde na contemporaneidade de crianças autistas2 e suas famílias, abordando temas como normatividade social, capitalização do cuidado na sociedade neoliberal e a responsabilidade ética e técnica das profissionais que atendem esse público. Realizou-se uma análise crítica de relatos de denúncias feitas por terapeutas e publicados em um perfil anônimo da mídia social Instagram®, pautada na importância de construir futuras práticas de cuidado que não sucumbam ao modelo econômico produtivista nem à normatização de crianças.
Compreende-se que o conceito da infância não é estático e que, conforme Ariès (2006), foi historicamente construído. A responsabilização do Estado pelas crianças, particularmente aquelas com deficiência ou sofrimento psíquico, ocorreu tardiamente (Fernandes et al., 2020; Taño & Matsukura, 2015). No contexto brasileiro, apenas a partir do século XIX passaram a vigorar novas formas de entender a infância, fortemente atreladas à perspectiva de controle social. A primeira conformação regida pelo Estado caracterizou-se por um modelo tutelar, disciplinar e institucionalizante (Lima et al., 2019).
Para crianças classificadas como “anormais de inteligência”, “menores atingidos por anomalias físico-psíquicas” e “deficientes”, a assistência era promovida principalmente pelos setores da educação e da assistência social, em escolas especiais, psicoclínicas, hospitais psiquiátricos e abrigos. Couto & Delgado (2015) discutem que esse cuidado ocorria de forma autoritária e disciplinadora, visando transformar tais crianças em adultos subordinados e passivos. Segundo Taño & Matsukura (2015), práticas assistenciais institucionalizantes foram amplamente utilizadas, sendo essa a principal resposta às problemáticas sociais existentes.
A partir da década de 1970, o movimento de mães, pais e familiares de crianças com deficiência intelectual ganhou força no Brasil resultando na criação de diferentes instituições filantrópicas para fornecer assistência educacional e terapêutica (Lima et al., 2019), diante da negligência do Estado. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro passou a reconhecer a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, especialmente com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990 (Couto & Delgado, 2015). Também nesse ano, instituiu-se o Sistema Único de Saúde (SUS), que transformou a concepção de saúde ao incorporar dimensões sociais e políticas. Em consonância com a Reforma Sanitária, o processo da Reforma Psiquiátrica e o Movimento da Luta Antimanicomial começam a estabelecer novas formas de cuidado em saúde mental (Lima et al., 2019). Entretanto, apesar de questionarem práticas asilares, institucionalizantes e normativas, esses movimentos não priorizavam a assistência às crianças (Taño & Matsukura, 2015).
Diante da ausência do Estado na oferta de cuidados adequados às infâncias, especificamente para crianças autistas, instituições privadas e filantrópicas organizadas por familiares passaram a importar diferentes abordagens de cuidado voltadas a essa população (Lima et al., 2019). Profissionais, pesquisadoras e familiares contribuíram para a formulação de leis, o desenvolvimento de medicamentos, a criação de ferramentas de rastreio e diagnóstico, além da ampliação de tratamentos cada vez mais especializados (Grinker, 2019). Esse movimento social, legítimo em sua busca por soluções de cuidado, teve como um de seus desdobramentos a especialização do cuidado, culminando no que a literatura tem denominado “Complexo Industrial do Autismo” (Broderick, 2022), que transformou em mercadoria tudo o que se relaciona ao autismo. O autismo passou a servir a propósitos econômicos (Grinker, 2019; Broderick, 2022; Rios & Fein, 2019), inserindo-se em um mercado composto por setores econômicos em ascensão. A saúde tornou-se mais um nicho de mercado, no qual o lucro se sobrepõe e passa a mediar as relações de cuidado (Bezerra et al., 2023).
Nessa perspectiva, segundo Cascio et al. (2019), a inclusão social de crianças com deficiência depende mais da aquisição de habilidades individuais por meio de terapias estruturadas do que de intervenções psicossociais desenvolvidas em espaços coletivos e territoriais. De forma simplificada e geral, essas terapias auxiliam a redução de sintomatologias e o desenvolvimento de comportamentos socialmente aceitáveis e, embora se sustentem em evidências científicas, nem sempre são aplicadas conforme os protocolos estabelecidos (Lima et al., 2019).
Em contraposição, a busca por padrões normativos no desenvolvimento da criança autista passou a ser questionada a partir da década de 1990 pela socióloga e ativista autista Judy Singer, que desenvolveu o conceito de neurodiversidade. A neurodiversidade enfatiza que conexões neurológicas atípicas, como as presentes em pessoas autistas, não são doenças, mas variações naturais, diferentes e intrínsecas à diversidade humana (Sadzinski Junior et al., 2020). Não se nega a necessidade de intervenções terapêuticas e/ou medicamentosas para pessoas neurodivergentes; Contudo, o foco não deve repousar na normatização do comportamento, mas na estimulação da autonomia e independência, com respeito às peculiaridades de cada indivíduo, considerando suas dificuldades e potencialidades (Alencar et al., 2022).
Compreende-se que as práticas de cuidado em saúde centradas em padrões normativos de corpo e comportamento estão em consonância com os padrões ditados pelo próprio sistema capitalista e pelo pensamento neoliberal (Benevides, 2017). Na ideologia neoliberal, o sujeito “bem-sucedido” é aquele que consegue se adaptar às dificuldades e desafios produtivos impostos, primeiramente, pelo sistema educacional e, futuramente, pelo mercado de trabalho, alcançando posições consideradas socialmente prósperas. Esse indivíduo deve ser polivalente, cada vez mais qualificado, rápido, bem relacionado, produtivo e disponível às exigências do mercado (Antunes, 2002).
Tais características sugerem a valorização de intervenções em saúde focadas na adequação dos comportamentos considerados “inapropriados”, em detrimento da preservação da diversidade humana, da cultura e da singularidade das pessoas. Além disso, a insistência na adaptação aos padrões produtivistas tem historicamente gerado adoecimentos físicos e mentais, evidenciando os problemas do sistema capitalista e explicitando sua frequente incompatibilidade com a vida humana (Souza, 2021; Franco et al., 2010). Consideramos essa realidade problemática, uma vez que, embora existam diferentes formas de as pessoas se relacionarem com o mundo, grande parte das singularidades humanas é repelida pela própria sociedade e classificada como patológica (Canguilhem, 2005).
Diante desse cenário, é fundamental discutir a inserção, as condições e a organização3 do trabalho dos profissionais que atuam em serviços de cuidado normativo. Muitos desses serviços oferecem, por um lado, um cardápio de soluções rápidas as famílias e, por outro lado, o que Krein (2018) denomina um “cardápio” de contratos às trabalhadoras. Trata-se de múltiplas opções contratuais marcadas pela escassez de direitos e de proteção social, regidas por contratos terceirizados, intermitentes, “zero hora” ou “sob demanda”. Trabalha-se cada vez mais, negligenciando a própria saúde e a qualificação profissional, na medida em que se opta por formações cada vez mais rápidas e menos aprofundadas.
A deterioração e a precarização das condições de trabalho no capitalismo atual afetam diversas categorias profissionais. Todavia, vários estudos discutem as problemáticas dessa precarização na área da saúde (Souza, 2021; Franco et al., 2010), pois seus impactos atingem tanto as trabalhadoras e como os usuários desses serviços.
Franco et al. (2010) estabelecem algumas dimensões para a análise da precarização do trabalho, como a dos vínculos e relações contratuais; da organização e condições de trabalho de forma geral; da saúde dos trabalhadores; do reconhecimento social e da valorização simbólica; e da representação e organização coletiva. Utilizando outros termos para se referir às questões mencionadas – mas seguindo a mesma base epistemológica –, Vargas (2016) aponta que a precarização pode ocorrer a partir de condições relacionadas ao estatuto da atividade (desrespeito à legislação trabalhista), a aspectos objetivos (análise sobre o local e o ambiente de trabalho, meios e instrumentos, organização) e aspectos subjetivos (relativos à consciência e à experiência das trabalhadoras, dependendo dos níveis de satisfação e de seus efeitos na da atividade profissional).
No Brasil, essa precarização envolve tanto a falta de condições materiais adequadas quanto o frágil reconhecimento simbólico do sofrimento gerado pelo trabalho. Com os crescentes processos de desregulamentação, intensifica-se o medo da demissão, especialmente em função dos contratos terceirizados (Anjos et al., 2011). Nesse contexto, a experiência do trabalho real – aquele que se realiza na prática cotidiana, sob a perspectiva das trabalhadoras – quando compartilhada em relatos sobre violências e sofrimentos, pode oferecer pistas para a transformação dessa atividade e para a problematização das formas de cuidado em saúde.
Assim, a partir de relatos de denúncias publicados por terapeutas em uma mídia social (Instagram®), este estudo busca compreender aspectos do trabalho e da assistência prestada no contexto de clínicas privadas e especializadas no cuidado a crianças autistas4 no Brasil.
Método
Tipo de estudo
Este estudo caracteriza-se como uma pesquisa documental e retrospectiva (Gil, 2002), que teve como fonte primária relatos de profissionais previamente publicados em um perfil da mídia social Instagram®. Trata-se de uma pesquisa qualitativa voltada à compreensão dos aspectos do trabalho e da assistência ofertada a crianças, considerando-os como processos sociais pouco explorados no contexto desse grupo (Minayo, 2014).
Destaca-se que, por se tratar de uma temática e de um debate que têm emergido mais incisivamente nos últimos anos – diante do aumento da prevalência do autismo e, consequentemente, da instalação do que vem sendo denominado indústria do autismo –, até o momento não há estudos brasileiros que abordem diretamente essa questão. Embora alguns trabalhos façam um panorama geral sobre aspectos que tangenciam essa problemática emergente (Lugon & Andrada, 2019), não há investigações que a aprofundem especificamente. Assim, optou-se por apresentar e refletir sobre essa temática a partir de um banco de dados existente, que reúne relatos de terapeutas sobre a realidade vivenciada. Espera-se que este estudo funcione como um ponto de partida para que futuras pesquisas possam aprofundar essa discussão.
O uso das mídias sociais, como o Facebook®, Instagram®, Twitter® e WhatsApp®, para a coleta de dados em pesquisas científicas no campo da saúde já vinha crescendo significativamente mesmo antes da migração das formas tradicionais de coleta, como entrevistas e grupos focais, para o ambiente online durante a pandemia de COVID-19 (Araújo et al., 2019).
Aspectos éticos
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal São Carlos (UFSCar), sob número 6.057.453. Por tratar-se de uma pesquisa documental e retrospectiva, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi dispensado, pois qualquer pessoa cadastrada no Instagram® pode enviar os relatos, visualizar o perfil, ler suas publicações, salvá-las e enviá-las para qualquer outro usuário da plataforma. Além disso, todos os relatos foram publicados de forma anônima, garantindo o sigilo de quem os enviou ou de qualquer outra informação que possa identificar alguém ou algum local.
Produção de dados
Os dados utilizados consistem em 131 relatos anônimos de terapeutas, publicados entre novembro de 2021 e setembro de 2022 no feed de notícias em um perfil público anônimo intitulado @terapeutascansados, na plataforma de mídia social Instagram®. O Instagram® é uma rede social com múltiplos recursos de interação entre usuários, centrada na publicação de fotos e vídeos. As contas anônimas são públicas, cadastradas em e-mails que não contêm dados pessoais dos cadastrados. O feed de notícias é um recurso de interação no qual o usuário faz uma postagem de foto e/ou vídeo (reel) em sua página, que será vista por outros usuários (Instagram, 2023).
O perfil utilizado na coleta de dados tem como objetivo servir como um “[…] espaço para terapeutas do Brasil desabafarem e se unirem para mudar a realidade de nossas (suas) categorias” (Biografia do perfil @terapeutascansados). Além disso, é possível identificar um tom de denúncia, uma vez que muitas das terapeutas que publicaram relatos afirmam não conseguir expor esse problema em outros espaços ou instâncias por diferentes motivos, como será apresentado posteriormente nos resultados.
Em algumas postagens, é possível identificar que as autoras dos relatos são terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogas, psicopedagogas e psicólogas. No entanto, optamos por manter o termo “terapeuta(s)” para abarcar essa diversidade profissional e preservar a fidelidade à proposta do perfil.
A página é composta exclusivamente por relatos publicados no feed, os quais possuem uma estrutura padronizada: número do relato, texto do relato e figura digital com temáticas infantis. Para submeter relatos, qualquer usuário do Instagram pode acessar o link disponível no perfil (Bio Personalizável, linktr.ee/terapeutascansados) e preencher um formulário. Trata-se de um formulário online do Google Forms®, no qual é informado que o envio será realizado de forma completamente anônima, garantindo que a identidade do usuário não será exposta, nem mesmo para os administradores do perfil. O formulário contém um campo específico para a escrita do relato.
Os relatos foram coletados em novembro de 2022. Todos foram extraídos na íntegra pela pesquisadora principal, armazenados em um documento de texto e organizados numericamente, conforme a data de publicação.
Análise de dados
Para a análise dos dados, empregou-se a análise temática, uma metodologia frequentemente utilizada para a análise de conteúdo em pesquisas (Minayo, 2014). Após a organização e leitura exaustiva dos dados coletados, a análise teve início com a identificação das unidades de registro, seguida pela definição de categorias intermediárias temáticas. Por fim, o material foi agrupado em temas mais amplos e estruturados.
Nessa última etapa, a organização do material foi orientada por hipóteses, reflexões e análises críticas da literatura em dois grandes eixos: o primeiro voltado para o trabalho, com temas abordando as condições (sociais, objetivas e subjetivas), as dimensões (vínculos, organização do trabalho, saúde dos trabalhadores, valorização social e representação coletiva) e a precarização (Souza, 2021; Franco et al., 2010; Vargas, 2016); o segundo eixo aborda a assistência às crianças – composto pelos temas sobre práticas de violência e violação de direitos, institucionalização e precarização das relações entre terapeutas e familiares.
Resultados
Partimos da premissa de que os 131 relatos publicados não permitem a realização de generalizações sobre uma realidade única. No entanto, foram considerados exemplares representativos de uma determinada realidade, na qual as relações entre as condições de trabalho e de assistência se entrelaçam, evidenciando situações de violência e sofrimento.
Os resultados serão apresentados em dois eixos, com o objetivo de dar maior visibilidade aos achados, ainda que estejam diretamente interligados. Os trechos dos relatos foram corrigidos apenas em relação à gramática e à ortografia, sem alterações no estilo de escrita original, incluindo o uso de caixa alta e pontuação. Além disso, seguem a numeração da página do perfil, onde podem ser acessados na íntegra.
Eixo 1 - Trabalho
Precarização dos vínculos de trabalho e das relações contratuais
As repercussões de contratos por prestação de serviço, seja como profissional autônoma, seja como pessoa jurídica, estiveram presentes nos relatos, que destacaram a perda de direitos trabalhistas ou a impossibilidade de usufruí-los no mundo do trabalho real. Entre esses direitos, mencionam-se o descanso remunerado, as férias anuais remuneradas e a referência a uma jornada de trabalho formal. Além disso, foram identificadas perdas salariais e a supressão de benefícios indiretos, como planos de saúde, auxílio-transporte e alimentação.
[...] cobranças pela realização de cursos de aperfeiçoamento sem aumento salarial, auxílio de custo e com descontos uma vez que o terapeuta deveria se ausentar para a realização [...] como autônomos [...] (Relato 09).
[...] “ah, mas sendo [pessoa jurídica ou trabalho autônomo] você faz seu horário, tem sua autonomia para se organizar”, MENTIRA! Essa modalidade de trabalho só tira ainda mais nossos direitos e mascara o quão ridículo é nosso salário e tira o deles da reta para não pagarem os descontos e deixar essa responsabilidade para nós (Relato 14).
[...] Trabalhei por 2 anos e meio em uma clínica por regime CLT, por todo esse tempo não foi depositado o valor referente ao FGTS e, durante a pandemia, vários terapeutas foram mandados embora com o pedido de parceria para que o FGTS fosse pago parcelado. Nunca foi pago nada e tivemos que entrar com ação judicial para receber o que é nosso por direito (Relato 32).
[...] Após nossa jornada física na clínica, ao chegar no nosso domicílio, somos obrigados a participar de supervisões, reuniões, realizar relatórios, Projetos Terapêuticos Singulares, responder uma infinidade de grupos dos pacientes, conversar com os pais e nos exigem cursos de aperfeiçoamento a todo instante (Relato 37).
[...] Dizem que somos autônomos, mas não temos o direito de adoecer, de escolher os horários que vamos atender, e por vezes até pra fazer curso não podemos desmarcar. Sendo CLT ao menos temos férias, décimo terceiro e as faltas não são tão críticas. Ainda assim, sendo CLT ganhamos pouco e o abuso moral e psicológico é constante (Relato 71).
Precarização da organização e das condições de trabalho
Os relatos organizados neste tema evidenciam a multiexposição das trabalhadoras a condições do ambiente e da organização do trabalho que favorecem o sofrimento e processos de adoecimento. Entre essas condições, destacam-se a carga horária superior a 10 horas diárias, ambientes inadequados quanto ao mobiliário, à ventilação e à iluminação, além da falta de material de trabalho.
[...] Entrei em um looping exaustivo de trabalho (11 horas a fio com 2 horas de almoço conquistadas com muito esforço). Cadeiras e mesas pequenas, onde nossa perna ficava encolhida o dia todo e nossa bunda mal cabia no assento [...]. (Relato 19).
[...] Não era fornecido o mínimo (como por exemplo papel higiênico no banheiro, folha sulfite na recepção, salas com ventilação e antirruídos) (Relato 21).
[...] atendíamos em salas sem janela, com infiltrações nas paredes, sem ventilação, e os atendimentos eram realizados em dupla, ou seja, duas crianças e dois terapeutas. (Relato 22).
Meu relato é um trecho de tantas coisas inadequadas vivenciadas nestes locais. Trabalhei em uma clínica onde tivemos que trabalhar por dois dias SEM LUZ devido uma tempestade. Caiu uma árvore na frente da clínica e não foram capazes de cancelar os atendimentos até a [Empresa de fornecimento de energia elétrica] resolver o problema. (Relato 29).
Trabalhei em uma clínica (***)5que, por volta do mês de outubro, a dona passava um informativo de que não seria mais comprado material BÁSICO de higiene até janeiro e que por isso, deveríamos controlar os gastos. Sim, controlar os gastos de papel higiênico e sabonetes. [...] O local de trabalho era quente, precisávamos revezar ventiladores pois não tinha para todas as salas. [...] (Relato 79).
Precarização da saúde das trabalhadoras, adoecimento mental e medicalização da vida
Os relatos deste tema evidenciam processos de fragilização física e mental das trabalhadoras, decorrentes da relação das terapeutas com as suas condições reais de trabalho. Esses relatos expõem muitos adoecimentos, especialmente transtornos mentais e a síndrome de Burnout.
[...] Precisei de muita terapia para ver que [...] estava com a síndrome de Burnout [...] (Relato 02).
[...] Atender na beira de um colapso nervoso também. Tive crises de ansiedade [...]. O cenário é desolador: não era incomum (na verdade, era rotineiro) ver colegas chorando em sala depois de um atendimento difícil, já tendo que atender outra criança [...] (Relato 03).
[...] Terapeutas saíram, terapeutas adoeceram, ficaram agressivos, terapeutas perderam a saúde mental, terapeutas têm crise de choro durante o atendimento do paciente, terapeutas tomam medicamentos antidepressivos, terapeutas abandonam o atendimentos, terapeutas esqueceram técnicas de atendimento devido a exaustão, terapeutas perderam o amor pela profissão, terapeutas estão exaustos, terapeutas abandonaram a profissão, por não estar dando conta e o mais cruel nisso, esses terapeutas estão fazendo o melhor que pode para atender CRIANÇAS. (Relato 31).
Tive crises de pânico, crises de ansiedade e agora ainda luto contra a depressão, utilizando medicamentos (Relato 52).
Precarização do reconhecimento social e da valorização simbólica
Os relatos das terapeutas cansadas revelam trechos marcados pelo sofrimento, evidenciando situações abusivas que resultam na perda da perspectiva de carreira. Mencionam demissões, desejo de desistir da profissão, abandono do trabalho e uma sensação de menos valia, com impactos na identidade profissional e na construção de si mesma.
[...] Todo dia eu busco força de onde não tem e me questiono a todo momento se deveria abandonar tudo. Só o amor pela profissão não compensa [...]. (Relato 04).
[...] Às vezes, tinha a sensação de que os donos achavam que estavam fazendo um favor me dando trabalho (Relato 12).
[...] donos que nos chamavam de mocinha pelos corredores [...]. (Relato 19).
[...] Penso em desistir da profissão e jogar 7 anos de estudos e dedicação no lixo. Muito frustrante! (Relato 23).
Tenho um relato sobre uma clínica (***) que quase me levou a pedir demissão e desistir da minha carreira (pedir baixa no conselho, como é a brincadeira de vários terapeutas que estão exaustos) (Relato 41).
[...] A vida pessoal das terapeutas era constantemente controlada. Não podíamos ter amizade fora do trabalho. Contato com terapeutas que já haviam saído da clínica? Jamais. [...]. (Relato 103).
Precarização da representação e da organização coletiva
Este tema mostra a fragilização das possibilidades de enfrentamento das condições degradantes, da insegurança e da desproteção vivenciadas pelas trabalhadoras, resultando em diferentes reações e desdobramentos. Os relatos expõem situações de assédio e coerção, além da falta de confiança nas instituições para a realização de denúncias formais.
[...] A dona da clínica costumava se gabar que tinha um grupo com todos os donos de clínica e quem ‘pisasse na bola’ com ela não arrumaria emprego em nenhum lugar mais! [...]. (Relato 25).
Hoje a dona da clínica que trabalho reuniu todos que seguiram a página, [...] falou que [...] estavam de olho em cada um que curtia as postagens [...]. (Relato 30).
[...] O pior é saber que a orientação dos nossos conselhos é: registrar uma denúncia formal! Pois é! Acontece que ouvimos [...] que todos os donos e coordenadores de lá são amigos próximos de quem trabalha nesses conselhos [...]. (Relato 108).
Nesse contexto, o perfil @terapeutascansados acabou assumindo um lugar na construção de uma nova forma de organização coletiva, como estava explícito, inclusive na descrição do perfil: “[…] espaço para terapeutas do Brasil desabafarem e se unirem para mudar a realidade de nossas categorias” (Biografia do perfil @terapeutascansados). Diante de situações coercitivas e de tentativas de denúncias formais frustradas, poder contar sua história, desabafar e compartilhar as situações vivenciadas com outras terapeutas foi compreendido pelas participantes como uma possibilidade de resistência, um pedido de socorro e a esperança de que um coletivo, ainda que anônimo, pudesse dar visibilidade às suas denúncias.
Existe luz no fim da escuridão! Seus relatos são anônimos decorrentes da ditadura exercida dentro de algumas clínicas (NÃO TODAS), mas, saibam que não somos anônimos na vida das famílias dos pacientes nem da nossa família! [...] Juntos somos mais fortes!!! [...]. Esse perfil é um pedido de SOCORRO! (Relato 97).
Sou dona de uma clínica [...]. Vi alguns terapeutas perguntando se a página não está aí só para um desmonte das clínicas [...]. Posso dizer a vocês, com toda certeza, que não se faz necessário. O desmonte inicia no momento em que a gestão [...] não leva em consideração a saúde da sua equipe [...] Tudo isso aqui toca os gestores? Garanto a vocês que não. [...] Os conselhos não estão atuando? [...] não deixem este insta morrer. Os pais precisam saber disso, o MP [Ministério Público] precisa saber disso, a ANS [Agência Nacional de Saúde] precisa saber disso. Unam-se [...]. (Relato 98).
Eixo 2 - Assistência
Práticas de violência, negligência e violação dos direitos das crianças
Os relatos das profissionais evidenciam práticas adotadas pelas clínicas ou recomendadas por gestoras que ultrapassam os limites da ética e da moral, violando os direitos das crianças por meio de maus-tratos, uso da força física e agressões, sob o discurso técnico de controle do comportamento.
[...] sem contar que quando as crianças/adolescentes entravam em crise éramos orientados a usar a força e contê-los, muitas vezes éramos orientados a ameaçar as crianças/adolescentes com práticas de punição. (Relato 70).
[...] sem contar as práticas punitivas que usavam com as crianças que estavam em disruptivo. (Relato 75).
As crianças várias vezes eram submetidas a punições e ao famoso “é só ignorar” [...] aquilo que eles faziam não era nem de longe ABA ou qualquer [...] intervenção [...] que poderia funcionar a curto prazo, mas a longo prazo ia trazer consequências horríveis para as crianças. (Relato 94).
Dizem seguir protocolo de conduta, mas na hora que o bicho pega chamam um tal cara grande [...] para pegar a criança na força bruta!! (Relato 130).
[...] Éramos orientados a usar métodos aversivos e que causassem dor nas crianças. [...], ao conter as crianças devíamos fazer forte, de uma forma que doesse, para que não reforçassem os seus comportamentos inadequados de autolesão. [...]. (Relato 131).
Institucionalização das crianças
Neste tema, os relatos denunciam a carga horária excessiva de terapias à qual as crianças são submetidas e sua repercussão, numa relação indissociável com a violência exercida nesses serviços.
Enfiam terapias para as crianças mesmo cientes que as mesmas não estão dando conta da demanda! (Relato 66).
[...] A jornada exaustiva de muitas crianças, 20 horas semanais, muitas adormeciam nos atendimentos ou ficavam desorganizadas pelo cansaço, mas não podíamos chamar os pais. (Relato 107).
Num dia de muito calor, enquanto um dos terapeutas segurava no colo uma criança [...] que dormiu em sessão […] A dona [...] pegou a criança do colo do terapeuta, sacudiu e jogou água fria no rosto pra que [...] continuasse em terapia, em frente a várias pessoas [...]. (Relato 102).
Precarização das relações com familiares e a “farsa” presente nos atendimentos
As terapeutas relatam também que, muitas vezes, os pais ou responsáveis desconhecem como as terapias são desenvolvidas. Mencionam que gestoras ou outras profissionais dissimulam o que é oferecido como cuidado, desde o impedimento de que as profissionais forneçam informações aos pais até a venda de terapias com profissionais especializadas em determinada técnica ou abordagem, enquanto a prática é delegada a estagiárias ou profissionais sem essa formação.
[...] não era permitido dar alta para os pacientes, mesmo que eles já tivessem alcançado todos os objetivos propostos... era dito para [...] que a gente ‘criasse’ uma nova demanda para que os atendimentos continuassem. [...] Você vende um serviço que não realiza, promete mil coisas aos pais, mas a verdade é que estamos todos sendo enganados e virando reféns deste sistema sujo. (Relato 42).
Os pais assinam guias de atendimentos que não ocorreram, [...] não informam os pais de faltas de terapeutas que estão doentes, cansados, machucados ou simplesmente inventam uma desculpa porque não suportam mais o trabalho. (Relato 122).
Os pais pagam por terapias específicas sendo que pouquíssimos terapeutas têm aquelas formações. Por exemplo, método X, não tinha funcionário com o curso, a única que tinha o curso não estava mais na clínica e eles ainda vendiam essa terapia. Terapia de integração sensorial era feita por terapeutas com cursos básicos, sem certificação. (Relato 128).
Os pais inúmeras vezes não ficam sabendo que atendimentos de fono e TO são realizados por estagiários aba e que quando um profissional sai os diretores não permitem a ocorrência das devolutivas. (Relato 129).
[...] Estagiários atendem quando alguma terapeuta falta, em uma mesma sala várias crianças são atendidas ao mesmo tempo e os pais não fazem a mínima ideia de com quem o filho faz terapia. Mentem para os pais que prestam serviços especializados [...] mas no final a criança só passa 8 horas sentada na mesinha repetindo instruções e apontando para figuras. (Relato 130).
Discussão
As duas dimensões de análise, trabalho e assistência, são polos indissociáveis, conectados por práticas assistenciais e de gestão imersas no capitalismo neoliberal. No Brasil, no contexto mundial de expansão do diagnóstico do autismo, observa-se uma crescente defesa, por parte de profissionais, familiares e pesquisadores, do tratamento intensivo dessa população. Discute-se o multimilionário e lucrativo “Complexo Industrial do Autismo”, guiado por serviços e interesses farmacêuticos e financiado tanto por convênios particulares quanto por lobby político (Broderick, 2022).
Nesse cenário, nossos resultados também evidenciaram que tempo é dinheiro. Os relatos mostram processos de fragilização física e mental das trabalhadoras, impulsionados por uma equivocada contenção de custos e pela tentativa de manter o controle dos processos de trabalho das terapeutas, característica do trabalho contemporâneo (Franco et al., 2010). Diante das metas e dos ritmos acelerados, frequentemente são utilizadas manobras para aumentar a produtividade, as quais fragilizam tanto o trabalho quanto a saúde das trabalhadoras (Silva & Franco, 2007).
Para as crianças, observa-se o retorno da institucionalização, à medida que são retiradas da escola para se submeterem a tratamentos intensivos em clínicas-escolas, por 20, 30, 40 horas semanais, sob a justificativa da gravidade do quadro e das fragilidades no processo de inclusão. Com isso, são suprimidas inúmeras oportunidades dessas crianças, como a de se relacionarem com seus pares, brincarem de forma livre e espontânea e se expressarem fora do contexto controlado e disciplinador das terapias.
Muitos perdem. Incorporar a lógica do lucro do sistema produtivo capitalista ao cuidado em saúde é incompatível com a vida humana, dada sua histórica capacidade de produzir adoecimentos físicos e mentais (Franco et al., 2010). Nesse sentido, os relatos das terapeutas demonstram a estreita vinculação entre a precarização do trabalho e a precarização da própria vida (Souza & Lussi, 2022), seja a das trabalhadoras, seja a das pessoas atendidas por elas.
As terapeutas, independentemente do contrato de trabalho formal via CLT ou da prestação de serviço, pertencem ao grupo de profissionais ditas “autônomas” na área da saúde. No entanto, nossos resultados evidenciam que as escolhas contratuais e a organização do trabalho nas clínicas denunciadas comprometem aspectos centrais da autonomia profissional, afetando a identidade das trabalhadoras (Seligmann-Silva, 2001). Nesse caso, a autonomia serve apenas para perpetuar a escassez de proteção social e eximir as empresas de responsabilidade pelos investimentos necessários ao bem-estar das trabalhadoras e à qualidade dos serviços prestados.
As narrativas analisadas indicam que o trabalho autônomo ou liberal se configura como uma realidade predominante no que se refere ao tipo de contrato, materializando-se sobretudo por meio da “pejotização”. Entretanto, para as terapeutas deste estudo, a forte pressão de tempo, somada à intensificação do controle ou ao medo de perder o emprego (inclusive sob ameaças), resulta na falta de pausas no trabalho e no comprometimento do descanso e da recuperação do cansaço. Essas condições podem acarretar riscos tanto para as trabalhadoras quanto para as crianças e famílias assistidas, sem qualquer relação com autonomia ou liberdade no trabalho.
Dessa forma, nota-se que a suposta “autonomia” e “liberdade” associadas a trabalhos autônomos ou à “pejotização” são, na verdade, um discurso promovido pelo mercado, alinhado à racionalidade neoliberal, e não uma real conquista em relação à qualidade de vida e de trabalho. O lucro dos contratantes é, em parte, proveniente da desresponsabilização dos empregadores em relação às trabalhadoras, uma vez que a “pejotização” reduz drasticamente os custos tributários trabalhistas (Michelin et al., 2024).
Sennett (1999) destaca que a existência de diferentes tipos de contrato de trabalho influenciou negativamente os projetos de desenvolvimento pessoal e profissional, sobretudo entre jovens trabalhadoras. Isso ocorre, entre outros fatores, porque as empresas conseguem se eximir de investimentos em saúde e segurança, transferindo para as trabalhadoras as consequências negativas do trabalho, sem que elas recaiam legalmente sobre as empresas. Essa postura revela uma negação do valor da proteção à saúde e à vida.
A desarticulação das relações sociais entre as profissionais, impulsionada por uma lógica neoliberal competitiva e pelo desemprego estrutural, influencia diretamente a desmobilização dos coletivos que poderiam enfrentar política e juridicamente a precarização do trabalho. Enquanto elemento central da vida adulta, o trabalho, quando socialmente fragilizado e permeado pela insegurança que reiteramos ao longo deste estudo, tem consequências nas diversas dimensões da vida humana, incluído a saúde mental das trabalhadoras (Franco et al., 2010; Silva & Franco, 2007).
Respaldadas pela compreensão das distorções no uso das abordagens e técnicas voltadas ao controle e à normatização de comportamentos, das limitações na formação profissional e da suposta evidência científica que embasa certas práticas (Silva & Camargo, 2023), as profissionais produzem relatos de denúncias de inúmeras práticas adotadas pelas clínicas ou recomendadas por gestores que ultrapassam os limites da ética e violam os direitos das crianças. Esses relatos nos permitem compreender a profundidade do problema, que não se limita à realidade brasileira (Ortega, 2019; Broderick, 2022).
Destaca-se, mais uma vez, a ascensão das clínicas especializadas exclusivamente no diagnóstico do autismo. Nessas clínicas, as profissionais das equipes técnicas são convocadas a corrigir e adequar socialmente a “criança problema” ou a “criança difícil” (Grinker, 2019), tornando-as alvo de diferentes tecnologias de poder (Lockmann & Mota, 2013). Sob uma nova roupagem – a da intervenção especializada conduzida por inúmeras profissionais com suas técnicas e abordagens –, mas ainda sustentadas pela intolerância ao desvio (Canguilhem, 2005), a infância mantém-se vítima da violência, da opressão e da exclusão, em um cenário massivo de patologização e medicalização da vida (Cascio et al., 2019).
Apesar dos retrocessos e do desinvestimento promovidos pelo governo Bolsonaro, bem como da mercantilização do autismo (Fernandes et al., 2020), o Brasil conta com alguns avanços na assistência em saúde, decorrentes da construção de políticas públicas impulsionadas pelos movimentos da reforma sanitária e psiquiátrica, pela luta pelos direitos das pessoas com deficiência e, mais recentemente, pelo movimento das pessoas neurodivergentes. Entretanto, nossos resultados evidenciam que ainda há um longo caminho a percorrer na transformação da atenção às crianças.
Ortega (2019) enfatiza que o que está em jogo não é o sujeito e o cuidado, mas sim quem se apresenta como o detentor do saber e, consequentemente, do mercado. A transformação dessa realidade exige envolvimento e corresponsabilização entre múltiplos atores (Duarte & Kantorski, 2011). Ao priorizar exclusivamente uma perspectiva de assistência capitalizada e individualizada, perde-se a dimensão dos riscos identificados neste estudo. Há, portanto, uma urgência em avançar e garantir às crianças um cuidado amplo e real, que contemple sua participação social, educação, moradia e cidadania, uma vez que muitos problemas descritos na atualidade remontam a práticas históricas que ainda se mantêm (Taño & Matsukura, 2015).
Enfrentar essa realidade e contribuir para um cuidado mais efetivo, integrado às vivências e demandas cotidianas, exige o engajamento de todas as pessoas envolvidas com essa temática. O sussurro coletivo das terapeutas no perfil anônimo, ainda que não resulte diretamente em denúncias formais ou ações fiscalizatórias, constitui um registro das violências – tanto assistenciais quanto trabalhistas. Esses registros podem subsidiar a formação de coletivos organizados que reivindiquem melhorias para as categorias profissionais envolvidas e para o cuidado assistencial. Esperamos que nossa análise contribua para ampliar essa visibilidade, incentivando pesquisadores de diversas áreas a aprofundar as múltiplas questões que emergem deste estudo, bem como estimulando a sociedade a buscar soluções dignas para um problema desta gravidade.
Considerações Finais
Este artigo apresenta uma análise crítica de relatos de terapeutas publicados em um perfil de mídia social, destacando as relações entre a precarização do trabalho, em suas múltiplas condições e dimensões, e a assistência a crianças e suas famílias, abordando questões de normatividade, produtividade e capitalização do cuidado na sociedade neoliberal.
A principal limitação deste estudo diz respeito à fonte primária de dados utilizada, uma vez que há informações adicionais que permitam caracterizar melhor a população de terapeutas que submeteram seus relatos e analisar possíveis vieses. Além disso, o desenho metodológico deste estudo não possibilita generalizações sobre uma realidade única, mas sim o desvelamento de aspectos de uma determinada realidade, na qual a precariedade das condições de trabalho e de assistência se entrelaça, evidenciando situações de violência e sofrimento.
A exploração crítica desse material permite indicar alguns caminhos para pesquisas futuras, como a necessidade de compreender melhor o cenário atual do Complexo Industrial do Autismo, incluindo seu funcionamento nos serviços públicos, e de desenvolver estratégias políticas e de cuidado que possibilitem superar a realidade aqui apresentada.
Esperamos que a contribuição deste artigo seja a ampliação da visibilidade dessa temática, mobilizando todas as pessoas interessadas na construção de soluções éticas, técnicas e políticas para essa população.
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Utilizaremos o gênero feminino, considerando a predominância de mulheres nas profissões de terapeutas, como terapia ocupacional, fonoaudiologia, psicologia, fisioterapia e entre profissionais com especialização em psicopedagogia.
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Ainda que o Transtorno do Espectro Autista (TEA) seja a forma mais difundida para se referir ao autismo, compreende-se que se trata de uma classificação nosológica, a partir de uma perspectiva biomédica. Assim, considerando o campo no qual se insere este estudo, optou-se por adotar o termo autismo e pessoas/crianças autistas, considerando que se trata de uma condição, sob o enfoque da neurodiversidade.
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Entendemos que as condições de trabalho englobam não apenas os aspectos físicas, ambientais e instrumentais, mas também a dimensão subjetiva e as relações vinculadas às formas de contratação e remuneração (Oliveira & Assunção, 2010). Já a organização do trabalho refere-se às maneiras como uma atividade é realizada, incluindo as normas, os procedimentos e as regras envolvidas. Toda organização do trabalho possui características alinhadas à ordem econômica e ao sistema produtivo vigente (Resende, 2020).
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Observa-se que, embora não seja possível identificar com certeza em 100% dos relatos que a população atendida nas clínicas se refere ao autismo, a maioria deles o menciona. Essa tem sido a realidade atual no contexto brasileiro, diante da expansão do diagnóstico.
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A própria página retirou nomes de clínicas e quaisquer características que pudessem identificar os locais de trabalho, substituindo-os por (***).
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Como citar:
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Editado por
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Editora de seção
Profa. Dra. Beatriz Prado Pereira
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Abr 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
03 Maio 2024 -
Revisado
07 Out 2024 -
Aceito
12 Dez 2024
