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Interseccionalidade: um conceito amefricano e diaspórico para a terapia ocupacional

Resumo

Este ensaio tem como objetivo apresentar o conceito de interseccionalidade, proposto a partir do feminismo negro, como ferramenta de pesquisa e análise, epistêmica e prática, para a terapia ocupacional brasileira e latino-americana. Partindo da ideia de amefricanidade, conceito apresentado por Lélia Gonzalez, como categoria para pensar a vivência de pessoas negras e indígenas localizadas num território colonizado, propomos reflexões para a terapia ocupacional aproximar-se das ocupações negras e indígenas, compreendendo os processos de ruptura e exclusão a partir das desigualdades raciais. Apresentamos reflexões do contexto internacional sobre interseccionalidade e colonialidade para a terapia ocupacional. Sem intenção de encerrar o debate, mas sim de reunir discussões já iniciadas, concluímos que o conceito de interseccionalidade interessa à terapia ocupacional à medida que auxilia a compreensão dos atuais processos de opressão diante do complexo sistema de opressão colonial, cis-heteronormativa, patriarcal, neoliberal, capitalista e capacitista, como compromisso ético e responsabilização técnica e profissional.

Palavras-chave:
Terapia Ocupacional; Interseccionalidade; Epistemologia; Colonialismo; Racismo

Abstract

This essay aims to present the concept of intersectionality, proposed from black feminism, as an epistemic and practical research analysis tool for Brazilian and Latin American occupational therapy. Lélia Gonzalez’s concept of amefricanidade provides a basis to think about the everyday life of black and indigenous people living in colonized territories. Thus, this concept enables us to approach black and indigenous occupations and understand the exclusion and rupture processes brought about by racial inequalities. We introduce thoughts about intersectionality and coloniality from international contexts contributing to the propositions of occupational therapy. Not with the intention to close the debate, but rather with that of gathering previously started discussions, we conclude that the concept of intersectionality interests occupational therapy because it helps us understand the current processes of oppression in the face of the complex system of colonial, cis-heteronormative, patriarchal, capitalist, neoliberal and ableist oppression, as an ethical commitment and technical-professional accountability.

Keywords:
Occupational Therapy; Intersectionality; Epistemology; Colonialism; Racism

Introdução

Este trabalho apresenta o conceito de interseccionalidade como uma proposta amefricana1 1 A categoria analítica de amefricanidade é uma proposição feita pela historiadora e filosofa brasileira Lélia González com relação a experiência racial de pessoas negras, indígenas e mestiças nas Américas. e diaspórica para a terapia ocupacional, em especial no território latino-americano. Busca-se a construção de saberes-fazeres em terapia ocupacional comprometidos ético e politicamente, considerando elementos identitários e suas relações e interações. Elementos que marcam os eixos de opressões e as matrizes de dominação de pessoas, grupos e coletivos que mais sofrem com os processos de exclusão e desigualdade dos principais poderes hegemônicos interrelacionados: o patriarcado, a colonialidade e o capitalismo.

É preciso considerar que outras formas de dominação, violação e supremacia estão articuladas a esses conceitos, como o imperialismo, o classismo, o capacitismo, a cis-heteronormatividade, o cristianismo, o antropocentrismo, o colonialismo, o neoliberalismo, o genocídio/ecocídio; afinal, esses poderes hegemônicos não são as únicas formas de exclusão, mas alimentam e enraízam as estruturas sociais que as mantém.

Neste manuscrito, a partir do lugar de fala das autoras – mulheres, LBT2 2 LBT significa Lésbicas, Bissexuais e Transexuais (mulheres) e Travestis e a sigla reduzida é usada para referir-se às identidades de sexualidade e gênero incluídas no espectro das identidades de gênero femininas. , latino-amefricanas, negra3 3 Negra está no singular por referir-se à identidade de apenas uma das autoras. – comprometidas com a luta antirracista, apresentamos uma perspectiva sobre a interseccionalidade pautada nas relações étnico-raciais para construção de saberes e práticas da terapia ocupacional latino-americana interessadas no compromisso e nas lutas contra-hegemônicas frente às colonialidades, ao racismo, ao cis-heteropatriarcado, entre outros eixos de opressão e matrizes de dominação.

Processos Sócio-históricos e Políticos no Desenvolvimento Epistêmico na Terapia Ocupacional

A constituição de perspectivas críticas entre terapeutas ocupacionais ocorreu principalmente durante os anos 1970 e 1980, quando emergiram lutas sociais em consonância com pautas e demandas para os processos de reabertura política e redemocratização.

Esse processo de mudança cultural e estrutural em busca da ampliação da cidadania e dos direitos acompanhava a diversidade de movimentos e lutas sociais emergentes com interesse em se aprofundar nas dinâmicas sociais, culturais e econômicas das populações historicamente excluídas e estigmatizadas (Castro et al., 2001Castro, E. D., Lima, E. M. F. A., & Brunello, M. I. B. (2001). Atividades humanas e terapia ocupacional. In M. M. R. P. De Carlo & C. C. Bartalotti (Orgs.), Terapia ocupacional no Brasil: fundamentos e perspectivas (pp. 41-59). São Paulo: Plexus.; Cardinalli, 2016Cardinalli, I. (2016). Conhecimentos da Terapia Ocupacional no Brasil: um estudo sobre trajetórias e produções (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.). Diálogos e incorporação de estudos das Ciências Sociais e Humanas agregaram perspectivas críticas engajadas em processos sociais para a terapia ocupacional (Galheigo et al., 2018Galheigo, S. M., Braga, C. P., Arthur, M. A., & Matsui, C. M. (2018). Produção de conhecimento, perspectivas e referências teórico-práticas na terapia ocupacional brasileira: marcos e tendências em uma linha do tempo. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 723-738.).

Entre 1990 e 2000, terapeutas ocupacionais marcadamente ampliaram seus campos de atuação – educação, social, cultural, trabalho, direitos humanos, territorial, comunitário, entre tantos outros (Galheigo et al., 2018Galheigo, S. M., Braga, C. P., Arthur, M. A., & Matsui, C. M. (2018). Produção de conhecimento, perspectivas e referências teórico-práticas na terapia ocupacional brasileira: marcos e tendências em uma linha do tempo. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 723-738.) – comprometidos com os processos históricos, sociais e políticos das desigualdades e exclusões.

Atualmente, a diversidade de práticas, teorias e epistemologias produz “[...] uma substantiva complexificação da produção da terapia ocupacional no país e do uso de referenciais teórico-metodológicos” (Galheigo et al., 2018Galheigo, S. M., Braga, C. P., Arthur, M. A., & Matsui, C. M. (2018). Produção de conhecimento, perspectivas e referências teórico-práticas na terapia ocupacional brasileira: marcos e tendências em uma linha do tempo. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 723-738., p. 733) que nos convoca para debater questões emergentes.

Os movimentos sociais e identitários, no Brasil e no mundo, ganham força e relevância à medida que o conservadorismo avança. Os deslocamentos provocados pelas demandas de coletivos feministas, negros, indígenas, da população LGBTI+4 4 LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis, e Intersex), seguida do símbolo +, sendo essa a sigla mais usual. , de pessoas com deficiência, entre outros, exigem cada vez mais que as pautas identitárias ocupem espaços de representatividade e expressividade na vida cotidiana e demandam avanços legais, culturais e políticos.

Para a terapia ocupacional, isso implica que a compreensão dos cotidianos, ocupações e atividades humanas considere as demandas referentes aos marcadores identitários (Ambrosio, 2020Ambrosio, L. (2020). Raça, gênero e sexualidade: uma perspectiva da Terapia Ocupacional para as corporeidades dos jovens periféricos (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.) e que as atuações terapêutico-ocupacionais corroborem a ampliação de direitos, participação, cidadania e representatividade.

De acordo com Silva et al. (2019Silva, C. R., Jarra, R. M., Calle del Campo, Y., & Kronenberg, F. (2019). Terapias Ocupacionais do Sul: demandas atuais a partir de uma perspectiva socio-histórica. REVISBRATO, 3(2), 172-178., p. 173), a descolonização dos saberes e fazeres em terapia ocupacional não é possível sem que compreendamos “[...] os processos de criação, produção e reprodução desses mecanismos de dominação e exploração [...]” de pessoas, grupos e comunidades historicamente marginalizadas pelos processos da colonização e das colonialidades.

A descolonização das bases teórico-conceituais da terapia ocupacional é um continuum necessário que diz respeito à proposta de rever as lógicas já instituídas e oficializadas, com o compromisso ético e político de fazer emergir formas de ser e estar no mundo que fogem aos padrões impostos pela colonização e pelas novas colonialidades (Quijano, 2009Quijano, A. (2009). Colonialidade do Poder e Classificação Social. In B. S. Santos & M. P. Meneses (Orgs.), Epistemologias do Sul. (pp.73-118). Coimbra: Edições Almedina.).

Processos Histórico-raciais no Brasil e a Urgência de se Pautar as Relações Étnico-raciais

A formação histórica do nosso país está assente sobre um processo violento de mais 500 anos de colonização e mais de 300 anos de escravização, exploração e genocídio de povos negros e indígenas (Nascimento, 2016Nascimento, A. (2016). O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva.). A história oficial brasileira, que compõe a grande maioria da literatura sobre o tema, apaga ou marginaliza tudo o que precedeu às invasões europeias e esforça-se para omitir os efeitos da colonização e da escravização, tão presentes atualmente na vida de pessoas negras e indígenas (Silva, 2019Silva, C. (2019). #Parem de nos matar! São Paulo: Editora Jandaíra.).

Os processos de extermínio e exploração dessas populações podem ser evidenciados hoje na constante destruição das áreas de preservação indígena, nos persistentes assassinatos das juventudes negras (Silva, 2019Silva, C. (2019). #Parem de nos matar! São Paulo: Editora Jandaíra.), no crescimento da concentração de renda e da pobreza, no encarceramento em massa ou na falta de acesso à educação, ao trabalho e ao lazer, que no Brasil tem cor (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2019). Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar, contínua. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual - PNADC/A - Conjuntos de dados. Rio de Janeiro: IBGE. Recuperado em 20 de junho de 2022, de https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf.
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). Esses processos, que levam à marginalização e ao genocídio dessas populações, interferem diretamente em seus cotidianos (Ambrosio, 2020Ambrosio, L. (2020). Raça, gênero e sexualidade: uma perspectiva da Terapia Ocupacional para as corporeidades dos jovens periféricos (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.).

Córdoba (2020)Córdoba, A. G. (2020). A propósito de nuevas formas de colonización en terapia ocupacional. Reflexiones sobre la idea de Justicia Ocupacional desde la perspectiva de una filosofía política crítica. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(4), 1365-1381. agencia o conceito de Justiça Ocupacional baseado em uma ideia liberal de justiça que tenta estabelecer uma simetria entre a satisfação ocupacional e os direitos sociais das pessoas. Essa falsa simetria sustenta a lógica liberal da justiça social e reafirma os princípios da dominação capitalista colonial sobre pessoas e grupos que ocupam lugares subalternos dentro das relações de poder (Córdoba, 2020Córdoba, A. G. (2020). A propósito de nuevas formas de colonización en terapia ocupacional. Reflexiones sobre la idea de Justicia Ocupacional desde la perspectiva de una filosofía política crítica. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(4), 1365-1381.). Assim, a produção de injustiças está acompanhada de um processo histórico-social colonial, patriarcal e capitalista que precisa ser historicizado, politizado, apreendido e ensinado.

Kronenberg & Pollard (2005)Kronenberg, F., & Pollard, N. (2005). Overcoming occupational apartheid: A preliminary exploration of the political nature of occupational therapy. In F. Kronenberg, S. S. Algado & N. Pollard (Eds.), Occupational therapy without borders: Learning from the spirit of survivors (pp. 58–86). Toronto: Elsevier Churchill Livingstone. afirmam que as injustiças ocupacionais ocorrem a partir da restrição ou impedimento do acesso e da participação das pessoas com base em raça/cor, etnia, funcionalidade, gênero, orientação sexual, religião e crenças espirituais, recortes socioeconômicos, entre outros.

Considerando o racismo como uma ferramenta estrutural de opressão, Farias et al. (2018Farias, M. N., Leite Junior, J. D., & Costa, I. R. B. B. (2018). Terapia Ocupacional e população negra: possibilidades para o enfrentamento do racismo e desigualdade racial. REVISBRATO, 2(1), 228-243., p. 236) afirmam que a terapia ocupacional necessita pensar ações específicas para a população negra, uma vez que a raça é um fator que promove injustiças e impedimentos das “[...] atividades e ocupações significativas e necessárias para todos os gêneros e faixas etárias”.

Bezerra & Queiroz (2018Bezerra, W. C., & Queiroz, S. B. (2018). A formação de terapeutas ocupacionais e as populações tradicionais. In R. A. S. Silva, P. C. Bianchi & D. S. Calheiros (Eds.), Formação em Terapia Ocupacional no Brasil: pesquisas e experiências no âmbito da graduação e pós graduação (pp. 243-263). São Paulo: FiloCzar., p. 257) propõem pensar, a partir de perspectivas étnicas, conceitos já institucionalizados pela terapia ocupacional, como diversidade cultural, direitos humanos, relações de poder, entre outros, para atuações com “povos etnicamente vulneráveis”. No ensino de terapia ocupacional, os autores apontam que a revisão de conceitos e inclusão de saberes tradicionais privilegiando práticas horizontalizadas promovem participação direta e pertencimento desses grupos e protagonismo na fala de si (Bezerra & Queiroz, 2018Bezerra, W. C., & Queiroz, S. B. (2018). A formação de terapeutas ocupacionais e as populações tradicionais. In R. A. S. Silva, P. C. Bianchi & D. S. Calheiros (Eds.), Formação em Terapia Ocupacional no Brasil: pesquisas e experiências no âmbito da graduação e pós graduação (pp. 243-263). São Paulo: FiloCzar.).

Ambrosio et al. (2020)Ambrosio, L., Andrade, A. F., & Sousa, D. P. (2020). Deficiência intelectual e racismo: práticas de terapia ocupacional no centro profissionalizante e de convivência da APAE de Limeira-SP. In D. G. S. Costa & C. Castro (Orgs.), Intersetorialidade: saberes e práticas sobre a questão da pessoa com deficiência (pp. 8-19). São Paulo: FEAPAES. apontam que a prática terapêutica ocupacional antirracista, além de estar comprometida com as pessoas e grupos marginalizados pelo racismo e colonialismo, precisa estar engajada em promover alterações nas estruturas institucionais, sociais e comunitárias.

Se para a atuação técnica estamos sendo convocados a repensar conceitos, no âmbito da pesquisa e do desenvolvimento teórico-epistemológico precisamos acompanhar essas atualizações que exigem que estabeleçamos novos diálogos. Nesse sentido, Grenier (2020)Grenier, M. L. (2020). Cultural competency and the reproduction of White supremacy in occupational therapy education. Health Education Journal, 79(6), 633-644. argumenta que a supremacia branca dominou as bases epistêmicas da terapia ocupacional no mundo. Para Lee (2019)Lee, B. (2019). Scoping review of Asian viewpoints on everyday doing: a critical turn for critical perspectives. Journal of Occupational Science, 26(4), 484-495., fica evidente que a profissão resguarda as compreensões ocidentais sobre todas as ocupações e, por isso, devemos encaminhar, criar e incorporar outros pontos de vista para abarcar as diversidades culturais do mundo globalizado.

Outros autores vêm denunciando o racismo epistêmico nas bases fundadoras da terapia ocupacional, convocando-nos a nos posicionar e reinventar nossas práticas e epistemes de forma localizada: no Brasil (Farias et al., 2018Farias, M. N., Leite Junior, J. D., & Costa, I. R. B. B. (2018). Terapia Ocupacional e população negra: possibilidades para o enfrentamento do racismo e desigualdade racial. REVISBRATO, 2(1), 228-243.; Ambrosio, 2020Ambrosio, L. (2020). Raça, gênero e sexualidade: uma perspectiva da Terapia Ocupacional para as corporeidades dos jovens periféricos (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.), em outros países na América Latina (Mora et al., 2020Mora, J. A. F., Landeros, F. S. L., Granifo, M. A. O., Suazo, V. P. R., & Monsalve, V. E. R. (2020). Impacto de la violencia política en el juego de niños y niñas Mapuche de una comunidad de la Región de la Araucanía. Revista Chilena de Terapia Ocupacional, 20(1), 73-82.), na América do Norte (Grenier, 2020Grenier, M. L. (2020). Cultural competency and the reproduction of White supremacy in occupational therapy education. Health Education Journal, 79(6), 633-644.), na África do Sul (Ramugondo, 2018Ramugondo, E. (2018). Healing work: intersections for decoloniality. World Federation of Occupational Therapists Bulletin, 74(2), 83-91.), na Nova Zelândia (Gibson, 2020Gibson, C. (2020). When the river runs dry: Leadership, decolonisation and healing in occupational therapy. New Zealand Journal of Occupational Therapy, 67(1), 11-20.) e em países asiáticos (Lee, 2019Lee, B. (2019). Scoping review of Asian viewpoints on everyday doing: a critical turn for critical perspectives. Journal of Occupational Science, 26(4), 484-495.). A propósito, a Organização Mundial de Terapeutas Ocupacionais lançou pela primeira vez uma Declaração sobre o Racismo Sistêmico (World Federation of Occupational Therapists, 2020World Federation of Occupational Therapists – WFOT. (2020). Statement on systemic racism. Recuperado em 20 de setembro de 2021, de https://www.wfot.org/assets/resources/WFOT-Statement-on-Systemic-Racism.pdf
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).

Antes da Interseccionalidade, a Recentralização da Questão Racial

A seguir, propomo-nos a trazer diálogos possíveis entre a terapia ocupacional e os movimentos diaspóricos afro-brasileiros5 5 O conceito de diáspora aqui empregado diz respeito às identidades culturais mantidas e transformadas ao longo do tempo após processos migratórios de grupos ou comunidades. Assim, a articulação de conhecimentos das diásporas afro-brasileiras refere-se aos saberes produzidos por negros brasileiros, podendo ou não se relacionar explicitamente aos saberes africanos. e amefricanos nas Ciências Sociais e Humanas.

Franz Fanon, psiquiatra e intelectual negro, contribuiu para a compreensão do racismo como elemento central no processo de adoecimento psíquico de pessoas negras. Fanon (2008)Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. concebe a ideia de racismo a partir da análise sociogênica, ou seja, a análise do mundo social sobre as individualidades e a supremacia das instituições hegemônicas.

De acordo com proposta analítica de Fanon (2010Fanon, F. (2010). Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., p. 56), a questão racial antecede a desigualdade de ordem econômica:

Nas colônias, a infraestrutura econômica é também uma superestrutura. A causa é consequência: alguém é rico porque é branco, alguém é branco porque é rico. É por isso que as análises marxistas devem ser ligeiramente estendidas, a cada vez que se aborda o problema colonial.

Lélia Gonzalez, historiadora e filosofa brasileira, apresentou em suas obras diálogos com diversos e importantes pensadores negros, como Fanon, DuBois, Angela Davis e Abdias Nascimento. Ela é considerada uma das lideranças do Movimento Feminista Negro no Brasil6 6 Lélia Gonzalez é uma das figuras mais importantes do feminismo negro no Brasil. Contribuiu para formação de muitas mulheres negras e de pessoas do movimento negro em geral. Foi a primeira pessoa no Brasil a relacionar racismo e sexismo como elementos de opressão contra as mulheres negras na estrutura social colonial brasileira. Ela é reconhecida como precursora da interseccionalidade no Brasil. (Ratts & Rios, 2010Ratts, A., & Rios, F. (2010). Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro.).

Partindo da compreensão sociogênica sobre o racismo de Fanon, a autora analisa as formas brasileiras de racismo e define diferentes tipos de racismo: o aberto e o disfarçado7 7 Mais informações em Gonzalez (1988). (Gonçalves, 2020Gonçalves, R. (2020). Lélia Gonzalez e a influência de Frantz Fanon: construindo uma nova epistemologia feminista. In P. C. Magno & R. G. Passos (Orgs.), Direitos humanos, saúde mental e racismo: diálogos à luz do pensamento de Frantz Fanon (pp. 225-239). Rio de Janeiro: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.). O primeiro, mais comum em países anglo-saxões, relaciona-se a ancestralidade e as características de origem das pessoas e, baseado na supremacia branca, produz segregação, de forma explícita, dos grupos não-brancos (Gonzalez, 1988Gonzalez, L. (1988). A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, 92(93), 69-82.). O segundo, o racismo disfarçado (ou por denegação), definido pela autora como o “racismo à brasileira”, é o mais comum nos países que sofreram colonização luso-espanhola e baseia-se na construção de justificativas que incentivem a miscigenação como forma de clareamento da população e/ou tentem assimilar uma suposta democracia racial (Gonzalez, 1988Gonzalez, L. (1988). A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, 92(93), 69-82.).

Gonzalez (1988Gonzalez, L. (1988). A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, 92(93), 69-82., p. 76) nos convoca a compreender a experiência amefricana das vivências e ocupações negras e indígenas, sendo a categoria de amefricanidade possível para analisar as violências raciais contra pessoas negras (africanas e afro-brasileiras) e indígenas (povos originários das Américas):

A amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada [...] Em consequência, ela nos encaminha no sentido de toda uma identidade étnica.

Reconhecê-la é, em última instância, reconhecer um gigantesco trabalho de dinâmica cultural que não nos leva para o lado do Atlântico, mas que nos traz de lá e nos transforma no que somos hoje: amefricanos.

Assim, defende-se que o conceito de amefricanidade dialoga diretamente com a decolonialidade, uma vez que propõe deslocamentos para as pessoas negras e indígenas, fazendo emergir saberes e experiências a partir das percepções próprias desses grupos (Gonçalves, 2020Gonçalves, R. (2020). Lélia Gonzalez e a influência de Frantz Fanon: construindo uma nova epistemologia feminista. In P. C. Magno & R. G. Passos (Orgs.), Direitos humanos, saúde mental e racismo: diálogos à luz do pensamento de Frantz Fanon (pp. 225-239). Rio de Janeiro: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.).

Além da raça, o processo colonial e capitalista produz outras dimensões da opressão, como a colonização de gênero (Lugones, 2014Lugones, M. (2014). Colonialidad y género: hacia un feminismo descolonial. In I. Jiménez-Lucena, M. Lugones, W. Mignolo & M. Tlostanova (Comp.), Género y descolonialidad. (pp. 13-42). Buenos Aires: Ediciones del Signo.), a colonização da sexualidade (Costa & Alves, 2020Costa, T. B., & Alves, M. C. (2020). Colonialidade da sexualidade: dos conceitos “Clássicos” ao pensamento crítico descolonial. In M. C. Alves & A. C. Alves (Orgs.), Epistemologias e metodologias negras, descoloniais e antirracistas (pp. 51-84). Porto Alegre: Rede UNIDA.), o capacistimo, entre outras, baseado em sistemas de normalização e padronização da humanidade.

Nas encruzilhadas do sexismo e do racismo, Gonzales (1984)Gonzales, L. (1984). Racismo e Sexismo na cultura brasileira. In L. A. Silva (Org.). Movimentos sociais, urbanos, memórias étnicas e outros estudos (pp. 223-244). Brasília: Anpocs. apresenta uma extensa contribuição de análises interseccionais que remontam ao período de colonização e aponta para as consequências deste processo que atingem as mulheres negras até hoje.

A Interseccionalidade como Ferramenta Amefricana de Análise

No campo acadêmico, o conceito de interseccionalidade é considerado das mais importantes contribuições do feminismo negro. Crenshaw (1989)Crenshaw, K. (1989). Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine. University of Chicago Legal Forum, 1989(8), 139-167. e Hill-Collins (1990) foram duas mulheres afro-americanas pioneiras na definição e defesa do conceito de interseccionalidade para analisar as opressões de racistas-patriarcais que mulheres negras sofrem no contexto estadunidense.

Para Crenshaw (1989)Crenshaw, K. (1989). Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine. University of Chicago Legal Forum, 1989(8), 139-167., a interseccionalidade é uma ferramenta de análise que marca as diferenças em determinados grupos e que produz formas diversas de experienciar a discriminação. Segundo Hill-Collins (1990, p. 18), a interseccionalidade pode ser compreendida como “[...] formas particulares de opressão que se interligam, por exemplo, intersecções de raça e gênero [...]”, pois as opressões trabalham juntas para produzir injustiças e, nesse sentido, uma opressão não pode ser reduzida a um tipo fundamental ou compreendida de forma isolada, há eixos de opressão que se entrelaçam no quadro de uma matriz de dominação.

Ainda que as proposições de Crenshaw (1989)Crenshaw, K. (1989). Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine. University of Chicago Legal Forum, 1989(8), 139-167. e Hill-Collins (1990) apresentem, sutilmente, diferenças, a intenção de ambas as autoras é apontar para um possível instrumento que nos ajude a captar as invisibilidades e perversidades de opressões em interação nos diferentes contextos da vida cotidiana.

No contexto brasileiro, desde 1970, Gonzales (1984)Gonzales, L. (1984). Racismo e Sexismo na cultura brasileira. In L. A. Silva (Org.). Movimentos sociais, urbanos, memórias étnicas e outros estudos (pp. 223-244). Brasília: Anpocs. falava nessas interações racismo-sexismo entre mulheres negras, referindo-se as encruzilhadas de raça-gênero/sexo8 8 Quando fala das encruzilhadas para mulheres negras, Lélia Gonzalez utiliza a construção raça-sexo. No o contexto atual, a utilização da construção raça-sexo é considerada excludente. Justifica-se a construção raça-gênero/sexo para dialogar com a produção original da autora de maneira atualizada. . Gonzales (1984)Gonzales, L. (1984). Racismo e Sexismo na cultura brasileira. In L. A. Silva (Org.). Movimentos sociais, urbanos, memórias étnicas e outros estudos (pp. 223-244). Brasília: Anpocs. propõe uma análise histórica racial-sexista do colonialismo, ressaltando a exploração sexual de mulheres negras e indígenas para construção da sociedade brasileira, para além da exploração no trabalho, principalmente no âmbito doméstico.

Recentemente, Akotirene (2019)Akotirene, C. (2019). Interseccionalidade. São Paulo: Polén., a partir desses referenciais, reafirma a possibilidade de ampliação da compreensão das interseccionalidades/encruzilhadas para outras estruturas de opressão, como por exemplo: a sexualidade, o capacitismo, a gordofobia, o etarismo, entre outras.

Para Akotirene (2019)Akotirene, C. (2019). Interseccionalidade. São Paulo: Polén., no entanto, não se trata de procurar uma hierarquização ou somatória de opressões, mas sim de produzir uma categoria analítica que possibilite compreender que há uma estrutural colonial patriarcal capitalista que precisa ser enfrentada de forma integral, ou seja, identificar a “[...] articulação das clivagens identitárias, repetidas vezes [...]” (Akotirene, 2019Akotirene, C. (2019). Interseccionalidade. São Paulo: Polén., p. 45).

Uma vez que as vivências de opressão, discriminação, violação, exclusão e desigualdades estão interrelacionadas e sustentadas por elementos identitários que modificam relações interpessoais, formas de ser-estar no mundo, ocupações e atividades humanas, interessa-nos, como terapeutas ocupacionais, aproximarmo-nos de ferramentas que nos auxiliem na captação e compreensão desses processos, buscando romper com outras formas de opressão.

Interseccionalidade e Terapia Ocupacional

Sandra Galheigo (2012)Galheigo, S. M. (2012). Perspectiva crítica y compleja de terapia ocupacional: actividad, cotidiano, diversidad, justicia social y compromiso ético-político. TOG (A Coruña), 5(1), 176-189. nos convocou a pensar os problemas atuais do mundo moderno localizando nossas epistemes nos diversos processos histórico-político-sociais que marcam cada país. Galheigo (2012)Galheigo, S. M. (2012). Perspectiva crítica y compleja de terapia ocupacional: actividad, cotidiano, diversidad, justicia social y compromiso ético-político. TOG (A Coruña), 5(1), 176-189. retoma as histórias da terapia ocupacional, bem como as dos povos da América Latina, para rever e propor conceitos que se reposicionem para considerar além de classe social, gênero, etnia e outros identificadores atuais que complexificam a produção de saberes nesse campo.

A retomada histórica sobre a terapia ocupacional e o reposicionamento do saber histórico-social-racial produzido em diáspora, ajuda-nos a sustentar a proposição do conceito de interseccionalidade como ferramenta de análise, na forma de exercício crítico de reflexão.

Souza et al. (2021)Souza, A. Q., Alves, H. C., & Cardoso, P. T. (2021). “O capitão do mato não conta a história como ela foi” – reflexões sobre terapia ocupacional e cultura a partir da trajetória dos Ternos de Congada. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 29, 1-23. consideram que uma perspectiva crítica decolonial em terapia ocupacional deve problematizar sua práxis, visar a democratização do acesso aos direitos humanos e valorizar os saberes e práticas das pessoas e grupos historicamente marginalizados, a partir de saberes de matriz africana e/ou afro-brasileira e dos povos originários e reconhecê-los como saberes válidos para a terapia ocupacional, oferecendo centralidade às narrativas subalternas.

Corroboramos a construção de uma perspectiva crítica decolonial que contribua para a produção de conhecimento teórico-prático para as Terapias Ocupacionais do Sul (Nuñes, 2019Nuñes, C. M. V. (2019). Terapias Ocupacionales del Sur: una propuesta para su comprensión. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(3), 671-680. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoARF1859.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoA...
; Silva et al., 2019Silva, C. R., Jarra, R. M., Calle del Campo, Y., & Kronenberg, F. (2019). Terapias Ocupacionais do Sul: demandas atuais a partir de uma perspectiva socio-histórica. REVISBRATO, 3(2), 172-178.) na construção de práticas e epistemes descolonizadas e descolonizantes (Zango Martín & Millares, 2013Zango Martín, I., & Millares, P. M. (2013). Aportaciones de la etnografia doblemente reflexiva en la construcción de la terapia ocupacional desde una perspectiva intercultural. Revista de Antropología Iberoamericana, 8(1), 9-48.), para as quais serão necessárias desobediências epistêmicas (Pino Morán & Ulloa, 2016Pino Morán, J., & Ulloa, F. (2016). Perspectiva crítica desde latinoamérica: hacia una desobediencia epistémica en terapia ocupacional contemporánea. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 24(2), 421-427.).

Considerar as interseccionalidades nas ações terapêutico-ocupacionais com cada pessoa, grupo e coletivo nos permite reconhecer e transpor os diferentes eixos de dominação, como o de renda, contraefetuados principalmente através da interdependência entre capitalismo neoliberal, colonialismo, cis-heteropatriarcado e capacitismo.

Para Ferrufino et al. (2019)Ferrufino, A. H., Miranda, V. L., Jara, R. M., Yates, G. M., & Silva, C. R. (2019). Transacionalismo, interseccionalidade feminista e método narrativo: aportes para a pesquisa em terapia ocupacional e ciência ocupacional. REVISBRATO, 3(1), 150-161., a interseccionalidade revela, apresenta e promove uma leitura para a terapia ocupacional a partir das histórias e narrativas de vida, que considera os sistemas de opressão como organizador estrutural, hegemônico e interpessoal de poder, de exclusão e desigualdade na sociedade; permite analisar como diferentes contextos se articulam, determinando significados para a execução ou na imposição da execução das ocupações (Ferrufino et al., 2019Ferrufino, A. H., Miranda, V. L., Jara, R. M., Yates, G. M., & Silva, C. R. (2019). Transacionalismo, interseccionalidade feminista e método narrativo: aportes para a pesquisa em terapia ocupacional e ciência ocupacional. REVISBRATO, 3(1), 150-161.).

Pino Morán & Tiseyra (2019)Morán, J. A. P., & Tiseyra, M. V. (2019). Encuentro entre la perspectiva decolonial y los estudios de la discapacidad. Revista Colombiana de Ciencias Sociales, 10(2), 497-521. propõem pensar o corpo das pessoas com deficiência descolonizando o olhar normativo e funcional da reabilitação que sujeita o corpo e suas funcionalidades a partir de padrões de normalidade. Para esses autores, o capacitismo está nas linhas de opressão colonial e, portanto, a interseccionalidade ajudaria a perceber as articulações entre colonialismo, gênero-sexualidade e deficiência, sendo possível constituir saberes, epistemes e estruturas históricas que nos permitam analisar as situações de desigualdade social perpetuadas em coletivos e pessoas com deficiência ao longo do tempo (Morán & Tiseyra, 2019Morán, J. A. P., & Tiseyra, M. V. (2019). Encuentro entre la perspectiva decolonial y los estudios de la discapacidad. Revista Colombiana de Ciencias Sociales, 10(2), 497-521.).

Não significa, entretanto, encontrar uma hierarquização da discriminação capacitista na relação com outras discriminações, mas sim compreender como o capacitismo se articula na estrutura colonial-patriarcal-capitalista e discrimina os corpos com deficiência. Portanto, não caberia a uma análise interseccional compreender a discriminação contra pessoas com deficiência deslocada do sentido capacitista-colonial-capitalista-patriarcal, nem tampouco propor uma prática terapêutica ocupacional que fragmente essas estruturas.

Ambrosio & Silva (2021)Ambrosio, L., & Silva, C. R. (2021). Interseccionalidade: reflexões sobre as opressões de raça, classe, gênero e sexualidade a partir da perspectiva crítica decolonial em Terapia Ocupacional. In M. C. Alves & A. C. Alves (Orgs.), Redes Intelectuais: epistemologias e metodologias negras, descoloniais e antirracistas (pp. 135-152). Porto Alegre: Rede UNIDA. pautam a interseccionalidade como ferramenta de análise e de prática profissional, como um caminho possível de desvelar, reconhecer e enfrentar as injustiças sociais e/ou ocupacionais, desde que se compreenda a indissociabilidade e a interdependência dos fatores estruturantes dessas injustiças. Compreendendo o entrelaçamento das opressões, essas autoras afirmam que a análise terapêutica ocupacional, ao se ater a apenas uma dessas estruturas de marginalização, estaria contribuindo para a manutenção do sistema de opressão e não para rompê-lo: “[...] silenciar ou invisibilizar uma violência baseada nas estruturas sociais mantém alimentado o monstro das opressões [...]” (Ambrosio & Silva, 2021Ambrosio, L., & Silva, C. R. (2021). Interseccionalidade: reflexões sobre as opressões de raça, classe, gênero e sexualidade a partir da perspectiva crítica decolonial em Terapia Ocupacional. In M. C. Alves & A. C. Alves (Orgs.), Redes Intelectuais: epistemologias e metodologias negras, descoloniais e antirracistas (pp. 135-152). Porto Alegre: Rede UNIDA., p. 148). Ou seja, por mais que avancemos nas práticas e produções de conhecimento voltadas às questões das desigualdades sociais de concentração e distribuição de trabalho e demais problemáticas presentes nos contextos periféricos, compreendendo-as como produzidas pelo capitalismo, apenas pela esfera econômica, sem considerar as interseccionalidades, haverá um distanciamento grande das redes de opressão presentes no cotidiano de uma parte significativa de pessoas e coletivos com os quais trabalhamos.

Ramugondo (2018)Ramugondo, E. (2018). Healing work: intersections for decoloniality. World Federation of Occupational Therapists Bulletin, 74(2), 83-91. aponta que, em qualquer lugar do mundo, nós, terapeutas ocupacionais, precisamos questionar e compreender como a desigualdade se expressa nas intersecções da história, economia, política, raça, gênero e sexualidade. Segundo a autora, a visão interseccional nos auxilia a ter uma visão coletiva e comunitária sobre os processos de saúde (Ramugondo, 2018Ramugondo, E. (2018). Healing work: intersections for decoloniality. World Federation of Occupational Therapists Bulletin, 74(2), 83-91.).

Ramugondo (2018)Ramugondo, E. (2018). Healing work: intersections for decoloniality. World Federation of Occupational Therapists Bulletin, 74(2), 83-91. agencia a filosofia africana Ubuntu, a filosofia da libertação de Steve Biku e a sociogenia de Fanon para recentralizar a produção do saber na terapia ocupacional para a promoção de cuidado coletivo, comunitário e interseccional. Esse reposicionamento funciona como uma via “[...] alternativa ao Liberalismo e ao Marxismo, já que essas duas tem mostrado limitações em como elas lidam com opressões históricas coletivas, como o racismo sistêmico ao lado do classismo [...]” (Ramugondo, 2018Ramugondo, E. (2018). Healing work: intersections for decoloniality. World Federation of Occupational Therapists Bulletin, 74(2), 83-91., p. 4). Tal como coloca Fanon (2010)Fanon, F. (2010). Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., essas teorias nem sempre dão conta de avaliar/analisar as situações em sua totalidade, pois descentralizam as questões coloniais.

Ramungondo considera que o posicionamento decolonial deve ser encarado como um movimento político e epistemológico pela libertação de pessoas não-brancas que sofrem os impactos da colonialidade e localiza a interseccionalidade como ferramenta desse movimento.

Incorporar as epistemes étnicas na produção do conhecimento nos possibilita e nos sensibiliza a criar estratégias de descolonização das nossas intervenções e a usar “[...] a interseccionalidade como a ferramenta para nos fornecer as cisões epistêmicas necessárias para essas disputas no campo científico [...]” (Ambrosio, 2020Ambrosio, L. (2020). Raça, gênero e sexualidade: uma perspectiva da Terapia Ocupacional para as corporeidades dos jovens periféricos (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos., p. 99).

Assim, a interseccionalidade pode colocar em foco o cruzamento das opressões: “[...] considerando que esses marcadores, incluindo a classe, atravessam os corpos produzindo múltiplas violências, analisá-los de forma independente não daria conta da complexidade dos fenômenos [...]” (Ambrosio, 2020Ambrosio, L. (2020). Raça, gênero e sexualidade: uma perspectiva da Terapia Ocupacional para as corporeidades dos jovens periféricos (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos., p. 35).

Considerações Finais

Este trabalho apresentou o conceito de interseccionalidade para a construção de saberes-fazeres em terapia ocupacional comprometidos ético e politicamente considerando elementos identitários e suas relações e interações.

A interseccionalidade, enunciada pelas feministas negras como aporte para a construção de uma perspectiva crítica decolonial amefricana em terapia ocupacional, aproxima-nos das ocupações, atividades humanas e cotidianos, considerando contextos variados atravessados por uma série de processos histórico-socio-culturais e impactados pelas encruzilhadas dos sistemas hegemônicos de poder.

A análise interseccional contribui para a compreensão e atuação junto aos eixos de opressão e às matrizes de dominação. Esses por sua vez, desencadeados pelos elementos identitários como raça, gênero, sexualidade que marcam e integram a expressividade e a corporeidade das pessoas e coletivos.

É necessário, portanto, que se compreenda os processos de opressão e as matrizes de dominação, considerando o apagamento ou marginalização dos saberes das comunidades colonizadas; recuperando e fortalecendo o diálogo entre intelectuais e perspectivas decoloniais, diaspóricas e amefricanas; reconhecendo seu lugar de fala e de escuta, sua consciência, auto crítica, formas e vivências de opressão, assim como, de reprodução das opressões; afirmando seu posicionamento ético-político, sua responsabilização técnica e profissional através de ações, práticas e engajamento nessas lutas.

De forma a compor com pessoas e coletivos e romper com hierarquias, classificações, supostas neutralidades, ideias de sujeitos-padrão ou modelos universais, sobreposição de valores, culturas, crenças, costumes ou saberes, baseados no posicionamento e compromisso ético político, na emancipação, nos direitos civis, políticos, sociais e humanos das pessoas e coletivos que mais sofrem com os processos de exclusão e desigualdades.

  • 1
    A categoria analítica de amefricanidade é uma proposição feita pela historiadora e filosofa brasileira Lélia González com relação a experiência racial de pessoas negras, indígenas e mestiças nas Américas.
  • 2
    LBT significa Lésbicas, Bissexuais e Transexuais (mulheres) e Travestis e a sigla reduzida é usada para referir-se às identidades de sexualidade e gênero incluídas no espectro das identidades de gênero femininas.
  • 3
    Negra está no singular por referir-se à identidade de apenas uma das autoras.
  • 4
    LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis, e Intersex), seguida do símbolo +, sendo essa a sigla mais usual.
  • 5
    O conceito de diáspora aqui empregado diz respeito às identidades culturais mantidas e transformadas ao longo do tempo após processos migratórios de grupos ou comunidades. Assim, a articulação de conhecimentos das diásporas afro-brasileiras refere-se aos saberes produzidos por negros brasileiros, podendo ou não se relacionar explicitamente aos saberes africanos.
  • 6
    Lélia Gonzalez é uma das figuras mais importantes do feminismo negro no Brasil. Contribuiu para formação de muitas mulheres negras e de pessoas do movimento negro em geral. Foi a primeira pessoa no Brasil a relacionar racismo e sexismo como elementos de opressão contra as mulheres negras na estrutura social colonial brasileira. Ela é reconhecida como precursora da interseccionalidade no Brasil.
  • 7
    Mais informações em Gonzalez (1988)Gonzalez, L. (1988). A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, 92(93), 69-82..
  • 8
    Quando fala das encruzilhadas para mulheres negras, Lélia Gonzalez utiliza a construção raça-sexo. No o contexto atual, a utilização da construção raça-sexo é considerada excludente. Justifica-se a construção raça-gênero/sexo para dialogar com a produção original da autora de maneira atualizada.
  • Como citar: Ambrosio, L., & Silva, C. R. (2022). Interseccionalidade: um conceito amefricano e diaspórico para a terapia ocupacional. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30, e3150. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoEN241431501
  • Fonte de Financiamento Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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Editado por

Editora de seção

Profa. Dra. Adriana Miranda Pimentel

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2021
  • Revisado
    08 Dez 2021
  • Aceito
    04 Fev 2022
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