Resumo
Este estudo apresenta as experiências de um projeto de extensão que atua integrado à unidade de referência e atendimento especializado à população LGBTQIAPNb+ da Paraíba. Essa população vivencia cotidianamente a luta e resistência na construção de suas identidades, desafiando normas de gênero e de sexualidade para garantir sua sobrevivência. O objetivo deste trabalho foi relatar uma experiência de extensão universitária em uma capital do Nordeste, utilizando uma das tecnologias da terapia ocupacional social, os acompanhamentos singulares e territoriais. Essa tecnologia social foi utilizada visando compreender a realidade da população dissidente de gêneros e sexualidades, na busca por soluções e estratégias conjuntas para enfrentar diferentes formas de violência, promover o acesso aos direitos sociais dessa população e a construção da autonomia em seus projetos de vida. A escolha dessa tecnologia considera a constituição do campo social como uma possibilidade de ação para terapeutas ocupacionais, ressaltando a relevância dos marcadores sociais da diferença como categorias de classificação que organizam a vida social. Os acompanhamentos aconteceram durante um ano com duas pessoas. Foi possível explorar maneiras de descentralizar as concepções normativas em relação aos sujeitos e à vida cotidiana, elaborando estratégias conjuntas que contribuam com a construção da autonomia, corroborando para participação social e o exercício da cidadania.
Palavras-chave:
Terapia Ocupacional; Políticas Inclusivas de Gênero; Sexualidade
Abstract
This study presents the experiences of an extension project that operates in conjunction with the referral unit and specialized care for the LGBTQIAPNb+ population in Paraíba. This population experiences daily struggle and resistance in the construction of their identities, challenging gender and sexuality norms to ensure their survival. The objective of this work was to report an experience of university extension in a capital city in the Northeast, using one of the technologies of social occupational therapy, singular and territorial monitoring. This social technology was used to understand the reality of the gender and sexuality dissident population, in the search for joint solutions and strategies to face different forms of violence, promote access to social rights for this population and the construction of autonomy in their life projects. The choice of this technology considers the constitution of the social field as a possibility of action for occupational therapists, highlighting the relevance of social markers of difference as classification categories that organize social life. The monitoring took place over a year with two people. It was possible to explore ways to decentralize normative conceptions in relation to subjects and everyday life, developing joint strategies that contribute to the construction of autonomy, corroborating social participation and the exercise of citizenship.
Keywords:
Occupational Therapy; Gender-Inclusive Policies; Sexuality
Introdução
Na década de 1970, inicia-se um processo de inquietação e efervescência política sobre as desigualdades sociais que permeavam o Brasil. Em um cenário de violências e opressões, encontra-se também a efervescência da luta dos movimentos sociais pelo fim da ditadura militar e pela redemocratização brasileira, um cenário que possibilitou terapeutas ocupacionais a descentralizarem suas práticas e passarem a elaborar estratégias de ação que considerassem o sujeito socialmente localizado.
A reformulação da prática profissional das terapeutas ocupacionais no campo social só se tornou possível mediante o contato com as pessoas junto às quais esse profissional desenvolve suas ações e com a compreensão sobre a questão social1 .
Em 1998, terapeutas ocupacionais idealizaram o Projeto Metuia, dedicando-se às discussões sobre terapia ocupacional social. O projeto se desenvolveu e, em 2019, foi fundada a Rede Metuia - Terapia Ocupacional Social, composta por docentes, estudantes e profissionais em diversos núcleos de instituições de ensino superior. De acordo com Galheigo (2023), o campo se constitui a partir da reflexão crítica sobre o lugar social das terapeutas ocupacionais, em que se buscou desenvolver metodologias de ação com vistas à autonomia, cidadania e acesso a direitos de sujeitos e coletivos. A partir dessa nova proposição profissional, foram desenvolvidos recursos e tecnologias próprias para apreensão e ação na realidade social.
São tecnologias sociais as “oficinas de atividades, dinâmicas e projetos”, que se valem de atividades como recurso mediador no trabalho de aproximação, acompanhamento e compreensão das demandas de indivíduos e grupos. Os “acompanhamentos singulares e territoriais” possibilitam uma percepção e interação direta com o cotidiano e o contexto das pessoas, conectam suas histórias e trajetórias, bem como consideram seus projetos de vida; “articulação de recursos no campo social” mobiliza diferentes níveis de atenção em torno de objetivos comuns, visando o uso de recursos possíveis, incluindo dispositivos financeiros, materiais, relacionais e emocionais, tanto em escala micro quanto macrossocial. Por fim, a “dinamização da rede de atenção”, que busca promover a interação e integração entre programas, projetos e serviços de diferentes setores e níveis de atuação, facilita a efetividade e a orientação das estratégias em uma perspectiva interprofissional e intersetorial (Lopes et al., 2014).
Desde a década de 2010, terapeutas ocupacionais têm produzido ações junto à comunidade LGBTQIAPNb+2 , compreendendo que “[…] esses sujeitos e grupos têm, historicamente, no Brasil, a restrição ao acesso a direitos sociais básicos, bem como o não reconhecimento de suas experiências em diversas esferas da vida social” (Monzeli et al., 2023, p. 4).
Sendo assim, a produção de reflexões e ações da terapia ocupacional social junto à população dissidente de gênero e sexualidade ocorre a partir da compreensão de que, por produzirem seus corpos e suas identidades para além da cis-heteronormatividade, esse grupo é alvo de diversas formas de violência, opressão e negligência de direitos sociais (Monzeli, 2022; Braga et al., 2020).
Assim, com base em seus objetivos e utilizando tecnologias sociais da terapia ocupacional social, o projeto de extensão ResisTO: gêneros, sexualidades e terapia ocupacional social foi fundado em 2017. Compondo o Núcleo Metuia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o projeto ResisTO se dedica a ações de ensino, pesquisa e extensão, considerando os marcadores sociais da diferença como categorias de classificação que organizam a vida social, possibilitando a compreensão dos sistemas de desigualdade, em articulação com as políticas públicas municipais e estaduais voltadas para a população dissidente de gênero e sexualidade (Melo et al., 2020; Monzeli et al., 2023).
Esse relato de experiência decorre das ações propostas pelo projeto em parceria, desde 2022, com o Centro Estadual de Referência3 da comunidade LGBTQIAPNb+ e Enfrentamento à LGBTQIAPNb+fobia da Paraíba - Pedro Alves de Souza (Espaço LGBT+ Pedrinho) que tem como objetivo a defesa dos direitos da população LGBTQIAPNb+.
As ações aqui apresentadas baseiam-se na concepção de autonomia, entendida, segundo Safatle (2019), como interrelacionada com as noções de liberdade, emancipação e democracia. Para o autor, a autonomia, tradicionalmente vinculada a uma noção liberal de liberdade, precisa ser compreendida de forma relacional e coletiva, considerando as interdependências e as relações sociais que constituem a subjetividade. A autonomia consiste em um processo de liberdade que exige que o sujeito tenha consciência de seu próprio pertencimento, ou seja, da forma como suas ações e pensamentos são moldados pelo contexto em que está inserido (Cavicchioni & Pan, 2024).
As ações desenvolvidas nesse equipamento, baseadas nessa compreensão de autonomia, buscaram tanto o reconhecimento e a valorização das identidades dissidentes quanto a compreensão das dinâmicas sociais que incidem nos modos de vida das pessoas acompanhadas (Melo et al., 2020). Somente ao integrar essas dimensões micro e macrossociais foi possível realizar ações capazes de reconhecer as singularidades dos sujeitos, ao mesmo tempo em que enfrentam as barreiras estruturais que limitam sua liberdade e incidem na sua autonomia.
Construção de identidades e performatividades: a experiência dos acompanhamentos singulares e territoriais
Para as práticas com a população dissidente de gênero e sexualidade nesse equipamento, destacamos o uso dos acompanhamentos singulares e territoriais. Essa tecnologia permitiu aproximar-nos diretamente de algumas pessoas com quem construímos nossas práticas. As pessoas acompanhadas recorreram ao serviço em busca de acesso a direitos sociais e assistência para enfrentar situações de violência em seus cotidianos. Inicialmente, essas pessoas participaram de um processo de identificação de suas demandas prioritárias, que orientou a proposição de diferentes estratégias de cuidado. Essas estratégias frequentemente envolvem uma equipe multidisciplinar do serviço, composta por profissionais como advogados, psicólogos, assistentes sociais, educadores sociais, recepcionistas e um coordenador institucional.
Após o processo de acolhimento inicial pela equipe profissional, entre aquelas pessoas encaminhadas para acompanhamento com terapeutas ocupacionais, foram identificadas demandas associadas aos impactos das violências sofridas em seus cotidianos, bem como dificuldades no acesso a direitos sociais. Diante da complexidade dessas demandas, compreendeu-se que uma pertinente estratégia de prática poderia ser a utilização dos acompanhamentos singulares e territoriais (Lopes et al., 2014) junto ao equipamento.
É importante destacar que, desde sua conceituação como tecnologia social e em grande parte das experiências publicadas, os acompanhamentos singulares e territoriais têm sido adotados como estratégia derivada das demandas identificadas em oficinas de atividades, dinâmicas e projetos. Nesse caso específico, sua utilização ocorreu de forma distinta em relação ao que é descrito na literatura sobre terapia ocupacional social, sendo empregada autonomamente como um recurso capaz de proporcionar tanto a aproximação com a população, bem como identificar demandas e elaborar possíveis soluções conjuntas (Lopes et al., 2014).
No entanto, a execução de estratégias fora do espaço institucional revelou-se complexa. A circulação territorial para populações dissidentes de gênero e sexualidade é dificultada e muitas vezes impedida pela escassez de espaços seguros para acesso, circulação e pertencimento. Ainda que desafios similares sejam experienciados por outras populações que vivenciam diferentes formas de injustiça social, como jovens em territórios controlados por facções do tráfico de drogas, as especificidades históricas de exclusão e violência enfrentadas por essa população tornam as restrições bastante específicas, o que corrobora em um processo de desafio contínuo no enfrentamento às violências.
Localizado em um equipamento de garantia de direitos para a população LGBTQIAPNb+, foi possível articular dimensões singulares e coletivas das vivências das pessoas acompanhadas. Compreendendo que o território compõe as narrativas, nesse estudo se propõe uma nova configuração desse espaço, ultrapassando as dimensões geográficas e sendo construído a partir das histórias e desejos de pertencimento ao ocupar os espaços que por hora os violentavam.
Ao propor ações baseadas nos acompanhamentos singulares e territoriais junto à população dissidente de gênero e sexualidade, há um movimento similar àquele observado na reformulação da prática profissional, ao nos depararmos com uma nova proposição da prática, considerando aquilo que os sujeitos nos apresentavam enquanto urgência: o desejo na produção de vida.
Há uma “tecnologia política do corpo” muito sutil, mesmo àqueles controlados de circulação geográfica. O corpo se torna território em seus vínculos difusos com a sociedade que o atravessa disciplinarmente independente das espacialidades acessadas (Foucault, 1984). Diante do exposto, este estudo se configura como um relato de experiência produzido e vivenciado ao longo de um ano, entre 2023 e 2024, com duas pessoas, uma de 17 anos e a outra de 35 anos, ambas participaram das ações do projeto ResisTO.
O primeiro contato com as pessoas participantes se deu por ligação de voz, durante a qual foram apresentados os objetivos da terapia ocupacional social, em consonância com as competências do equipamento.
Os registros dos encontros foram feitos em diário de campo, e as atividades foram elaboradas previamente de acordo com os objetivos propostos. As fotografias incluídas neste relato ilustram as ações e seus desdobramentos, utilizando as atividades como recurso mediador.
Pensar na vida das pessoas que vivenciam a margem4 requer, primeiramente, que possamos nos questionar quais as dinâmicas que essas vivências assumem e o que, socialmente, as autoriza e legitima, para que então possamos nos posicionar enquanto agentes políticos. Essas vidas experienciam os efeitos dos processos de marginalização e estigmatização social e têm seu exercício da cidadania e da autonomia atravessado pelas condições de exclusão, sendo orientadas pelo confronto das hegemonias, por meio da luta pela existência e sobrevivência (Melo, 2016).
A partir dos acompanhamentos, foi possível refletir e construir, em conjunto, possibilidades para a participação social e construção da autonomia. Por meio do reconhecimento e fortalecimento das suas identidades subjetivas, pudemos contribuir para o acesso e circulação a espaços de sociabilidade5 de forma autônoma ao possibilitar a reconstrução de novos projetos de vida, confrontando as narrativas cis-heteronormativas e reafirmando o direito à existência e à cidadania.
“Eu sinto que aqui é um lugar seguro”: contribuições da terapia ocupacional social junto à população dissidente de gênero
Julie tem 35 anos, é o6 filho do meio entre seus dois irmãos; mora com seu padrasto, sua mãe e seu irmão mais novos; se autodeclara branca, tem cabelos loiros, olhos verdes, vivencia a sua espiritualidade a partir do candomblé7 e considera-se uma pessoa gay não-binária.
Já Dante tem 17 anos, é filho mais novo de uma família de três filhos, identifica-se como um homem transgênero e bissexual; tem cabelos pretos, usa óculos e tem o desejo de realizar pesquisas arqueológicas; mora com os pais e estuda em uma instituição privada de ensino médio.
Dante
No primeiro encontro, foi possível perceber que ele estava tímido, vestindo uniforme da escola e um casaco, traje comum em nossos encontros. Chegava ao serviço na maioria das vezes acompanhado por sua mãe. Dante verbalizou muitos desejos, mas também muitas angústias, tendo em vista suas experiências em contextos bastante violentos para pessoas trans.
Dante estava inquieto durante os acompanhamentos devido à rotina desafiadora de ser um estudante secundarista, o que está intimamente ligado à experiência de ser o único homem trans em sua turma, tornando-o alvo de comentários transfóbicos por parte de outros(as) estudantes.
Realizamos uma atividade que refletiu acerca da “escola ideal”. Foi utilizado um episódio da série “Sex Education” 8 (Nunn, 2019) como disparador de nossas reflexões sobre os atravessamentos institucionais na constituição das subjetividades na adolescência e juventude. O episódio mostra a construção de uma escola democrática, onde os estudantes podem decidir sobre as atividades a serem desenvolvidas. Após a exibição, discutimos os desafios enfrentados por adolescentes e jovens dissidentes e refletimos sobre possíveis estratégias para esse cenário.
Ao longo dos acompanhamentos, foi possível acessar suas vivências na escola e suas formas de autorrepresentação. Em um desses momentos, foi proposta uma atividade em que ele pudesse expressar, por meio de um desenho, sobre como se via e como achava que era visto por outras pessoas. Nessa etapa, ele trouxe importantes elementos sobre a percepção de outras pessoas sobre ele, afirmando que alguns estudantes o chamavam de “garota” por ele ainda ter a “voz fina”.
A voz é um dos componentes que permitem a nossa comunicação e, dentro do ambiente escolar, a participação ativa é considerada, assim como na escola de Dante, aporte de avaliação. Essa situação fazia com que Dante se sentisse desinteressado, pois até sua voz poderia colocá-lo em episódios de julgamento. De acordo com Cardoso (2022), o corpo passou a ser considerado um problema quando houve a imposição de adaptação aos padrões cis-heteronormativos de gênero, exigindo uma conformidade com o imaginário do feminino ou masculino para que se tornasse um corpo válido.
Uma outra repercussão desse processo foi o desejo pela hormonização, via o chamado “processo transexualizador”9 . Se por um lado, a hormonização pode ser uma parte importante da constituição de seu corpo, de sua subjetividade e identidade transmasculina, por outro, está associado a uma tentativa de “amenizar” as violências sofridas na escola e em outros contextos de sociabilidade devido à compreensão cisnormativa sobre o que é “ser homem”.
A história do reconhecimento do direito à transição de gênero no Brasil já é marcada por entraves estruturais como a judicialização, a medicalização excessiva e a patologização, conforme destacam Rocon et al. (2016). A nova normativa resgata esses dispositivos de exclusão, agora sob a roupagem de uma “proteção ética”, que, na prática, restringe a autonomia das pessoas trans e reforça o lugar do diagnóstico como instrumento de validação.
Nesse sentido, como problematiza Butler & Rios (2009), a exigência de um diagnóstico para acessar a transição, embora instrumentalizada para garantir certos direitos, também aprisiona a experiência trans em uma lógica de legitimidade mediada pela norma médica. Dante, sujeito cuja trajetória é narrada neste estudo, expressa sua indignação frente aos custos abusivos da hormonização via setor privado, realidade enfrentada enquanto aguardava inserção no ambulatório público de referência. Sua experiência expõe não apenas os obstáculos materiais do acesso, mas também os impactos subjetivos de um modelo de cuidado que prioriza critérios institucionais à escuta das urgências individuais.
No processo dos acompanhamentos singulares e territoriais, foram propostas ações alinhadas aos desejos de Dante, como visitar uma exposição de arte e ir ao centro da cidade em busca de materiais necessários para seus estudos. Contudo, transitar na cidade exige condições de “passabilidade” que o colocavam em constante tensão entre o desejo de pertencimento e as demandas normativas de adequação. A impossibilidade de se sentir à vontade para frequentar determinados espaços e circular pela cidade reforçava o paradoxo vivido por Dante: enquanto lutava por autonomia e validação de sua identidade, esbarrava nas limitações impostas pela materialidade de um corpo socialmente normatizado.
Refletir sobre os discursos de Dante, que traziam a sua validação influenciada pela própria legislação, remete à materialidade da identificação de um corpo já determinado socialmente, refém das territorialidades normativas. Corpo esse que, idealmente, não estaria às margens, na invisibilidade e, tampouco, sujeito a violências. Em nossos encontros, avaliamos o que esse desejo refletia e como se materializava na sua vida e em seus processos de autonomia, a partir da compreensão sobre passabilidade10 , que se relaciona com a noção de inteligibilidade cultural (Butler, 2003, p. 34), entendida como:
[...] a “coerência” e a “continuidade” da “pessoa” não são características lógicas ou analíticas da condição de pessoa, mas, ao contrário, normas de inteligibilidade socialmente instituídas e mantidas. Em sendo a “identidade” assegurada por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, a própria noção de “pessoa” se veria questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é “incoerente” ou “descontínuo”, os quais parecem ser pessoas, mas não se conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas.
A passabilidade, que seria garantida a Dante a cada vez em que houvesse a adequação e submissão da sua construção identitária às relações de poder, era almejada de forma a lhe garantir acessos, reconhecimento e pertencimento nas relações e instituições normativas, sobretudo por meio da “produção” de seu corpo e suas repercussões territoriais.
Em um dos acompanhamentos, foi proposto que ele escrevesse uma carta para si mesmo com o objetivo de revisitar suas emoções e experiências em um momento futuro. Ficou combinado que essa carta seria aberta durante o último encontro. Chegado o momento, ficou nítido que Dante expressava seus desejos por dias melhores, especialmente com o início do processo de hormonização. Esse anseio foi representado por ele em um desenho (Figura 1), no qual se retratou usando um casaco como uma espécie de armadura. Esse casaco, ao ocultar partes de seu corpo, lhe oferecia segurança, possibilitando uma circulação mais tranquila e protegida dos olhares de abjeção11 . A partir de uma leitura crítica, que realizamos conjuntamente, sobre as entrelinhas das significações do “processo transexualizador”, identificamos o que Foucault (1999) relata, uma vez que validamos e tomamos como modelo apenas experiências cisgêneras e normativas.
A figura é um desenho feito por Dante, em que ele escreve em um balão a seguinte frase: “Fique tranquilo, as coisas vão melhorar pra gente, apenas siga em frente”.
Ainda na prerrogativa da contraditória produção normativa dos corpos, em outro encontro, foi proposto que ele desenhasse em cada metade de uma folha A4 a representação de dois corpos, a partir de algumas perguntas disparadoras: “O que valida um corpo homem ou um corpo mulher?” (ver Figura 2); “Há diferenças? Quais?”; “Quais as similaridades?”; “Quais as suas características?”, o objetivo era fomentar a reflexão sobre a representação desses corpos dentro de uma compreensão culturalmente binária, que vigia e regula suas identidades.
A Figura 2 representa dois desenhos feitos por Dante, nos quais ele utilizou a identificação de corpos transgêneros, desafiando o que socialmente se valida enquanto corpo de homem X corpo de mulher, trazendo como eixo de diferenciação a cultura e as crenças em que os sujeitos se constroem, um outro “corpo-território” possível, por ele pouco afeito até então.
Em paralelo, Dante seguia afirmando o desejo da afirmação de seu gênero a partir da hormonização, mas apresentando aspectos de uma nova subjetividade sendo forjada, pois, demonstrou compreender que a reposição hormonal é apenas um aspecto de sua identidade e que isso não necessariamente precisa ditar sobre o gênero com que se identifica.
Tal afirmação associada à produção imagética produzida por Dante nos levou a identificar os discursos morais que reproduzem identidades normativas, inviabilizando as dissidências. Ao se reconhecer nessa fronteira, pudemos elaborar estratégias de resistência, como a leitura crítica dessa historicidade, que o fez validar a sua experiência enquanto homem trans e a luta dos movimentos sociais para garantia de direitos.
Dante também tinha seus acessos aos espaços públicos atravessados pela violência, acreditava que enquanto não se assemelhasse com a expectativa de um corpo cisgênero, não se sentiria confortável em transitar nesses espaços, o que acabou por resultar na restrição dos seus territórios de sociabilidade. Ele mencionou que apenas frequenta o Espaço LGBT+ Pedrinho. Segundo ele, “eu sinto que aqui é um lugar seguro” (relato de Dante no acompanhamento). Além disso, considerou a escola, a casa de alguns amigos e as sessões com a psicopedagoga clínica12 como espaços em que a transexualidade era permitida sem o enfrentamento constante às violências.
Cabe ressaltar que, apesar de Dante mencionar apenas esses espaços como possibilidades de sociabilidade, o território o acompanhava por meio do cruzamento dos mais variados discursos, incluindo, as institucionalidades familiares e sua força política de produzir “corpos-territórios” assujeitados às normas. Independente das espacialidades, Dante esteve e está em territórios. Em contrapartida, os acompanhamentos, então, forjavam incentivos à sua performance de gênero dissidente, criando novos lugares e novas possibilidades de performar.
Nesse ínterim, no último encontro, com o objetivo de identificar a construção subjetiva da identidade dele, a partir da escolha dos nomes, raça e idade, foi proposta a seguinte indagação: “Como Dante seria, caso pudesse escolher?” (Figura 3). Esse momento foi significativo, pois marcou a autonomeação do participante como Dante, conferindo significado aos relatos dessa experiência, e produzindo uma modelagem que refletia uma identidade mais alinhada com sua autopercepção.
Julie
Logo no primeiro contato com Julie, ainda sem vínculos formados, ela apresentou demandas decorrentes de sua vivência, pois acumulava inúmeras situações de violência, dentre elas, suas relações de trabalho com a prostituição e as consequências da desinformação sobre seu diagnóstico de HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana).
Em boa parte de sua vida, sua fonte de renda advinha dos espaços de prostituição, sendo rotineiramente alvo das “meninas do meio” 13 . Destaca-se aqui quando Julie se identificou como “um alvo” e questionamos quais os discursos morais que produzem esse direcionamento a ela. Seria a construção da sua identidade invisibilizada por não se submeter a procedimentos invasivos inseguros, como a aplicação do silicone industrial e/ou a reposição de hormônios sem supervisão?
Em um dos acompanhamentos, foi proposta uma atividade de perguntas sorteadas que tinha como objetivo identificar as potencialidades que Julie reconhecia em si, apostando que esse reconhecimento poderia desmascarar suas significações subjetivas. Julie comentou que gostava de escutar música, estar em contato com a natureza e de quando era “vaidoso”: “Eu gostava de me ver montada” (relato de Julie no acompanhamento). Julie relata que sentia prazer ao poder confeccionar os seus próprios looks para trabalhar e se reconhecer daquela forma.
Em seguida refletiu, afirmando “eu tinha tudo pra ser travesti, mas não fui, acho que por causa da minha mãe, que, quando eu me assumi como gay, não aceitou” (relato de Julie no acompanhamento). Em relação à travestilidade, Duque (2008, p. 2) revela que “[…] as travestis quando se ‘assumiam’, tinham o espaço doméstico da família, via de regra, insustentável”. Portanto, ser travesti em uma sociedade regida por determinados valores e costumes morais, estaria, para a família de Julie, em uma escala ainda mais suscetível à violência.
Em Oliveira (2023, p. 160) a partir da compreensão sobre representações sociais,
[…] ser travesti é ser excluída da capacidade de exercício epistêmico e inteligível, devido à sua existência como uma alternativa de gênero distinta da cis-heteronormatividade e do modelo binário centrado no dimorfismo sexual, cerceada por estigmas e classificadas como 'exóticas, anormais, monstruosas, aberrações, agressivas, histéricas, pervertidas, patológicas, grotescas, sujas, poluídas, imorais e abjetas'.
Não só em casa, mas também nos espaços em que trabalhava, Julie se deparava com a invalidação de sua identidade, relatando, inclusive, um momento em que havia acabado de retornar para o ponto14 e, ao descer do carro, foi alvo de garrafadas por outra travesti que estava naquele mesmo território: “[...] eu acho que elas tinham inveja, porque eu conseguia fazer o mesmo dinheiro que elas ou até mais sem precisar colocar peito [...]” (relato de Julie no acompanhamento). Julie relatou que, para inferiorizá-lo e desqualificá-lo na constituição estética de seu corpo, o chamavam de “gayzinha montada”, imbricada pela disputa das relações de poder do corpo-território. Em meio à rotina de violências da rua e de casa, Julie tentava driblá-las na tentativa de sobreviver ao estigma de um corpo dissidente soropositivo.
Ao relatar sobre o diagnóstico de HIV aos 20 anos, Julie trouxe o seguinte discurso em um dos nossos primeiros encontros: “Eu achei que fosse morrer, ficar aidético igual a gente via nos filmes, porque na minha época ninguém falava sobre educação sexual e eu me acho muito burro por ter deixado isso acontecer” (relato de Julie no acompanhamento). Destaca-se aqui o momento em que Julie fala sobre o cantor Cazuza, que vivenciou momentos de pânico moral-sexual, enquanto lutava contra o [estigma do] HIV, e relata “eu vi aquilo, eu tinha medo de ficar igual a ele” (relato de Julie no acompanhamento).
De acordo com Pelúcio & Miskolci (2009), a forma como a saúde pública abordou a epidemia de AIDS produziu a figura do “aidético”, constituído pelo sentimento de culpa por ser fonte da sua própria infecção, além de ser perigoso para outras pessoas.
Tendo que permanecer com as consequências da desinformação acerca dos seus direitos, o estigma da constituição da punição por aqueles “contaminados” se mantinha e minava cotidianamente a possibilidade de Julie desejar novos projetos de vida, limitando suas perspectivas de autonomia. Sendo submetido rotineiramente a comentários como “Só cuidado pra não passar para os meninos” (feito pela gerente do seu local de trabalho; Julie nos conta no acompanhamento), ela tem vivenciado diferentes violências há 15 anos.
Silva (2012) traz em sua pesquisa a responsabilidade das representações midiáticas em corroborar com esse imaginário, denunciando um aparato mobilizado para causar o sentimento de culpa pelo diagnóstico e desresponsabilizar as pessoas que negam a importância da educação sexual.
Reconhecendo a recorrência desse tema nos relatos de Julie, durante os acompanhamentos foi proposto assistir ao documentário “Cartas para além dos muros” (Canto, 2019), para refletir sobre os significados do diagnóstico na sua vida. Após o momento, foi entregue uma folha em branco e uma caneta, para ele expressar o que sentia ou lhe chamava atenção durante a exibição.
Ao finalizar, Julie tinha escrito “Rotina da morte” e disse “é aquela coisa, né, a gente vive achando que pode morrer amanhã” (relato de Julie no acompanhamento). Após o diagnóstico, Julie identificou, assim como as pessoas entrevistadas no documentário, o pânico de conviver diariamente com o medo da morte, que carrega uma herança histórica de estigma contra a população LGBTQIAPNb+, limitando as possibilidades de autonomia e reapropriação do corpo e da vida. Julie realiza seu acesso aos serviços de saúde exclusivamente em um hospital público da cidade de João Pessoa e convive constantemente com o medo de ser reconhecido e associado ao imaginário social do “aidético”.
Na pesquisa de Silva (2012, p. 192), encontramos que “[…] ser reconhecido publicamente como pessoa vivendo com HIV faz com que possam ser rejeitados/as por famílias, amigos/as e parceiros sexuais e afetivos e, ainda, que sejam dispensados/as do trabalho ou nem venham a ser contratados/as”. Ao realizar o seu cadastro no hospital, Julie optou por ser chamado de “Lucas” para não ter o seu nome reconhecido naquela instituição, e ao final de cada consulta, sempre procurava a saída mais distante possível do local que entrou, para evitar que fosse reconhecido(a) como pessoa que utiliza aquele equipamento.
As dificuldades para realizar ações territoriais com Julie estão profundamente enraizadas no estigma social associado ao diagnóstico de HIV, que limita não apenas a circulação nos espaços públicos, mas também a prática de sua autonomia. Neste um ano de acompanhamento com Julie, trabalhamos no fortalecimento da sua singularidade, buscando o seu reconhecimento enquanto sujeito de direitos. Nesse processo, foram propostas ações territoriais que visavam fortalecer sua autonomia e ressignificar sua relação com os espaços públicos, como visitas à Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e a um museu da cidade. Essas iniciativas foram realizadas respeitando os limites e os tempos de Julie, sempre considerando as barreiras simbólicas e práticas que ainda a desafiam em sua circulação e pertencimento nos territórios urbanos.
Em nosso último encontro, foi proposta a mesma atividade apresentada a Dante na finalização dos acompanhamentos (Figura 4). Durante a realização, Julie se nomeia dessa forma, e compartilha alguns momentos que vivenciou na prostituição. Julie relata durante a construção “menina na rua, menino no site” (relato de Julie no acompanhamento), fazendo referência aos momentos em que se montava para trabalhar na rua, e aos anúncios que realizava nos sites, a partir de uma identidade masculina para conseguir seus clientes, uma vez que estes acabavam por valorizar uma performance masculina para o trabalho sexual. Julie realizou a atividade com os olhos marejados de emoção ao ter a possibilidade de se representar novamente com as cores de roupas que “tinha mais axé”, como disse.
As cores rosa e azul, escolhidas por Julie, assim como as lentes de contato, foram utilizadas para representar os dias em que ela mais conseguia clientes durante o seu trabalho. Elas simbolizam a representação do que se espera da feminilidade normativa.
Durante os acompanhamentos produzidos, os relatos trazidos por Julie eram acompanhados de reflexões que possibilitaram a desnaturalização de processos violentos e a construção de novos projetos de vida para vítimas do estigma cultural de quem convive com HIV.
Estar junto a Dante e Julie possibilitou a construção conjunta de estratégias para o enfrentamento aos processos de disciplinarização dos corpos (Foucault, 1987). Esse processo de disciplinarização realiza “[...] uma divisão binária entre o normal e o anormal a partir de determinações coercitivas que definem o sujeito, qual é o seu lugar, como caracterizá-lo e, principalmente, como exercer sobre ele uma vigilância constante” (Rodrigues et al., 2016, p. 92). Essa disciplina se materializa no discurso e nas dinâmicas sociais de Dante, que, por exemplo, vestia seu casaco todos os dias para sair de casa como sua armadura de combate, no enfrentamento à transfobia.
Refletindo sobre a forma como essa abjeção se materializa no cotidiano, encontramos uma série de negociações que negam a cidadania desses sujeitos. Produzindo, portanto, ações que levam Dante a validar sua identidade somente após submeter-se ao processo transexualizador, e a Julie a “montar-se” e “desmontar-se” de acordo com seus acessos aos ‘espaços de sociabilidade’ (Monzeli, 2013). De acordo com Bento (2014, p. 167), “[…] para se tornar cidadão, cada um desses corpos teve que se constituir como um corpo político”. No entanto, o processo de reconhecimento político, econômico e social foi (e continua sendo) lento e descontínuo.
Considerações Finais
Nessas experiências relatadas, foi central a articulação entre os acompanhamentos singulares e territoriais como estratégia para a tessitura da autonomia e o enfrentamento das normas impostas pela inteligibilidade cultural normativa. A proposta de ações que integrassem o fortalecimento subjetivo e a ressignificação dos espaços de sociabilidade permitiu questionar as lógicas naturalizadas da normatividade de gênero e construir caminhos para o reconhecimento e a expressão de performatividades dissidentes.
Dessa forma, essa experiência gerou reflexões cruciais sobre o conceito de territorialidade nos acompanhamentos singulares e territoriais. Questionamo-nos se o território se restringe ao espaço físico onde as ações acontecem ou refere-se também aos sentidos, culturas e histórias que atravessam as diferentes práticas? Para realizar um acompanhamento singular e territorial, é indispensável sair do espaço institucional?
A dimensão territorial, portanto, revela-se nos acompanhamentos a partir dos relatos das pessoas acompanhadas sobre os locais em que seus corpos são destinados a acessar; nas falas que refletem a historicidade da negligência sobre as suas trajetórias e até mesmo ao demonstrarem o desejo de reconstrução subjetiva dos espaços a partir de estratégias de enfrentamento às violências vivenciadas. Para que se pudesse propor tal assistência, foi necessário uma constante construção e desconstrução, tanto das normas sociais, quanto das próprias ações desenvolvidas.
Considerando a formação das identidades dissidentes dentro de um contexto de desigualdades sociais, esses sujeitos têm historicamente suas subjetividades violentadas, tendo que construir, cotidianamente, estratégias de enfrentamento singulares e coletivas em sua produção de vida e autonomia em razão dos atravessamentos disciplinares de seus corpos.
Os acompanhamentos não apenas fortaleceram o processo subjetivo e identitário de Dante e Julie, mas também ampliaram suas possibilidades de circulação e pertencimento, ao propor novas formas de narrar e habitar seus corpos-territórios, permeados por uma produção de autonomia importante para essas vidas. Essa abordagem fomentou o encorajamento às dissidências e possibilitou experiências que desafiaram as regras binárias e os agenciamentos culturais, reconhecendo que a autonomia se constrói em constante negociação com as normas sociais.
Nesse sentido, os recursos construídos visaram questionar os endereçamentos da ordem sexo-gênero e das expressões de gênero binárias enquanto fluxos naturalizados na cultura por meio da reprodução de gestos e comportamentos. O Espaço LGBT+ Pedrinho, em suas institucionalidades, enquanto unidade de referência para as populações LGBTQIAPNb+ da Paraíba, favorece esse jogo de disputa e de atenção nas políticas sociais, não implicando a esses(as) sujeitos(as) um jogo de assujeitamento, mas de redescoberta: em um dos encontros em que Dante foi ao Espaço, ele não usou seu casaco-escudo, por exemplo, e Julie passou a reconhecer sua identidade como um lugar de trânsito, desafiando as normas e explorando seus desejos e possibilidades de existência.
Além disso, os relatos aqui apresentados apontam para a experimentação e ampliação de novas formas de se produzir os acompanhamentos singulares e territoriais.
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A questão social tem sua gênese na forma como as pessoas se organizam para produzir numa determinada sociedade e num contexto histórico dado, e essa organização tem sua expressão na esfera da reprodução social, ou seja, a questão social está determinada pelo traço próprio e peculiar da relação capital/trabalho - a exploração (Lopes, 2023, p. 39).
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A sigla refere-se às comunidades, respectivamente, de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros(as) e travestis, queers, intersexuais, assexuais, pansexuais, pessoas não-binárias, dentre outras possibilidades existenciais em gêneros e sexualidades.
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Compõe parte da estrutura administrativa do Governo da Paraíba por meio da Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade Humana (SEMDH). Esse equipamento oferece atendimento psicossocial e sociojurídico especializado a essa população e seus familiares em situação de vulnerabilidade social, por violação de direitos, além de ser um lugar de fortalecimento de vínculos familiares e comunitários (Marques Júnior, 2023, p. 85).
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“Normas e convenções de gênero e sexualidade cunhadas pela matriz heterossexual acabam por alocá-las às marginalizações que as segregam, visto que toda a esfera social está imbricada por uma série de fatores estabelecidos historicamente, determinando o que deve ou não ser aceito” (Melo, 2016, p. 217).
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Ao articular a discussão de território e construções identitárias, Monzeli (2013, p. 18) compreende que o “[…] território representa muito mais do que o 'pano de fundo' da vida social, isto é, participa efetivamente da construção e desconstrução de relações e subjetividades [...]” sendo necessária uma “[...] discussão sobre a própria conceitualização de território na medida em que as sociabilidades e as próprias construções corporais, subjetivas e identitárias se relacionam diretamente com o uso que os corpos fazem destes espaços [...]”, entendendo a influência que a representação subjetiva tem no território e, consequentemente, em seus espaços de sociabilidade.
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Por se identificar enquanto pessoa não binária, Julie será referida tanto com os pronomes ele/dele quanto com os pronomes ela/dela durante esse texto, de acordo com os acontecimentos no qual foram sendo utilizados, e conforme foi se auto identificando.
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Santos (2011) aponta que o Candomblé possui herança cultural que combina elementos da África e do Brasil. Essa religião acolhe as diferenças e busca a aceitação e o acolhimento das pessoas independente de sua identidade de gênero, sem a necessidade de conformar-se a determinados padrões de valores ou ajustes sociais (Ferreira & Soares, 2021).
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Série produzida pela Netflix (2019-2023).
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9
O até então nomeado “processo transexualizador”, tem avançado institucionalmente com a publicação das portarias nº 1.707/2008, nº 457/2008 e, posteriormente, nº 2.803/2013, bem como com a Resolução nº 2.265/2019 do CFM, a consolidação de uma política nacional de saúde voltada à população trans permanece tensionada por entraves normativos e políticos (Brasil, 2013). Um exemplo recente é a não publicação do Programa de Atenção Especializada à Saúde da População Trans (Paes Pop Trans), anunciado em dezembro de 2024 pelo Ministério da Saúde, cuja oficialização foi paralisada em razão da troca de gestão ministerial, pressões de setores conservadores e conflitos com a Resolução nº 2.427/2025 do CFM.
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De acordo com Demétrio (2019, p. 10), “A passabilidade pode ser, também, definida como um modus operandi social de (re)produção da cisheteronormatividade, como norma simbólica e política de gênero e sexualidade, hegemônicas na sociedade [...] se por um lado, a passabilidade trans possibilita maior ‘reconhecimentosocial’, e segurança social para muitas pessoas trans e travestis, por outro, pode ser uma armadilha cis‐política”.
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Para Butler (2003, p. 178), “[…] o ‘abjeto’ designa aquilo que foi expelido do corpo, descartado como excremento, tornado literalmente ‘Outro’. A construção do 'não eu' como abjeto estabelece as fronteiras do corpo, que são também os primeiros contornos do sujeito”.
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Dante estava em investigação para Discalculia durante parte dos encontros com ele, por conta da dificuldade que foi apresentada na escola na área das ciências exatas.
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Forma que Julie nomeia as pessoas que trabalhavam com ela.
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Local em que aguardava os seus clientes.
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Como citar:
Marques, L. Z. M., Braga, I. F., Marques Júnior, K. N., & Monzeli, G. A. (2025). Tecendo autonomia e desafiando normas: contribuição dos acompanhamentos singulares e territoriais junto a pessoas dissidentes de gêneros e sexualidades. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 33, e3949. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoRE404539491
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Editado por
-
Editora de seção
Profa. Dra. Patrícia Leme de Oliveira Borba
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
19 Set 2024 -
Revisado
22 Jan 2025 -
Aceito
09 Abr 2025





Fonte: Produzido pelo participante (2023).
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