Open-access Práticas de longitudinalidade no âmbito da Estratégia Saúde da Família no Distrito Federal

Practices of longitudinality in the Family Health Strategy in Distrito Federal, Brazil

Resumos

Este artigo tem como objetivo conhecer as práticas de saúde voltadas para a garantia da longitudinalidade referidas por profissionais e gestores locais das equipes de Saúde da Família do Distrito Federal, analisando-as em relação às dimensões desse atributo. Trata-se de estudo no qual foram realizadas entrevistas individuais e grupo focal com os sujeitos da pesquisa, e posteriormente foi realizada análise do Discurso do Sujeito Coletivo. Observou-se que as dimensões Fonte regular de cuidados e Relação interpessoal estão presentes nos discursos dos sujeitos, evidenciando mecanismos adotados por eles para garantir a continuidade do cuidado. Entretanto as equipes devem ampliar o campo em que desenvolvem seus processos de trabalho, de modo que efetivamente construam práticas de saúde enquanto práticas sociais, extrapolando os limites da atuação programática e individualizada para o reconhecimento e a atuação sobre os determinantes sociais da saúde. Não foi possível observar a presença da dimensão Continuidade informacional.

atenção primária à saúde; Estratégia Saúde da Família; continuidade da assistência ao paciente; prática profissional


This article aims to know the health practices oriented to the longitudinality referred by local professionals and managers of Family Health teams from the Distrito Federal, Brazil, analyzing them in relation to its dimensions. This is a case study in which individual interviews and focus group were conducted with subjects from the research, and then it was performed analysis of the Collective Subject Discourse. It was observed that the dimensions Regular source of care and Interpersonal relationship are present in the discourse of the subjects, showing the mechanisms adopted to ensure continuity of care. However, the teams should expand the field in developing their work processes in order to effectively build health practices as social practices, beyond the limits of programmatic activities and individualized for recognizing and acting on social determinants of health. It was not possible to observe the dimension of Informational continuity.

primary health care; Family Health Strategy; continuity of patient care; professional practice


INTRODUÇÃO

A longitudinalidade é entendida como característica central da Atenção Primária (AP) e se relaciona com outros atributos próprios desse nível do sistema de saúde, tais como a atenção ao primeiro contato, a integralidade e a coordenação da atenção1. Garantir meios de afirmar esse atributo nas práticas de saúde representa importante desafio para a ampliação e o fortalecimento da Estratégia Saúde da Família (ESF) no âmbito do Sistema Único de Saúde, o SUS. Essa estratégia, definida politicamente como principal modelo de AP no Brasil, apresenta características privilegiadas no sentido de viabilizar as transformações almejadas desde a reforma sanitária brasileira no que diz respeito à reorientação das práticas de saúde e à reorganização dos serviços e do sistema, representando, portanto, importante contexto para o desenvolvimento de práticas orientadas pelos atributos da AP, na qual a longitudinalidade é considerada em suas diversas dimensões.

Considerando que a longitudinalidade pode ser entendida no contexto brasileiro como vínculo longitudinal2, percebe-se que algumas propostas de mensuração desse atributo em diferentes contextos sócio-sanitários vêm ganhando força no âmbito da pesquisa em AP3,4, e até mesmo em estudos que analisam a compreensão dos profissionais sobre ele5, embora a busca pela compreensão de como os profissionais que atuam nesse nível de atenção desenvolvem suas práticas de saúde na perspectiva desse vínculo longitudinal ainda seja pouco relatada.

Dessa forma, considera-se que conduzir análises dessa natureza na perspectiva da prática de saúde no território pode apontar caminhos para a melhoria da qualidade da ESF, ao passo que se toma o fortalecimento desse atributo enquanto imagem-objetivo do trabalho das equipes.

Portanto, este artigo teve como objetivo conhecer as práticas de saúde voltadas para a garantia da longitudinalidade referidas por profissionais e gestores locais das equipes de Saúde da Família do Distrito Federal e analisá-las em relação às dimensões desse atributo apontadas por Cunha e Giovanella2.

As práticas de saúde na perspectiva da longitudinalidade: novos olhares a partir da Estratégia Saúde da Família

O SUS estabeleceu um sistema estruturado e integrado de serviços de saúde organizados a partir da AP. Seu contexto de formulação e implantação permitiu a institucionalização de um novo modelo de atenção orientado pela noção de direito à saúde e por uma concepção ampliada de saúde6. Dessa forma, o Brasil incorporou a ESF como principal modelo para a construção de práticas pautadas nas necessidades de saúde identificadas em um território. Essa estratégia tem como ponto central o vínculo e a criação de laços de compromisso entre profissionais e população, promovendo e integrando atividades para enfrentar e resolver os problemas identificados na perspectiva da responsabilidade integral sobre a população, entendendo a família a partir do ambiente onde vive e constrói suas relações, buscando, assim, promover a melhoria das condições de vida7-9.

Esse modelo dá ênfase à reorganização de unidades básicas de saúde de forma a se concentrarem nas famílias e nas comunidades, integrando a assistência médica à promoção da saúde e às ações preventivas10. Portanto, a ESF apresenta potencial transformador, uma vez que é pautada pelo conceito de saúde como qualidade de vida e capacidades humanas determinadas socialmente, o que possibilita a construção de um novo modelo de atenção à saúde dos indivíduos, famílias e comunidades11-13.

Assim, identifica-se o importante papel da ESF tanto no âmbito da organização do sistema de saúde quanto na produção de cuidado às famílias, sendo esta uma estratégia que busca, sobretudo, afirmar a integralidade do cuidado nas práticas de saúde, evidenciando, portanto, a necessidade de que essas práticas sejam planejadas e executadas de forma que permitam a garantia do cuidado ao longo do tempo pelas equipes.

Enquanto atributo da AP, a longitudinalidade se refere à relação de longa duração entre os profissionais e os pacientes em suas unidades de saúde, contribuindo para seu alcance enquanto fonte de atenção independente da presença de problemas relacionados à saúde, orientada para a pessoa e não para a doença, e propiciando benefícios como menor utilização dos serviços, melhor atenção preventiva e melhor reconhecimento dos problemas da população1.

Ao propor o uso do termo vínculo longitudinal quando se pretende discutir a ideia de longitudinalidade e de continuidade do cuidado no contexto brasileiro de AP, Cunha e Giovanella2 o definem como relação terapêutica estabelecida entre pacientes e profissionais da equipe de AP que se traduz no reconhecimento e na utilização da unidade básica de saúde como fonte regular de cuidado ao longo do tempo.

Segundo as autoras, podem ser identificadas três dimensões em relação ao vínculo longitudinal, a saber: a) a dimensão Fonte regular de cuidados na AP, que pressupõe que a população reconheça a unidade básica como referência habitual para o atendimento, implicando na oferta e disponibilidade dessa fonte em consonância com as necessidades de saúde da população local; b) a dimensão Relação interpessoal, que envolve a ideia de vínculo duradouro, ou seja, pressupõe uma boa relação profissional de saúde-paciente no contexto de uma população adscrita, envolvendo confiança e responsabilidade e valorizando a experiência do usuário e sua subjetividade; e c) a dimensão Continuidade informacional, que diz respeito à qualidade dos registros de saúde, seu manuseio e disponibilização, favorecendo o acúmulo de conhecimento dinâmico sobre os diversos pacientes pela equipe de saúde, o que beneficia a orientação da conduta terapêutica e seu constante processo de avaliação. Essa última dimensão demanda critérios de suficiência e responsabilidade em relação à aquisição de novas informações, sendo que a implantação de novas tecnologias de inovação pode ser considerada importante aliada2.

Essas dimensões são essenciais e compõem a ideia de vínculo longitudinal, uma vez que as responsabilidades no âmbito da ESF são divididas entre os diferentes profissionais das equipes, com importantes reflexos em suas práticas.

Considerando o olhar sobre as práticas proposto neste artigo, toma-se a noção de integralidade com base na dimensão das práticas como importante referencial para essa análise, admitindo suas peculiaridades quando pensadas em relação ao cuidado proposto e coordenado pela AP. Sendo as práticas configuradas socialmente, os profissionais da saúde devem compreender e atender a um conjunto de necessidades que a população apresenta e não apenas as diretamente ligadas às doenças, com a integralidade representando um valor sustentado e defendido nas práticas desses profissionais, expressando a forma como respondem aos usuários14. Portanto, relaciona-se a uma atitude voltada para a boa prática profissional, que não se reduz à prevenção e ao controle das doenças.

Mendes et al.15 referem-se às práticas sanitárias entendendo-as como o conjunto de processos de trabalho articulados em operações que age estrategicamente sobre os determinantes e os condicionantes dos problemas ou sobre os efeitos deles em um território, embasando o enfrentamento dos problemas de saúde no espaço do distrito sanitário como consequência de práticas voltadas para a vigilância sanitária e para a atenção à demanda.

As práticas de saúde, por meio de seus saberes técnicos e políticos, refletem o modelo de atenção implementado16, devendo a AP, segundo Starfield1, disponibilizar uma variedade de ações com base no reconhecimento adequado das necessidades das pessoas, que incluem a prevenção e a promoção da saúde. Dessa forma, as práticas de saúde configuram-se como processos de trabalho17, podendo ser individuais e coletivas, clínicas e epidemiológicas, relacionando-as às demais práticas sociais, pois tomam como objeto as necessidades sociais de saúde.

Nesse contexto, entendem-se neste artigo como práticas de saúde as formas de se selecionar, ofertar e executar ações de saúde no cotidiano do trabalho, o que envolve conhecimento técnico, político e das relações pessoais e sociais, nas quais são estabelecidos processos intersubjetivos entre profissionais e usuários18. Logo, reconhece-se que as práticas de saúde devem favorecer, entre outros propósitos, o vínculo longitudinal na AP.

Com base em suas dimensões, a longitudinalidade representa importante diretriz para o fortalecimento da ESF em seu propósito de transformar a realidade sanitária da população, de modo que esta se estabeleça como modelo de atenção privilegiado para o cuidado, aprimorando sua potencialidade de se tornar cada vez mais a fonte habitual de atenção e cuidado no âmbito do SUS.

MATERIAIS E MÉTODOS

Este estudo considerou como objeto de análise o modelo da ESF no Distrito Federal (DF), Brasil. Segundo dados do Censo 2010, o DF tem uma população de 2.562.963 habitantes19 e seu território e sua população são organizados em 7 regiões de saúde e 15 regionais de saúde20.

Em março de 2011 a ESF tinha 113 equipes completas de Saúde da Família consistidas no Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES) atendendo 331.144 pessoas, o que corresponde a uma cobertura de aproximadamente 15% de toda a população. Além disso, havia 13 equipes multiprofissionais de apoio às ações das equipes, com ginecologistas, assistentes sociais e fonoaudiólogos, dentre outros profissionais, lotados nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), que têm como propósito ampliar a abrangência e o escopo das ações de saúde no âmbito da AP21,22.

Nesse contexto foi desenvolvida esta pesquisa, configurada como estudo de caso23 de natureza qualitativa24. Foram sujeitos da pesquisa profissionais da saúde - médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e agentes comunitários de saúde - e os coordenadores das equipes de Saúde da Família.

Para a definição dos profissionais e das equipes que compõem o universo da pesquisa, foram utilizados como critérios: indicação dos gestores regionais de equipes com profissionais considerados informantes-chave para o objeto da pesquisa e equipes consistidas no SCNES há pelo menos um ano com os mesmos profissionais, considerando a data da coleta de dados. Dessa forma, 11 regionais de saúde foram consideradas na definição do universo desta pesquisa, sendo selecionada 1 equipe por regional de saúde. Após contato telefônico do pesquisador com os informantes indicados, foram agendadas e realizadas entrevistas semiestruturadas com 1 profissional por equipe, totalizando 11 sujeitos - 3 médicas, 2 enfermeiras, 3 auxiliares de enfermagem e 3 agentes comunitários de saúde, definidos por regional de maneira aleatória.

Também foi realizado 1 grupo focal com os coordenadores das 11 equipes, que contou com a adesão de 7 sujeitos. Tanto as entrevistas individuais quanto o grupo focal foram realizados com roteiro semiestruturado que tinha como objetivo conhecer como a equipe buscava garantir o vínculo longitudinal com as famílias de seu território de atuação. A fim de complementar os dados para análise, utilizou-se da observação livre com registro em diário de campo durante as visitas às unidades para realização das entrevistas.

As entrevistas individuais foram realizadas nos diferentes locais de trabalho dos profissionais. O grupo focal foi realizado em sala isolada no Núcleo de Estudos de Saúde Pública da Universidade de Brasília (NESP/UnB). O material foi gravado e transcrito para posterior análise, etapa na qual foi realizada a análise do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC)25, que permite a tabulação e organização de dados qualitativos apresentados por meio de um discurso síntese, redigido na primeira pessoa do singular e elaborado com extratos de depoimentos de sentido significativo semelhante. Para a apresentação dos resultados, utilizou-se das Expressões-Chave (E-Ch) e das Ideias Centrais (IC) das falas, que permitiu a construção dos DSC.

A análise foi desenvolvida com base nas dimensões imprescindíveis para a longitudinalidade, que foram tomadas como IC a serem reconhecidas nos discursos, a saber: Fonte regular de cuidados da AP; Relação interpessoal; e Continuidade informacional2. Portanto, buscou-se identificar nos discursos dos sujeitos as práticas das equipes voltadas para essas dimensões. Os resultados estão apresentados com o apoio de fragmentos do DSC, seguidos das respectivas discussões.

Ressalta-se que a coleta dos dados foi realizada somente após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, tendo sido o projeto desta pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Estado de Saúde do DF, sob o protocolo número 229/10, seguindo, portanto, as determinações da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Os achados desta pesquisa estão apresentados de acordo com as categorias de análise estabelecidas, ou seja, conforme as dimensões do atributo em estudo, sendo apresentados fragmentos dos DSC correspondentes.

Fonte regular de cuidados da Atenção Primária

Em relação a esta dimensão, o discurso dos profissionais das equipes demonstra a importância da adscrição da clientela para efetivar uma atenção contínua à população, e o papel do agente comunitário é fundamental para o acompanhamento das famílias. Estar apto a acolher bem as necessidades e as demandas aparece no discurso como importante mecanismo para a garantia de um cuidado contínuo, por favorecer a adesão e o possível reconhecimento pelas pessoas da unidade enquanto um local a ser procurado. Essa idéia pode ser observada no fragmento abaixo:

É deixando a porta aberta mesmo pra quando eles precisarem, fazendo um bom acolhimento, que aí eles voltam quando são bem acolhidos. Quando a pessoa vem procurar o posto, a primeira coisa que eu faço é olhar se a pessoa tá cadastrada ou não. O próprio agente de saúde tem um número X de famílias, né... e, assim, a gente visita uma vez por mês aquela família. Através dos ACS a gente fica sabendo por que o paciente faltou, porque aconteceu isso, aquilo, então quando o paciente não vem, aí a gente já está em alerta, eles já vão atrás pra saber o que tá acontecendo. Faz uma busca ativa das doenças, das situações, do que acontece... por isso nós temos que ter essa busca ativa. Se a gente identificou uma família que precisa ser vista mais do que uma vez por mês, então a gente vai lá duas, três vezes... é mantendo o vínculo, não perdendo o contato. Nós temos a listagem de todas as grávidas, de todas as crianças, de todos os hipertensos, diabéticos, tudo, então por isso que fica fácil de dar cobertura, né? E eles estão sempre participando das reuniões, e a cada dois meses a enfermeira faz uma reunião em cada microárea, pra poder manter essa continuidade, né? Dando esse acompanhamento de perto mesmo.

Observa-se também no discurso dos profissionais a preocupação em buscar resolver os problemas no âmbito do território, tentando evitar a realização de encaminhamentos dos usuários a especialistas de outros níveis de atenção mesmo quando necessário. Para tanto, o discurso aponta que a existência de uma equipe de apoio às ações na AP possibilita a busca pela resolução dos problemas na própria unidade, fortalecendo, segundo os profissionais, o reconhecimento da população pela unidade enquanto um local para se resolver os diversos problemas de saúde, e, consequentemente, tornando-a cada vez mais fonte habitual de atenção, conforme pode ser visto no fragmento abaixo:

Tem também o Núcleo de Apoio à Saúde da Família, o NASF, que é esse núcleo de profissionais, que tem assistente social, nutricionista, fisioterapeuta, fonoaudiólogo... Então qualquer coisa que a gente precisa, nós vamos em busca, né? E eles vêm pra cá, entendeu, pra atender os pacientes daqui. O ideal é não encaminhar o paciente. Deixar que se resolva aqui mesmo, né?

Ressalta-se a necessidade de se aprofundar em uma análise mais específica sobre essa inovação na AP caracterizada pelo NASF, mas é possível identificar indícios, na realidade observada, de sua potencialidade em fortalecer o atributo da longitudinalidade no território a partir da ESF.

No discurso dos gestores locais observou-se unicamente essa dimensão, o que pode ter sido fomentado pela própria escolha da técnica, que reuniu vários gestores locais na realização de um grupo focal. De qualquer modo, reconhece-se a forte influência do papel de administrador da unidade no discurso e nas práticas dos sujeitos, que chega a suprimir as demais, ou ao menos a sobrepor essa dimensão, conforme pode ser visto no fragmento abaixo:

Visita e ACS. E a periodicidade das atividades, né? Então, por exemplo, o grupo de hipertensos, não dá pra fazer um grupo hoje, e daqui a muito tempo a gente marca o outro. Então eu acho que a vantagem do PSF é essa também, a questão do planejamento. Sem planejamento você não consegue. E mesmo a gente trabalhando com demanda espontânea tem que ter planejamento, senão a gente não consegue. E às vezes você tá atendendo pré-natal, a mãe trouxe dois filhos, e mais o marido que tá doente... aí você tem que atender. Mas a gente trabalha com a escala, e todos os dias quando eu chego, que tem um paciente na entrada eu já vou conversar com ele, sempre converso com os pacientes quando eu chego e sempre estou apresentando a nossa escala e o quadro onde estou. Porque pra quando eles chegarem e perguntarem, não terem aquele impacto. Tá lá dizendo onde a enfermeira tá, onde a médica tá. Mas a gente atende casos de emergência. Em termos de medicação... Eu tenho um problema sério, a gente faz um mapa todo mês. Você pede X de medicação, não vem... Aí o que acontece? Nos postos de saúde tem e na nossa unidade num tem. Aí a gente faz receita pra os pacientes pegarem num outro posto. Aí os pacientes acham que é...

Nesse sentido, inserir o planejamento dos serviços nas práticas apresenta-se como um ponto positivo para que a unidade se configure como uma fonte regular de atenção à população. Entretanto, ressalta-se a necessidade de se pensar as práticas para além da gestão lógica da unidade, que também é importante, mas que deve considerar os processos de trabalho que agem sobre os determinantes e condicionantes da saúde, conforme afirmam Mendes et al.15, tomando como objeto as necessidades sociais da saúde17.

Pontua-se ainda o papel das visitas domiciliares e dos agentes comunitários na garantia do contato contínuo dos profissionais com a população, chamando a atenção também para como determinadas questões que estão acima da governabilidade da equipe, a exemplo da falta de medicamentos denunciada, enfraquecem a unidade enquanto fonte habitual de atenção, por fomentar conflitos e descrenças da população em relação aos profissionais, que têm que encaminhar a população para outros serviços.

Embora essas questões necessitem da ação de outros atores para que sejam contornadas ou resolvidas, tais como gestores ou mesmo técnicos de outros níveis de atenção, e sejam determinadas por diferentes momentos político-institucionais, os profissionais das equipes devem inserir em seu cotidiano práticas que visem enfrentar seus diversos problemas, mesmo quando estes são de ordem política ou organizacional, uma vez que as práticas de saúde são necessariamente práticas sociais, sendo, portanto, parte dos processos de trabalho das equipes.

Relação interpessoal

Em relação à dimensão Relação interpessoal, os profissionais apontam a importância do vínculo para o estabelecimento de relações de longa duração, conforme pode ser observado no fragmento abaixo:

Se preocupar com os pacientes e gostar do que faz. Pra mim é gratificante, é o bem-estar do paciente. Eu me entrego, porque muitos pacientes precisam da gente, eles confiam, quando você vai na casa deles, eles gostam, né, querem informação. Pra isso eu tenho que estudar, eu tenho que estar atualizada, né... os pacientes gostam de estar informados. E se eu tenho um apoio interno aqui da unidade, eu consigo ter um suporte maior com a comunidade. Por exemplo, a gente lanchou todo mundo junto, eu achei interessante, a comunidade junto com os profissionais, independente que seja o médico ou não. E a gente não tá ali só pra atender, mas pra sentar e conversar e ser amigos, né? Ouço relatos de pacientes que se remetem assim... ah, vocês não vão sair daqui não, hein? Eu falo, bom, enquanto deixarem a gente tá aqui.

De acordo com o discurso, o trabalho em equipe permite que o profissional encontre meios de fortalecer sua relação com a população, tanto no que concerne à efetiva participação de todos nas diversas ações de saúde, quanto como consequência da retaguarda técnica oferecida pelos demais profissionais, caracterizando o compartilhamento do saber técnico específico.

Essa relação inclui também a possibilidade de exercer a escuta e o diálogo dos profissionais com a população, com base na troca de informações importantes sobre o processo saúde-doença que envolve a vida dos usuários, o que, segundo Starfield1 facilita a efetividade na atenção primária, pois é quando os profissionais aprendem a respeito dos problemas e os usuários aprendem a respeito dos aspectos de sua atenção, sendo que a amplitude e a profundidade desse contexto favorecem a interação profissional-usuário.

Percebe-se no discurso que essa interação não se dá apenas em situações de consultas clínicas e encaminhamentos, embora essas situações não tenham sido sistematicamente observadas, não permitindo, pois, uma análise sobre essa relação específica. Ainda assim, percebe-se que o componente das relações pessoais, previsto na ideia de que as práticas de saúde também são processos intersubjetivos, é importante no estabelecimento de vínculos duradouros na perspectiva dos profissionais da saúde, corroborando os achados de Baratieri et al.26.

Continuidade informacional

Por fim, a dimensão Continuidade informacional não foi observada no discurso dos profissionais nem dos gestores locais. Entretanto, com base na observação livre durante as visitas às unidades, percebe-se a dificuldade dos profissionais em reconhecer o registro nos prontuários como ação estratégica para avaliação e continuidade do cuidado ao longo do tempo. As informações tendem a se restringir a dados vitais e avaliações clínicas direcionadas à queixa apresentada pelas pessoas, fazendo um recorte da situação no dia específico em que o usuário buscou por atendimento. Embora esses registros permitam ao menos conhecer o histórico de queixas bem como de diagnósticos e condutas realizados em consultas anteriores, carecem de informações que permitam entender o contexto sociocultural e, consequentemente, os determinantes do processo saúde-doença das pessoas, que muitas vezes podem ser conseguidos em reuniões e conversas com a equipe, mas que se limitam ao uso da fala como recurso linguístico, e a memória como recurso cognitivo, sem o necessário apoio da escrita para registro de informação. Algumas equipes de Saúde da Família ainda fazem uso de prontuários individuais, em detrimento dos prontuários familiares, dificultando o olhar sobre o sujeito no contexto de sua família.

Reconhece-se a necessidade de direcionar o método especificamente para uma análise mais aprofundada desta dimensão, entretanto o fato de não aparecer no discurso sugere que a prática de registrar em prontuário pode não estar sendo reconhecida enquanto importante dimensão das práticas de saúde, o que pode dificultar o vínculo longitudinal das equipes com as famílias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo buscou contribuir para a reflexão acerca da longitudinalidade enquanto importante atributo da ESF com base nas suas dimensões, de modo que identificasse, na perspectiva da fala dos sujeitos envolvidos nas práticas de saúde desempenhadas cotidianamente no território, como as equipes desenvolvem seus processos de trabalho na perspectiva de fornecer cuidado contínuo às pessoas, às famílias e às comunidades no horizonte do vínculo longitudinal.

Observou-se que as dimensões Fonte regular de cuidados e Relação interpessoal estão presentes nos discursos dos profissionais e gestores locais acerca de suas práticas e evidenciam mecanismos adotados por eles para garantir a continuidade do cuidado. Entretanto, acredita-se que as equipes devem refletir maneiras de ampliar o campo em que desenvolvem seus processos de trabalho, de modo que efetivamente construam práticas de saúde enquanto práticas sociais, extrapolando, assim, os limites da atuação programática e individualizada para o reconhecimento e a atuação sobre os determinantes sociais da saúde.

A dimensão Continuidade informacional precisa ser mais bem entendida no contexto analisado, mas certamente deve ser foco de análise da gestão e dos próprios profissionais da atenção, pois apresenta relevância na busca pela afirmação do atributo em análise.

Dessa forma, mesmo reconhecendo os limites desta pesquisa em relação ao aprofundamento do tema, são apontadas algumas questões que podem indicar caminhos para o fortalecimento da ESF no DF, devendo tal atributo ser tomado como prioridade pela gestão, que, por sua vez, deve construir meios para efetivá-lo no contexto do sistema de saúde analisado.

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  • Trabalho realizado nas Unidades de Saúde da Família do Distrito Federal, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2014

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2013
  • Aceito
    03 Fev 2014
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