Open-access Violência familiar na infância, fatores sociodemográficos e étnico-raciais, e a ocorrência de problemas comportamentais externalizantes na adolescência

Family violence in childhood, sociodemographic and ethnic-racial factors, and the occurrence of externalizing behavioral problems in adolescence

Resumo

Introdução:  Caracterizados por comportamento agressivo e violação de regras, os Problemas Comportamentais Externalizantes (PCE) na adolescência representam elevada prevalência em países em desenvolvimento como o Brasil, onde desvantagens socioeconômicas predominam em determinados grupos étnico-raciais.

Objetivo:  Investigar se há associações entre exposição à violência familiar na infância, fatores sociodemográficos, raça/cor da pele e grau de ancestralidade biogeográfica, e a prevalência de PCE na adolescência.

Métodos:  Estudo transversal, realizado com 755 adolescentes residentes em Salvador/BA. Aplicou-se o Youth Self Report, Parent-Child Conflict Tactics Scales e questionário sociodemográfico. Raça/cor foi autodeclarada e grau de ancestralidade biogeográfica, mensurada por amostras de DNA. Empregou-se estatística descritiva, além de regressão logística bivariada e multivariada, adotando-se Intervalo de Confiança (IC) de 95%.

Resultados:  A prevalência de PCE foi de 35,23%, permanecendo fortemente associada em níveis de significância estatística no modelo final de regressão logística multivariada com o sexo feminino (OR=2,08; IC95% 1,51–2,86) e a exposição frequente a maus tratos físicos na infância (OR=3,15; IC95% 2,21–4,48). Nessa mesma direção, mas com menor força que as demais variáveis, viu-se a renda familiar mensal menor ou igual a um salário mínimo (OR=1,49; IC95% 1,00–2,26).

Conclusão:  Diante desses resultados, é necessário implementar ações de prevenção de PCE e priorizar assistência aos adolescentes acometidos por esses problemas.

Palavras-chave:
maus-tratos infantis; saúde das minorias étnicas; saúde mental

Abstract

Introduction:  Characterized by aggressive behavior and violation of rules, externalizing behavioral problems (ECP) in adolescence are highly prevalent in developing countries such as Brazil, where socioeconomic disadvantages predominate in certain ethnic-racial groups.

Objective:  To investigate whether there are associations between exposure to family violence in childhood, sociodemographic factors, race/skin color and degree of biogeographic ancestry, and the prevalence of ECP in adolescence.

Methods:  A cross-sectional study carried out with 755 adolescents living in Salvador-BA. The Youth Self Report, Parent-Child Conflict Tactics Scales and a sociodemographic questionnaire were applied. Race/color was self-declared and degree of biogeographic ancestry was measured by DNA samples. Descriptive statistics, bivariate and multivariate logistic regression were used, adopting a confidence interval (CI) of 95%.

Results:  The prevalence of PCE was 35.23%, remaining strongly associated at statistical significance levels in the final model of multivariate logistic regression with the female gender (odds ratio — OR=2.08; 95%CI 1.51–2.86), frequent exposure to physical abuse in childhood (OR=3.15; 95%CI 2.21–4.48). In the same direction, but with less strength than the other variables, we saw the monthly family income less than or equal to one minimum wage (OR=1.49; 95%CI 1.00–2.26).

Conclusion:  In view of these results, it is necessary to implement actions to prevent ECP and prioritize assistance to adolescents affected by these problems.

Keywords:
child abuse; health of ethnic minorities; mental health

INTRODUÇÃO

Os Problemas Comportamentais Externalizantes (PCE) se instalam precocemente na infância e adolescência. Apresentam diferentes prevalências mundialmente, sendo mais elevadas nos países em desenvolvimento, como o Brasil1,2. Sugere-se que as prevalências desses problemas oscilam conforme aspectos étnico-raciais, por se tratar de grupos que vivem em status de vulnerabilidade social diferenciados e, por sua vez, apresentam distintas formas de adoecimento. Entre os grupos étnico-raciais, indivíduos de raça/cor negra e afrodescendentes apresentam maior ocorrência de PCE devido a maior exposição a fatores predisponentes a esse problema, como baixas condições socioeconômicas e diversas formas de sujeição à violência, destacando-se a violência familiar na infância3,4.

Os PCE caracterizam-se por comportamento agressivo e violação de regras, ocorridos nas relações entre a pessoa acometida e membros da sociedade5. Segundo o 5º Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), o comportamento agressivo refere-se aos transtornos de conduta, compreendendo atos agressivos perante pessoas e animais, destruição de propriedade, roubo ou furto, e violação de regras sociais. Esta diz respeito ao Transtorno Desafiador Opositor (TDO), síndrome caracterizada por comportamento negativo, desafiador e hostil diante de figuras de autoridade6.

Os PCE podem causar impactos negativos na vida do adolescente, dos familiares e da própria comunidade. Há interferência de maneira significativa na vida diária, podendo afetar o desenvolvimento saudável e, consequentemente, impedir o cumprimento das tarefas evolutivas desta fase específica — comprometendo, assim, o ingresso na vida adulta7.

Conforme uma amostra nacionalmente representativa dos Estados Unidos, os problemas comportamentais, entre eles os externalizantes, ocupam a segunda posição entre problemas mentais que acometem adolescentes, apresentando prevalência ao longo da vida de 19,1% e sendo mais frequentes no sexo masculino8. No Brasil, encontrou-se prevalência de 17,1% na última década9.

Alguns aspectos podem ser preditores de PCE entre adolescentes, sugerindo-se aspectos do ambiente comunitário, familiar e características individuais10. Estudos apontam os fatores socioeconômicos sexo11, idade8 e raça/cor da pele10 como fatores relacionados a esses problemas, além dos eventos estressores, como exposição à violência familiar na infância6,8,12.

A resposta ao estresse pode desencadear mecanismos neuroendócrinos, elevando os níveis hormonais de cortisol, catecolaminas, adrenalina e noradrenalina13 em indivíduos com PCE14. O tempo de exposição a esses eventos e os efeitos cumulativos, ao longo da vida, podem contribuir com a determinação do processo saúde-doença, conforme descrito pela Teoria do Curso de Vida, que justifica a determinação de problemas de saúde pelo tempo de exposição aos possíveis preditores15.

Adicionalmente, a Teoria Bioecológica assinala que o contexto individual, familiar e ambiental onde o indivíduo vive pode influenciar a ocorrência de problemas físicos, mentais e comportamentais. Finalmente, sugere-se que o desenvolvimento humano decorre da interação dinâmica e interdependente das particularidades dos indivíduos com o conjunto de sistemas que compõe o ambiente, mediante trocas que produzirão mudanças16.

Alguns preditores de PCE, investigados neste estudo, podem ser explicados com base nas desigualdades sociais vividas pelos adolescentes, conforme as teorias do estresse, do curso de vida, e bioecológica de Bronfenbrenner.

O conhecimento existente confere relevância para estudos que identifiquem fatores associados aos PCE entre adolescentes no Brasil, haja vista uma lacuna na produção científica, em especial de estudos epidemiológicos sobre tais problemas nessa faixa etária. Ademais, este estudo fornece subsídios para construção e desenvolvimento de ações de promoção da saúde mental e prevenção de fatores modificáveis que possam comprometê-la.

Nesse sentido, objetivou-se identificar se há associações entre exposição à violência familiar na infância, fatores sociodemográficos, raça/cor da pele e grau de ancestralidade biogeográfica, e a prevalência de problemas comportamentais externalizantes na adolescência.

MÉTODOS

Estudo transversal realizado no município de Salvador, Bahia, Brasil, com adolescentes moradores de bairros periféricos. Estes foram integrantes da coorte Social Changes, Asthma and Allergy in Latin America (SCAALA), avaliados na 1ª onda, em 2006, quando tinham entre 4 e 10 anos de idade; e na 2ª onda, em 2013, com idade entre 11 e 18 anos. Realizou-se seleção aleatória para recrutamento de crianças e adolescentes residentes em 24 microáreas do referido município.

Calculou-se o tamanho da amostra considerando uma prevalência de PCE na adolescência de 17,1%, definida com base na literatura9, utilizando-se poder de 80% e nível de significância de p=0,05. A amostra constituída foi de 755 adolescentes.

Incluiu-se nesta investigação adolescentes entre 10 e 18 anos completos, conforme limite cronológico estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para definir adolescência17. Foram excluídos adolescentes e cuidadores com alterações cognitivas que comprometessem as respostas obtidas por meio dos instrumentos de pesquisa.

Os PCE na adolescência foram avaliados com a aplicação do Youth Self Report (YSR), derivado do Child Behavior Checklist (CBCL), desenvolvido nos Estados Unidos5, traduzido e validado no Brasil18. O questionário é composto por 118 perguntas respondidas pelo adolescente e diz respeito à presença ou não de PCE nos últimos seis meses anteriores à entrevista5.

As questões do YSR foram agrupadas em oito dimensões. Utilizou-se neste estudo as duas últimas, referentes a violação de regras e comportamento agressivo; estas foram agrupadas para investigar a suspeição de PCE, classificados em casos não clínicos (constituídos por limítrofes e não clínicos) e casos clínicos5.

Para identificar características sociodemográficas e aspectos étnico-raciais, como raça/cor da pele autodeclarada, aplicou-se inicialmente um questionário. Posteriormente, verificou-se a genotipagem da ancestralidade biogeográfica individual do adolescente por meio de amostras de DNA de indivíduos africanos e europeus do projeto HapMap1 e ameríndios do projeto Diversidade do Genoma Humano (HGDP). A ancestralidade biogeográfica do adolescente foi classificada de acordo os intervalos semi-interquartis (IS), que foram construídos segundo as medianas das proporções de ancestrais africanos (0.503362), europeus (0.423643) e ameríndios (0.059797) encontradas na amostra estudada. Foi considerado baixo grau de ancestralidade quando houve resultado menor ou igual às medianas e alto grau de ancestralidade para aqueles que estiveram acima da mediana.

A exposição à violência familiar na infância foi averiguada pela Parent-Child Conflict Tactics Scales (CTSPC), escala desenvolvida pelo Family Violence Research Program, nos Estados Unidos19, adaptada transculturalmente e validada no Brasil20. Apresenta 22 questões distribuídas em três dimensões: 1) disciplina não violenta; 2) agressão psicológica; e 3) violência física, que é subdividida conforme a gravidade em 3.1) punição corporal, 3.2) maus-tratos físicos e 3.3) maus-tratos físicos graves19. A primeira dimensão foi excluída, por não representar qualquer tipo de violência.

As três dimensões da CTSPC são pontuações segundo a frequência de atos de violência contra a criança: 1) nunca ou raramente, de 0 até 2 atos; 2) frequente, de 3 até o número máximo de atos cometidos em cada dimensão. As dimensões "maus-tratos físicos" e "maus-tratos físicos graves" foram agrupadas em uma única dimensão, conforme adotado em estudo prévio no Brasil, denominando-se maus-tratos físicos20.

Os dados foram coletados em dois momentos, por meio de visitas domiciliares individualizadas, com o adolescente e respectivos pais/responsáveis, realizadas por uma equipe de estudantes de áreas afins da Universidade Federal da Bahia (Ufba), previamente capacitada e supervisionada na aplicação dos instrumentos utilizados. A 1ª onda da coleta ocorreu entre janeiro e novembro de 2006. Nesta, os pais dos adolescentes que à época eram crianças responderam à escala CTSPC e ao questionário sociodemográfico. Na 2ª onda, entre janeiro e novembro de 2013, os próprios adolescentes responderam o YSR, assim como os questionários de violência comunitária e sociodemográfico.

A variável de desfecho relativa a PCE na adolescência foi assim categorizada: 0=não clínicos, incluindo os casos limítrofes; e 1=clínicos.

A exposição principal foi violência familiar na infância sob a forma de agressão psicológica (nunca ou raramente=0 e frequente=1), punição corporal (nunca ou raramente=0 e frequente=1) e maus-tratos físicos (nunca ou raramente=0 e frequente=1).

As covariáveis foram faixa etária do adolescente (de 11 a 14 anos=0 e de 15 a 18 anos=1); sexo (0=feminino e 1=masculino); raça/cor da pele não negra (branca=0, amarela=1, indígena=2) e negra (preta=3 e parda=4); grau de ancestralidade africana (baixo=0 e alto=1), grau de ancestralidade europeia (baixo=0 e alto=1) e grau de ancestralidade ameríndia (baixo=0 e alto=1); renda familiar mensal (>1 Salário Mínimo [SM] e ≤2 SM=0 e ≤1 SM=1).

Os dados produzidos foram tabulados e analisados pelo Analysis and Statistical Software-STATA versão 14.0. Inicialmente, foi realizada a estatística descritiva, com o uso de números absolutos, prevalência e tercis. E, adicionalmente, regressão logística bivariada com cálculo do Odds Ratio (OR) bruta com respectivos Intervalos de Confiança de 95% (IC95%), para avaliar as possíveis associações entre a exposição principal, covariáveis e a variável de desfecho.

Por fim, realizou-se o modelo de regressão logística multivariada, sendo incluídas as variáveis preditoras que na análise bivariada apresentaram níveis de significância estatística de até 20%, consideradas possíveis modificadoras21. A inclusão das variáveis no modelo foi de uma a uma, mediante o procedimento backward e o teste da razão de verossimilhança, até encontrar o modelo considerado mais parcimonioso. O modelo final considerou as variáveis que se mantiveram associadas aos PCE de significância de 5% (i.e., p<0,05), por meio do teste de Wald, após o ajuste.

Esta pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC-Ufba) em 2005, sob o registro 047-05/CEP-ISC FR-78168. Os adolescentes menores de 18 anos assinaram os termos de assentimentos e os pais e/ou responsáveis, os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

RESULTADOS

Dentre os 755 adolescentes estudados, predominou o sexo masculino (51,52%); a faixa etária entre 11 e 14 anos (61,59%); renda familiar mensal menor que um salário mínimo (83,18%); raça/cor da pele negra (preta e parda) (91,39%); além de altos graus de ancestralidades africana (50,07%), europeia (50,07%) e ameríndia (50,07%). Quanto aos maiores percentuais com experiência de violência familiar na infância, predominaram indivíduos expostos a atos frequentes de punição corporal (58,01%), maus-tratos físicos (55,50%) e agressão psicológica (52,32%) (Tabela 1).

Tabela 1
Características sociodemográficas, étnico-raciais e de exposição à violência familiar na infância dos adolescentes. Salvador, Bahia, Brasil, 2019.

A prevalência de PCE entre os adolescentes foi de 35,23%. Por meio da regressão logística bivariada, observou-se maiores chances de ocorrência desses problemas para o sexo feminino, em níveis de significância estatística, quando comparado com o sexo masculino pela referência (OR=1,97; IC95% 1,45–2,67). Essa mesma tendência foi observada para aqueles com renda familiar mensal inferior ou igual a um salário mínimo em contraste com quem declarou renda entre um e dois salários mínimos mensais (OR=1,50; IC95% 1,02–2,22) (Tabela 2).

Tabela 2
Análise bivariada da suspeição de problemas comportamentais externalizantes entre adolescentes em relação às características sociodemográficas e étnico-raciais estudadas. Salvador, Bahia, Brasil, 2019.

Adicionalmente, tratando-se dos aspectos étnico-raciais, observou-se com significância estatística que a chance de adolescentes de raça/cor da pele negra (preta e parda) terem PCE foi maior do que em relação aos autodeclarados brancos e indígenas (não negros) (OR=1,90; IC95% 1,04–3,46), assim como àqueles com alto grau de ancestralidade africana (OR=1,45; IC95% 1,07–1,96) em comparação aos de baixo grau. Por sua vez, ter alto grau de ancestralidade europeia foi fator de proteção para PCE (OR=0,69; IC95% 0,51–0,93) em comparação a ter baixo grau, que representou 31% a mais de chances de desenvolver esses problemas (Tabela 2).

Ainda de acordo com a análise bivariada, tiveram maiores chances de apresentar PCE, em níveis de significância estatística: os adolescentes que foram expostos à violência familiar na infância através de punição corporal (OR=2,92; IC95% 1,76–4,86) e maus-tratos físicos (OR=2,92; IC95% 1,76–4,86); e aqueles que, na própria adolescência, foram expostos à violência comunitária direta (OR=2,60; IC95% 1,78–3,79) e indireta (OR=2,92; IC95% 1,76–4,86), e com alto nível de percepção quanto à violência perpetrada (OR=2,95; IC95% 1,98–4,38) (Tabela 3).

Tabela 3
Associação entre violência familiar na infância e problemas comportamentais externalizantes na adolescência. Salvador, Bahia, Brasil, 2019.

No modelo final de regressão logística multivariada, continuaram fortemente associados de forma positiva com a ocorrência dos PCE e em níveis de significância estatística: sexo feminino (OR=2,08; IC95% 1,51–2,86) e exposição frequente a maus-tratos físicos na infância (OR=3,15; IC95% 2,21–4,48). Nessa mesma direção viu-se a renda familiar mensal menor ou igual a um salário mínimo, mas com menor força em relação às outras variáveis (OR=1,49; IC95% 1,00–2,26) (Tabela 4).

Tabela 4
Análise multivariada das variáveis preditoras em relação aos problemas comportamentais externalizantes na adolescência. Salvador, Bahia, Brasil, 2019.

DISCUSSÃO

Encontrou-se nesta investigação prevalência de 35,23% para PCE na adolescência, acima da encontrada em outros estudos que também utilizaram o CBCL/YSR para realizar esta avaliação tanto internacionalmente (10,7%)19 como no Brasil (27,8%)2.

Encontrou-se maiores chances de ocorrência deste fenômeno entre adolescentes do sexo feminino, com menor renda familiar mensal, de raça/cor da pele negra, com alto grau de ancestralidade africana, e expostos na infância à violência familiar sob a forma de punição corporal e maus-tratos físicos. Contrariamente, adolescentes com grau alto de ancestralidade europeia tiveram menores chances de apresentarem PCE.

Ser adolescente do sexo feminino mostrou-se fortemente associado a esses problemas comportamentais, permanecendo assim mesmo após o ajuste com as demais variáveis estudadas, o que foi também observado em estudo anterior2, embora outro estudo tenha identificado a maior frequência de PCE em adolescentes meninos, não havendo consenso na literatura quanto ao sexo mais acometido por esses problemas11.

Essas diferenças podem ser explicadas por fatores biológicos, devido ao fato de existirem diferenças estruturais e funcionais do cérebro nos dois sexos, por exemplo, diferenças hormonais; ademais, devido às diferenças dos fatores ambientais, pois os padrões de socialização são diferentes entre os adolescentes do sexo feminino e masculino22.

Os adolescentes pesquisados de ambos os sexos apresentavam predominantemente baixas condições socioeconômicas, que por sua vez também contribuíram para elevada prevalência de PCE — pois, nesta pesquisa, a renda familiar mensal menor ou igual a um salário mínimo associou-se positivamente na ocorrência desses problemas, permanecendo assim até o modelo de análise final.

Estudo prévio com adolescentes afro-americanos sugere que as baixas condições socioeconômicas e a pobreza enquanto macroestressores se associam com problemas de saúde mental e comportamental, como PCE. Essa associação ocorre devido a processos intermediários, tais como estressores mais proximais do adolescente, como baixa renda familiar e/ou processos interpessoais como restrição de comportamentos parentais positivos, uma vez que pais com baixa renda ficam mais hostis em relação aos filhos, tornando o ambiente familiar mais propenso à violência — outro fator que reforça a ocorrência desses problemas23.

Nesse contexto, ressalva-se que mesmo não permanecendo associados no modelo final, a raça/cor da pele negra e ter alto grau de ancestralidade africana estiveram associados de forma favorável aos PCE, e com significância estatística, tornando válida a discussão, por se tratar de variáveis utilizadas como proxy das condições sociodemográficas. Isso significa que em vários países a população negra e com descendência africana vive em condições de desigualdade social, com restrições econômicas; e sofrem mais eventos estressores como a discriminação racial, que acarreta desigualdades em saúde, tornando-os mais vulneráveis à ocorrência de PCE4.

Reforçando os achados deste estudo, resultados obtidos em pesquisa realizada nos Estados Unidos identificaram, com base em análise bivariada, que adolescentes afro-americanos apresentavam maiores prevalências desses problemas se comparados com outros grupos ancestrais — principalmente quando se tratam de afro-americanos de baixa renda3.

Outras variáveis pesquisadas entre os adolescentes nesta investigação referem-se a ter sofrido violência familiar quando criança. Foi identificado que tanto punição corporal quanto maus-tratos físicos representaram maiores chances de se ter PCE na adolescência, constatando a associação dos maus-tratos físicos a esses problemas, mesmo após o ajuste final no modelo de regressão múltipla.

A punição corporal, assim como os maus-tratos físicos, são formas de violência física, pois remetem à utilização da força física sobre o corpo da criança/adolescente. Entretanto, estes são perpetrados para causar lesão física, diferentemente do uso da punição corporal, em que não há essa intenção, mas que é potencialmente perigosa, pois pode ameaçar o desenvolvimento e/ou ferir a dignidade da criança24.

A presença da experiência de qualquer tipo de violência familiar na infância pode desencadear PCE na adolescência12. Entretanto, a literatura ressalta que adolescentes que sofreram maus-tratos físicos na infância foram mais propensos a apresentarem PCE12.

Viver em condições de desigualdades sociais, com baixa renda mensal familiar e exposição a outras situações indutoras de estresse, como a violência familiar, podem desencadear fenômenos como PCE na adolescência. Tal relação pode ser explicada com base em vários mecanismos e teorias. A Teoria do Estresse tem se destacado nas tentativas de explicação, uma vez que a atuação de estressores, principalmente quando prolongada, ativa o sistema nervoso autônomo e o eixo Hipotálamo-Pituitária-Adrenal (HPA). Com essa ativação, a liberação de adrenalina e cortisol é aumentada, contribuindo para a ocorrência de PCE16.

Somando-se à referida teoria, a abordagem teórica do modelo bioecológico do desenvolvimento humano também contribui para explicar possíveis preditoras de PCE na adolescência. Com base nesse modelo, entende-se que a criança, enquanto pessoa, é produto da interação multicausal e processual (processos proximais) entre um organismo biológico com características herdadas, porém construídas em seu meio social, constituído pela família (microssistema), ambientes escolar e do bairro (mesosistema), e pela interação com o contexto mais amplo (exossistema ou macrossistema), representado por instâncias sociais, culturais e políticas, de maneira contínua ao longo do tempo (cronossistema)17.

Todos os sistemas do modelo bioecológico interagem, contribuindo para a formação saudável ou não do ser em desenvolvimento17. Assim, a baixa renda familiar mensal e as exposições à violência familiar na infância, ocorridas no microssistema, podem acarretar PCE na adolescência. A ocorrência desse desfecho poderá ser maior ainda, a depender do tempo dessas exposições, conforme explica a Teoria do Curso de Vida, ao enfatizar que exposições a eventos negativos por períodos longos podem impactar mais ainda nas condições de saúde de um indivíduo16.

Sabe-se então que as relações familiares interferem na saúde mental de adolescentes. Logo, as Estratégias Saúde da Família e os demais dispositivos da rede da atenção psicossocial que atuam no território necessitam promover ações em favor da redução de fatores modificáveis à ocorrência de PCE na adolescência.

Para isso, é fundamental a construção de redes ampliadas de atenção à saúde mental da criança e do adolescente, com garantia de acesso e cuidado qualificado nos territórios. Esse é um dos principais desafios para a consolidação da política de saúde mental voltada a este público-alvo no país. Uma articulação entre Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi) e a atenção básica pode constituir-se como a base de sustentação para o desenvolvimento de colaboração, compartilhamento e corresponsabilização entre diferentes setores de assistência à infância e adolescência, permitindo a instauração de novos modos de promover saúde mental e cuidado que ultrapassem a fragmentação e a dispersão25.

Suscita-se que, devido à coleta de dados referente às exposições do adolescente à violência familiar na infância ser retrospectiva, não há a possibilidade de causalidade reversa na relação entre essas exposições e os PCE, desfecho estudado, sendo um ponto positivo desta pesquisa. Diferentemente da renda mensal familiar, variável modificável, que foi pesquisada simultaneamente com o desfecho estudado, não estando isenta dessa possibilidade. Por isso, tanto o desfecho quanto essa variável deveriam ter sido pesquisados de forma longitudinal para evitar esse tipo de causalidade.

Outro aspecto a ser considerado refere-se à subjetividade existente no critério de classificação da raça/cor da pele: os limites que separam os grupos em negros e não negros podem não ser tão nítidos, devido ao fato de indivíduos de tonalidade de pele mais escura se classificarem como mais claros, e vice-versa.

Sugere-se que estudos futuros avaliem a relação entre violência familiar na infância e PCE analisando as variáveis étnico-raciais como possíveis modificadores de efeito nessa relação. Haja vista que, apesar dessas variáveis não permanecerem no modelo final de análise, estiveram fortemente associadas em níveis de significância estatística com os PCE na análise bivariada, mesmo se tratando de uma população predominantemente negra e com alto grau de ancestralidade africana.

CONCLUSÃO

Os resultados deste estudo evidenciaram elevada ocorrência de PCE entre os adolescentes (35,23%), que por sua vez foi mais elevada do que a encontrada em outros estudos. Houve maiores chances de ocorrência desses problemas para os adolescentes do sexo feminino, que vivem com renda familiar menor ou igual a um salário mínimo mensal, de raça/cor negra, com alto grau de ancestralidade africana, e expostos a punição corporal e maus-tratos físicos na infância. Dessas variáveis que se mostraram associadas na análise bivariada, em níveis de significância estatística com o desfecho estudado, permaneceram com essa tendência no modelo final o sexo e a renda familiar mensal do adolescente.

Na tentativa de reduzir os PCE apresentados pelos pesquisados é fundamental o desenvolvimento de ações de promoção da saúde mental e prevenção de fatores modificáveis, em especial aqueles que mais impactaram na ocorrência desses problemas, sobretudo priorizando a assistência aos adolescentes e seus familiares.

Sugere-se, então, que essas ações sejam inicialmente realizadas pelas equipes dos programas de saúde da família localizadas nas comunidades da área de residência dos adolescentes, em parceria com outros serviços, profissionais da saúde e diferentes setores que estão incluídos na rede de atenção à saúde mental.

  • Fonte de financiamento:
    nenhuma.

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS

Os conjuntos de dados gerados e/ou analisados durante o estudo estão disponíveis com o autor correspondente mediante solicitação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2022
  • Aceito
    01 Fev 2023
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