O isolamento social para prevenção da Covid-19 pode aumentar o risco de queimaduras no domicílio

Social isolation for prevention of Covid-19 may increase the risk of Burns at household.

Resumo

Introdução

Durante a pandemia de Covid-19, o uso do álcool a 70° GL foi amplamente recomendado para a higienização das mãos e superfícies. Acoplada à maior permanência das pessoas dentro do domicílio, essa recomendação pode contribuir para o aumento do risco de queimaduras.

Objetivo

Delinear os riscos de queimaduras no contexto da pandemia.

Método

Revisão por meio de análise documental.

Resultados

O álcool líquido 70° GL e o álcool isopropílico 70° GL são substâncias que apresentam maior risco de ignição no uso e armazenamento. O álcool 70° GL em gel deve ser priorizado tanto pela maior facilidade de uso para antissepsia das mãos como pelo menor risco de inflamabilidade. Esses materiais não devem ser manuseados durante o preparo de alimentos.

Conclusão

As autoridades sanitárias e governamentais devem se responsabilizar pela divulgação dos cuidados necessários para prevenção de queimaduras e incêndios no contexto da pandemia.

Palavras-chave:
Covid-19; queimaduras; álcool; SARS-CoV-2; isolamento social

Abstract

Background

During the Covid-19 pandemic, the use of alcohol at 70° GL was widely recommended for hand and surface hygiene. Combined with greater permanency of individuals in the household, this recommendation may contribute to an increased risk of burns.

Objective

To outline the risks of burns in the context of the pandemic.

Method

A review through document analysis was carried out.

Results

Liquid alcohol 70° GL and isopropyl alcohol 70° GL are substances that present a greater risk of ignition during use and storage. Alcohol 70° GL in gel should be prioritized both for its greater easier of use for hand antisepsis and for its lower risk of flammability. These materials must not be handled during food preparation.

Conclusion

Health and government authorities must be responsible for disseminating the necessary care to prevent burns and fires in the context of the pandemic.

Keywords:
Covid-19; burns; alcohol; SARS-CoV-2; social isolation

INTRODUÇÃO

Em tempos de pandemia causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), diversas condutas de prevenção da contaminação estão sendo reforçadas para a população^1,2, entre elas o isolamento social, a lavagem das mãos com água e sabão e também o uso do álcool a 70° GL (etanol), em especial em gel^3,4. Essas recomendações causaram um aumento de diversos fatores relacionados às queimaduras em domicílio, como a permanência de crianças e idosos confinados no ambiente doméstico, aumento do uso de fogão para preparo de alimentos e maior uso de antissépticos à base de álcool.

Desde 2002, no Brasil, com a publicação por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária de normas restritivas para comercialização de álcool etílico⁵ houve limitação ao acesso a esse produto em graduação alcoólica de maior inflamabilidade. Contudo, as queimaduras associadas ao álcool têm ocorrido no país, mesmo que em menor proporção.

Sobre isso, sabe-se que entre 2008 e 2017 mais de 170.000 pessoas foram hospitalizadas por queimaduras⁶ e somente em 2019 houve mais de 14.600 vítimas desse trauma que necessitaram de hospitalização no Sistema Único de Saúde⁷. Sobre as causas dessas lesões, mais da metade teve agentes térmicos como causadores^8,9, sendo comum as chamas potencializadas pelo acelerador álcool⁹.

IMPACTO

De maneira geral, entre as pessoas com maior risco de sofrer queimaduras nos domicílios estão as crianças e os idosos^6,8, para os quais os cuidados de prevenção devem ser amplamente divulgados e o uso de álcool para antissepsia deve ser supervisionado, sempre que possível¹⁰. A atenção deve ser reforçada durante a pandemia causada pelo SARS-CoV-2, pois esses mesmos grupos foram os mais afetados devido às restrições sociais. Os primeiros, pelas aulas terem sido suspensas e haver restrição de circulação em ambientes públicos, e os últimos por fazerem parte de um dos grupos com maior risco de desenvolver o quadro grave da doença¹¹.

Além disso, outras medidas, como o fechamento de restaurantes, levaram ao aumento da manipulação de alimentos em casa, em outras palavras, o fogão ou outros equipamentos para o cozimento de alimentos têm sido utilizados com maior frequência. Nesse sentido, a maior oferta de líquidos inflamáveis no domicílio, geralmente em locais acessíveis, somada ao uso de fontes de ignição, cria-se um cenário perigoso para os acidentes que podem ocasionar as queimaduras.

Recentemente foi publicado pela Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ) um alerta sobre o aumento de queimaduras no país durante a pandemia¹². Segundo a SBQ, um dos grandes fatores para esse aumento é a liberação temporária pelas autoridades sanitárias da comercialização do álcool líquido em concentrações maiores. De maneira semelhante, outras associações internacionais como a Sociedade Americana de Queimaduras (American Burn Association - ABA)^{13 e a} Sociedade Britânica de Queimaduras (British Burn Association - BBA)¹⁴ têm publicado alertas sobre os riscos de queimaduras e as restrições sociais relacionadas à prevenção da Covid-19.

Além disso, diante do cenário atual relacionado ao SARS-CoV-2, observam-se nas mídias sociais e na internet diversas formulações para preparo caseiro de álcool em gel, muitas das quais não garantem a efetividade antisséptica do produto, uma vez que tem como base álcool de uma graduação menor que 54° GL, produto comercializado até hoje como saneante. Essas preparações não são consideradas ativas contra o SARS-CoV-2, pois o gel antisséptico para as mãos deve ter concentração alcoólica final entre 60° GL e 70° GL, além de ação antisséptica comprovada em testes laboratoriais^15,16.

O Quadro 1 traz informações sobre o ponto de fulgor e nível de inflamabilidade dos diversos tipos de álcool¹⁷ aos quais a população está sendo exposta nesse momento, com isso ressalta-se o risco de incêndio e, portanto, de queimaduras. A Associação Nacional de Proteção contra o Fogo (National Fire Protection Association - NFPA), instituição americana, define inflamabilidade como a facilidade com que algo queima ou entra em ignição¹⁸; assim, quanto maior for o nível de inflamabilidade da substância, maior o risco de incêndio e queimaduras, sendo 4 o maior risco, conforme o Sistema de Identificação de Perigo da norma 704 da NFPA para saúde, inflamabilidade e instabilidade, apresentado na forma de diamante de Hommel¹⁸.

Quadro 1
Valores de inflamabilidade de substâncias a que a população está sendo exposta e recomendação de uso para prevenção da Covid-19

Descrição e volume em solução aquosa (° GL)	*Ponto de fulgor (frasco aberto)	**Nível de inflamabilidade	***Recomendação para antissepsia das mãos
Álcool 96	16 °C	4	Não recomendado
Álcool líquido 70	18 °C	4	Recomendado
Álcool gel 70	23 °C	3	Recomendado
Álcool líquido 46	24 °C	3	Não recomendado
Álcool combustível	16,6 °C	4	Não recomendado
Álcool isopropílico 70	18,3 °C	4	Recomendado

• Fonte: autoria própria
• ^*
  Dados obtidos de São Paulo, Companhia Ambiental do Estado de São Paulo17 ;
• ^**
  Classificação de Hommel18: 4 para solventes com ponto de fulgor abaixo de 23 °C; 3 para solventes com ponto de fulgor entre 23 °C e 38 °C;
• ^***
  Dados obtidos do Brasil, Ministério da Saúde4, National Public Health Institute, Centers for Disease Control and Prevention2 e World Health Organization1

Sobre isso, estudo que avaliou os limites de inflamabilidade do álcool observou que concentrações entre 35° GL e 90° GL tiveram ignição a temperatura ambiente. Assim, concluíram os autores¹⁹ que quanto maior a presença de água em diluições do álcool, maior será a segurança em ambientes de armazenamento.

CAMPANHAS DE PREVENÇÃO E RECOMENDAÇÕES

A Sociedade Britânica de Queimaduras e o serviço de saúde britânico (National Health System - NHS) juntamente com outras instituições²⁰ lançaram a campanha de prevenção de queimaduras destacando a segurança em domicílio, “Be safe at home; Stay safe at home”, por meio de panfletos direcionados a adultos, crianças e idosos, que orientam cuidados com líquidos quentes, ferros de passar roupa, velas, aquecedores e fogões, entre outros.

O álcool isopropílico 70° GL é recomendado para desinfecção em pequenas superfícies ou objetos, tais como termômetros, estetoscópios, frascos de medicamentos e também aparelhos eletrônicos, como o celular^16,21. A desinfecção é importante, pois já se sabe que o SARS-CoV-2 permanece viável em superfícies após 8 horas (cobre), 24 horas (papelão), 48 horas (aço inoxidável) e 72 horas (plástico), e isso indica que o SARS-CoV-2 pode permanecer viável e infectante tanto por horas em aerossol quanto por dias em superfícies²².

Sendo assim, recomenda-se o manejo correto e seguro do álcool líquido 70° GL e também do álcool isopropílico 70° GL, pois são substâncias que apresentam maior risco de ignição no uso e armazenamento, conforme apresentado no Quadro 1.

Diante do atual cenário, recomenda-se o uso preferencial do álcool 70° GL em gel tanto pela maior facilidade em usar para antissepsia das mãos como pelo menor risco de inflamabilidade. Preventivamente, recomenda-se não manejar esse material próximo a local com fogo durante o preparo de alimentos ou mesmo no uso de cigarros²³. Cuidado especial deve ser tomado logo após antissepsia das mãos, não aplicar próximo ao fogo ou guardar o frasco com o produto próximo a esse local devido à possível ignição do produto aplicado ou armazenado²³.

Além disso, para a desinfecção de superfícies inanimadas pode ser dada preferência ao hipoclorito diluído nas concentrações de 0,1 ou 0,5%²⁴ que, além de mais barato e acessível, é facilmente preparado no domicílio e não é inflamável. Contudo, o uso desse produto não é isento de riscos, pois é irritante para a pele, mucosas e vias respiratórias²¹; como precaução recomenda-se boa ventilação do ambiente durante a desinfecção. A diluição do produto deve ser criteriosa, erros nesse quesito podem produzir uma solução sem eficácia desinfetante (muito diluída) ou insegura para as pessoas (muito concentrada).

CONCLUSÃO

Assim, considerando que as queimaduras são acidentes que podem ocorrer em qualquer momento, e frente à situação atual de alerta pelo SARS-CoV-2^{25, o} qual exige o uso recorrente de álcool pela população, recomenda-se ampla divulgação das medidas de prevenção desse trauma pelas autoridades governamentais, o que pode ser realizado por meio de panfletos como aqueles desenvolvidos pela BBA (2020)²⁰.

Nesse sentido, é importante destacar que cabem às autoridades sanitárias e governamentais, aos meios de comunicação e às mídias a discussão, implantação e divulgação dos cuidados necessários para prevenção de queimaduras e incêndios no uso desses materiais.

Este trabalho tem como limitações o fato de não terem sido identificados trabalhos científicos que associam o aumento de queimaduras ao isolamento social causado pelo SARS-CoV-2, contudo a importância do tema torna esta publicação necessária neste momento.

• Como citar: Saavedra PAE, Soares LSS, Rivas MU, Galato D. O isolamento social para prevenção da Covid-19 pode aumentar o risco de queimaduras no domicílio. Cad Saúde Colet, 2022; Ahead of Print. https://doi.org/10.1590/1414-462X202230040136.
• Trabalho realizado na Faculdade de Ceilândia, Universidade de Brasília (UnB) - Brasília (DF), Brasil.
• Fonte de financiamento: O Programa de Pós-Graduação em Ciências e Tecnologias em Saúde é financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  02 Dez 2022
• Data do Fascículo
  Oct-Dec 2022

Histórico

• Recebido
  18 Abr 2020
• Aceito
  19 Nov 2020