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Por que refletir sobre o que significa educar para a compreensão do tempo?

Jorge Luiz Borges nos deixou, entre seu vasto legado poético, a compreensão de que o tempo é a substância da qual todos nós somos feitos e que, a despeito de sua centralidade e profundidade em nossos processos de constituição identitária, ele nada mais é do que uma convenção. Talvez a maior e mais invisível das convenções humanas e, por isso mesmo, uma das marcas culturais mais inatingíveis e inacessíveis aos sentidos.

A experiência com o tempo - que advém da passagem dos eventos da vida humana e das práticas de sociabilidade a que os indivíduos são expostos desde a infância - pressupõe um longo e complexo processo de estabelecimento de relações com uma cultura já posta e constituída em seus referentes, a partir de múltiplos processos de definição de marcadores e balizadores da experiência humana, entre os quais o calendário é sua substância mais complexa, particularmente porque emana de vastas sínteses históricas. Norbert Elias, em sua obra, nos demonstrou isso muito bem. Mas, para além do calendário, nossa experiência de relação com um presente nos leva ao desafio de compreensão da mudança e da percepção de que o que somos hoje só foi possível em virtude de um vasto legado humano, que deixou para nós aspectos da vida que mudaram e permaneceram, continuidades e descontinuidades que se apresentam como grandes desafios de aprendizagem. São aspectos de uma imbricada teia conceitual, transversal a diversos campos do saber, que nos chegam por meio de diversos processos e espaços educativos, escolares e não escolares, não sem inúmeras dificuldades em sua construção, especialmente por parte da criança. É em torno da reflexão sobre esses desafios, mas ao mesmo tempo das potencialidades inerentes a diversas práticas e reflexões em movimentos plurais de pesquisa, que esse número dos Cadernos CEDES - "Educar para a compreensão do tempo" - é apresentado à comunidade acadêmica e ao público em geral.

Encontram-se aqui pesquisadores da área de ensino de História de diferentes países, regiões brasileiras e espaços acadêmicos, diferentes áreas de atuação e olhares, todos com o objetivo de trazer à tona, em seus textos, desafios envolvidos na difícil, porém prazerosa tarefa de educar para a compreensão do tempo e do procedimento histórico.

Joan Pagés Blanch e Antoni Santisteban Fernández, ambos da Universidad Autónoma de Barcelona, nos brindam com um texto que busca sintetizar os grandes dilemas e os eixos em torno dos quais é preciso que a escola reflita a respeito do que significa ensinar e aprender sobre o tempo histórico para a criança, nos anos iniciais de escolarização.

No rumo de refletir sobre tais desafios, segue-se o texto de Alexia de Pádua Franco, do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Uberlândia, dedicado à discussão relativa aos desenhos animados infantis e revistas que focalizam o tempo na apresentação de temáticas históricas, bem como os problemas e incompreensões derivadas de transposições que podem gerar dificuldades de interpretação da diversidade temporal, dado o peso de atitudes anacrônicas e fortalecedoras de olhares etnocêntricos por parte da criança, mas que, por outro lado, se devidamente refletidas e apropriadas, apresentam-se como veículos dotados de potência para favorecer a aprendizagem.

Na sequência, a doutoranda Andrea Borges de Medeiros, que atua como coordenadora pedagógica em uma escola municipal de Juiz de Fora (MG), parte de uma pergunta aparentemente simples - "Do que se lembram as crianças e como o fazem a partir da experiência de escolarização?" - e envereda, em seu texto, por uma narrativa capaz de nos interpelar fortemente em torno de uma perspectiva metodológica e investigativa que tem, como principal diferencial, o objetivo de trazer a voz da criança à cena central do debate acadêmico. Sob esse eixo, a pesquisadora, pautando-se pela mediação de artefatos produzidos no interior do cotidiano escolar, discute a compreensão do tempo a partir da análise da capacidade de narrar verificável na criança, quando mediada por objetos que seguram o tempo.

Ernesta Zamboni, da Universidade Estadual de Campinas, e Selva Guimarães Fonseca, da Universidade Federal de Uberlândia, ambas possuidoras de uma vasta e rica trajetória intelectual e acadêmica no campo do ensino de História, nos apresentam um texto compartilhado que aborda a compreensão do tempo histórico a partir das potencialidades da literatura infantil. Uma pergunta central - "Como a linguagem literária ficcional, constitutiva do processo de formação da criança, contribui para a aprendizagem da temporalidade histórica nos primeiros anos de escolaridade?" - orienta a reflexão das pesquisadoras e nos apresenta caminhos reflexivos imbricados com a apresentação de possibilidades concretas de enfrentamento metodológico na escola. Uma pista poderosa para orientar o trabalho escolar, particularmente nos anos iniciais.

As pesquisadoras Magda Madalena Peruzin Tuma, Marlene Rosa Cainelli e Sandra Regina Ferreira de Oliveira, todas vinculadas à Universidade Estadual de Londrina, compartilham com professores e pesquisadores os resultados de uma pesquisa institucional mais ampla, dedicada à compreensão de como ocorrem deslocamentos temporais e aprendizagem da História nos anos iniciais. O objetivo de seu artigo é problematizar as representações temporais constituídas pelas crianças, a partir de uma vivência temporal fragmentada e fragmentária, e verificar em que medida sua relação com o tempo presente mediada pelos diversos processos culturais que ocorrem dentro e fora da escola possibilita a constituição de um pensamento histórico.

Sonia Regina Miranda, da Universidade Federal de Juiz de Fora, também pesquisadora do campo do ensino de História, traz em seu texto questões que nos permitem refletir acerca das interfaces entre a aprendizagem temporal que se processa dentro e fora da escola, a partir da discussão de como a criança, nos anos iniciais de escolarização, opera com a compreensão da mudança e explica o tempo. Sob esse foco, a partir da mediação apresentada por objetos museais, numa situação em que, pela primeira vez, um grupo de crianças era apresentado à oportunidade de visitar um museu, a autora discute como a criança estranha e interpreta esse passado aparentemente tão distante e desconexo de seu tempo presente, mas, ao mesmo tempo, como esse tempo presente lhe confere chaves de leitura que precisam ser compreendidas como objetos necessários de problematização e diálogo no interior do espaço escolar.

No movimento final desse Caderno, três textos se relacionam e se completam naquilo que nos remete à necessária discussão acerca das interfaces entre os espaços escolares e não escolares, com particular ênfase na questão da compreensão do tempo histórico em museus e espaços de memória.

Francisco Régis Lopes Ramos, da Universidade Federal do Ceará, nos conduz à reflexão sobre os tempos da memória - que são partes constitutivas das culturas socialmente instituídas e que não devem ser confundidos com os modos pelos quais a História lida com os conflitos e os acordos entre as temporalidades. Nesta trilha, o pesquisador nos alerta para o fato de que museus, praças, depoimentos, monumentos, objetos e outros suportes de lembranças fazem parte de nossas aprendizagens despercebidas do tempo e que devem ser tratados, na ação educativa, como objetos da interpretação historicamente fundamentada.

Os pesquisadores Júnia Sales Pereira, da Universidade Federal de Minas Gerais, e Marcus Vinicius Corrêa Carvalho, da Universidade Estadual de Minas Gerais, ao pensarem os encontros e desencontros entre escolas e museus, nos conduzem ao reencontro com a riqueza educativa desses últimos e a força do papel mediador de professores e educadores de museus, aqui assumidos como agentes potencializadores da capacidade inventiva e criadora do público visitante que, em um movimento corporal específico, se depara com uma morada de objetos que perderam seus sentidos primordiais em um contexto de vida cotidiano. Dentro de um museu, uma caneta que um dia fez alguém se lembrar de um momento essencial de sua vida não é mais uma caneta, mas um objeto que morreu em seu sentido original. Não serve mais para escrever. Assim, ao ressignificar os objetos humanos, destituídos agora de sua força de vida, os museus, em escolhas que educam e geram sentidos interpretativos sobre o passado, transformam esses objetos agora em vitrines de espaços de memória e, por isso, projetam-se como importantes vetores, capazes de servir à reflexão e à construção da consciência temporal.

Por fim, a seção Caleidoscópio - organizada com um espaço distintivo dos Cadernos CEDES - nos brinda com notícias e cenários a respeito de experiências de museus que têm buscado caminhos originais de atuação, trazidas pela doutoranda Carina Martins Costa. Tais notícias nos instigam a viajar para conhecer aqueles espaços, ainda que de modo virtual, com o suporte da web, e também nos convidam a pensar no fato de que refletir sobre o tempo em museus pode nos levar a atitudes de exposição e retenção, nos conduzindo também à construção da mudança e à fabricação de horizontes projetados.

Portanto, estamos certas de que essa coleção de textos trará, para o professor, para outros pesquisadores e para o público em geral, um pouco da sedução e do fascínio que nós, organizadoras desse dossiê, sentimos ao elaborá-lo.

Sandra Regina Ferreira de Oliveira

Sonia Regina Miranda

(Organizadoras)

  • Apresentação

    Por que refletir sobre o que significa educar para a compreensão do tempo?
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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