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Corpo e educação: história, práticas e formação

A proposta de formação integral do sujeito encontra forte respaldo na forma escolar criada a partir do século XVI (VICENT; LAHIRE; THIN, 2001VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, n.3, p. 7-47, jun. 2001.). Essa forma surge em meio a processos de uso, disciplinarização e pedagogização do corpo como fatores essenciais para o surgimento da natureza de um novo sujeito civilizado. Desde o século XIX, o tema “a saúde do corpo social” é fortemente debatido e as atividades físicas ampliam seus espaços e lugares sociais. Um conjunto de preceitos, normas e intervenções - como aulas de ginástica, exercícios militares, higiene, escotismo, jogos ao ar livre, trabalhos manuais, capoeira, esportes e atividades na natureza - ganha escopo e traz para a escola e para as formas de expressão do ser no mundo a função precípua de educar os corpos.

Na contramão desse processo, assistimos em 2016 à indicação, por parte do Ministério da Educação do Brasil, de que a Educação Física, em processo de institucionalização desde o século XIX, não deveria mais ser obrigatória no Ensino Médio como vinha acontecendo desde 1970. Entretanto, nos últimos anos, assistimos à proliferação de academias de ginástica, o exacerbado culto ao corpo, o aumento de índices de obesidade de escolares, a ampliação de espectadores ávidos pelas proezas atléticas e a organização de megaeventos esportivos, temas a serem discutidos no processo de formação de professores, de ensino-aprendizagem escolar e nos diferentes modos de estar no mundo hodierno. Tais situações nos colocam as seguintes inquietações: Quais sentidos sobre a educação do corpo foram historicamente construídos pelas escolas e instituições correlatas na realidade brasileira e internacional? Quais práticas compuseram a forma escolar em nome da pedagogização dos gestos, dos sentidos, das técnicas e da saúde do corpo? Como o conhecimento da experiência corporal dos homens vem sendo criado e recriado na relação com a natureza e a cultura? Quais dispositivos estiveram presentes no engendramento da educação física no currículo da instrução pública primária, secundária e de formação de professores?

As perguntas nos indicam que a temática do dossiê Corpo e educação: história, práticas e formação é pertinente pela demanda de apresentação de evidências empíricas e de debates teórico-metodológicos acerca das compreensões sobre os sujeitos constituídos histórica e socialmente em suas práticas corporais, experiências sensitivo-existenciais e formações educativas (não)escolarizadas. Assim, o dossiê traz a lume referências sobre as racionalidades médicas, as inovações pedagógicas, as questões biopolíticas, os valores estéticos escolares, as ecologias corporais, as disciplinas formativas e as políticas públicas de instrução voltadas a educar os corpos nas instituições e nas formas de viver o mundo sociocultural nas realidades brasileira e estrangeira.

O dossiê Corpo e educação: história, práticas e formação conta com nove artigos elaborados por reconhecidos pesquisadores das áreas de Educação e Educação Física. Os autores estão vinculados a programas de pós-graduação stricto sensu, a cursos de graduação e a institutos de pesquisa de universidades públicas em países como Argentina, Chile, França, Portugal e Brasil. A abrangência geográfica e a diversidade de assuntos abordados representam uma qualitativa amostra da produção de conhecimento sobre a temática corpo nos campos da Educação Física e da Educação em diálogo com o campo das Ciências Humanas. A organização dos textos segue a sequência da temporalidade e das temáticas. Objetivamos propiciar uma leitura que possibilite perceber como, a partir de práticas escolarizadas e não escolarizadas, o corpo é evidenciado em diferentes lugares e épocas.

Assim, o artigo Afranio Peixoto, perícia médica e a fabricação do corpo múltiplo no Brasil, de autoria de José Gonçalves Gondra (Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ), analisa o corpo educado no século XIX a partir da questão dos limites e das possibilidades de intervenção sobre os corpos no interior da ordem médica, entrecruzando com o campo da Educação, pautada na racionalidade científica, nos efeitos disciplinares e biopolíticos. O autor elegeu como fonte empírica um manual do médico Afranio Peixoto utilizado nos cursos de Medicina ofertados na cidade do Rio de Janeiro.

O artigo Das piruetas aos saltos: as diferentes manifestações da gymnastica (Rio de Janeiro - segunda metade do XIX), proposto por Anna Luiza Romão e Andrea Moreno (Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG), revela como a gymnastica tornava-se, então, alvo de atenção escolar e em clubes, principalmente porque seria por meio dessa prática que o corpo se exercitaria e se educaria na modernidade desejada. A narrativa se desenvolve tendo como referência histórica a intervenção e a trajetória dos professores Paulo Vidal e Vicente Casali.

Considerando a crescente introdução dos saberes e das práticas corporais nas escolas primárias, Tony Honorato (Universidade Estadual de Londrina - UEL) e Ana Clara Bortoleto Nery (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Neto” - UNESP) apresentam o manuscrito A educação do corpo na formação de professores nas escolas normais paulistas (1890-1931). Tendo como fonte os impressos pedagógicos, os autores debatem o porquê da presença das práticas corporais - gymnastica e escotismo - na formação de normalistas que deveriam empreender uma regeneração social nas escolas primárias do período republicano por meio dos bons hábitos de um corpo saudável e forte socialmente.

O artigo intitulado De fortificar la voluntad a desarrollar la personalidad: cuerpo y emociones en la educación chilena (1900-1950), de autoria de Pablo Toro Blanco (Universidad Alberto Hurtado - UAH), apresenta a realidade chilena a partir da história das emoções. Ao desenvolver uma interpretação hermenêutica da literatura educacional, a análise privilegia as mudanças na conceitualização sobre o corpo do escolar, particularmente as atribuições de sentido emocional praticadas na Educação Física como base da nova natureza dos sujeitos controlados e disciplinarizados.

Em O modelo pedagógico da Escola Oficina nº 1: corpo, regras e práticas no quotidiano de uma instituição alternativa, Maria João Mogarro (Universidade de Lisboa - ULisboa) discorre sobre a criação e o funcionamento de uma escola alternativa com origem e financiamento da maçonaria e à sombra do movimento operário anarco-revolucionário. Em Portugal, a Escola Oficina nº 1 refletiu numa espécie de controle dos corpos e das almas em nome de uma educação integral dos alunos no início do século XX.

Sobre a realidade brasileira, Elizabeth Figueiredo de Sá (Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT), no artigo A educação dos corpos infantis no projeto mato-grossense de formação do cidadão republicano (1910-1930), analisa as finalidades que permearam a implantação da disciplina gymnastica no ensino público primário mato-grossense. Os saberes e as práticas gímnicos influenciaram na construção da identidade entre os alunos, o que estaria em consonância com um projeto de formação nacional do novo cidadão idealizado, no caso, a reforma da instrução pública empreendida por Leowigildo Martins de Mello e Gustavo Kuhlmann.

Nos anos 1930, também acontecia a institucionalização, não escolar, de práticas corporais que foram decisivas para compreendermos a educação do corpo na cultura brasileira: estamos a falar da capoeira. Assim, no artigo Educação, jogo de corpo e mandiga na capoeira de Bimba, Ricardo de Figueiredo Lucena (Universidade Federal da Paraíba - UFPB) e Nilene Matos Trigueiro (Instituto Federal do Ceará (IFCE) Campus Juazeiro do Norte) narram como a capoeira escrava, criminalizada e violenta foi ressignificada, sob a influência de Mestre Bimba, ao final do século XIX, transformando-se em esporte nacionalmente conhecido como “ginástica” brasileira a ser ensinada, no início do século XX.

Ao apresentar a estética escolar como objeto histórico-educativo para a compreensão do corpo, Myriam Southwell (Universidade Nacional de La Plata), no texto Discurso y metáfora: dos claves para analizar el cuerpo en la escuela, analisa os Anais de Educação da Argentina (1858-atual), interpreta que, ao longo dos séculos XIX e XX, as sociedades modernas converteram a escola em uma ferramenta privilegiada para levar a cabo os potentes processos de padronização dos costumes, das práticas e dos valores, tendo como referência o regime estético objetivado no discurso político sobre as sensibilidades e as emoções dos corpos.

Pensando a educação do corpo como uma forma de expressão do ser no mundo, o artigo Corpo, expressão e educação na natureza, de autoria de Terezinha Petrucia da Nóbrega (Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN), Bernard Andrieu (Universidade Paris Descartes - França), Luiz Arthur Nunes da Silva (UFRN) e Laís Saraiva Torres (UFRN), problematiza, ao analisar a obra de Georges Hébert e Émile Jaques-Dalcroze, a questão da passagem da natureza à cultura e da cultura à natureza. Como desdobramento, o naturismo funda e atualiza os princípios da ecologia corporal com o processo de educação.

Assim, ao divulgarmos este dossiê com o conjunto de artigos aqui reunidos, nossa expectativa é ampliar análises e debates sobre a temática Corpo e Educação balizados pelas questões da história, das práticas corporais e das dinâmicas formativas dos sujeitos.

REFERÊNCIA

  • VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, n.3, p. 7-47, jun. 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2017
  • Aceito
    12 Set 2017
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