Open-access NEOLIBERALISMO E AS ARTICULAÇÕES DO CAPITAL NA APROPRIAÇÃO DO FUNDO PÚBLICO DA EDUCAÇÃO EM MATO GROSSO

NEOLIBERALISM AND CAPITAL’S STRATEGIES IN THE APPROPRIATION OF THE PUBLIC EDUCATION FUND IN MATO GROSSO

NEOLIBERALISMO Y LAS ARTICULACIONES DEL CAPITAL EN LA APROPIACIÓN DEL FONDO PÚBLICO DE LA EDUCACIÓN EN MATO GROSSO

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar como as articulações entre o capital e o governo do estado de Mato Grosso, a partir de 2018, têm impulsionado processos de privatização da educação pública estadual. Embora não seja um fenômeno inédito na região, observou-se uma intensificação dessas dinâmicas a partir de 2020, sustentadas por diversas justificativas. A pesquisa baseia-se em análise documental de dados extraídos do Portal da Transparência da Secretaria de Estado de Educação (Seduc-MT), do Diário Oficial do Estado e do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Educação (Siope). À luz de categorias como neoliberalismo e privatização, fundamentadas em autores críticos das políticas educacionais, o estudo revela transformações na política educacional mato-grossense. Observa-se a substituição de marcos normativos da década de 1990 por um conjunto multifacetado de programas, projetos e insumos do setor privado. Tais mudanças indicam a captura do fundo público pelo capital, a ameaça à escola pública como bem comum e a privatização do trabalho docente.

Palavras-chave
Privatização; Fundo público; Governança educacional; Trabalho docente; Estado de Mato Grosso

ABSTRACT

This article aims to analyze how the interactions between capital and the government of the state of Mato Grosso, beginning in 2018, have driven processes of privatization in the state’s public education system. Although not an unprecedented phenomenon in the region, these dynamics have notably intensified from 2020 onward, supported by various justifications. The research is based on a documentary analysis of data extracted from the Transparency Portal of the State Department of Education (Seduc-MT), the State Official Gazette, and the Public Education Budget Information System (SIOPE). Through the lens of categories such as neoliberalism and privatization, grounded in critical educational policy scholarship, the study reveals transformations in Mato Grosso’s educational policy. It identifies the replacement of normative frameworks from the 1990s by a multifaceted set of programs, projects, and inputs from the private sector. These changes indicate the capture of public funds by capital, the threat to public schooling as a common good, and the privatization of teaching labor.

Keywords
Privatization; Public funds; Educational governance; Teaching labor; State of Mato Grosso

RESUMEN

El objetivo de este artículo es analizar cómo las articulaciones entre el capital y el gobierno del estado de Mato Grosso, a partir de 2018, han impulsado procesos de privatización de la educación pública estatal. Aunque no es un fenómeno inédito en la región, se ha observado una intensificación de estas dinámicas desde 2020, sustentadas por diversas justificaciones. La investigación se basa en el análisis documental de datos extraídos del Portal de la Transparencia de la Secretaría de Estado de Educación (Seduc-MT), del Diario Oficial del Estado y del Sistema de Informaciones sobre Presupuestos Públicos en Educación (Siope). A la luz de categorías como neoliberalismo y privatización, fundamentadas en autores críticos de las políticas educativas, el estudio revela transformaciones en la política educativa de Mato Grosso. Se observa la sustitución de marcos normativos de la década de 1990 por un conjunto multifacético de programas, proyectos e insumos del sector privado. Tales cambios indican la captura del fondo público por el capital, la amenaza a la escuela pública como bien común y la privatización del trabajo docente.

Palabras clave
Privatización; Fondo público; Gobernanza educativa; Trabajo docente; Estado de Mato Grosso

Introdução1

As tentativas de criar uma ambiência favorável aos negócios e, portanto, à lucratividade na área educacional no estado de Mato Grosso não são um fenômeno recente, tampouco uma novidade. No entanto, o aprofundamento desse processo deu-se a partir de 2020 e tem encontrado justificativas em alguns fatores como: a crise sanitária causada pela pandemia de covid-19 em 2020 e 2021; a implementação de reformas curriculares na educação básica, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a reforma do “Novo” Ensino Médio (NEM); os resultados de aprendizagem nas avaliações em larga escala, nos anos iniciais do ensino fundamental; e o desempenho do ensino médio no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Ainda que a análise, na íntegra, dessas questões esteja impossibilitada devido aos limites impostos pela estruturação de um artigo, elas devem ser mencionadas como subsídios para análise do aprofundamento do neoliberalismo nas políticas educacionais e do papel redistributivo do Estado para o processo de acumulação por expropriação (Harvey, 2007) via privatização da e na educação pública em Mato Grosso.

Este texto é de abordagem qualitativa com uso de dados quantitativos, documental e bibliográfica. Os dados primários foram coletados em sites oficiais, entre 2022 e 2024, abrangendo os relatórios emitidos pelo Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Educação (Siope), mantido pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE, s. d.), elaborados a partir dos dados enviados pelo estado. Utilizamos também o Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO), o Relatório Consolidado de Receitas, o Relatório Consolidado de Despesas e o Relatório da Função Educação, além de Sinopses Estatísticas da Educação Básica de 2021 a 2023 e consulta ao Laboratório de Dados Educacionais (LDE) de 2013 a 2020. Para identificar o detalhamento dos recursos destinados ao setor privado, consultamos os portais da transparência mantidos pelo estado, analisando os módulos de despesas e contratos. Complementarmente, consultamos o Diário Oficial do Estado (DOE-MT).

As inúmeras alterações e consequente destruição das políticas, da escola pública e dos instrumentos normativos que regulam a educação formal e sua substituição com base em outros parâmetros, adequados à lógica dos negócios, a partir do final de 2020, são uma característica destrutiva do neoliberalismo (Harvey, 2007). As políticas educacionais de caráter democrático foram instituídas desde finais da década de 1990, em Mato Grosso, como resultado do diálogo entre Estado e sociedade – com a participação social de diversas organizações de trabalhadores da educação e representações das diversidades (educação quilombola, especial, indígena, do campo, ribeirinha), entre outros segmentos. Esse processo deu-se na perspectiva da democracia participativa, conjugada ao modelo representativo, cujas lutas sociais dos anos 1980 possibilitaram diversos avanços e a proclamação do direito à educação para todos, com a quase universalização do ensino de 7 a 14 anos na década seguinte. A partir de então, gestões municipais e algumas estaduais avançaram na criação de mecanismos para a redução das desigualdades educacionais (Escola Plural-BH, Escola Cidadão-RS e Escola Ciclada-MT, só para citar algumas) e democratização da gestão da escola pública – Art. 206, VI, da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988). Soma-se a isso o gradativo acesso à educação por diferentes sujeitos sociais, até então alijados desse direito humano fundamental.

Portanto, a abordagem da captura do fundo público da educação pelo capital no tempo presente, sob diversas justificativas majoritariamente extraídas do campo ideológico, com a simplificação de problemas educacionais complexos e a apresentação de soluções fáceis, prescinde da compreensão do papel atribuído à escola pública historicamente: tolerada, desde que atendesse a projetos políticos e religiosos e à construção do Estado-nação. Só na segunda metade do século 20 a existência da escola é posta em questão por radicais, como Ivan Illich, com proposta de desescolarização (Masschelein; Simons, 2018). Na atualidade, argumentam os autores, de “aprendizagem permanente e ambientes (eletrônicos) de aprendizagem, talvez se esteja permitindo que a escola tenha uma morte tranquila” (Masschelein; Simons, 2018, p. 10). Cabe, por isso, fazermos a defesa da escola pública, de massa, voltada para o bem-comum e a formação de sujeitos críticos e propositivos nesse contexto distópico do capitalismo.

Essa escola pública e de massa, com uma determinada função social, assim como o papel social do Estado-nação, foi seriamente abalada pela crise de acumulação, conhecida também como crise estrutural do capital (Mészáros, 2002), a partir de finais dos anos 1960 (Harvey, 2003). O sistema do capital atingiu “seu zênite contraditório de maturação e saturação” (Mészáros, 2002, p. 95), e, nesse contexto, as medidas para contenção da crise, além de não gerarem crescimento econômico, têm no Estado o promotor da redistribuição de bens públicos em favor do capital – como ocorre com as privatizações de direitos arduamente conquistados, como o direito à educação e outros.

O tema aqui abordado situa-se nesse contexto de crise de “sobreacumulação do capital” (Harvey, 2005, p. 78) e, contraditoriamente, de perda e potencialização de certos poderes do Estado-nação, diante de processos de globalização, com a financeirização econômica e as privatizações que transformam “tudo” em mercadoria (Saramago, 1997), independentemente do “valor” material e simbólico das “coisas”.

Neoliberalismo e transformações da escola pública de massa

O neoliberalismo é constituído por correntes teóricas e um feixe de conceitos desenvolvidos por distintas escolas e intelectuais que se dedicaram a debatê-los (Von Hayek, 1990; Friedman; Friedman, 2012; Puello-Socarrás, 2008; Dardot; Laval, 2016; Brown, 2019; Sauvêtre et al., 2021). Em razão de sua plasticidade, o neoliberalismo, no estágio atual, guarda suas origens nas primeiras formulações, incorporando novas matrizes teóricas, adaptando-se a contextos distintos, mas também forçando tais contextos a se adequarem às regras de uma “racionalidade política global” por ele configurada (Dardot; Laval, 2016). Brown (2019) procura compreender as características do neoliberalismo realmente existente a partir de duas abordagens teóricas: a neomarxista e a foucaultiana. A primeira foca as análises na “desregulação do capital, no combate ao trabalho organizado, na privatização de bens públicos, na redução da tributação progressiva e no encolhimento do Estado social” (Brown, 2019, p. 29); a segunda concebe o neoliberalismo

[...] como uma nova racionalidade política, cujo alcance e implicações vão muito além da política econômica e do fortalecimento do capital. Ao contrário, nessa racionalidade os princípios do mercado se tornam princípios de governo aplicados pelo e no Estado, mas também que circulam através de instituições e entidades em toda a sociedade – escolas, locais de trabalho, clínicas, etc.

(Brown, 2019, p. 30-31).

Seguindo esse raciocínio, Brown (2019, p. 31-32, grifo do autor) argumenta que tais princípios se tornam “princípios de realidade que saturam e governam cada esfera da existência e reorientam o próprio homo oeconomicus”, transformando-o, radicalmente, de um sujeito da troca e da satisfação de necessidades (liberalismo clássico) em um sujeito da competição e do aprimoramento do capital humano (neoliberalismo). Assim, “[...] o objeto de todas as análises que fazem os neoliberais será substituir, a cada instante, o homo oeconomicus parceiro da troca por um homo oeconomicus empresário de si mesmo, sendo ele seu próprio capital, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda” (Foucault, 2008, p. 311, grifo do autor).

As novas relações entre Estado e mercado – ou seja, a nova racionalidade governamental –, orientadas pelo neoliberalismo, foram também analisadas. Conforme Brown (2019, p. 31), “por um lado, todo governo é para os mercados e orientado por princípios de mercado, e, por outro, os mercados devem ser construídos, viabilizados, amparados e ocasionalmente até mesmo resgatados por instituições políticas”. Tais práticas complexificaram-se e aprofundaram-se no tempo presente, dificultando cada vez mais a análise do papel do Estado, até por falta de uma teoria que dê conta de explicá-lo – seja nos países de capitalismo central; seja em países em desenvolvimento, como o Brasil.

De acordo com Foucault, essas duas características da racionalidade neoliberal:

A elaboração de princípios de mercado como princípios de governo onipresentes e o próprio governo reformatado para servir aos mercados – estão entre aquelas que separam a racionalidade neoliberal daquela do liberalismo econômico clássico, e não apenas da democracia keynesiana ou da social-democracia. Elas constituem a ‘reprogramação da governamentalidade liberal’ que podia e ia se instalar em todos os lugares, empreendedorizando o sujeito, convertendo trabalho em capital humano e reposicionando e reorganizando o Estado

(Brown, 2019, p. 31).

As duas lógicas de interpretação do neoliberalismo apontadas por Brown complementam-se e auxiliam-nos na compreensão da governação neoliberal que se impõe em todos os lugares e na reprodução da vida, em todos os aspectos – cognitivos, afetivos, materiais –, destruindo formas de vida e construindo outras sob novos parâmetros. No campo econômico, a austeridade imposta aos países levou a sucessivos ajustes fiscais, com redução nos orçamentos de gastos primários, ou seja, da área social. Isso causou a extinção ou a completa precarização de instituições históricas, como as escolas públicas, em numerosos países, onde o neoliberalismo pretendia aliviar os custos da educação via financiamento a escolas de baixo custo, incentivos à criação de escolas privadas e privatização de escolas públicas (Laval, 2004). Na perspectiva neoliberal, “a escola deve ter uma lógica mercadológica, ela é convidada a empregar técnicas de inovação e esperar um ‘retorno de imagem’ ou financeiro, deve se vender e se posicionar no mercado, etc.” (Laval, 2004, p. 93). Isso é algo completamente novo em relação ao que foi a escola pública até muito recentemente.

A escola pública de nossas histórias e memórias é uma instituição relativamente nova, que emerge e se desenvolve associada a transformações históricas que levaram à transição do “antigo regime” para a constituição do Estado-nação. Nessa trajetória, “durante uma grande parte da história, os esforços para punir as transgressões da escola foram correcionais: a escola era algo a ser constantemente melhorado e reformado” (Masschelein; Simons, 2018, p. 9). Portanto, “não surpreende que tenha sido confrontada com tentativas de domá-la desde seu início” (Masschelein; Simons, 2018, p. 105). Se, por um lado, o capitalismo exigiu desde a sua origem um trabalhador minimamente qualificado/treinado, levando a escola pública e a política educacional, sob responsabilidade do Estado, a capacitarem o trabalhador para a “empregabilidade” em determinadas funções – de altas e de baixíssimas complexidades, hierarquizadas na divisão social do trabalho –; por outro lado, a escola veio atender a outras finalidades, como formação moral e cidadã e construção do Estado-nação. A escola foi historicamente convocada a atender a uma determinada formação social e às exigências dela decorrentes.

Ao discutir a importância da escola pública para a construção do projeto de Estado-nação, Afonso e Ramos (2007, p. 80) defendem que ela tem sido fundamental “para a reprodução da identidade nacional”, mas não só. À escola pública, historicamente, atribuem-se funções que extrapolam as demandas pura e objetivamente econômicas do capitalismo e da construção do Estado-nação. É o que podemos ver em Masschelein e Simons (2018), Harendt (1961), Freire (1997) e Gadotti (2008), dentre outros que, sob abordagens diversas, defendem e propõem uma escola democrática – lugar de resistências e “transgressões”, voltada para o bem comum, que forme pessoas em suas variadas dimensões –, mas nunca a destruição da escola. Ainda, comentando a origem da escola pública de massa, seu papel e sua relação com o Estado, Afonso e Ramos (2007, p. 81) afirmam que “a intervenção do Estado teve assim um papel importante e decisivo na génese e desenvolvimento da escola pública de massas, e esta, como instância de violência simbólica, não deixou de ter também reflexos importantes na própria consolidação do Estado”.

É notória a centralidade da contribuição da escola pública para a construção do Estado-nação em contextos e historicidades distintos, não só no europeu, como mostra a criação de sistemas nacionais de educação em quase todos os países, incluindo-se os Estados latino-americanos, ainda no século 19. No Brasil, apesar do debate travado desde as décadas de 1920 e 1930 pelos liberais, pioneiros da Escola Nova, só recentemente o Senado Federal aprovou a criação do Sistema Nacional de Educação (Projeto de Lei Complementar PLP 235/20192, que se encontra em tramitação).

Se o surgimento da escola pública de massa associa-se à criação do Estado-nação e à emergência do capitalismo, no Brasil a escola só foi convocada a assumir uma função social a partir da década de 1930 (Romaneli, 1998), quando o país, afetado pela crise do capital, agudizada pela crise financeira de 1929, foi levado a estabelecer as bases para a expansão capitalista. Isso gerou mudanças significativas no campo econômico; na paisagem geográfica; nas manifestações culturais; e na estrutura social, marcada também por intensos processos migratórios campo/cidade e pelo avanço da urbanização, entre outros fatores que também possibilitaram a expansão “insuficiente” do ensino no país.

Apesar de inúmeras iniciativas e bandeiras de luta em defesa da escola pública por intelectuais, artistas, educadores e movimentos sociais e sindicais com vistas à organização do ensino no país, ainda nos anos de 1920 e 1930 a escola era elitista, dual e excludente da população economicamente mais frágil, negra, indígena e do campo, cujas lutas sociais pelo direito a uma escola pública de massa e educação popular perduraram por quase todo o século 20. Considerando o rendimento do sistema educacional brasileiro no período de 1961 a 1972, Romanelli (1998, p. 93) apontou a existência de dois tipos de fatores que influenciavam o “processo de seletividade escolar: os relacionados com o contexto global, em que se instala a escola, e os relacionados com a ordem interna do sistema”.

Sobre a influência de fatores intraescolares e extraescolares no desempenho dos estudantes, os estudos de Coleman et al., conhecidos pelo Relatório Coleman (1966), sobre qualidade e desigualdades nas escolas públicas norte-americanas, apontavam que “[...] as escolas pouco se diferenciavam entre si e que os fatores que mais determinavam os resultados escolares e as chances de vida dos alunos eram mesmo seus antecedentes sociais e étnicos” (Brooke, 2010, p. 3). Resguardadas as várias interpretações dos achados dessa pesquisa – sobre se a escola faz ou não diferença e se era capaz de combater as desigualdades sociais –, pesquisas posteriores tentaram compreender as diferenças entre as escolas e constataram que, sim, elas fazem diferença (Brooke, 2010). Dessas conclusões, é possível pensar que a escola é uma instituição complexa; que fatores internos e externos exercem influência no desempenho do estudante e da própria escola; e que as desigualdades no interior da instituição são, de fato, uma extensão das inúmeras desigualdades decorrentes do modo de produção capitalista.

Por um lado, fatores externos à escola, como o Nível Socioeconômico do Estudante (NSE), têm mobilizado sujeitos sociais diversos – pesquisadores e representantes de entidades educacionais progressistas, entre outros (Freitas, 2012, 2016; Almeida; Dalben; Freitas, 2013) – e cada vez mais ocupado o centro dos debates na defesa de uma escola inclusiva; democrática; justa; plural; que possibilite uma formação científica, artística e para a cidadania política – enfim, uma educação escolar rica em possibilidades para o desenvolvimento de potencialidades do estudante e sua ascensão social. Por outro lado, o projeto neoliberal para a educação, cujos porta-vozes podem ser nomeados de reformadores empresariais, enfatiza os fatores internos à escola – sintetizados no desempenho nas avaliações em larga escala e no Ideb – em um afunilamento curricular e na responsabilização do trabalho docente; o que, dadas as diversas e contínuas iniciativas materiais concretas e a hipocrisia dos reformadores, leva à privatização da escola pública e, portanto, à sua destruição (Freitas, 2012, 2019).

A aliança Estado e capital e a redistribuição da educação e da escola pública via privatização

As diferentes formas de privatização da e na educação (Rikowski, 2017; Adrião, 2018; Peroni; Garcia, 2020) têm relação com a crise estrutural do capital, evidenciada em finais dos anos de 1960 e no início dos anos 1970, reforçando-se com a crise financeira de 2007 e 2008, que perdura até o presente. As alternativas adotadas pelo capital para superação da crise, além de não a solucionarem, levaram não só ao desequilíbrio das relações entre capital e trabalho – via mediação pelo Estado-nação –, mas também a outras iniciativas, como a flexibilização, a desregulamentação e a privatização de bens públicos. Trouxeram, ainda, consequências incalculáveis para a sobrevivência de milhares de seres humanos, possibilitando a redistribuição para as classes altas – e não só em países de capitalismo central –, em detrimento da maioria. Ao explicar esse fenômeno, Harvey assegura:

Se o principal sucesso do neoliberalismo não se encontra no que tange à geração de riquezas, mas sim à sua redistribuição, foi necessário descobrir meios para transferir ativos e redistribuir a riqueza e renda da massa da população em direção às classes altas, e dos países vulneráveis aos países mais ricos

(Harvey, 2007, p. 17-18).

O que se seguiu foi o período marcado pelo fenômeno da globalização, com “a internacionalização do capital, seus movimentos rápidos e livres e a mais predatória especulação por todo o globo [...]”, ou seja, “numa orgia de especulação financeira” (Wood, 2014, p. 102-103). Associada ao neoliberalismo, desde a primeira onda de reformas reconfigurou os poderes e a própria noção de Estado social (Streeck, 2018; Afonso; Ramos, 2007) em vigor em países de capitalismo central desde o pós-guerra (1945) até o início da década de 1980. Foi quando inúmeras funções do Estado passaram pelo escrutínio dos poderes do capital e de seus porta-vozes imediatos – Organismos Internacionais (OIs), conhecidos também por supranacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI); a Organização Mundial do Comércio (OMC); e o Banco Mundial (BM), que, na ausência do Estado-nação, se torna o braço político do capital global. Além dessas instituições transnacionais, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) vem exercendo papel fundamental em promover a internacionalização de políticas e programas educacionais, geralmente formulados por países que a compõem. Para Harvey (2007, p. 22):

Uma das principais funções das intervenções estatais e das instituições internacionais é a de orquestrar crises e desvalorizações de modo a permitir que ocorra a acumulação por expropriação, sem provocar um colapso geral ou uma revolta popular.

A incontrolabilidade do sistema do capital e os males do mercado daí decorrentes estão presentes em todas as áreas, mas as medidas restritivas de gastos públicos e o aprofundamento das desigualdades de renda não passaram imunes a revoltas e resistências – como mostrou Chiapas, no México –, sendo seriamente reprimidas pelo Estado.

Ao discutir o papel dos Estados Unidos, primeiro país a romper o acordo de Bretton Woods, chama atenção para a lógica da globalização: “a globalização realmente existente significa a abertura das economias subordinadas e sua vulnerabilidade ao capital imperial, enquanto a economia imperial continua protegida tanto quanto possível dos efeitos esperados” (Wood, 2014, p. 105). Alguns críticos da globalização discutem a hipótese de “que os serviços tradicionalmente executados pelos Estados-nação para o capital nacional devem ser executados para as companhias multinacionais por algum tipo de Estado global” (Wood, 2014, p. 105). Ainda, sobre a relação Estado e capital, Wood (2014, p. 107) argumenta que:

[...] o Estado, tanto nas economias imperiais quanto nas subordinadas, ainda oferece as condições indispensáveis de acumulação para o capital global, tanto como para as empresas locais; e, em última análise, é o criador das condições que permitem o capital global sobreviver e navegar o mundo.

Ao contrário do que apregoavam os críticos do neoliberalismo, em face dos primeiros programas de ajustes fiscais e das estratégias conduzidas pelo mercado para a fragilização do Estado, é fundamental compreender os novos papéis atribuídos aos Estados-nação, que estão cada vez mais fortes e poderosos. Conforme Wood (2014, p. 108):

O mundo hoje é mais que nunca um mundo de Estados-nação. A forma política da globalização não é um Estado global, ou uma soberania global. A falta de correspondência entre a economia global e os Estados nacionais também não representa simplesmente algum tipo de atraso no desenvolvimento político. A própria essência da globalização é uma economia global administrada por um sistema de Estados múltiplos e soberanias locais, estruturada numa relação complexa de dominação e subordinação.

O sistema do capital passa constantemente por mutações, e as metamorfoses ao longo do último quarto do século 20 e no decorrer do presente século deram-se graças a inúmeros fatores, entre eles o avanço das Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação (TDICs) e a atuação do próprio Estado – que, em favor do capital, promove a flexibilização e/ou a extinção de instrumentos normativos que regulavam minimamente determinadas áreas, como a educação e a preservação ambiental, o que, de certa forma, ainda se constituía como um freio ao projeto de expansão do capital para áreas até então protegidas contra sua natureza destrutiva para acumulação. As privatizações de áreas até pouco tempo protegidas do mercado, dada a sua natureza antitética à mercantilização, como é o caso da educação, conforme Harvey (2007), constituem formas de redistribuição em favor das classes altas. Há diversas abordagens sobre privatização da educação. De acordo com Belfield e Levin (2004, p. 17),

O termo “privatização” é uma designação genérica de vários programas e políticas educativas que podem ser globalmente definidos como “a transferência de atividades, provisão e responsabilidades do governo/instituições e organizações públicas para indivíduos e organizações privadas”. Muitas vezes a privatização é vista como uma “liberalização” – quando os agentes são libertados das regulações governamentais – e uma “mercantilização” – quando são criados mercados que proporcionam alternativas aos serviços do governo ou aos sistemas de distribuição estatal.

Aspectos dessa definição de privatização remetem tanto a uma das dimensões da privatização – a oferta, abordada por Adrião (2018) – quanto àquilo que Rikowski (2017) problematiza acerca da maioria das pesquisas realizadas no meio acadêmico sobre a privatização na e da educação, ao enfocarem, em primeiro plano, a “mercadificação”. A privatização na e da educação é “tipicamente enquadrada dentro de um discurso sobre se ‘funciona’ ou não; ou se os aspectos da educação – padrões, equidade e eficiência em particular – são reforçados ou ameaçados pela privatização em instituições educacionais” (Rikowski, 2017, p. 395).

O autor também chama atenção para a privatização da força de trabalho, ignorada nas produções acadêmicas sobre o tema aqui estudado. Segundo ele, “as instituições de educação e de formação de professores estão envolvidas na produção social da força de trabalho” (Rikowski, 2017, p. 395). Portanto, “quando são privatizadas, as atividades, processos e formas pedagógicas envolvidas na produção de força de trabalho também são necessariamente privatizadas” (Rikowski, 2017, p. 396, grifos do autor). Em face das condições desesperadas por lucratividade do capital, o “financiamento estatal da educação aparece como uma fonte tentadora para sugar dinheiro público” (Rikowski, 2017, p. 398).

Segundo Rikowski (2017), há duas formas básicas de privatização. Primeiro, o que se poderia chamar de privatização clássica, também chamada de privatização direta, é aquela realizada no governo Thatcher nos serviços públicos (por exemplo, gás, eletricidade e água) na década de 1980. Na segunda forma de privatização, “a transferência de ativos públicos para o setor privado não ocorre”; outrossim, “a propriedade absoluta das instituições educacionais é evitada, e o controle sobre elas vem à tona, ou seja, a tomada de controle da educação por parte das empresas, em oposição à sua privatização direta” (Rikowski, 2017, p. 399). A isso, o autor chamou privatização na educação, isto é, “a tomada de controle sobre a educação por parte das empresas que não envolvem propriedade” (Rikowski, 2017, p. 399).

Ainda quanto à definição de privatização, Lima (2013) apresenta uma abordagem que também nos auxilia a pensar a privatização na e da educação, se por privatização entendermos

[...] muitas e diferentes coisas, desde a erosão das responsabilidades estatais em benefício de privados, desregulação, concessão a privados, parcerias, construção de redes nacionais de ensino, já não públicas, mas híbridas ou baseadas em parcerias público-privadas, escolas públicas com estatutos de fundação e regidas pelo direito privado, escolas públicas cuja gestão foi concessionada a privados, financiamento através da captação de alunos e respectivos “cheques-ensino” pagos pelo Estado, interferência crescente no currículo, na prática pedagógica, na avaliação, etc., por parte de instituições privadas, empresas, fundações, organizações não-governamentais diversas, ou do chamado “terceiro setor”

(Lima, 2013, p. 179).

Ante os diversos sentidos atribuídos à privatização, esclarece-se que não se trata somente da venda direta de uma empresa estatal ou um bem público para a iniciativa privada. Os processos de privatização são muito mais articulados e, muitas vezes, podem até passar despercebidos, como as denominadas privatizações endógenas e exógenas (Ball; Youdell, 2007) e da própria política.

As perspectivas de privatização antes mencionadas materializam-se na educação pública do Brasil; no caso em estudo, como apresentamos no item sobre a privatização da e na educação de Mato Grosso, ancoradas em um conjunto de normas e regulamentos adotados no Brasil após 1998.

No Brasil as condições objetivas para adequar-se à nova ordem global de reformas foram dadas, e o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) foi o exemplo mais notável. Inspirado em reformas dos governos conservadores de Thatcher, na Inglaterra, e de Reagan, nos Estados Unidos, na década de 1980, o equivocado diagnóstico traçado nesse plano atribui ao Estado e à Constituição de 1988 a responsabilidade pela crise econômica e fiscal e propõe reformas orientadas pelo neoliberalismo – não só no campo econômico e no papel do Estado, mas na própria Constituição, com a Emenda Constitucional n.º 19/1998 (Brasil, 1998). O plano e essa emenda, associados a um conjunto de instrumentos normativos criados posteriormente, possibilitaram a privatização direta de bens públicos e a indireta no campo dos direitos arduamente conquistados pela luta histórica dos trabalhadores – entre eles, os direitos à educação e à saúde. O Quadro 1 expõe os instrumentos normativos que sustentam as privatizações no Brasil.

Quadro 1
Apresentação das leis brasileiras que regulamentam a relação entre o público e o privado.

Adrião (2018) esclarece que o termo “parceria” tem um papel de acobertamento da real ideia de privatização, dificultando, assim, sua explicação.

A começar pelo fato de não se tratar de relação colaborativa entre setores que atuariam horizontalmente, como à primeira vista o termo ‘parceria’ pode indicar. Tampouco se trata de formas específicas de privatização sugeridas pelo Banco Mundial (BM), as quais no Brasil foram reguladas pela Lei Federal nº 11.079 de 30/12/04. Trata-se de processos pelos quais a educação pública brasileira, entendida como aquela financiada e gerida pelo Poder Público, conforme indicado na Lei de Diretrizes e Bases – Nº 9 394/1996, subordina-se formal e concretamente ao setor privado com fins de lucro

(Adrião, 2018, p. 9).

As abordagens trazidas neste texto têm por função auxiliar na compreensão da variedade de processos fomentados no estado de Mato Grosso para a captura do fundo público pelo capital; além da transformação das escolas e dos sujeitos escolares, adaptados à lógica do capital humano e da empreendedorização de si (Brown, 2018).

O Estado, os agentes do capital e a captura do fundo público da educação em Mato Grosso

O estado de Mato Grosso está situado na região Centro-Oeste do Brasil e, junto com Mato Grosso do Sul, Goiás e Distrito Federal, ocupa uma área de 1.606.403,5 km², a segunda maior do país. Dessa extensão, Mato Grosso tem área territorial de 903.208,36 km², densidade demográfica de 4,05 hab./km² e população de 3.658.649 habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], s. d.), distribuídos em 142 municípios. Com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,736, ocupa o 11º lugar no ranking nacional. A capital Cuiabá é a cidade mais populosa do estado, com 650.877 habitantes; a menos populosa é a cidade de Araguainha, situada a 471 km de Cuiabá, com uma população de 1.010 habitantes, de acordo com o Censo Demográfico (IBGE, s. d.).

A população do estado é constituída, majoritariamente, por migrantes provenientes de outros estados da federação. Isso resultou da atuação de três atores – o Estado, a empresa colonizadora e os migrantes –, em um processo de três fases: a “Marcha para o Oeste”, durante o Estado Novo, no Governo de Getúlio Vargas; a dos militares; e a do agro, “com os habitantes do Sul do Brasil sendo escolhidos para ocuparem os territórios” (Instituto Humanitas Unisinos, 2019, n. p.)3. Esses projetos, com o objetivo de desenvolver e integrar as regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil, que até aquele momento apresentavam baixa densidade demográfica, nem sempre tiveram o sucesso esperado. De acordo com Rafael Assumpção de Abreu na referida entrevista (Instituto Humanitas Unisinos, 2019), a consolidação do agro na atualidade tem suas origens nesse processo.

Com ocupação de 59,7% em trabalhos formais de pessoas acima de 14 anos e rendimento médio mensal de R$ 2.774 per capita, em 2022 MT possuía um PIB per capita de R$ 9.825,55. Ocupando o 1º lugar no país em produção de commodities – milho, soja e carne bovina – e ainda com participação relevante na produção de cana-de-açúcar e algodão, Mato Grosso tem se tornando o estado mais privilegiado com as políticas públicas para o setor, mesmo que esses fatores não repercutam na redução de indicadores de desigualdades socioeconômicas.

Sob influência do neoliberalismo, duas leis sancionadas na metade da década de 1990 isentam as classes altas de pagamento de impostos. Trata-se da Lei n.º 9.249, de 26 de dezembro de 1995, que em seu art. 10 institui a não incidência do imposto de renda na fonte sobre lucros e dividendos de pessoa física ou jurídica domiciliada no país ou no exterior; e da Lei Complementar n.º 87/19964, que estabeleceu a isenção de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre a exportação de produtos primários e semielaborados ou serviços (Lei Kandir), reforçada pela Emenda Constitucional n.º 42/2003 (Brasil, 2003), gerando benefícios fiscais também para o agronegócio.

O último governo estadual considerado de partidos tradicionais encerrou com Dante Martins de Oliveira, autor da Emenda das Diretas Já (1985), eleito para 2 mandatos (1995/1998 e 1999/2002) – primeiro pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) e depois pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Apesar do alinhamento com as políticas neoliberais de ajuste fiscal do governo federal de Fernando Henrique Cardoso (1995/1998; 1999/2002), foi durante este governo que se elaborou e aprovou a maioria das políticas educacionais e dos instrumentos normativos com participação popular. Estes atualmente passam por destruição (Harvey, 2007) na gestão do atual governador de Mato Grosso, Mauro Mendes, proveniente do empresariado e apoiado pelo agro, eleito pelo Democratas (DEM) e reeleito pelo União Brasil para dois mandatos (2019/2022; 2023/2026).

Para fins deste texto, apresentamos a movimentação da rede pública estadual de ensino de Mato Grosso a partir de dados sobre matrículas e número de escolas e de professores, em uma série histórica de 2013 a 2023; o Ideb da rede entre 2013 e 2023; aspectos de 5 políticas estruturantes da educação escolar pública de Mato Grosso, criadas em finais da década de 1990, que ao longo dos últimos anos vêm passando por corrosão até a completa “destruição criativa” e substituição por outras políticas e programas, de orientação mercadológica. Segundo Sauvêtre et al. (2021, p. 53), “por essa expressão deve-se entender, [...], uma estratégia consciente de construção social desenvolvida pelo Estado para destruir as formas institucionais nas quais as relações sociais estavam até então ancoradas”, não escapando dessa lógica as relações educacionais.

Fundamentados em Marcus Taylor (2006, p. 56), os autores sustentam que:

[...] a despeito da retórica de uma estratégia conduzida pelo mercado, o programa de destruição criadora assenta-se em intervenções sistemáticas, que buscam, simultaneamente, remodelar as instituições sociais e corrigir tensões políticas e sociais que surgem dessa reestruturação.

A gestão neoliberal da sociedade e da educação aqui analisada procura “amortecer” os impactos da destruição, tanto no âmbito discursivo – com a publicidade e o marketing, usados para o convencimento, e os recursos ideológicos, para a ocultação da realidade – quanto no que tange a medidas de viés autoritário – como as premiações e punições (pressões, ameaças, destituição de cargos e funções), gratificações por resultados, etc. Esse contexto de vigilância, controle e regulação foi potencializado pela adoção de plataformas digitais para acesso a conteúdo e avaliações pelo estudante e, ainda, “formação” e trabalho docente. Entre a cumplicidade de alguns e o não saber e a indiferença de outros, instala-se o regime de autovigilância que a mercantilização da educação promove (Fisher, 2016).

A mercantilização é possibilitada por uma aliança entre Estado e capital, a partir de uma agenda híbrida entre governo e atores privados. Esse processo tem se dado por novas redes políticas entre esferas públicas e privadas, organizações não governamentais, grupos filantrópicos, empresas e outros tipos de organização (Saura, 2016; Ball; Olmedo, 2013; Ball, 2014), atuando em “novos” espaços de governança e influenciando a aprovação de novos instrumentos normativos para operacionalizar políticas e programas do setor privado.

Por fim, apresentamos as receitas e despesas com a função educação, entre 2018 e 2023, indicando os gastos públicos com a privatização, assim como os atores privados com maior incidência e captação de recursos públicos para oferta de serviços e insumos educacionais no estado de Mato Grosso.

A Seduc é a mantenedora das escolas da rede pública estadual de ensino e de órgãos “desconcentrados”, como as Diretorias Regionais de Educação (DREs) e Assessorias Pedagógicas (APs). Com as alterações introduzidas pela Lei Ordinária n.º 11.668, de 11 de janeiro de 2022, esses órgãos executam as determinações do órgão central junto às unidades escolares.

A Tabela 1 mostra a movimentação na rede pública estadual de ensino, em uma década. A oscilação no número de professores da rede, a partir de 2019, e a redução significativa de professores posterior a 2021 podem estar relacionadas a inúmeros fatores, como: transferência de matrículas dos anos iniciais do ensino fundamental para os municípios; redução de contratos temporários e mudança no regime de trabalho dos professores, com a possibilidade de aumento da carga horária de trabalho. A redução significativa das matrículas no ensino médio entre 2022 e 2023 precisa ser analisada à luz da implementação do NEM e da BNCC na rede. A redução nas matrículas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) pode estar associada ao fechamento de Centros de Educação de Jovens e Adultos (Cejas), desde 2021.

Tabela 1
Matrículas e número de escolas e de professores na rede pública estadual de ensino de Mato Grosso – 2013 a 2023.

No tocante a iniciativas para buscar uma “pretensa” qualidade da educação, desde 2006 atores públicos e privados, bem como fundações, institutos e consultorias, têm sido mobilizados para a melhoria dos resultados da rede pública estadual de ensino de Mato Grosso nas avaliações em larga escala e no Ideb. A Fundação Cesgranrio foi contratada em 2006 para capacitar os professores das áreas de Português e Matemática e fornecer material estruturado para estudantes e professores; na sequência, contratou-se os programas Gestão Nota 10 e de educação formal do Instituto Ayrton Senna, entre 2007 e 2008 (Costa; Gentil; Amaral, 2016). Ainda, a consultoria da Falconi Educação atuou, em 2016, na implantação do modelo de gestão para resultados nas unidades escolares da rede e no órgão central da pasta, como parte da Política de Formação Continuada (Saggin, 2016).

A seguir, apresenta-se uma série histórica com as metas projetadas e as notas alcançadas pelo estado de Mato Grosso entre 2013 e 2023.

Conforme apontado na Tabela 2, só no ano de 2021 a nota do Ideb dos anos iniciais do ensino fundamental ficou menor em relação à meta projetada. A série mostra pouca oscilação entre as metas projetadas e as notas alcançadas nessa etapa do ensino. Nos anos finais do ensino fundamental houve variação de 1 ponto percentual em 2019 para 2 em 2021, entre a meta projetada e a nota alcançada. Quanto ao ensino médio, houve regularidade na série histórica, com a nota alcançada menor que a projetada em todos os anos, porém, registrando-se uma constante evolução das notas no período, até a última em 2023.

Tabela 2
Metas projetadas e notas alcançadas no Ideb da rede estadual de ensino de Mato Grosso – de 2013 a 2023

Quanto às políticas e aos programas em vigor até muito recentemente, no Quadro 2, a seguir, faz-se uma tentativa de síntese de algumas políticas educacionais e de instrumentos normativos da educação pública que passaram por alterações e/ou revogação e substituição por outros, assim como de normas novas que possibilitaram preparar uma ambiência favorável à introdução de mecanismos gerenciais e à privatização da educação estadual de Mato Grosso.

Quadro 2
As principais alterações nas políticas e nos instrumentos normativos da rede pública estadual de ensino de Mato Grosso de 2018 a 2024.

Dentre as inúmeras alterações pelas quais tem passado, simultaneamente, a educação estadual em Mato Grosso, ancoradas na “hipocrisia” do discurso dominante no campo das reformas neoliberais e conservadoras, destacam-se a ampliação da militarização de escolas públicas, regulamentadas por três leis (Lei n.º 10.922, de 12 de julho de 2019; Lei Ordinária nº 11.273, de 18 de Dezembro de 2020 e Lei Ordinária nº 12.388, de 08 de Janeiro de 2024); a municipalização das matrículas dos anos iniciais do ensino fundamental (Decreto nº 723/2020)5; o fechamento de escolas; o repasse de prédios escolares para os municípios; e o “regime de colaboração” (Lei Estadual nº 11.420/2021 e Lei Ordinária nº 11.485/2021) via pressões ao ente municipal. Essas são algumas medidas não apontadas no Quadro 2, mas que merecem ser mencionadas, em razão do “barulho” e do transtorno causado na vida de professores, estudantes e seus familiares. Feitas essas ressalvas, as informações contidas no Quadro 2 seguem organizadas por temáticas, seguidas de breves comentários.

• Gestão educacional e escolar: as alterações do Art. 237, incisos III e IV da Constituição Estadual, justificadas na ADI 282-1/2019, visaram a anular a valorização dos profissionais da educação e a gestão democrática do ensino público no estado, via suspensão das eleições para o cargo de diretor escolar com a participação da comunidade, regulamentadas pela Lei n.º 7.040/1998, que instituía a gestão democrática e eleições de diretores na rede estadual de ensino. A suspensão das eleições foi regulamentada na Lei n.º 12.412 (Mato Grosso, 2024a), que dispõe sobre a gestão democrática e participativa nas escolas da rede pública estadual de ensino de Mato Grosso.

A aprovação do Decreto n.º 282, de 11 de maio de 2023 (Mato Grosso, 2023c), altera a Estrutura Organizacional da Seduc e acrescenta a redistribuição de cargos em comissão e funções de confiança; além de criar inúmeros cargos inexistentes na estrutura anterior, inclui cargos voltados para o controle de resultados.

Os Cefapros, criados gradativamente desde 1997 por meio de decretos e leis (Decreto Estadual n.º 2.007/1997; Decreto Estadual n.º 53/99; Decreto n.º 1.395, de 16 de junho de 2008, que dispõe sobre a regulamentação da Lei n.º 8.405, de 27 de dezembro de 2005) para cobrir toda a extensão do estado, sendo estrategicamente localizados e voltados para a formação continuada dos profissionais da educação, contavam com estrutura e “professores formadores de cada área do conhecimento bem como de áreas específicas, como educação indígena, educação do campo e educação especial” (Schenini, 2013, n. p.). Os Cefapros foram extintos e substituídos por Diretorias Regionais de Educação, instituídas por meio da Lei Ordinária n.º 11.668, de 11 de janeiro de 2022. De acordo com o Parágrafo Único, art. 1º da referida lei, a missão das DREs “é gerir a implantação, o monitoramento e a avaliação da política educacional da educação básica, nas unidades escolares jurisdicionadas, assegurando o acesso, a permanência e a aprendizagem dos estudantes” (Mato Grosso, 2022a, n. p.).

Ainda no campo da gestão, o Conselho Estadual de Educação (CEE) também passou por mudanças, com a tentativa de excluir representações de povos indígenas, educação especial, o movimento negro e demais representações da sociedade civil de classe. Após inúmeras lutas e disputas, aprovou-se a Lei Complementar n.º 761, de 3 de maio de 2023 (Mato Grosso, 2023b), que altera substancialmente a composição do CEE e possibilita ao mesmo sujeito, com dois mandatos consecutivos, zerar seu tempo de representação e continuar como conselheiro por mais oito anos; também permite atribuir ao cargo de presidente o status de Secretário de Estado, com a remuneração compatível com o referido cargo.

Art. 16 Fica alterado o art. 42 da Lei Complementar nº 49, de 1º de outubro de 1998, que passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 42 O Presidente do Conselho Estadual de Educação, no uso de suas atribuições, terá status equivalente ao do cargo de Secretário de Estado.”

Art. 17 Fica alterado o caput do art. 43 da Lei Complementar nº 49, de 1º de outubro de 1998, que passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 43 Ao Presidente, será atribuída uma gratificação mensal a título de representação correspondente a 60% (sessenta por cento) do nível DGA-1 da tabela de cargo em comissão do Poder Executivo Estadual”

(Mato Grosso, 2023b, n. p.).

As alterações normativas no campo da gestão introduziram princípios da Nova Gestão Pública nos órgãos de gestão educacional e escolar, com estabelecimento de metas para resultados, inclusive com a exoneração de gestores escolares por não cumprimento; maior controle e vigilância do trabalho de gestores e dos profissionais da educação, via plataformas digitais; e responsabilização pelos resultados nas avaliações em larga escala e pelas notas do Ideb – entre outras pressões que merecem ser estudadas/aprofundadas.

Organização curricular: a organização escolar em Mato Grosso, desde 2002, seguia a lógica dos ciclos de formação humana. Mesmo que a Resolução n.º 262/02-CEE-MT não tenha sido revogada, a Seduc adotou o Documento de Referência da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio (Mato Grosso, 2018), elaborado a partir de 2017, visando à implementação da BNCC nas escolas da rede. A Lei nº 11.485 (Mato Grosso, 2021a) regulamentada pelo Decreto n.º 1.065 em 10 de agosto de 2021, institui o Programa Alfabetiza MT, o Prêmio Educa MT e a Inclusão Digital, em regime de colaboração com os municípios mato-grossenses. O Programa é voltado para os anos iniciais do ensino fundamental e visa a alfabetizar as crianças até o segundo ano, fazendo-as passar por avaliações constantes; as escolas com as melhores notas são premiadas e as com piores, são apoiadas. Portanto, segue-se uma lógica totalmente inversa a dos ciclos de formação. Além do Programa, a Seduc-MT contratou o Sistema Estruturado de Ensino (SEE), por meio do consórcio formado pela FGV-DIAN, tendo por objeto:

Contratação de empresa especializada, por meio de Contrato de Impacto Social - CIS, para o fornecimento de Sistema Estruturado de Ensino, compreendendo materiais didáticos pedagógicos (impresso e digital), visando ao aprimoramento do desempenho educacional dos alunos da rede pública de ensino do estado de Mato Grosso em diversas áreas do conhecimento com serviços especializados de capacitação dos profissionais da educação (Mato Grosso, 2020a).

Esse sistema pauta-se na corrida por resultados; já os pagamentos das parcelas são efetivados mediante resultados nas avaliações. Há forte pressão sobre os profissionais da educação por resultados, seguindo-se, portanto, como supracitado, uma lógica inversa a dos ciclos de formação humana.

• Carreira, remuneração e valorização do trabalho docente: a Lei Complementar n.º 50/1998 foi alterada em vários artigos, parágrafos e incisos, visando a adequar a carga horária, a remuneração e a formação continuada à lógica do mercado. Por meio da Lei Complementar n.º 756 (Mato Grosso, 2023a), institui a gratificação por eficiência e resultados. O Decreto n.º 984 (Mato Grosso, 2024b), por sua vez, regulamenta a gratificação por eficiência e resultados para o ano de 2024 dos profissionais da educação básica e dos demais servidores lotados na Secretaria de Estado de Educação, de acordo com os critérios e metas individuais e coletivas definidas neste decreto.

Art. 4º Os objetivos e metas anuais devem estar alinhados com as seguintes diretrizes: I - o Decreto nº 1.497/2022, que dispõe sobre o Programa EducAção - 10 Anos, no âmbito do estado de Mato Grosso; II - a evolução na aprendizagem dos alunos da rede estadual, considerando a nota de entrada e saída do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA); III - o esforço dos profissionais no enfrentamento da evasão escolar; IV - o envolvimento dos profissionais da educação nos esforços para atendimento das metas, com contribuição efetiva na redução do percentual de absenteísmo no âmbito da Secretaria de Estado de Educação

(Mato Grosso, 2024b, n. p.).

A Sessão II trata de critérios, metas, cálculos e pontuação, que, por uma questão de espaço, não serão tratados neste texto.

O Grupo Empreendedor Mato Grosso em Evolução (Gemte), com a assessoria da Fundação Falconi, contribuiu para a criação do Programa EducAção – 10 anos, que foi instituído pelo Decreto n.º 1.497, de 10 de outubro de 2022, e apresenta proposta de 30 políticas públicas e 135 ações. De acordo com o art. 1º, trata-se de uma política estadual com projetos e ações para melhoria da qualidade da educação no estado de Mato Grosso, tendo como objetivo principal analisar a qualidade do ensino por meio de índices educacionais (Mato Grosso, 2022b). Em seu art. 2º, expõe como será o processo. O monitoramento do desenvolvimento da educação estadual ocorrerá por meio do acompanhamento dos seguintes indicadores oficiais, de âmbito nacional e estadual:

  1. Ideb (ensino fundamental I, fundamental II e ensino médio);

  2. Taxa de alfabetização; e

  3. Taxa de abandono.

Para cada indicador, foram estabelecidas metas a serem cumpridas, de 2026 a 2036, conforme exposto no Quadro 3.

Quadro 3
Metas projetadas para elevar a média do Ideb de 2026 a 2032 no âmbito da rede estadual

Do exposto, depreende-se que as avaliações foram capturadas pelo mercado e que os resultados são um indicador de quanto do fundo público será destinado ao capital. Uma “reengenharia” da gestão educacional e escolar tem viabilizado o aprofundamento desse processo desde 2020, envolvendo não só a privatização da educação, mas também a do trabalho docente (Rikowski, 2017). A busca por legitimação desse processo parece ter contado com a criação de um Conselho Consultivo da Seduc – instituído pela Portaria n.º 651/2020/GS/SEDUC/MT, publicada no DOE de 26 de novembro de 2020 (Mato Grosso, 2020b), e pela Portaria n.º 675/2020/GS/SEDUC/MT, publicada no DOE de 3 de dezembro de 2020 (Mato Grosso, 2020c) –, tendo seus membros sido empossados em 2 de dezembro de 2020.

O Conselho foi instituído com o objetivo de elaborar políticas públicas para a educação de Mato Grosso, com base em boas práticas nacionais e internacionais inovadoras, o que seria um dos fatores favoráveis à melhoria da aprendizagem. De acordo com as referidas portarias, contou com a seguinte composição:

  • Claudia Maria Costin: ex-ministra da Adm. Federal. É fundadora e diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV CEIPE), no Rio de Janeiro. Cofundadora do movimento da sociedade civil Todos Pela Educação. Foi até recentemente diretora global de educação do Banco Mundial.6

  • Ana Maria Di Renzo: ex-reitora da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat). Representante da Unemat no CEE-MT, e diretora acadêmica da União das Faculdades Católicas de Mato Grosso (Unifacc).7

  • • Alexandre Schneider: professor, colunista e pesquisador do Transformative Learning Technologies Lab da Universidade Columbia em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP e ex-secretário municipal de educação de São Paulo (2006 a 2012).8

  • Alex Canziani Silveira: advogado, foi deputado federal de 1999 a 2019 pelo estado do Paraná, transitando por 3 partidos: PR, PTB e PSDB.9

  • José Henrique Paim Fernandes: ex-ministro de educação, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE), diretor do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da FGV e consultor em educação do Banco Interamericano de Desenvolvimento.10

  • Evandro Soares da Silva: Reitor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

  • Alan Resende Porto: secretário de estado de educação de Mato Grosso.

  • Amauri Monge Fernandes: adjunto executivo de educação.

Um breve olhar no Quadro 2, na Tabela 3 abaixo e nos comentários, confrontados com a composição desse Conselho, gera inquietações. Há conflitos de interesses entre atores públicos e privados não observados na análise do Consórcio SEDUC/FGV-DIAN pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE), nem pelo Ministério Público Estadual (MPE), quando o primeiro declara que o contrato é vantajoso para o estado de Mato Grosso. Além de uma questão ética, essa relação envolve vultosa quantia de recursos públicos destinada ao setor privado, só para citar um dos clientes do estado de Mato Grosso, nessa disputa pelo fundo público11.

Tabela 3
Receitas, despesas e gastos com a privatização do ensino público estadual em Mato Grosso de 2018 a 2023*.

O orçamento da educação pública em Mato Grosso tem registrado acréscimos significativos, apesar das renúncias e isenções fiscais para o empresariado e o agronegócio para a classe alta, conforme pode ser constatado na Tabela 3, na exposição de receitas e despesas totais12 entre 2018 e 2023. Quanto aos gastos com terceirizações e privatizações, dentre 128 contratos localizados no Portal da Transparência da Seduc-MT e que apresentaram indícios dessas duas categorias, foram selecionados 70 para compor este estudo – que não deixaram dúvidas quanto à classificação de insumos e serviços que o próprio estado poderia fornecer para manutenção e desenvolvimento do ensino, tal como definido em estudo anterior (Costa; Rodrigues, 2021).

Alguns esclarecimentos sobre os dados da Tabela 3. Primeiro, apesar da pandemia de covid-19, houve um crescimento contínuo de receitas para a educação, enquanto no ano de 2021 houve uma redução dos gastos com educação. As iniciativas da Seduc-MT para o enfrentamento da pandemia no ano de 2020 contaram com a criação de programas, como o Aprendizagem Conectada, para atender estudantes e professores da rede; e gravação de programas na Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação (Seciteci) e na TV Assembleia para atender à educação básica. Nesse ano, não identificamos despesas que caracterizassem privatização da educação. No entanto, como indicamos no Quadro 1, foram desenvolvidas inúmeras iniciativas no sentido de preparar a base material legal para a transformação de um bem comum e de natureza pública (a educação) e a ação estatal permeáveis ao crivo de uma espécie de “tribunal econômico que pretende aferir a ação do governo em termos estritamente de economia e de mercado” (Foucault, 2008, p. 339). Nesse sentido, e diante da crise de acumulação deflagrada desde finais dos anos 1960 e agravada até o presente, “a tomada de controle sobre a educação por parte das empresas não surpreende, o que estimula a sua privatização” (Rikowski, 2017, p. 398).

Os maiores gastos com a privatização de recursos públicos ocorreram a partir de 2021. Os contratos com o setor privado variavam de 1 a 7 anos, e os valores iam de R$ 17.352,69, para agenciamento de estagiários para a Seduc-MT, até R$ 408.121.038,14, para a FGV-DIAN. O Contrato de Impacto Social (CIS) firmado entre a Seduc-MT e o consórcio FGV-DIAN, formado pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e a empresa Dian & Silva Empreendimentos Educacionais Ltda., por exemplo, é um dos mais caros para os cofres públicos e tem duração de 60 meses13. De acordo com dados do Portal da Transparência, em 2021 foram pagos R$ 415.888.595,41 (valor corrigido pelo IPCA de 31 de dezembro de 2024). Consta no Edital do Pregão Eletrônico n.º 21/2020 que, para receber o pagamento das parcelas, a empresa vencedora assumiria a corresponsabilidade no atingimento das metas estabelecidas e seria remunerada conforme os resultados obtidos nas avaliações bianuais. Constitui-se objeto do referido contrato:

[...] fornecimento de Sistema Estruturado de Ensino, compreendendo materiais didáticos pedagógicos (impresso e digital), visando ao aprimoramento do desempenho educacional dos alunos da rede pública de ensino do estado de Mato Grosso em diversas áreas do conhecimento com serviços especializados de capacitação dos profissionais da educação (in loco/plataforma digital)14, conforme quantitativo, especificações e demais informações constantes no Termo de Referência n° 0107/2020/SUEB

(Mato Grosso, 2020a).

O contrato de maior valor15, firmado em 2022 entre a Secretaria de Estado de Educação e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), custou aos cofres públicos R$ 388.169.412,71 para prestação de serviços especializados na oferta de cursos de educação profissionalizante, compreendendo atendimento ao ensino médio (1º ao 3º) da rede pública de ensino do Estado de Mato Grosso por um período de sete anos. Naquele ano houve aquisições e contratações de equipamentos, para operacionalizar a digitalização na rede, no valor de R$ 375.919.920,34, dividido entre quatro empresas, sendo que o maior valor (R$ 259.283.031,45) resulta do contrato com a Multilaser Industrial S.A para a compra de Chromebooks e notebooks para uso educacional na rede pública de ensino. Os maiores valores gastos em 2023 foram utilizados para operacionalizar a digitalização da rede; juntos, somam a quantia de R$ 115.470.659,80, dividida entre três empresas, com R$ 78.744.344,90 destinados à Multilaser Industrial S.A.

De modo complementar, o Figura 1 apresenta os percentuais das despesas totais em educação e os gastos com a privatização em Mato Grosso.

Figura 1
Gastos com a privatização da educação pública de Mato Grosso de 2018 a 2023.

Diante dessa turva redefinição das fronteiras e do papel do Estado, vivenciamos a transformação da educação em uma forma de mercadoria, que pode ser negociada, comprada e vendida pelas grandes corporações. Em Ball (2014, p. 222), identificamos que,

[...] na interface entre a política educacional e o neoliberalismo, o dinheiro está em toda a parte. Como indiquei, a própria política é agora comprada e vendida, é mercadoria e oportunidade de lucro, há um mercado global crescente de ideias de políticas. O trabalho com políticas está também cada vez mais sendo terceirizado para organizações com fins lucrativos, que trazem suas habilidades, seus discursos e suas sensibilidades para o campo da política, por uma taxa honorária ou por um contrato com o Estado.

Os instrumentos normativos foram elaborados e institucionalizados, mediante as ditas reformas neoliberais, para possibilitar tanto a privatização direta de bens públicos quanto a privatização de áreas até então incompatíveis com a lógica do mercado – e, portanto, do lucro –, como a educação escolar. Pode-se dizer que os discursos da classe alta buscam escamotear os reais interesses do capital na educação e que “a tarefa da ideologia capitalista não é convencer-nos de algo (isso seria a tarefa de algum tipo de propaganda), mas ocultar o facto de que as operações do capital não dependem de algum tipo de crença subjetivamente partilhada” (Fisher, 2016, p. 36).

A tão alardeada defesa da qualidade da educação, medida via resultados nas avaliações e nas notas no Ideb, tem servido de álibi para sustentar uma prática predatória do capital no financiamento público. Os reais interesses do capital na educação e na escola pública de massa ficam expostos, e o mapeamento dos recursos públicos destinados ao setor empresarial desmascara o discurso da defesa da escola pública – a não ser para vilipendiá-la, depredá-la, deformá-la, destruí-la. Cabe a nós fazermos a defesa da escola que

[...] oferece ‘tempo livre’ e transforma o conhecimento e as habilidades em ‘bens comuns’, e, portanto, tem o potencial para dar a todos, independentemente de antecedentes, talento natural ou aptidão, o tempo e o espaço para sair de um ambiente conhecido, para se superar e renovar (e, portanto, mudar de forma imprevisível) o mundo

(Masschelein; Simons, 2018, p. 10).

Considerações finais

O texto teve por objetivo analisar as articulações do capital junto ao governo de Mato Grosso, especialmente a partir de 2018, e a privatização na educação daí decorrente. Para tanto, abordamos o neoliberalismo sob duas perspectivas teóricas, na tentativa de compreender a relação entre o governo e o mercado, bem como a influência do neoliberalismo nas instituições, na política educacional, nos instrumentos normativos e na escola pública.

O surgimento da escola pública de massa também foi tratado, tendo em vista compreender seu papel histórico na construção do Estado-nação e na formação de uma identidade nacional, apontando-se como o Estado-nação e a escola pública têm sido tratados e como têm se adequado às transformações do sistema capitalista. Cobra-se da escola o atendimento de demandas que superam sua capacidade e natureza histórica, desconsiderando os fatores que condicionam sua finalidade e organização, assim como o esforço humano coletivo para que os sujeitos tenham seu direito à educação atendido.

O texto apresenta um breve histórico da educação em Mato Grosso, com mapeamento de políticas educacionais e de instrumentos normativos elaborados em um contexto ainda sob influência dos anos 1980, de interlocução entre sociedade civil organizada e Estado para atendimento de princípios educacionais presentes na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei n.º 9394/1996) (Brasil, 1996), que acenavam com a democratização da gestão do ensino público e do acesso ao conhecimento. Também foram mapeadas as receitas e despesas totais com educação, de 2018 a 2023, assim como os “interlocutores”/fornecedores de insumos educacionais do setor privado (empresas, fundações, institutos, etc.) e os custos dos serviços vendidos ao estado para fomentar a educação básica.

O estudo aponta a alteração e a extinção de políticas educacionais e de instrumentos normativos de cunho democrático elaborados na década de 1990 e a aprovação de legislações novas, até então inexistentes, com vistas à criação de uma ambiência favorável aos negócios junto à Seduc-MT. Indica, ainda, as possibilidades de captura do fundo público da educação pelo capital, bem como a instalação de um sistema de bonificações e prestação de contas e a responsabilização do trabalho docente e de gestores pelo cumprimento de metas, ocasionando a constante exoneração de gestores de seus cargos. Além disso, evidencia a instalação da gestão por resultados; a gratificação por eficiência e resultados; a digitalização da rede; e a instalação de um sistema de controle e vigilância sobre as escolas, os estudantes e os trabalhadores da educação, entre outros elementos que merecem ser aprofundados. A pressão por resultados justifica-se no Programa EducAção – 10 anos, cujas metas preveem a elevação de indicadores educacionais do estado e sua subida ao pódio do ranqueamento e da competição entre os cinco “melhores” do país.

Por fim, constata-se que a escola pública de massa se encontra sob sérios riscos de extinção. Em seu lugar, vislumbra-se a “formatação” de instituições completamente multifacetadas, que mais lembram a “linha de produção fordista”, de produção em série. Nisso, a escola pública de nossas histórias e memórias desaparece como lugar de afetos, de elaboração e também de transmissão de cultura (entendida como toda produção humana), a partir de um currículo rico em possibilidades e potencialidades formativas, de gestação de sujeitos democráticos – enfim, uma escola que acolhe e trata as diversidades, sem que sejam inferiorizadas, descaracterizadas e homogeneizadas.

Agradecimentos

Agradeço aos estudantes de graduação e de pós-graduação da Unemat vinculados ao Grupo de Estudo e Pesquisa em Estado, Política e Gestão Educacional (Gepepe) pelo apoio na obtenção dos dados.

  • Financiamento
    Não se aplica.

Notas

  • 1
    O tema abordado neste texto foi objeto de duas intervenções da autora: uma em mesa-redonda na Semana de Ação Mundial (SAM), promovida pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em Mato Grosso, em 22 de junho de 2022; e a outra no XII Seminário Regional Centro-Oeste da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae), no mesmo ano.
  • 2
  • 3
    Entrevista concedida por Abreu ao Instituto Humanitas Unisinos (2019) online, publicada em 28 de fevereiro de 2019.
  • 4
    Ficou também instituído nesta lei que os estados exportadores que sofressem perda de receitas de exportações receberiam uma “compensação financeira” do governo federal, mediante a criação de um “seguro garantia”, que consistia no repasse mensal de recursos financeiros cujos valores e critérios de divisão foram estabelecidos pela própria Lei Kandir.
  • 5
    Esse decreto foi anulado por decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, em 26 de agosto de 2024.
  • 6
    Disponível em: https://ceipe.fgv.br/pessoa/claudia-costin Acesso em: 20 jun. 2022.
  • 7
  • 8
    Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/alexandre-schneider/ Acesso em: 27 jan. 2025.
  • 9
    Disponível em: https://www.camara.leg.br/deputados/73458/biografia Acesso em: 22 jun. 2022.
  • 10
    Disponível em: https://dgpe.fgv.br/pessoa/jose-henrique-paim-fernandes Acesso em: 20 jun. 2022.
  • 11
    Tivemos acesso ao Edital do Pregão Eletrônico n.º 21/2020; ao Termo de Referência n.º 0107/2020/SUEB; e ao Termo de Contrato 81/2021, celebrado entre a Seduc-MT e a FGV-DIAN.
  • 12
    O termo receita e despesa total em educação foi adotado nesse contexto, assim como em outro estudo (Costa; Rodrigues, 2021), em razão da dificuldade de identificar se os gastos com a privatização têm origem em recursos do Fundeb ou em outras fontes.
  • 13
    Consta no Termo de Contrato 81/2021: “Cláusula Segunda – do valor e da dotação orçamentária – 2.1 – Pela fiel e perfeita execução dos serviços contratados a CONTRATANTE pagará ao CONTRATADO o valor total para sessenta (60) meses partirá de 355.864.320,00 (Trezentos e cinquenta e cinco milhões, oitocentos e sessenta e quatro mil, trezentos e vinte reais) podendo chegar até o limite máximo de 568.548.855,00 (Quinhentos e sessenta e oito milhões, quinhentos e quarenta e oito mil, oitocentos e cinquenta e cinco reais), mediante efetiva entrega do produto”.
  • 14
    Esses materiais são fornecidos por empresas vinculadas à Holding Cogna Educação, contratadas pelo consórcio. Trata-se de material estruturado fornecido pelo Sistema Max de Ensino e da Plataforma Plurall, ambos da Somos Educação, vinculada à Holding Cogna – grupo educacional de capital aberto na bolsa de valores desde 2007.
  • 15
    Todos os dados de contratos foram coletados no Portal da Transparência da Seduc-MT. Essa informação é uma análise a partir de estudo dos contratos. O link de acesso para o portal foi informado nas referências deste trabalho (Mato Grosso, s. d.).

Disponibilidade de dados de pesquisa

Não se aplica.

Referências

Editado por

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2025
  • Aceito
    16 Jun 2025
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