Open-access A INDÚSTRIA DE EDTECHS NA FRANÇA (2002-2022)

THE EDTECH INDUSTRY IN FRANCE (2002-2022)

LA INDUSTRIA EDTECH EN FRANCIA (2002-2022)

RESUMO

Este estudo examina a indústria de tecnologias educacionais digitais (EdTechs) na França (2002-2022). Analisamos documentos de consultorias especializadas, fundos de investimento e do Ministério da Educação. Em seguida, focamos no fundo de investimento Educapital para ilustrar três grandes tendências: alta concentração de mercado, protagonismo dos capitais financeiros na direção da indústria de EdTechs e a relevância das transferências de fundos públicos nessa dinâmica.

Palavras-chave
EdTechs; França; Capital financeiro; Educapital

ABSTRACT

This study examines the digital educational technology (EdTechs) industry in France from 2002 to 2022. We analyze documents from specialized consulting firms, investment funds, and the Ministry of Education. Subsequently, we focus on the investment fund Educapital to illustrate three major trends: high market concentration, the leading role of financial capital in directing the EdTech industry, and the relevance of public fund transfers in this dynamic.

Keywords
EdTechs; France; Financial capital; Educapital

RESUMEN

Este estudio examina la industria de tecnologías educativas digitales (EdTechs) en Francia entre 2002 y 2022. Analizamos documentos de consultorías especializadas, fondos de inversión y del Ministerio de Educación. Posteriormente, nos centramos en el fondo de inversión Educapital para ilustrar tres grandes tendencias: alta concentración de mercado, protagonismo del capital financiero en la dirección de la industria de EdTech y la relevancia de las transferencias de fondos públicos en esta dinámica.

Palabras clave
EdTech; Francia; Capital financeiro; Educapital

Introdução

O objetivo deste trabalho é discutir o desenvolvimento da indústria de tecnologias educacionais (EdTechs) na França, considerando o processo de acelerada incorporação destas na educação, especialmente no contexto de pós-pandemia do SARS-CoV-2. Neste estudo, analisamos a evolução da indústria de EdTechs no período de 2002 até 2022, com ênfase nas articulações entre os capitais financeiros, o Estado e as dinâmicas de mercado que conformam o setor e determinam suas tendências.

A pesquisa adota uma abordagem qualitativa ancorada na análise documental. Examinaram-se relatórios produzidos por consultorias especializadas (EY-Parthenon, EdTech France), dados disponibilizados pelo Ministério da Educação Nacional e informações provenientes de fundos de investimento, com particular atenção ao fundo Educapital. Com base nesses elementos empíricos, foi construído um mapeamento da evolução do setor, ilustrado por gráficos e estatísticas que evidenciam as tendências de concentração de mercado e o papel dos fluxos de capital.

O referencial teórico mobilizado combina o referencial de análise de documentos e a crítica à financeirização. São mobilizadas referências para discutir a reconfiguração da educação no marco do conceito de “aprendizagem ao longo da vida” e os usos ideológicos desse discurso na legitimação das transformações estruturais promovidas pelo capital. Esta perspetiva permite explorar de que modo a educação tem sido moldada pelas dinâmicas do capital financeiro, reorganizando os interesses em torno da mercantilização do setor.

Inicialmente, apresenta-se um panorama da indústria de EdTechs na França, abordando a concentração regional, a importância dos fundos públicos e a predominância da região Île-de-France como centro estratégico. Em seguida, analisa-se o fundo Educapital como estudo de caso, destacando as articulações entre o capital financeiro, o Estado e a ideologia que sustenta as dinâmicas do setor. Busca-se, assim, situar os processos analisados no contexto mais amplo das transformações do capitalismo contemporâneo e de suas implicações para a educação.

Panorama da indústria francesa de EdTechs

Estudo realizado pela consultora EY Parthenon1, pela associação EdTech France2 e pelo Banque des Territoires3, de maio de 2024, apontou novo recorde no número de empresas francesas dedicadas às tecnologias educacionais, exclusivamente ou não: 540 (EdTech Actu, 2024). De acordo com os dados, em 2023, o mercado de EdTechs foi estimado em 1,6 bilhões de euros (perto de R$ 9,5 bilhões)4, contra 1,3 bilhões em 2021, crescimento aproximado de 23% em 2 anos.

O estudo de 2022 (Fabry, 2022) apontou que 54% das empresas tinham menos de 5 anos, com pico entre 2020 e 2021, quando 89 (16%) foram criadas, no período do impacto da pandemia na Europa. Mesmo com redução proporcional de novas empresas a partir de 20215, observa-se aumento expressivo entre 2017 e 2021, com crescimento superior a 60% no número total de empresas em comparação com os 15 anos anteriores ao quinquênio (Fig. 1).

Figura 1
EdTechs por ano de fundação (França, 2002-2021).

Dessas empresas, em 2024, 18% desenvolvem tecnologias para o ensino escolar, 18% fazem formação profissional e 65% oferecem produtos para um ou mais segmentos. A EY-Parthenon afirma: “Essa é uma tendência que já existia há dois anos, mas que agora está se tornando mais acentuada. A EdTech está se expandindo cada vez mais em vários segmentos” (EdTech Actu, 2024, n. p. ).

Existe forte concentração na indústria francesa de EdTechs: em 2023, 58% do volume total de vendas do setor foi dominado pelas 20 maiores empresas (EdTech Actu, 2024), das quais 70% voltam-se à formação profissional e continuada. Tal configuração é típica de monopólios ou quase-monopólios que resultam de processos de intensas fusões e aquisições de empresas quando ocorre o incremento de captações de capital financeiro. As grandes empresas adotam práticas industriais tipicamente capitalistas, com incremento da violência concorrencial, práticas de coordenação de preços, reduções de custos de produção e barreiras de entrada contra novos concorrentes.

Quanto ao modelo de negócios, 75% das EdTechs (Fabry, 2022) operam com venda de produtos e serviços para outras empresas – business-to-business (B2B) –, como escolas e órgãos de formação, principais consumidores de produtos relacionados às EdTechs. Não obstante, 47% das EdTechs (Fabry, 2022) operam o modelo de Business-to-Government (B2G), vendendo produtos para escolas ou coletividades territoriais6. Essa é uma importante fonte de receitas para a indústria de EdTechs; corresponde a 40% da oferta nacional e mostra a relevância das transferências de fundos públicos para a acumulação de capitais privados na educação.

A concentração e centralização de capitais e o uso de recursos públicos ao financiamento das operações das EdTechs ajudam a compreender um traço importante da indústria: a elevadíssima concentração regional. A maioria das EdTechs (56%) localizam-se na região Île-de-France (Fabry, 2022). Paris concentra o maior número de incubadoras de startups, redes associativas entre empresas e capitais financeiros para promover a criação e o desenvolvimento de novas empresas. É o caso da Station F, maior incubadora de startups do mundo7 (Marchand, 2017).

Esses são dois condicionantes relevantes para compreender a dinâmica da indústria francesa de tecnologias educacionais. Em 2021, foram aplicados 438 milhões de euros (Fabry, 2022), cerca de R$ 2,6 bilhões, de capitais financeiros nas EdTechs, aproximadamente 33% do faturamento total apurado. Uma taxa elevada, comparada com a média de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) francês de 2020 a 2024 – de aproximadamente 2,8%.

Na União Europeia, a aplicação financeira total na indústria de EdTechs cresceu no período pós-Covid-19: de 785 milhões para 2,5 bilhões de euros (Fabry, 2022) entre 2020 e 2021 (Fig. 2). Entre 2017 e 2021, o valor aproximado de colocações de capital por parte de fundos de capital de risco (venture capital)8 foi de 5,20 bilhões, com uma média de 317 operações anuais por parte dos gestores de bancos e fundos de investimentos.

Figura 2
Aplicações de capital financeiro de Venture Capital nas EdTechs na Europa, em milhões de euros (2017-2021).

Em 2021, ano mais significativo, a França ocupou a segunda posição, atrás do Reino Unido, quando analisada a destinação dos capitais oriundos das referidas colocações financeiras nas EdTechs. O Reino Unido obteve uma captação de 609 milhões de euros e a França, 487 milhões; em seguida, vieram Áustria, com 301 milhões; Alemanha (297 milhões), Dinamarca (144 milhões); e Holanda (111 milhões).

Quanto ao financiamento público, mais de 45% das EdTechs francesas (Fabry, 2022) – quase metade da indústria – receberam algum tipo de subsídio público direto, principalmente na fase de desenvolvimento dos produtos e de ganho de escala das operações. Os financiamentos têm diversas formas: empréstimos subsidiados ou programas específicos como o Programme d’Investissements d’Avenir (PIA)9 ou o Plan d’investissement dans les compétences (PIC)10.

Programas de articulação público-privada, com transferências de fundos públicos à acumulação privada de capitais, como PIA e PIC, com foco na formação continuada e profissional, explicam a distribuição das EdTechs por áreas de atuação. Dados (Fabry, 2022) registram que 27% (n = 136) das empresas de EdTechs atuam na escolarização básica (principalmente K-12); 40% (n = 202), no ensino superior; e 53% (n = 266), na formação profissional. Quando se observa as receitas operacionais, 12% provêm da escolarização básica; 37% do ensino superior e 85% da formação profissional ou continuada. O relatório (Fabry, 2022) aponta como característica da indústria a presença das EdTechs em um ou mais setores simultaneamente, logo, a ação estatal na disponibilização dos fundos públicos é um determinante na dinâmica do setor.

O segmento de escolarização básica é dominado por serviços que propõem tecnologias de aprendizagem fora das salas de aula (49%), mas incluem preparação de aulas, acompanhamento dos estudantes, personalização da experiência de aprendizagem, avaliação de competências e apoio escolar. Para Fabry (2022), o setor ainda teria dificuldades em consolidar-se na escolarização básica (K-12) pelas dificuldades em estabelecer um modelo de negócios rentáveis mais amplo e perene com as escolas.

No ensino superior, têm-se tecnologias de personalização da aprendizagem (42%), avaliação de competências (36%) e apoio à preparação das aulas (32%). São orientadas ao consumo de instituições de ensino públicas e privadas, segmento que corresponde a 85% do total das empresas que produzem EdTechs, sendo 15% do segmento orientado à venda direta de produtos para o consumidor final, como ferramentas de gestão de tempo, tarefas e processos, correção automatizada de textos, transcrições e outros serviços (Fabry, 2022).

O segmento da formação profissional e continuada, mais consolidado, corresponde aos serviços oferecidos, com o uso de plataformas de ensino digitais – software baseado na web – de “competências” e “habilidades” (Fabry, 2022) para jovens recém-formados, desempregados e em reconversão profissional, grupo-alvo de 56% dos serviços oferecidos nesse segmento.

Tal discurso encobre que o processo comumente chamado de “transformações digitais do trabalho” (Fabry, 2022; Educapital, 2018, 2023) oculta as dificuldades estruturais do emprego formal e das profissões diante das sucessivas crises capitalistas (2001, 2007/2008, 2011, 2016 e a crise associada à pandemia). Apela-se à justificação de iniciativas públicas que favoreçam o desenvolvimento de novas competências e habilidades para o mundo do trabalho futuro, que exige constante transformação dos sujeitos, como se o problema da empregabilidade fosse a adequação, individual ou coletiva, dos trabalhadores – e não resultado das contradições capitalistas.

A indústria francesa de EdTechs, especialmente as focadas na certificação de competências, articulou-se em diversos programas públicos, como o Plano de Investimento França 2030. Instituído em 2010 e operacionalizado pelo Banque des Territoires, previu a destinação de 30 milhões de euros (R$ 183 milhões); um de seus eixos estratégicos centrais é “Competências e Profissões do Futuro”. As ações incluem transferências de recursos do fundo público para o financiamento de projetos que envolvam formação profissional e continuada com o objetivo de responder à crise de “obsolescência” das competências e habilidades atuais (Fabry, 2022, p. 19).

Outra fonte de financiamento a esse segmento é o dispositivo existente nas leis trabalhistas francesas, o Compte Personnel de Formation (CPF)11, de 2014. O CPF consiste em um depósito realizado pelos empregadores em nome do trabalhador a ser utilizado para financiar parte de sua formação continuada. As EdTechs direcionaram-se para esse mercado que teve impulso com a pandemia da Covid-19, dado o aumento do desemprego e a instabilidade nas relações de trabalho.

O volume de investimentos, sobretudo de capitais financeiros, evidencia uma determinação do quadro: a concentração e centralização de capitais em um número reduzido de empresas que dominam a maior parte da oferta de serviços e produtos de ensino. Cailleaux (2019, p. 87) indaga: “O que estas pessoas, oriundas da finança e estrangeiras em relação ao ensino, têm a ver com a educação? Isto, por si só, não deveria nos inquietar?”.

A concentração e centralização de capitais é condição básica para a formação de monopólios e oligopólios. Resulta em um controle significativo do mercado por poucas empresas, reduz a concorrência, estabelece barreiras de entrada para novos concorrentes e maximiza o rendimento do capital por mecanismos específicos de transferência e apropriação de valor intercapitalistas (Seki, 2021, 2022, 2023; Johnson, 2023; Amin, 2019; Dutta, 2021).

Nossa análise permite apreender outro elemento de determinação: a ação estatal e sua estreita articulação com a dinâmica capitalista na educação nacional. A transferência de recursos do fundo público para a acumulação de capitais pode ser vista em financiamentos, programas de investimentos e regulação normativa. O caso da Educapital traz importantes evidências sobre essas articulações.

Educapital: o primeiro e maior fundo europeu do setor de EdTechs

No caso francês, o capital financeiro estabeleceu um fundo específico de gestão de venture capital para a indústria de tecnologias educacionais digitais. Embora bastante complexa e avançada, a organização do capital financeiro no Brasil difere (Seki, 2020, 2021; Seki; Venco, 2023). A relação entre os capitais de ensino e os investidores institucionais passa, em geral, por agentes multissetoriais – caso de grandes bancos e fundos –, incluindo BlackRock, Oppenheimer, JPMorgan Chase, Capital Group, General Atlantic, Bank of America, BNP Paribas, BTG Pactual, Keenan Capital, Morgan Stanley, Rockefeller Capital, Credit Suisse, Amundi e Citigroup. A diferença não implica que os capitais financeiros não possuam equipes e departamentos inteiros em suas estruturas internas dedicados à educação no Brasil e na América Latina. Mas na França a constituição de um fundo especializado reduz barreiras para a articulação direta entre gestores do capital de risco e Estado e governo – hipótese a ser verificada12.

O primeiro fundo especializado em tecnologias educacionais na Europa foi fundado por Marie-Christine Levet e Litzie Maarek, em 2017, na França: a Educapital. Levet vem da indústria de tecnologias digitais, uma das pessoas envolvidas no lançamento francês do buscador de internet Lycos, que lhe rendeu, em 1997, cerca de 20 milhões de euros (Triniac, 2023). Em 2007, após adquirir e revender o Club Internet13, integrou a Jaïna Capital14, fundo de investimento especializado em atividades de amorçage (seed capital)15 (Triniac, 2023). Já Maarek é oriunda das divisões de investimentos em tecnologias do Banque Publique d’Investissement (BPI), banco público de investimento francês16 fundado em 2012 com a fusão entre Oséo17, Caisse des Dépôts et Consignations (CDC)Entreprises, Fonds Stratégique d’Investissement (FSI)18 e o FSI Régions (Académie des Technologies, 2021). A sociedade é o casamento da experiência no setor de tecnologias, do investimento financeiro e da participação em linhas de financiamento público. O Banque des Territoires, uma direção do CDC, é o agente operacional de diversas políticas, como o Plano França 2030, e coautor do estudo sobre a indústria de EdTechs assinado pela Ernst & Young Parthenon (Fabry, 2022).

Desde sua criação, em 2017, até julho de 2024, a Educapital tornou-se gestora de dois fundos de investimento. O primeiro, Educapital I, mobilizou aproximadamente 47 milhões de euros, aplicados em cerca de 20 empresas nos três principais segmentos (educação escolar, ensino superior e formação profissional e continuada). Segundo Levet, seu objetivo seria ocupar-se do “capital humano em todos os períodos da vida de um indivíduo” (Triniac, 2023, n.p.). O Educapital II, de 2023, levantou 150 milhões de euros e possui 35 empresas sob sua gestão. Tem a particularidade de, além de aplicar capitais no “futuro da educação”, estabelecer um segundo eixo de intervenção, “futuro do trabalho”, cujo objetivo é obter participação em plataformas digitais e empresas de tecnologias orientadas à educação corporativa e profissional, gestão de recursos humanos e “bem-estar” no trabalho (Educapital, 2024).

Em seu manifesto de fundação, a Educapital afirma que “a educação deve se adaptar ao mundo digital, 65% dos estudantes das escolas primárias terão trabalhos que ainda não foram inventados” (Educapital, 2017, p. 1). O discurso se apoia em conceitos expressos nos documentos: diante da aceleração das mudanças tecnológicas e da obsolescência das competências, a aprendizagem fundamental não é mais suficiente, é necessário aprender a aprender e sobretudo aprender ao longo de toda a vida (Educapital, 2018, 2024).

Tais concepções pretendem substituir a ideia de educação e seu sentido humanizador pela de “aprendizagens” e “formações”, correspondendo à concepção de “aprendizagem ao longo da vida” (Rodrigues, 2008) difundida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)19, processo em curso na França e na maioria dos países capitalistas desde pelo menos os anos 1960 (Tanguy, 2005).

Para Rodrigues (2008), a ideia de “aprendizagem ao longo da vida” surgiu como resposta ideológica à suposta “crise mundial da educação” causada pelo aumento populacional e crescente demanda por acesso aos sistemas escolares. Nos anos 1970, foi vista como antídoto à “crise social” e à “desumanização” decorrentes do crescimento urbano e da concentração de capitais. Nos anos 1980 e 1990, a abordagem foi renovada pela Unesco e pelo Banco Mundial20 e direcionada a reformas educacionais na periferia do capitalismo, como na América Latina, em resposta aos ciclos de crise que afligiam o continente. A ênfase recaiu sobre a crítica às abordagens educacionais tradicionais, à rigidez escolar e à necessidade de adaptação às mudanças tecnológicas e ao “novo” mundo do trabalho (Rodrigues, 2008).

A mobilização de estratégias ideológicas – repetidas à exaustão por aparelhos de hegemonia, capitais, governo e órgãos do Estado – favorece a redução do horizonte de emancipação do trabalho, nubla as determinações do desemprego e das desigualdades sociais, além de justificar socialmente as articulações entre Estado e capital. Tenta-se mudar a disposição social diante dos abundantes subsídios, financiamentos públicos, gastos tributários, das compras governamentais, mudanças regulatórias e reformas educacionais, como se as ações fossem apenas parte de um processo de readequação da educação às novas demandas do trabalho. Subjacente está a ideia de que os interesses da maioria dos trabalhadores, dispostos a adentrar no “novo mundo” do trabalho e a participar das “mudanças tecnológicas”, convergiriam com os interesses dos capitais.

À medida que capitais assumem a feição de sujeitos indiferenciados em relação à ação pública e apresentam-se indistintamente como “parceiros” na promoção de “aprendizagens”, reduzem-se os estranhamentos frente às imbricações público-privadas, mesmo num contexto de intensa austeridade fiscal. O lançamento da Educapital contou com a presença de Mounir Mahjoubi, ex-presidente do Conselho Nacional da Economia Digital (2016-2017) e, à época, secretário de estado da economia digital (2017-2019); e do então ministro da educação nacional, Jean-Michel Blanquer (2017-2022). A Educapital regozijou-se:

“Inauguramos a Educapital em uma antiga escola que foi convertida em uma incubadora [...] foi um sinal muito bom ter um Ministro da Educação presente e fazer a abertura de um fundo para investir no setor educacional

(Cailleaux, 2020, n. p., grifo nosso).

A participação de ministros no ato de fundação de uma gestora de capitais financeiros especializados na educação transfere a legitimidade do governo e do Estado para o conteúdo (produtos das EdTechs e suas configurações ideológicas) e para a forma social desse conteúdo. As tecnologias digitais seriam elementos-chave para a verdadeira “transformação” da escola, e seria legítimo que o capital financeiro se posicionasse como principal protagonista na orquestração dos rumos da educação nacional.

O ministro Blanquer felicitou a Educapital pelo projeto “formidável”, manifestou a expectativa de que “outros fundos de EdTechs francesas [pudessem] surgir em breve” (Kablé, 2017, n. p.) e declarou que seria papel dos envolvidos “incentivar o setor de EdTech e seu desenvolvimento em todo o mundo, superando a divisão público/privado” (Cailleaux, 2020, n.p., grifo nosso). Sua presença foi além de convidado de honra. Desde sua chegada ao governo, Blanquer provocou inquietações e conflitos com os professores ao promover, entre outras reformas, mudanças pedagógicas na política nacional de alfabetização. Ao aproximar o Ministério de movimentos como o “Agir pela Educação” (Collège de France, 2022), reorientou a alfabetização para a “renovação” do método silábico, tornando-o mais puro e padronizado, baseado em teorias cognitivistas e na neurociência. O Ministério publicou o “Guia Laranja”, cartilha prescritiva para a alfabetização (France, 2019), e suspendeu as cartilhas e orientações que não estivessem em conformidade; reestruturou os cursos de formação continuada obrigatórios para professores. Na França, o sistema nacional de educação pública é centralizado, constituído por uma única rede, e o Ministério desempenha papel diretivo e administrador (France, s.d.b; Lelièvre, 2021).

O Ministério adquiriu, em novembro de 2019, o licenciamento de produtos de 6 startups de EdTechs, num contrato de aproximadamente 12 milhões de euros (Serret, 2020). Entre as empresas estava a Lalilo, francesa, que oferece plataforma lúdica para o ensino de francês a crianças em idade de alfabetização. As empresas puderam utilizar os emblemas e signos do Ministério junto às suas marcas nos sites e documentos e obtiveram a autorização do Ministério para realizar atividades de pesquisa e desenvolvimento de produtos (R&D) nas escolas públicas – que depois foram licenciados pelo governo. A Lalilo apresentou seis projetos de R&D, sendo três de língua francesa e três de matemática (Serret, 2020; Educapital, 2019). Assim, as empresas poderiam se “aliar” aos professores para “lutar” contra o atraso escolar no país, principalmente ao oferecer oportunidades para as populações mais pobres (Serret, 2020; Educapital, 2019). Em 2019, havia recebido a participação de três grandes fundos de capital financeiro, entre os quais a Educapital, com um aporte total de 5 milhões de euros, cerca de R$ 30,2 milhões (Serret, 2020; Educapital, 2019). Durante a pandemia do Sars-CoV-2, a empresa apresentou um crescimento expressivo, alcançando 40 mil professores e 260 mil estudantes. Foi particularmente favorecida pela preexistência do contrato com o Ministério da Educação e por estar em sua lista das 69 soluções educacionais digitais e 34 empresas digitais selecionadas pelo governo para professores e alunos pelo dispositivo Territoires Numériques Éducatifs (TNE), do France 2030 (France, 2022; Serret, 2020).

Com os recursos investidos pelos capitais financeiros, entre os quais a Educapital, de 2019 até 2021, a Lalilo expandiu suas atividades internacionais e focou sua expansão nos Estados Unidos. Em 2019, possuía um fluxo de aproximadamente 119 mil usuários mensais e, em 2023, passou a 700 mil – um aumento de aproximadamente 600%. A estratégia de expansão para os Estados Unidos pode ser considerada bem-sucedida, com 50% dos estudantes daquele país utilizando a plataforma em 2023 (Educapital, 2023). Em 2021, o grupo estadunidense Renaissance Learning comprou a Lalilo21. As evidências indicam que a articulação entre a Educapital e o Ministério da Educação Nacional teve papel relevante na rentabilização da empresa e sua venda para o grupo estadunidense: desde o direcionamento de seus produtos em linha com a política de alfabetização neocognitivista até o desenvolvimento e a aquisição de seus produtos de forma articulada às escolas públicas, além das medidas adotadas pelo Ministério no enfrentamento da pandemia. As atividades do fundo de venture capital francês seguem em pleno desenvolvimento e apoiadas pelo governo e grande mídia proprietária, que não cessam de oferecer espaço para destacar o Educapital como um “fundo de transformação social” (Serret, 2020; Cailleux, 2019, 2020).

Considerações finais

A análise da indústria francesa de EdTechs permite compreender como dois elementos de determinação se impõem na configuração de sua dinâmica: 1. A estreita articulação entre Estado e capital no direcionamento de recursos do fundo público, financiamentos, subsídios, gastos tributários, direções normativas e reformas educacionais; e 2. As determinações do capital financeiro como elemento estruturante da indústria, das quais resultam, entre outros aspectos, o caráter acentuado de concentração e centralização de capitais e a formação de grandes empresas do setor que atuam em situação de quase-monopólio.

Na França, a existência de gestoras de fundos especializadas no mercado de tecnologias educacionais digitais parece ter uma relação significativa para explicar o alto grau de intimidade entre elas e órgãos de governo e de Estado. Também confere legitimidade para influenciar políticas e reformas educacionais ao ocupar com frequência os principais programas nacionais de rádio e televisão para tratar de temas relevantes no debate público dessas áreas. Esses fatores parecem explicar as razões pelas quais a maioria das EdTechs na França está aglutinada no segmento de educação profissional e continuada, no qual existem vultosos recursos do fundo público, ainda que o contexto nacional esteja marcado, desde 2011, pela crise da zona do euro, com políticas de austeridade fiscal e recessão de direitos sociais.

Notas

  • 1
    Subsidiária da Ernst & Young (EY), criada em 2014 com a fusão da EY e o The Parthenon. Possui 9 mil profissionais em 120 países, se especializou em capital de risco e oferece suporte para fusões e aquisições.
  • 2
    A EdTech France, de 2018, reúne os principais atores do ecossistema de tecnologia educacional na França, com mais de 480 empresas associadas.
  • 3
    O Banque des Territoires, braço da Caisse des Dépôts et Consignations, de 2018, consolida as ofertas da Caisse des Dépôts e suas subsidiárias para atender projetos estratégicos para o desenvolvimento territorial na França.
  • 4
    Todos os câmbios são nominais e datados em julho de 2024.
  • 5
    Ano em que foram fundadas 34 empresas, em comparação a 55 no ano anterior e à média de 43,4 no quinquênio 2017-2021 (Fabry, 2022).
  • 6
    As coletividades territoriais são entidades administrativas da França previstas na Constituição. As principais são: municípios (ou comunas), departamentos, regiões, comunidades de estatuto especial e comunidades ultramarinas. Na França hexagonal, existem 18 regiões, 101 departamentos e 36.681 comunas.
  • 7
    O investimento na criação da Station F foi superior a 250 milhões de euros, feito por Xavier Niel, bilionário francês e fundador da Free Mobile e coproprietário do Le Monde. Fundou a l’École 42, Edtech para formação em programação, sem contratação de professores. Com mais de 51 mil metros quadrados e 600 salas comerciais, a Station F abriga mais de mil startups e cerca de 30 programas de aceleração em parceria com grandes empresas como Microsoft, Facebook, Google e Apple. Entre as startups, estão empresas de EdTechs como Epopia, Padam Kids, Prof en Poche e Yokimi.
  • 8
    O termo geralmente se refere a operações de alto risco. Os investimentos costumam se direcionar a empresas emergentes, com perspectiva de rentabilização de seus negócios e venda desses ativos (Seki, 2020, 2021).
  • 9
    O Programme d’Investissements d’Avenir (PIA) foi lançado pelo governo francês em 2010, com o objetivo formal de financiar projetos inovadores para o crescimento econômico, com um orçamento de 56 bilhões de euros (Bpifrance, 2024, n. p.).
  • 10
    O Plan d’Investissement dans les compétences (PIC) é um dos desdobramentos do Grand plan d’investissement 2018-2022, e teria por objetivo “mudar o foco da ação pública em termos de acesso ao treinamento vocacional e ao emprego, investindo ao longo de vários anos e concentrando-se mais nas necessidades locais de habilidades” (France, s. d., n. p.). O plano prevê 15 bilhões de euros e a formação de 2 milhões de trabalhadores, com prioridade para os desempregados e os jovens afastados do mercado de trabalho.
  • 11
    Mecanismo instituído nas modificações da formação profissional francesa com base no ideário de aprendizagem ao longo da vida (Tanguy, 2005). Os créditos são transferidos entre 30 de janeiro e 15 de junho do ano seguinte e, desde 2019, são feitos em dinheiro em vez de horas, beneficiando o mercado de formações continuadas.
  • 12
    A articulação direta de diretores e gerentes de alto nível de fundos, como BlackRock ou Morgan Stanley, no lineamento de políticas do Ministério da Educação, tenderia a causar maior resistência à adoção e implementação de políticas, especialmente no contexto pós-crise de 2007/2008, quando grandes bancos e fundos estiveram no epicentro do processo nos Estados Unidos.
  • 13
    Club Internet é dos mais antigos provedores de acesso à internet, criado em 1995, pela Lagardère SCA. Em 2000, tornou-se subsidiária da T-Online, subsidiária da Deutsche Telekom.
  • 14
    Nessa primeira experiência em capital de risco, aplicou em vinte empresas, incluindo Devialet, OuiCar e La Ruche Qui Dit Oui.
  • 15
    São formas de colocação de capitais em empresas nos primeiros estágios de desenvolvimento, como as startups, nas quais detentores do capital realizam aportes e participam, em diferentes graus, da facilitação do desenvolvimento da empresa e de sua macrogestão. A operação é considerada de alto risco financeiro, pois não se trata de colocações em empresas consolidadas, estando sujeita ao risco de inviabilidade do negócio.
  • 16
    O Estado francês é acionista em 50% do BPI. Os outros 50% pertencem à Caisse des Dépôts et Consignations (CDC), instituição financeira pública criada em 1816. O diretor é nomeado por decreto do Conselho de Ministros e aprovado pelo Presidente da República.
  • 17
    Oséo é uma empresa de direito privado com missão especial vinculada ao serviço público, segundo o Código Civil da França. Objetiva promover financiamentos para pequenas e médias empresas em setores considerados estratégicos, como inovação, desenvolvimento internacional e startups.
  • 18
    O FSI é um fundo soberano francês, de 2008. Em 3 de julho de 2013, integrou o BPI (SÉNAT, 2009).
  • 19
    A Unesco, fundada em 1945 no final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ligava-se a um programa de assistência, habilitação, reabilitação e reconstrução dos países devastados pela guerra. Tinha a pretensão de ser agência de influência global para forjar, sob hegemonia americana, os princípios de reformas educacionais nos países capitalistas.
  • 20
    No documento Learning for All: Investing in People’s Knowledge and Skills to Promote Development, estratégia educacional 2020 do Banco Mundial (World Bank, 2020, p. 4), a aprendizagem ao longo da vida é princípio. “A aprendizagem precisa ser incentivada desde cedo e de forma contínua, tanto dentro quanto fora do sistema escolar formal.”
  • 21
    O valor da transação não foi divulgado. Estima-se uma rentabilização de pelo menos 30% para a Educapital, com base na média de crescimento do portfólio de suas empresas (Educapital, 2023).
  • Dossiê organizado por:
  • Financiamento
    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
    Processos n.º 2023/07811-6 e 2021/01249-9

Agradecimentos

Agradecemos à Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, ao Centre de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris e à Bibliothèque Sainte-Geneviève pelas condições que possibilitaram o desenvolvimento da pesquisa; e às profas. dras. Olinda Evangelista e Selma Venco pela leitura e comentários.

Disponibilidade de dados de pesquisa

Dados serão fornecidos mediante solicitação.

Referências

Editado por

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Mar 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2024
  • Aceito
    30 Dez 2024
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