Open-access EDUCAÇÃO ESTÉTICA: PRINCÍPIOS E FUNDAMENTOS A PARTIR DAS ELABORAÇÕES DE L. S. VIGOTKSI

AESTHETIC EDUCATION: PRINCIPLES AND FOUNDATIONS BASED ON THE WORK OF L. S. VIGOTSKI

RESUMO

O artigo problematiza a Educação Estética em Vigotski a partir de seus escritos sobre arte e criação. O encadeamento de ideias do texto sinaliza que a Educação Estética tem na arte seu principal objeto, envolvendo um conhecimento diferente do técnico-científico, caracterizado pelo trabalho com a técnica, a criação e a vivência estética – radicada na emoção e na imaginação. Assumir essa posição-síntese nos afasta de uma Educação Estética reduzida à instrumentalização, à moralização e à mera fruição. Tal educação deve caminhar na direção do trabalho pedagógico como ato criador.

Palavras-chave Vigotski; Arte; Educação estética

ABSTRACT

The article addresses Aesthetic Education in Vygotsky’s writings on art and creation. The chain of ideas emphasizes that Aesthetic Education has art as its object, characterized by working with technique, creation and aesthetic experience – rooted in emotion and imagination. This synthesis moves us away from an Aesthetic Education reduced to instrumentalisation, moralisation and fruition. For us, aesthetic education must move towards the idea that pedagogical work is a creative act.

Keywords Vygotsky; Art; Aesthetic education

Introdução

Neste artigo, propomos abordar o problema da Educação Estética a partir das contribuições de L.S. Vigotski (1896-1934), tendo como pontos de ancoragem os textos que o autor escreveu sobre arte e criação no desenvolvimento humano. Nosso interesse consiste em trazer contribuições ao campo da Educação Estética tendo em vista seus fundamentos, suas bases, enfim, sua epistemologia, na direção de uma proposição-síntese. Para tanto, dividimos nosso argumento teórico em duas partes:

  1. As críticas e proposições vigotskianas, no capítulo sobre Educação Estética, encontradas no livro “Psicologia Pedagógica” (2003) e;

  2. Os fundamentos epistemológicos sobre arte, vivência estética e atividade criadora que conseguimos entrever a partir da leitura dos seguintes livros: “Psicologia da Arte” (1999) e “Imaginação e criação na infância” (2009).

A articulação desses três textos é, para nós, fundamental para se tomar de forma mais aprofundada a problemática da Educação Estética tendo respeitadas suas condições de produção, campo de interlocução e contexto. Nesse sentido, cabe pontuar que o capítulo do autor sobre a Educação Estética, embora tenha sido publicado no livro de 1926, foi escrito antes, sendo totalmente finalizado em 1924 (VAN der VEER, 2003, p. 5) em interlocução com autores da reactologia – corrente teórica vigente em sua época. Está voltado para educadores e apresenta um certo conteúdo programático sobre vários temas educacionais, entre eles, a Educação Estética. Sua produção corresponde à época de elaboração de “Psicologia da Arte”, apesar de objetivos diferentes. “Psicologia da Arte”, por sua vez, é um texto mais denso e com objetivos espistemológicos para o campo.

Em uma leitura rápida, não é possível ver a relação entre os dois textos, porém o estudo comparativo permite identificar que em “Psicologia Pedagógica”, mais especificamente no capítulo “Educação Estética”, estão os elementos embrionários de “Psicologia da Arte”, no qual temas e expressões são retomados de forma pormenorizada. Se em “Psicologia Pedagógica” o enfoque educacional está mais evidente, em “Psicologia da Arte” as bases epistemológicas do problema da arte – conhecimento, gênese da vivência estética e a atividade criadora – estão detalhadamente apresentadas em uma abordagem mais bem fundamentada no materialismo histórico-dialético.

Sabemos que os apontamentos vigotskianos sobre Educação Estética não são conclusivos. O autor abre portas, mas não propõe uma ideia coesa acerca da temática. Por isso, nosso esforço é de construir – a partir do detalhamento de princípios conceituais – uma proposição-síntese do que poderia vir a ser, então, uma Educação Estética a partir deste referencial teórico.

Educação Estética em Vigotski: do problema da moral, do prazer à (re)ação estética

No capítulo “Educação Estética”, Vigotski (1926/2003) afirmava que o problema relacionado à natureza, ao significado e aos métodos de uma Educação Estética ainda não haviam sido resolvidos de forma definitiva à época – nem pela ciência psicológica e nem pela pedagogia teórica. Parte dessa sua afirmativa baseava-se na divergência quanto à importância do sentido educativo das vivências estéticas. Enquanto uma corrente de autores negava o valor do sentido estético, outra se utilizava das emoções estéticas como um recurso pedagógico para resolver problemas da educação em geral, mas alheios à estética. Havia, ainda, os que viam a estética somente com uma finalidade de satisfação e prazer. O autor discute, então, alguns temas polêmicos que considerava importantes para sair deste impasse: o problema da moral; a redução da Educação Estética ao mero prazer contemplativo; a instrumentalização estética para fins pedagógicos; a (re)ação estética; e a Educação Estética, a atividade e a potência criadora

Sobre o problema da moral na Educação Estética

O primeiro tema polêmico se refere à utilização de um suposto efeito moral produzido na criança e no jovem pela obra de arte. Ou seja: se há algo bom ou ruim que a arte ensina, a criança deveria tomá-la como uma certa lição de vida. Para Vigotski (2003), essa forma de apreensão da vivência estética acarreta uma tediosa moral convencional com falsas lições e prenhe de insinceridades.

O autor rejeita a ideia de que as vivências estéticas têm relação direta com as morais, e se volta ao que acontece em fábulas como “O corvo e a raposa”, em que as crianças tomavam a raposa como sendo um animal esperto e perspicaz, enquanto a gralha era tida como tola – ao contrário do que se esperava. Ele também advertia que tal forma de educação partia da premissa de que a criança absorveria da arte um princípio moral único. Contrário a isso, ele argumentava que não se pode ter certeza da consequência moral que a obra de arte produz sobre a criança pelo fato de haver uma multiplicidade de interpretações e conclusões morais possíveis na vivência estética.

A pedagogia moralizante (ou moralizadora) é mortífera, afirma Vigotski (2003), pois decepa a possibilidade de percepção e de atitude estética com relação às coisas. “Subentende-se que, com esse critério, a obra de arte fica desprovida de seu valor independente, transforma-se em uma espécie de ilustração de uma tese moral geral [...], e a obra de arte fica fora da percepção do aluno” (Vigotski, 2003, p. 227). Ocorre, então, um desvio de função educacional – resultado de uma regra pedagógica – que produz uma certa atrofia da percepção estética; a atenção do aluno se desvincula do sentido da obra e volta-se ao significado moral.

Arte e a realidade no ensino escolar: uma Educação Estética ilustrativa

Nessa linha, Vigotski também se debruçou sobre a relação entre a arte e o estudo da realidade no ensino escolar. Na abordagem vigente à época, a estética era utilizada como modo de ilustrar ou ampliar os conhecimentos dos alunos sobre conteúdos diversos. Deriva-se, daí, uma certa subtração do sentido estético para fins didáticos diretamente ligados a um tipo de educação conservadora. A instrumentalização da arte, nesse caso, parte da premissa (equivocada) de que a arte copia a vida e serve de exemplo geral da realidade social.

Em Vigotski (2003, 1999), a relação arte e vida não é direta, mas muito mais complexa: “na arte, a realidade está sempre tão transformada que não é possível fazer uma transferência direta do significado dos fenômenos da arte para os da vida (Vigotski, 2003, p. 228)”. Para explicar a complexidade, ele afirma que “a verdade artística e a verdade da realidade […] são encontradas em relações sumamente complexas” (Vigotski, 2003, p. 228).

Essa breve colocação de Vigotski sobre o problema da verdade artística e da verdade da realidade é, na nossa opinião, de extrema relevância. E para evitar incoerências epistemológicas da teoria histórico-cultural, tal colocação não deveria ser interpretada, a nosso ver, a partir de um viés positivista, mas numa perspectiva dialética. Somente em “Psicologia da Arte” a questão da verdade e, mais especificamente, do conhecimento estético, é abordada de forma mais aprofundada, como será analisado na segunda parte do texto.

A Educação Estética com o fim em si mesma: o prazer

Outro aspecto importante apontado por Vigotski (2003) é o de se considerar a arte como um objetivo em si mesmo, como um fim para obtenção do sentimento agradável e do prazer na fruição da obra. Aqui, tem-se reduzido “todo o significado das vivências estéticas ao sentimento imediato de gozo e alegria que elas despertam na criança” (Vigotski, 2003, p. 228).

Para o autor, a pedagogia tradicional, ao cultivar a estética na educação como mera fonte de prazer, corre o risco de encontrar uma séria limitação na sensação prazerosa evocada na/pela vivência estética: a concorrência com outras sensações ou emoções mais fortes. Isto ocorre porque: “a particularidade da idade infantil reside justamente no fato de que a força direta de uma vivência real concreta é muito mais significativa do que a força de uma emoção imaginária” (Vigotski, 2003, p. 229). A contundente afirmação de Vigotski nos leva a refletir sobre uma aparente contradição: se a vivência concreta é mais forte do que a emoção imaginária ou a vivência estética, a arte não teria sentido para a criança. Ou teria um sentido bem mais restrito.

Analisada de forma ingênua, essa afirmação poderia nos levar a erros interpretativos sobre os conceitos vigotskianos; uma leitura teleológica de sua teoria. Do nosso ponto de vista, essa questão precisaria ser analisada com base nas elaborações do autor sobre a intrincada relação entre imaginação e emoção (o enlace emocional) na ontogênese articuladas às atividades criadoras que já surgem na infância; e com base em sua compreensão sobre as emoções como processos complexos (Vigotski, 2004, 2009).

A ideia de (re)ação estética em Vigotski

Reduzir o efeito estético ao prazer coloca Vigotski diante de um outro problema: a ideia de que a percepção estética é uma vivência meramente passiva. Nesse caso, ele comenta que a fruição de uma obra de arte, de um quadro ou de uma música, por exemplo, consistiria tão somente em proporcionar sensações agradáveis a nossos olhos e ouvidos. Ele se contrapõe: a obra de arte é percebida por meio de uma atividade complexa na qual “o momento da percepção sensorial da forma, aquele trabalho desempenhado pelo olho e o ouvido constitui apenas o momento primeiro e inicial da vivência estética” (Vigotski, 2003, p. 333). Nessas bases, a transformação do objeto em obra de arte não ocorre de forma puramente espontânea e aleatória, mas depende também do funcionamento psíquico de quem a contempla e das condições concretas da ação contemplativa. Por isso, a contemplação não tem como ser passiva, mas (re)ativa e envolvendo duplamente o receptor que, ao contemplar a obra de arte, produz um sentido sobre ela.

No livro “Psicologia Pedagógica”, Vigotski (2003) ressalta que a vivência estética implica três elementos: a) a excitação – que implica os processos perceptivos da forma e é o ponto de partida da interação com o artefato estético –; b) a elaboração – que se refere ao processamento das impressões externas contidas na obra; sobre isso, ele explica que um quadro nada mais é do que uma tela com pinturas aplicadas, e transformá-lo em uma forma de representação envolve um processo psíquico complexo que torna a tela pintada em algo que tem sentido àquele que a contempla –; c) a resposta – que se refere a uma complexa segunda síntese criativa que envolve a associação de ideias, as relações entre as imagens e a elaboração de uma síntese dos elementos dispersos no todo artístico.

Os termos excitação, elaboração e resposta nos remetem inexoravelmente ao dicionário reactologista. Vigotski toma esse campo de interlocução – corrente teórica da psicologia majoritária em sua época –, mas não se restringe a ele. Sua elaboração sobre a reação estética vai muito além da mera descrição dos componentes supracitados, trazendo elementos inovadores para se pensar a Educação Estética como um todo. Para tanto, ele constrói seu argumento pela negação, partindo, de certa forma, daquilo que a reação estética não é. Assim, o objetivo final da reação estética não é a repetição da reação real ou o contágio do interlocutor com o sentimento original – Vigotski se mostra contrário tanto à teoria do contágio de Tolstói quanto a da arte como socialização dos sentimentos, de Bukhárin. Para ele, a característica psicológica da reação estética não está na multiplicação, mas na sua superação, na transformação de sentimentos – como no milagre das bodas em Caná. A arte promove a superação do sentimento, envolvendo um processo qualitativo ímpar que demanda mais do psiquismo do que apenas uma recepção passiva e de teor quantitativo. A arte não complementa a vida, mas a supera na e pela catarse que será melhor problematizada em “Psicologia da Arte”.

A Educação Estética e a potência criadora

Em Vigotski (2003, p. 236, grifo nosso), o campo da Educação Estética abarcava três tarefas: “a educação da criatividade infantil, do ensino profissional de certas habilidades técnicas da arte e da educação de seu juízo estético, isto é, da aptidão para perceber e vivenciar a obra de arte.” Essa discussão, conforme veremos ao longo deste tópico, nos permite enfatizar a potência criadora da criança articulada à sua vivência estética.

Com relação ao problema da criação infantil, Vigotski traz o exemplo do desenho e enfatiza sua relevância pedagógica ao questionar o valor estético independente. Para ele, a importância do desenho reside no fato de que, ao produzi-lo, a criança aprende a “dominar o sistema de suas vivências, a vencê-las e superá-las” e “ensina a psique a se elevar”; de modo que “a criança que desenha um cão triunfa, supera-se e eleva-se acima de suas vivências diretas.” (Vigotski, 2003, p. 236).

Assim sendo, o educador que corrige a produção infantil, em função da comparação com um ideal de desenho adulto, pode produzir uma desorganização do psiquismo da criança. Para Vigotski (2003, p. 236), “quando as linhas infantis são modificadas e corrigidas, talvez introduzamos uma ordem rigorosa no desenho, mas estaremos provocando confusão e perturbação na psique infantil”. É crucial, portanto, dar liberdade para que a criança crie sem censura, admitindo sua originalidade e suas particularidades.

Sobre o ensino profissionalizante da arte, Vigotski discute os riscos e prejuízos de ignorar os interesses da criança. Tal ensino, da técnica relativa às diferentes manifestações e linguagens artísticas – como problema educacional –, deve ser introduzido com certos limites, reduzido ao mínimo e, principalmente, combinando com as duas outras linhas da Educação Estética: “primeiro, com a criatividade própria da criança; segundo, com a cultura das suas percepções artísticas” (Vigotski, 2003, p. 238).

No que se refere à educação das percepções, o autor ressalta que elas deveriam se alargar e se enriquecer com as vivências estéticas. Afinal, o sentimento estético, assim como outros aspectos educacionais, deve ser interesse da educação, respeitando seus métodos peculiares. Nessa linha, ele enfatiza o papel da Educação Estética no sistema de formação geral tendo em vista a incorporação da criança à experiência estética da humanidade.

A Educação Estética também deve se encarregar do talento e das potencialidades humanas: “A possibilidade criativa que cada um de nós possui, de se transformar em co-partícipes de Shakespeare em suas tragédias e de Beethoven em suas sinfonias, é o indicador mais claro de que em cada um de nós existe potencialmente tanto um Shakespeare quanto um Beethoven” (Vigotski, 2003, p. 244). Em Vigotski (2009), tais potencialidades criadoras, que podem se desdobrar em vivências catárticas, não são dons inatos, dádivas pertencentes a um indivíduo, mas resultantes também dos produtos da criação coletiva derivada da experiência social e histórica da humanidade.

Em “Educação Estética” (Vigotski, 2003), entretanto, a palavra catarse aparece somente duas vezes, sem grandes aprofundamentos, ainda muito vinculada às discussões no campo da reactologia. Apenas em “Psicologia da Arte”, quando podemos acompanhar uma discussão mais adensada de Vigotski, é possível depreender o que ele já estava defendendo como elemento importante da Educação Estética: o vivenciamento catártico.

Em síntese, das elaborações de Vigotski sobre arte, estética e catarse, ao menos três questões importantes emergem para se pensar os fundamentos e princípios da Educação Estética: a primeira diz respeito a sua especificidade gnosiológica; a segunda se refere às impressões causadas pelas obras de arte no processo catártico e a vivência peculiar da catarse. Por fim, a centralidade da atividade criadora. Todos esses elementos, a seguir, serão aprofundados em diálogo com “Psicologia da Arte” e “Imaginação e criação na infância”.

Princípios e fundamentos da Educação Estética: conhecimento na/da arte, catarse e atividade criadora

No livro “Psicologia da Arte”, Vigotski (1999) critica as perspectivas metodológicas que tratam da questão estética sob pontos de vistas epistemológicos diametralmente opostos e irreconciliáveis: uma estética de cima para baixo, que parte de formulações metafísicas; e uma outra estética de baixo para cima que a reduz aos experimentos elementares e insuficientes da psicologia científica. Ao apontar esse dualismo no tratamento da questão, Vigotski coloca a reação estética – provocada pela obra de arte – no centro do problema em termos da contradição entre conteúdo-forma: a catarse. Ao fazer isso, ele propõe uma psicologia da arte que se fundamenta na totalidade dialética entre o social e o individual, ao contrário das teorias vigentes.

Para Vigotski (1999), a arte desempenha um papel essencial na vida social e afeta radicalmente as dinâmicas que emergem nas práticas sociais, suas formas ideológicas e, portanto, a própria constituição subjetiva. A arte, então, está umbilicalmente interconectada com outros aspectos da vida social: a política, a economia, a religião e a educação. Isso requer considerá-la no contexto histórico em que ela é produzida; influenciada pelos eventos, valores e condições materiais de uma época.

Na referida obra, Vigotski segue um encadeamento de ideias que parte das questões epistemológicas mais gerais e fundamentais do objeto (a arte) até as mais específicas. Ele desconstrói as diferentes abordagens – suas limitações teórico-metodológicas – e propõe uma superação epistemológica focalizando dialeticamente o problema na arte e no psiquismo na síntese dialética social-individual. O texto permite ao autor encontrar na relação conteúdo-forma (portanto, na catarse) a unidade de análise da obra de arte. Deriva-se dessa conclusão uma série de contribuições que se desdobram na direção da recepção estética e em seu papel no psiquismo, como veremos.

Método e conhecimento na/da arte

Para Vigotski, a arte é um tipo de conhecimento que obedece às leis distintas daquelas desenvolvidas pelo conhecimento técnico-científico. Ela, portanto, mobiliza peculiarmente os modos de conhecer, pensar e sentir o mundo. Abordada brevemente na primeira parte do texto, tal mobilização se vincula a um problema de natureza gnosiológica, pois a arte é uma forma de produzir um determinado tipo de conhecimento sobre a realidade, interferindo nela e transformando-a. O seu método de elaboração sobre o real (conhecimento) difere, portanto, daquele que encontramos na produção científica, mas não o contradiz como espaço de produção de um tipo de verdade sobre o real. Essa diferença não pode ser ignorada se pretendemos entendê-la na dinamicidade do fenômeno social e psicológico que lhe subjaz.

Para Vigotski (1999), se a obra de arte produz um tipo de conhecimento, ela – como um objeto a ser conhecido – possui uma episteme própria que não se opõe cartesianamente ao modo de produção de conhecimento técnico-científico, mas também não se reduz a ele. Se isso ocorresse, ela deveria ser considerada tão irrelevante quanto uma teoria científica falsa e abandonada como a antiga teoria da indivisibilidade do átomo. No entanto, a irrelevância geraria a exclusão de grande parte da arte universal, tornando-a matéria inerte, como ele adverte.

O autor defende que existe, sim, um tipo de conhecimento específico que envolve a obra de arte. E esse tipo de conhecimento está intrinsecamente relacionado à centralidade das emoções (e, como veremos, da imaginação) tanto na produção (criação da obra de arte) como em seu impacto no sujeito que vivencia a arte (recepção estética). Sem a compreensão desses dois aspectos dialeticamente articulados (e o papel das emoções) não é possível entender a especificidade do conhecimento da arte, como está destacado na afirmação de Vigotski (1999, p. 307):

A verdadeira natureza da arte sempre implica algo que transforma, que supera o sentimento comum, e aquele mesmo medo, aquela mesma dor, aquela mesma inquietação, quando suscitadas pela arte, implicam o algo a mais acima daquilo que nelas está contido.

Mas se é fato que a obra de arte tem nas emoções seu pilar, sua espinha dorsal, é também verdadeiro que todo o tipo de conhecimento envolve as emoções de formas distintas – inclusive o conhecimento científico e filosófico. Assim, ao enfatizar que “em toda criação humana há emoções”, Vigotski nos dá uma pista interessante: o conhecimento técnico-científico mobiliza processos afetivos e criadores e, por isso, não podem ser reduzidos à racionalização. O contrário também nos parece importante ressaltar: todo o conhecimento artístico envolve um certo nível de conhecimento técnico-científico, como ele exemplifica na criação da lírica.

Podemos, então, depreender que as formas específicas de conhecimento produzidas pela arte podem ser acessadas, desde a teoria vigotskiana, por meio daquelas formas de expressão, (re)produção de ideias, emoções e criações que só podem ser experimentadas pelo contato com a obra de arte e que superam nossas experiências ordinárias e cotidianas.

Mas onde começa a arte? Vigotski indaga. “A arte começa onde começa o mínimo, e isto equivale a dizer que a arte começa onde começa a forma”, ele responde (Vigotski, 1999, p. 42).

A relação conteúdo e forma: a catarse vigostkiana

A extensão argumentativa do problema da forma coloca Vigotski diante dos limites do formalismo. O autor critica essa abordagem pela excessiva ênfase à forma e irrelevância do conteúdo. Aqui, a obra de arte obedece às leis puramente formais e o sentimento é um detalhe “da correia da forma artística” (Vigotski, 1999, p. 63).

Vigotski não nega a importância dos formalistas, mas entende que o cerne substancial da arte reside no fato de que os processos envolvidos em sua criação e emprego não são possíveis de serem reduzidos à experiência racional – até porque, em sua perspectiva monista, não há racionalidade sem emoção. A criação artística, sua interpretação e seu vivenciamento incorporam elementos intuitivos e inconscientes; é importante compreender as suas raízes psicológicas; há uma relação intrínseca entre arte e psicologia que precisa ser compreendida.

A psicanálise levou essa afirmação à sua radicalidade ao apontar que, sob essa perspectiva, o inconsciente é considerado a fonte primordial do ato criador e do efeito artístico. Na perspectiva freudiana, a obra de arte é, para o próprio poeta, “um meio direto de satisfazer desejos não satisfeitos e não realizados, que na vida real não tiveram concretização”, comenta Vigotski (1999, p. 85).

Imerso num intenso debate que atravessa, além desta, as áreas da filosofia e da arte, Vigotski parece estar em acordo com algumas contribuições de Freud, mas tece críticas ácidas quando se depara com a dimensão reducionista da sexualidade como constante impulsionadora da criação e percepção artística, quer seja: o prazer associado à forma artística. Aqui, Vigotski se depara com uma questão que lhe parece insolúvel: a psicanálise ignora o problema que envolve a forma e a técnica envolvida no processo de criação artística. E, ao ignorá-la, ignora também a centralidade da consciência e, portanto, do trabalho criador, que é, para Marx, aquilo que diferencia o homem dos animais.

Ele, então, orienta a sua análise para as tensas relações entre conteúdo e forma: a catarse, demonstrando que a obra de arte suscita sentimentos opostos e contraditórios. Ele afirma que: “a lei da reação estética é uma só: encerra em si a emoção que se desenvolve em dois sentidos opostos e encontra destruição no ponto culminante, como uma espécie de curto-circuito. É esse processo que gostaríamos de definir com o termo catarse” (Vigotski, 1999, pp. 270-271).

Nesse confronto de emoções contraditórias, o conteúdo é sempre destruído pela forma a partir do trabalho do artista. O respirar tranquilo versus a intensidade e a violência imposta à personagem de Bunin; a morosidade de Hamlet versus a necessidade de vingança, na tragédia de Shakespeare, são tensões exploradas por Vigotski (1999) para explicar que a contradição conteúdo e forma provoca uma intensidade de sentimentos conflitantes: a catarse. Ele vai além e demonstra que a catarse envolve, necessariamente, a unidade emoção e imaginação.

Em Vigotski, a catarse é compreendida a partir da unidade imaginativo-emocional criadora que leva o autor a se distanciar de concepções tradicionais como a aristotélica, a psicanalítica e a teoria do contágio (Tolstói). O autor enfatiza que a arte representa o “social em nós” (Vigotski, 1999, p. 315), argumentando que seu efeito catártico envolve necessariamente a dimensão dialética social-subjetiva.

Nesses termos, a obra de arte tem o poder de elevar a experiência individual a uma dimensão social mais ampla, transcendendo limitações psicológicas cotidianas. A catarse, a nosso ver, representa a capacidade da arte de promover um tipo de emancipação subjetiva, contribuindo para uma compreensão mais profunda das emoções humanas.

Em busca de adensar essa discussão, temos argumentado sobre o fundamental papel da imaginação emocional e criadora nos processos catárticos (Silva; Magiolino, 2018). Por isso, discutiremos a seguir a relação entre imaginação-emoção, atividade criadora e catarse: elementos centrais para a compreensão dos fundamentos e princípios da Educação Estética.

Imaginação e emoção: catarse e a atividade criadora

Vigotski abre, no campo da arte – mais especificamente, da vivência estética –, uma via possível de conhecimento que redimensiona os afetos e a imaginação no psiquismo. Para Vigotski (1999), as emoções provocadas pela arte não se resumem a uma mera soma de reações psicofisiológicas, mas implicam em uma intensa reestruturação da dinâmica psíquica. “Na catarse, por exemplo, interatuam complexas operações intelectuais e sensíveis, do qual a imaginação compõe uma unidade interfuncional e dialética com a emoção” (Silva; Magiolino, 2018, p. 49).

Articulado a esses preceitos, já em “Psicologia Pedagógica”, Vigotski afirmava que a arte parte de sentimentos vitais, mas estes são (re)elaborados na e pela catarse. Em “Psicologia da Arte”, ele reitera que a arte não surge somente de um sentimento vivo e intenso, mas depende também de um ato criador.

A percepção da arte, por sua vez, também exige criação. Não basta simplesmente vivenciar com sinceridade o sentimento que dominou o autor, não basta entender da estrutura da própria obra: “é necessário ainda superar criativamente o seu próprio sentimento, encontrar a sua catarse, e só então o efeito da arte se manifestará em sua plenitude” (Vigotski, 1999, pp. 313-314).

Nos textos supracitados, Vigotski já ressaltava o papel da imaginação e da emoção no processo que envolve a criação da obra de arte e sua recepção, mas não adensou o conceito de enlace emocional na perspectiva do desenvolvimento humano. Isso será mais bem explorado no texto “Imaginação e criação na infância”, que ele vai escrever anos mais tarde, quando já tinha produzido, entre outros, seu estudo sobre a crise da psicologia (Vigotski, 2004).

Para Vigotski (2004), o funcionamento psíquico envolve o conjunto sistêmico das funções psicológicas superiores cuja dimensão interconstitutiva é caracterizada pelo uso e pela criação de instrumentos e signos. Como já alertamos, as emoções humanas integram esse sistema dinâmico e interfuncional. Distanciando-se do campo instintivo e estritamente biológico, elas não se resumem às reações fisiológicas, pois envolvem processos simbólicos e subjetivos, sendo compreendidas como um processo complexo, histórico e cultural, marcado pela significação (Magiolino, 2014). O mesmo acontece com a imaginação, ainda que seu estatuto seja, em certo sentido, diferenciado do das emoções nas elaborações vigotskianas (Silva, 2006).

As proposições de Vigotski sobre imaginação – apoiadas nas ideias de Ribot – articuladas ao materialismo histórico dialético, permite-o avançar de forma inusitada na direção de uma radical proposição acerca de processos criadores como resultantes de uma historicidade em que imaginações cristalizadas se objetivam na obra de arte. Aqui, Vigotski integra de forma inovadora, pela sua dialeticidade, os eixos pendulares até então equidistantes; o sujeito que cria, a obra e o seu receptor engendrados na experiência social e na vivência estética que têm na relação imaginação e emoção, conforme já abordamos, sua indissociabilidade.

Vigotski (2009) sugere que todo sentimento é experienciado em imagens que suscitam um determinado estado afetivo; as emoções influenciam o processo de combinações da fantasia e são influenciadas por esta (lei da realidade emocional). Neste caso, a relação emoção e imaginação está intimamente vinculado à produção de imagens que, por sua vez, mobiliza emoções ao funcionar como uma espécie de dínamo gerador de estados afetivos (Sawaia; Magiolino; Silva, 2020).

O autor também explica que as impressões ou imagens, que compartilham um significado emocional comum, tendem a se unir em nossa imaginação, mesmo que não haja uma relação evidente de semelhança ou proximidade entre elas (lei do signo emocional comum). “Daí resulta uma obra combinada da imaginação em cuja base está o sentimento ou o signo emocional comum que une os elementos diversos que entraram em relação” (Vigotski, 2009, p. 27).

A criação artística, como as demais invenções humanas, também se caracteriza por essa complexa relação. A criação toma os elementos hauridos da realidade, passando por um processo de combinação e recombinação de imagens ao longo da história que, ao se cristalizarem, retornam ao mundo de maneira original, completando o círculo da atividade criadora. Assim os produtos da fantasia podem ser algo completamente novo que, ao serem externados e encarnados (materializados), tornam-se uma imaginação cristalizada. É uma ideia que se objetiva e “começa a existir no mundo e a influir sobre outras coisas” (Vigotski, 2009, p. 29).

Das questões colocadas em perspectiva e das indagações que elas suscitam, ganha maior relevância, para nós, o modo como Vigotski elabora sobre as complexas relações entre a imaginação e as emoções; tanto na vivência estética como na atividade criadora. Em nossa opinião, esse é um elemento fundamental para se pensar a Educação Estética numa perspectiva histórico-cultural.

À luz da argumentação conceitual levantada ao longo do artigo, na confluência de todos os elementos apresentados, é possível desenvolver a seguinte proposição-síntese sobre Educação Estética: a educação estética envolve um tipo de conhecimento estético (a arte), que se difere do técnico-científico e se caracteriza pelo trabalho com a técnica, a criação e a vivência estética radicada na emoção e na imaginação.

Considerações finais

Aqui está a chave para a tarefa mais importante da educação estética: inserir as reações estética na própria vida (...) Potbeniá disse de uma bela maneira que, assim como a eletricidade não está apenas onde há tormentas, a poesia também não está apenas onde existem grandes criações artísticas, mas em todos os lugares onde a palavra humana estiver. E essa poesia de “cada instante” é o que talvez constitua o objetivo mais importante da educação estética

(Vigotski, 2003, p. 239).

O encadeamento das ideias construídas ao longo deste artigo buscou retirar a Educação Estética da marginalidade das preocupações educacionais hegemônicas que insistem em ignorá-la. Nosso interesse consistiu em compreender como essas relações trazem contribuições para se pensar seu estatuto gnoseológico como elemento central de qualquer política educacional, programa curricular ou conteúdo programático – ou, em outras palavras: tudo aquilo que dá sentido à vida na escola.

Nosso esforço soma-se ao de outros que assumem uma perspectiva educacional emancipadora, encontrando na arte seu ponto nevrálgico (Maheirie; Zanella, 2017; Pino, 2006; Gonçalves; Abreu; Pederiva, 2020; Maheirie; Barreto, 2019; Schroeder; Schroeder, 2011; entre outros).

As contribuições de Vigotski, tomadas em detalhes, foram fundamentais para depreender os princípios e os fundamentos de uma Educação Estética na direção de uma proposição-síntese que rompe com uma Educação Estética reduzida à instrumentalização, à moralização e à fruição pela fruição.

Nossa proposição (aberta ao debate) aposta em uma Educação Estética que caminha na direção do trabalho pedagógico como (e com o) ato criador implicando o conhecimento estético, a vivência estética e a atividade criadora como constitutivos daquilo que é especificamente humano: a criação.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • Número temático organizado por: Lavínia Lopes Salomão Magiolino, Daniele Nunes Henrique Silva e Kátia Maheirie
  • Financiamento
    Não se aplica.

Disponibilidade de dados de pesquisa

Não se aplica.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2024
  • Aceito
    03 Set 2024
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