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O óbvio/silenciado das marcas do humano: comentários sobre os processos educativos escolares, a partir de uma leitura das contribuições de Angel Pino

The obvious/silenced human marks: comments on the school educational processes, based on the reading of Angel Pino's contributions

Resumo:

Este texto tem como objetivo analisar práticas escolares direcionadas a alunos identificados como "deficientes" e ressaltar aspectos do desenvolvimento cultural dessas pessoas, a partir da abordagem histórico-cultural, em especial das contribuições de trabalhos de Angel Pino. Para tanto analisa registros de estagiários, acadêmicos de Pedagogia, que acompanharam alunos matriculados em escolas comuns, dentro da perspectiva que tem se denominado de "educação inclusiva". As análises ressaltam situações identificadas como de "invisibilidade" e de "silenciamento" desses alunos. Argumenta-se que essas situações são práticas sociais plenas de significação e que essa produção social marca o desenvolvimento cultural e a constituição de todos os sujeitos envolvidos: os alunos, as professoras e as estagiárias.

Palavras-chave:
Educação inclusiva; Alunos com deficiência; Psicologia histórico-cultural; Alunos 'incluídos'

Abstract:

This text aims to analyze school practices designed to pupils identified as "disabled", and to highlight aspects of their cultural development, based on the cultural-historical approach, especially through the contributions of Angel Pino's works. The study includes analyses of reports written by Pedagogy students who monitored some "disabled" pupils who attend regular schools, from the perspective of "inclusive education". The analyses highlight some situations identified as "invisible" and "inaudible"/"silenced" for these children. We argue that these situations are social practices full of meaning and this social production marks the cultural development and constitution of all people involved: the pupils, the teacher and the academic students.

Keywords :
Inclusive education; Disabled pupils; Cultural-historical psychology; "Included" pupils

Introdução

O estudo sobre a escolarização de pessoas com deficiências vem se desenvolvendo especialmente a partir o século XX. Desde os escritos de Jean Itard (1774-1838), sobre sua memória em relação aos primeiros progressos de Victor (ITARD, 1801[1978ITARD, J. Memoria sobre los primeros progresos de Victor del Aveyron. In: PINEL, P.; ITARD, J. El salvaje del Aveyron: psiquiatría y pedagogía en el iluminismo tardío. Introducción, notas y selecciones de textos Augusto Montanari. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1978, p. 53-93.]), muito se pesquisou a respeito da educação de pessoas consideradas "deficientes". Pesquisas como as de Padilha (2001PADILHA, A. M. L. Práticas pedagógicas na educação especial. A capacidade de significar o mundo e a inserção cultural do deficiente mental. Campinas: Autores Associados, 2001.) e Carvalho (2006CARVALHO, M. F. Conhecimento e vida na escola. Convivendo com as diferenças. Campinas: Autores Associados; Ijuí: Editora Unijuí, 2006.) sustentam a proposição de trabalhos pedagógicos que levam ao desenvolvimento cultural dos sujeitos, superando expectativas antes estabelecidas pela literatura clássica (TELFORD; SAWREY, 1984TELFORD, C.W.; SAWREY, J. M. O indivíduo excepcional. 5a. ed., Rio de Janeiro: Zahar 1984.; KIRK; GALLAGHER, 1987KIRK, S. A.; GALLAGHER, J. J. Educação da criança excepcional. São Paulo: Martins Fontes, 1987.) e abrindo novas possibilidades de práticas sociais a esses sujeitos. Nessas pesquisas, visualiza-se o desenvolvimento humano sob a perspectiva histórico-cultural, fato que leva à dissolução de crenças sobre "pré-limitações" de sujeitos.

Também muito relevantes são estudos como os de De Carlo (1999DE CARLO, M. M. R. P. Se essa casa fosse minha... Instituições e processos de imaginação na educação especial. São Paulo: Plexus, 1999.) e Carneiro (2008CARNEIRO, M. S. C. Adultos com Síndrome de Down. A deficiência mental como produção social. Campinas: Papirus, 2008.), que mostram como as características das relações sociais em que sujeitos estão imersos marcam, empobrecendo ou impulsionando, as formas como estes se desenvolvem.

A vertente que explica o desenvolvimento humano a partir de experiências sociais e culturais (com críticas à identificação de características dadas unicamente por atributos inatos aos indivíduos) está presente na literatura sobre o estudo da deficiência ao menos desde o relatório de Itard sobre sua experiência com Victor. Nele o autor afirmava:

Na horda mais selvagem ou na nação europeia mais civilizada, o homem será apenas aquilo que o fazem ser. O homem, necessariamente instruído por seus semelhantes, aprendeu hábitos e necessidades; suas ideias não lhe pertencem; goza da prerrogativa mais bela de sua espécie: a capacidade de desenvolver seu intelecto mediante a força da imitação e da influência da sociedade (ITARD, 1801 [1978], p.53) [tradução livre].

Como registrado pelo trabalho referencial de Pessotti (1984PESSOTTI, I. Deficiência mental: da superstição à ciência. São Paulo: T. A. Queiroz: Ed. Universidade de São Paulo, 1984.), na Modernidade esta vertente de pensamentos encontra suas raízes no trabalho de John Locke (1632-1704), em especial em seu Ensaio sobre o Entendimento Humano (LOCKE, 1690 [1983]), em que reconhece a experiência sensível como fonte da formação das ideias, contra a concepção de inatismo corrente ainda no século XVII.

A identificação da importância determinante do "social" está na base da educação das pessoas com deficiências, pois é a partir dessa perspectiva que se rompe com a crença no desenvolvimento "natural" dos sujeitos. Essa perspectiva, por sua vez, oferece sustentação para teorias diferentes.

Por um lado, há teorias que se pautam na possibilidade de controle, quase total, dos processos de aprendizagem, através do controle do ambiente. Assim, para um processo de aprendizagem eficiente seria necessário o controle das formas de ensino. Apoiadas nesse enfoque podem ser identificadas algumas propostas pedagógicas, organizadas a partir de uma sequência de tarefas preestabelecida para aquisição de comportamentos esperados a cada etapa, como técnicas para alfabetização de um público específico (TRONCOSO; DEL CERRO, 2009TRONCOSO; del C. Síndrome de Down, lectura y escrita. Fundación Iberoamericana Down 21, 2009. Disponível em Disponível em http://www.down21materialdidactico.org/librolectura/index.html . Acesso em junho de 2015.
http://www.down21materialdidactico.org/l...
) ou sessões de treinos de atividade de vida diária (AVDs) e situações semelhantes de ensino.

Essa perspectiva está presente, também, em diferentes programas escolares e propostas educacionais, em que se pretende, com a relação ensino-aprendizagem, o domínio de competências1 1 Tomamos como exemplo, o programa Alfa e Beto. Detalhes podem ser encontrados em <http://www.alfaebeto.org.br/>. . Grande parte dessas práticas é organizada sob o pressuposto de que a aprendizagem ocorre a partir do oferecimento de situações mais "simples" para as mais "complexas", o que, por sua vez, levaria à aquisição dos comportamentos mais "simples" aos mais "complexos", em uma ordem sequencial pré-estabelecida. A divisão e a ordenação de etapas específicas seriam pré-requisitos para o desenvolvimento de habilidades e o desempenho de tarefas consideradas mais "complexas". Sob esse enfoque, a aprendizagem também pode ser identificada à aquisição de habilidades e/ou competências.

Por outro lado, o "social" também está na raiz de uma perspectiva que identifica o desenvolvimento dos sujeitos como um complexo ato de apropriação do indivíduo dos bens culturais socialmente produzidos pela humanidade em cada momento histórico. Por esta abordagem, a relação de ensino-aprendizagem insere-se no âmbito das práticas sociais.

Pino (2005PINO, A. As marcas do humano. Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005.) conceitua práticas sociais como "as várias formas - socialmente instituídas ou consagradas pela tradição cultural dos povos - de pensar, de falar e de agir das pessoas que integram uma determinada formação social". (PINO, 2005PINO, A. As marcas do humano. Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005., p. 107) O autor entende que dois aspectos parecem caracterizar as práticas sociais: têm certa configuração (o que as torna identificáveis), que se perpetua em determinados tempo e espaço; e veiculam uma significação partilhada pelos integrantes de um mesmo grupo cultural. Por esta perspectiva, um ser humano só pode ser compreendido imerso às suas relações sociais. A identificação das relações humanas como prática social, inclusive as que ocorrem na escola, fornece outra dimensão para o entendimento dos processos de aprendizagem.

As marcas do humano na escola

Pino (2005PINO, A. As marcas do humano. Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005.) desenvolve conceitos apresentados na obra de Vigotski2 2 Utilizaremos a grafia do nome desse autor respeitando à utilizada em cada obra/tradução. e identifica duas ideias inéditas nesse autor para o entendimento do pensamento psicológico: uma refere-se à origem e à natureza do que Vigotski denominou de "funções psicológicas superiores"; outra é que tais funções são relações sociais entre pessoas internalizadas por cada indivíduo. Há, portanto, a identificação de uma origem social no que pode ser entendido por especificamente humano (ou "natureza" humana).

Para Pino (2005PINO, A. As marcas do humano. Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005.), Vigotski apresenta a questão da natureza social das "funções mentais superiores" por duas perspectivas (que estão interligadas). A primeira é entendida como sociabilidade humana em geral, que pode ser identificada na afirmação "Eu me relaciono comigo tal como as pessoas se relacionaram comigo". (VIGOTSKI, 2000 apudPINO, 2005PINO, A. As marcas do humano. Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005., p.103) Afirma-se, aqui, que o significado das próprias ações de um sujeito encontra suas origens em significados atribuídos por outro(s) e que uma pessoa "é uma unidade 'biológico-cultural' complexa que funciona de diferentes maneiras". (PINO 2005, p. 103) [grifos no original]

A partir desse pressuposto pode-se explicar o motivo pelo qual, sob as mesmas leis do desenvolvimento, os processos são diferentes nas pessoas; pois "[...] não se trata de processos neurológicos autônomos que obedecem a um padrão comum a todos os organismos humanos, mas de atividades personalizadas". (PINO, 2005PINO, A. As marcas do humano. Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005., p. 104) Em outras palavras: "Sonhar e pensar são funções da pessoa [e não autonomamente de um cérebro], porque só ela pode sonhar ou pensar isto ou aquilo, desta ou daquela maneira, em função da posição que ela ocupa no campo das suas relações socais". (PINO, 2005, p. 104) [grifos no original]

A segunda perspectiva é configurada por Vigotski, em suas obras, ao abordar as relações sociais conferindo-as à dimensão apresentada na VI Tese sobre Feuerbach, de Marx:

Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas, a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais. Feuerbach, que não empreende a crítica dessa essência real, é por isso, forçado: 1. a abstrair o curso da história e fixar o sentimento religioso como algo para-si e a pressupor um indivíduo humano abstrato - isolado.2. Por isso, nele, a essência humana só pode ser apreendida como "gênero", como generalidade interna, muda, que liga apenas de modo natural os múltiplos indivíduos. (MARX, 1845 [1986MARX, K. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 5a. ed. São Paulo: HUCITEC, 1986.], p.127) [grifos no original]

Aqui há uma crítica à concepção de indivíduo genérico e abstrato. Pino (2005PINO, A. As marcas do humano. Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005.) identifica claramente a raiz marxista do texto de Vigotski, afirmando que existe "uma estreita dependência entre o modo de produção (trabalho social), o tipo de relações sociais que daí decorrem e o modo de ser dos homens (sua essência)". (PINO, 2005PINO, A. As marcas do humano. Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005., p. 105) [grifos no original] Dessa premissa, Pino admite que, de um lado, os homens "entram, por meio do trabalho, em contato com a natureza para transformá-la, de outro, a divisão do trabalho e o tipo de intercâmbio que ela cria geram relações sociais que eles [os homens] não controlam". (PINO, 2005, p. 105) [grifos no original]

Cada novo ser humano apropria-se das relações sociais através de um processo de internalização, e o lugar em que ele se encontra nas relações conforma/marca/direciona esse processo. Internalização, por sua vez, pode ser entendida como processo contínuo pelo qual cada novo indivíduo se apropria de signos externos e os transforma em processos internos. Através do processo contínuo de apropriação das relações sociais, os indivíduos criam e passam a utilizar-se de representações mentais, que substituem objetos do mundo circundante. Portanto, "todas as funções mentais superiores são relações sociais internalizadas". (VYGOTSKY, 1981VYGOTSKY, L. S. The genesis of higher mental functions. In: WERTSCH, J. V. (Ed.). The concept of activity in soviet psychology. New York: Sharpe, 1981., p. 146) A partir dessa perspectiva, Vygotsky (1981VYGOTSKY, L. S. The genesis of higher mental functions. In: WERTSCH, J. V. (Ed.). The concept of activity in soviet psychology. New York: Sharpe, 1981., p.163) apresenta como a Lei genética geral do desenvolvimento cultural:

Toda função no desenvolvimento cultual da criança aparece duas vezes, ou em dois planos. Primeiramente ela aparece no plano social, e então, no plano psicológico. Primeiramente ela aparece entre as pessoas como uma categoria interpsicológica, e posteriormente na criança como uma categoria intrapsicológica.

Há, nesse processo, uma atribuição de sentidos bastante complexa: sentidos que são atribuídos a esse novo sujeito e sentidos que esse sujeito passa a atribuir às relações sociais. O desenvolvimento cultural, portanto, ocorre na apropriação das relações sociais, por um processo de internalização em que a atribuição de sentidos é aspecto central.

Esse entendimento sobre o desenvolvimento humano baliza teoricamente as diferenças de posição em relação à perspectiva sobre os processos educativos, sejam de alunos em geral, sejam de alunos que possuem alguma característica em particular, como alunos com deficiências.

Ao abordar a prática escolar como prática social, momentos corriqueiros, que podem ser encontrados em muitas escolas no país, passam a expressar mais que a obviedade das relações que se espera encontrar, mas evidenciam diferentes possibilidades de desenvolvimento cultural, muitas vezes silenciadas pela lógica esperada.

Na escola

[...] no segundo tempo, era aula de Espanhol; a professora entrou sem cumprimentar os alunos e entregou uma atividade em fotocópia com uma gravura de uma criança na praça brincando e escrito "Buenas tardes". (CAMACHO, 2013CAMACHO, C. C. A. de. Relatório Final. Atividades Orientadas em Pesquisa e práticas pedagógicas III (Educação Especial). UFMS: CPAN, 2013.) [...] Quando terminou de pintar, Juliana3 3 Todos os nomes aqui citados são fictícios [aluna com diagnóstico de D.I.] veio nos mostrar [às acadêmicas de Pedagogia] e perguntou se estava bonito e eu disse que sim. Ela pintou direitinho, mas em seu nome estava faltando a letra "i" e o "j" estava invertido para o lado direito. Então perguntei a ela se estava faltando alguma letra; aí ela olhou e disse que sim; era a letra "i" e foi corrigir. Depois veio mostrar de novo e eu perguntei se a primeira letra de seu nome era escrito daquele jeito. Então, ela foi e corrigiu novamente, escrevendo seu nome direitinho. (CAMACHO, 2012) Observação em 04/03/2013 em uma sala de 3º ano do ensino fundamental.

O trecho acima, retirado de um relatório de observação de uma acadêmica de Pedagogia em situação de estágio4 4 Os relatórios que constituem o material empírico das análises desenvolvidas neste texto foram elaborados por alunos de 3º semestre de Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, do Campus do Pantanal, e foram gentilmente cedidos para a utilização como material de pesquisa. em uma escola pública municipal, nos permite elaborar as análises pretendidas para este texto. Segundo o relato, trata-se de uma turma 15 alunos de terceiro ano do Ensino Fundamental. Entre os alunos estão matriculados alguns identificados como "alunos com deficiências", em cumprimento às diretrizes da política atual de Educação Inclusiva. Entre professores, coordenação e direção, tais alunos são denominados "alunos incluídos".

A escola está localizada em uma região de fronteira do Brasil com dois países: a Bolívia, bem próxima à área urbana, e o Paraguai, na região rural. Como são dois países de língua espanhola, entende-se como relevante o ensino do Espanhol. Acrescenta-se o fato de que nas escolas brasileiras desse município, há muitos alunos que não têm fluência em Português, quando do ingresso no processo escolar.

Com o propósito de iniciar as análises, focamos num primeiro momento a atividade proposta: na folha distribuída pela professora há um texto escrito, "bom dia", em espanhol, acompanhada de uma imagem desenhada de uma criança brincando. Trata-se, de alguma forma, de uma atividade escolar, como tantas outras utilizadas nas escolas, em que se passam informações que devem ser aprendidas pelos alunos. Muitas vezes na escola, a apresentação de informações é identificada como momento de aprendizagem e, em princípio, a atividade pedagógica poderia levar à apropriação do conhecimento, à aprendizagem e ao desenvolvimento. No entanto, Pino (2003PINO, A. Técnica e semiótica na era da informática. Itajaí, Contrapontos v. 3, n. 2, p. 283-296, mai./ago. 2003.), em texto que analisa questões relativas ao acesso à informação, alerta:

Se o acesso à informação é condição da aquisição de conhecimento e se a informação constitui já uma primeira forma de conhecimento, é porém insuficiente para fazer de alguém um ser pensante. A informação, para tornar-se conhecimento, deve ser previamente processada pelo indivíduo. (PINO, 2003PINO, A. Técnica e semiótica na era da informática. Itajaí, Contrapontos v. 3, n. 2, p. 283-296, mai./ago. 2003., p. 286)

Para além do foco na atividade em si, podemos nos dirigir também aos sentidos atribuídos por cada "ocupante" de posição na trama exposta em sala de aula. No trecho acima, três sujeitos aparecem envoltos num entrelaçado de práticas socialmente delineadas em contextos escolares. Nessa situação temos um sistema de relações sociais, em que os sujeitos assumem posições, que definem seus papéis sociais. Pino explica a complexa dinâmica:

Um sistema de relações sociais é um sistema complexo de posições e de papéis associados a essas posições, as quais definem como os atores sociais se situam um em relação aos outros dentro de uma determinada formação social e quais as condutas (modos de agir, de pensar, de falar e de sentir) que se espera deles em razão dessas posições. (PINO, 2005PINO, A. As marcas do humano. Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005., p. 106)

Na escola, há um conjunto de relações sociais definindo comportamentos esperados, de modo que estes podem ser identificados como pertinentes ou não a esse contexto. "As relações sociais concretizam-se [...] em práticas sociais", diz Pino (2005PINO, A. As marcas do humano. Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005., p. 107). Ao pensar a situação escolar com uma prática social, podem ser levantadas as possíveis posições que cada sujeito ocupa nessa complexa relação:

A professora: É o sujeito responsável pelas atividades propostas em sala? Orientadora das atividades escolhidas por outro? É o sujeito que está ali para ensinar? A aluna: É o sujeito que está ali para aprender? Um futuro leitor bilíngue? É o sujeito que está lá para o cumprimento das normas institucionais (no caso, dos princípios da Educação Inclusiva)? Um ser desacreditado ou um desacreditável5 5 Utilizo neste momento o conceito desenvolvido por Goffman (1980, p. 51), para quem "desacreditadas" são pessoas que apresentam "[...] uma discrepância entre a identidade social real, [...] e sua identidade virtual [...]", de modo que o estigma lhe seja aparente. As "desacreditáveis" são pessoas cujo estigma não está "imediatamente aparente ou não se tem conhecimento prévio". ? A acadêmica: Um sujeito em formação profissional? Um crítico na/da escola? Um sujeito disposto a entender as relações escolares? Um sujeito na posição de aprendiz?

Lembrando que as posições marcam as atribuições de sentido, cabe perguntar: Que sentidos os sujeitos, marcados por seus lugares sociais, atribuem a essas práticas? Como prática social, há/deveria haver uma significação partilhada. O relato acima aponta para uma polissemia na partilha de significações do lugar escola, a depender da posição de cada sujeito na trama das relações. Podemos levantar a hipótese de que, para a professora, não há sentido pedagógico na realização dessa tarefa por aqueles alunos, pois ao "apenas" distribuir as folhas de tarefas, sem - inclusive - um cumprimento cordial (que fica por conta do "Buenas tardes", escrito na folha que os alunos devem pintar), a professora oferece indícios de que acredita que esses alunos são incapazes de tal realização. Ela afirma à estagiária que há várias crianças com muitos problemas: ao menos seis precisariam de fonoaudiólogo, um é repetente e muito agressivo, um tem Síndrome de Down, outro veio da fazenda com 12 anos e outra, ainda, tem deficiência intelectual. (CAMACHO, 2013CAMACHO, C. C. A. de. Relatório Final. Atividades Orientadas em Pesquisa e práticas pedagógicas III (Educação Especial). UFMS: CPAN, 2013.) A partir da descrição da professora em relação a seus alunos, uma análise possível da situação registrada pela acadêmica é que a atribuição de sentidos pela professora em relação a eles seria de descrença. Essa hipótese fortalece-se na continuidade na leitura do relatório:

Ao retornar para a aula [após o intervalo de recreio], a professora continua sentada e trata as crianças com indiferença. Um dos alunos perguntou se eles iriam ganhar ovos de Páscoa, então ela respondeu que eles não mereciam ganhar nada. (CAMACHO, 2013CAMACHO, C. C. A. de. Relatório Final. Atividades Orientadas em Pesquisa e práticas pedagógicas III (Educação Especial). UFMS: CPAN, 2013.) [grifos nossos]

De fato, da professora, eles não ganham (ou não ganharão) ovos de Páscoa, nem sua consideração como alunos. O espaço escolar que, em princípio, é visto como lugar de ensinar e aprender, não recebe essa atribuição da professora, ao menos para esses alunos.

A significação é uma produção social (PINO, 2005PINO, A. As marcas do humano. Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005., p.149) e na trama dessa produção os sentidos escapam ao controle. A percepção da aluna em relação àquele espaço não parece ser a mesma que a atribuída pela professora, já que para ela (supostamente com deficiência intelectual), ali é o lugar de aprender e ela está lá para aprender. Esta é sua expectativa e, para isso, busca com a acadêmica [e não com a professora] uma avaliação de suas atividades em sala, mostrando seu trabalho e corrigindo os erros apontados pela estagiária. Sua atribuição de sentidos a respeito daquele lugar - a escola - é compartilhada pela acadêmica que, conhecedora de literatura que entende o processo educativo, inclusive com crianças com deficiência, dentro da perspectiva de hominização/desenvolvimento cultural (PADILHA, 2001PADILHA, A. M. L. Práticas pedagógicas na educação especial. A capacidade de significar o mundo e a inserção cultural do deficiente mental. Campinas: Autores Associados, 2001.; CARVALHO, 2006CARVALHO, M. F. Conhecimento e vida na escola. Convivendo com as diferenças. Campinas: Autores Associados; Ijuí: Editora Unijuí, 2006.), dialoga com a aluna fazendo com que ela perceba seus erros no processo de aquisição da escrita de seu nome e possa chegar à forma correta.

Na sala de aula, a significação - em princípio óbvia - de "alunos" como "aqueles que aprendem" não parece ser atribuída pela professora. Ao menos, não todos eles. Esses alunos são os "incluídos" e essa denominação parece significar "alunos que não são alunos". Estar na escola não tem garantido a condição óbvia de aluno a alguns sujeitos. E se há a condição formal de aluno, esta não garante a condição óbvia de humano, para quem as relações sociais e a apropriação de conhecimento são fundamentais ao desenvolvimento:

No quadro, a professora passava atividades do livro e chamava os alunos para responder o que se pedia, porém João, Thatiana e Luan não iam ao quadro responder. [...] Na sala, existia o 'momento' da leitura, mas essa leitura é a famosa 'tomar lição' e quem tomava a lição era uma professora da coordenação. E ela chamava, um por um, dos alunos para 'ver' quem estava bom/boa de leitura e estes recebiam nota e, novamente, João, Thatiana e Luan não participavam das atividades. (SILVA, 2013)

Aqui, estamos em outra escola e diante de outra situação, mas há uma semelhança nas práticas estabelecidas nas duas salas de aula. João, Thatiana e Luan também são alunos com deficiências, alunos "incluídos", como são comumente denominados. Nas duas situações do trecho relatado por Silva (2013), os alunos "incluídos" não recebem atenção como "alunos". Mas, eles estão na escola e a falta de atenção/de consideração do papel de aluno é a prática escolar direcionada a eles.

No entanto, por estranho que possa parecer, afirmamos que o desenvolvimento cultural desses alunos está ocorrendo. Lembramos que todo o processo de desenvolvimento do indivíduo é tramado com os fios das relações e práticas sociais, portanto alunos como João, Thatiana e Luan, que não vão ao quadro ou não são chamados para verificação de leitura, estão configurando-se como sujeitos invisíveis/silenciados de sua existência do papel de aluno. Mas, certamente, assim como Juliana (da outra escola), eles têm o que dizer e se apropriam das/se formam e se conformam nas/ relações sociais sejam estas quais forem.

Ainda algumas palavras

O processo educativo vai além do acesso a informações e vai além de aquisição de habilidades e comportamentos esperados, pois trata-se de um processo de formação humana, um processo de humanização/hominização, em que a significação está no âmago do especificamente humano. Portanto, ao restringir as situações de ensino, não é "apenas" com menos informações que os alunos ficam. Há também a atribuição de sentidos de que tais alunos não são capazes; há uma restrição da percepção da condição de humano desses sujeitos. Pino (2005PINO, A. As marcas do humano. Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005., p. 149) afirma: "Os processos de significação concretizam-se na vida cotidiana das pessoas, nas diferentes formas de práticas sociais, uma vez que a significação é uma produção social". A desconsideração dos alunos como alunos leva a uma "invisibilidade" ou a um "silenciamento".

Atribuições de sentidos são práticas sociais plenas de significação e é nessa produção social que esses sujeitos (alunos, professora e estagiária) são se constituindo como tais. Concluindo, não há como não retomar mais uma vez as palavras de Pino:

Falar em educação, na perspectiva de um humanismo laico, é falar da constituição humana do homem ou, em outros termos, da sua constituição cultural, entendendo por isso o processo pelo qual um ser naturalmente biológico se transforma num ser cultural, pela interiorização da experiência social e cultural dos homens, vivida no seio do grupo humano em que está inserido. Entendida assim, a educação do homem não ocorre num lócus preciso, mas na totalidade das situações em que essa experiência é vivida. (PINO, 2007PINO, A. Violência, educação e sociedade: um olhar sobre o Brasil contemporâneo. Educ. Soc, Campinas, v. 28, n. 100 - Especial - p. 763-785, out. 2007., p. 779)

  • CAMACHO, C. C. A. de. Relatório Final. Atividades Orientadas em Pesquisa e práticas pedagógicas III (Educação Especial). UFMS: CPAN, 2013.
  • CARNEIRO, M. S. C. Adultos com Síndrome de Down A deficiência mental como produção social Campinas: Papirus, 2008.
  • CARVALHO, M. F. Conhecimento e vida na escola Convivendo com as diferenças. Campinas: Autores Associados; Ijuí: Editora Unijuí, 2006.
  • DE CARLO, M. M. R. P. Se essa casa fosse minha.. Instituições e processos de imaginação na educação especial São Paulo: Plexus, 1999.
  • GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação a identidade deteriorada. 3a. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
  • ITARD, J. Memoria sobre los primeros progresos de Victor del Aveyron. In: PINEL, P.; ITARD, J. El salvaje del Aveyron: psiquiatría y pedagogía en el iluminismo tardío. Introducción, notas y selecciones de textos Augusto Montanari. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1978, p. 53-93.
  • KIRK, S. A.; GALLAGHER, J. J. Educação da criança excepcional. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
  • MARX, K. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 5a. ed. São Paulo: HUCITEC, 1986.
  • PADILHA, A. M. L. Práticas pedagógicas na educação especial A capacidade de significar o mundo e a inserção cultural do deficiente mental. Campinas: Autores Associados, 2001.
  • PESSOTTI, I. Deficiência mental: da superstição à ciência. São Paulo: T. A. Queiroz: Ed. Universidade de São Paulo, 1984.
  • PINO, A. Violência, educação e sociedade: um olhar sobre o Brasil contemporâneo. Educ. Soc, Campinas, v. 28, n. 100 - Especial - p. 763-785, out. 2007.
  • PINO, A. As marcas do humano Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005.
  • PINO, A. Técnica e semiótica na era da informática. Itajaí, Contrapontos v. 3, n. 2, p. 283-296, mai./ago. 2003.
  • TELFORD, C.W.; SAWREY, J. M. O indivíduo excepcional. 5a. ed., Rio de Janeiro: Zahar 1984.
  • TRONCOSO; del C. Síndrome de Down, lectura y escrita. Fundación Iberoamericana Down 21, 2009. Disponível em Disponível em http://www.down21materialdidactico.org/librolectura/index.html Acesso em junho de 2015.
    » http://www.down21materialdidactico.org/librolectura/index.html
  • VYGOTSKY, L. S. The genesis of higher mental functions. In: WERTSCH, J. V. (Ed.). The concept of activity in soviet psychology. New York: Sharpe, 1981.
  • 1
    Tomamos como exemplo, o programa Alfa e Beto. Detalhes podem ser encontrados em <http://www.alfaebeto.org.br/>.
  • 2
    Utilizaremos a grafia do nome desse autor respeitando à utilizada em cada obra/tradução.
  • 3
    Todos os nomes aqui citados são fictícios
  • 4
    Os relatórios que constituem o material empírico das análises desenvolvidas neste texto foram elaborados por alunos de 3º semestre de Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, do Campus do Pantanal, e foram gentilmente cedidos para a utilização como material de pesquisa.
  • 5
    Utilizo neste momento o conceito desenvolvido por Goffman (1980GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação a identidade deteriorada. 3a. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1980., p. 51), para quem "desacreditadas" são pessoas que apresentam "[...] uma discrepância entre a identidade social real, [...] e sua identidade virtual [...]", de modo que o estigma lhe seja aparente. As "desacreditáveis" são pessoas cujo estigma não está "imediatamente aparente ou não se tem conhecimento prévio".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2015
  • Aceito
    15 Jul 2015
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