Open-access NEGÓCIOS EM JOGO: A FORMAÇÃO CONTINUADA DE DOCENTES NA DISPUTA DE HEGEMONIA EM CAMPINA GRANDE-PB

BUSSINESS AT STAKE: THE TEACHING CONTINUED FORMATION IN AN HEGEMONICAL DISPUTE IN CAMPINA GRANDE-PB

NEGOCIOS EN JUEGO: LA FORMACIÓN CONTINUA DE DOCENTES EN LA DISPUTA DE HEGEMONÍA EN CAMPINA GRANDE-PB

RESUMO

O artigo analisa ações de formação docente continuada implementadas na rede municipal de ensino de Campina Grande-PB, em sintonia com aparelhos privados de hegemonia (APH), no âmbito dos programas Aprender Valor, do Banco Central do Brasil, e Alfabetização Campina de A a Z, da Secretaria de Educação do município (Seduc-CG) em parceria com o Instituto Gesto. Parte do pressuposto de que tais formações são coerentes com o aprofundamento das lógicas do mundo dos negócios e do capital financeiro, rentista, especulativo e de investimentos. Conclui-se que os APH promovem uma formação continuada que visa instrumentalizar os professores, para que estes se tornem, em sua prática pedagógica, disseminadores da sociabilidade capitalista, individualista, consumista e especulativa.

Palavras-chave
Formação continuada; Campina Grande-PB; Aparelhos privados de hegemonia; Lógica mercantil

ABSTRACT

The article analyses the actions of continued teaching formation adopted for teaching municipal system of Campina Grande, according the hegemoniacal private systems (HPS), in the scope of the programs Aprender Valor, from Brazil Central Bank, and Alfabetização Campina de A a Z, from Municipal Educational Secretaryship, together with Instituto Gesto. The articles supposes that these formation are coherent with the logical deepening of business world and financial, income, speculated and investment capital. The article concludes that HPS promotes a continued formation that aims the teachers becames an instrument, in their pedagogical practices, diffusers of capitalist, individualism, consumerist and speculative sociability.

Keywords
Continued formation; Campina Grande-PB; Hegemoniacal privated systems; Commercial logical

RESUMEN

El artículo analiza las acciones de formación continua de docentes implementadas en la red municipal de enseñanza de Campina Grande-PB, en sintonía con los Aparatos Privados de Hegemonía (APH), en el marco de los programas Aprender Valor del Banco Central de Brasil y Alfabetización Campina de A a Z de la Secretaría de Educación del municipio (Seduc-CG), en colaboración con el Instituto Gesto. Parte del supuesto de que estas formaciones son coherentes con el desarrollo de las lógicas del mundo de los negocios y del capital financiero rentista, especulativo e inversor. Concluye que los APH promueven una formación continua que tiene como objetivo capacitar a los profesores para que se conviertan en difusores de la sociabilidad capitalista, individualista, consumista y especulativa en su práctica pedagógica.

Palabras clave
Formación continua; Campina Grande-PB; Aparatos privados de hegemonía; Lógica mercantil

Introdução

Desde o final da década de 1990 – primórdios da contrarreforma neoliberal-gerencial do Estado brasileiro –, a formação de professores para a Educação Básica, notadamente nas redes públicas, vem-se objetivando como uma unidade dialética dos processos de aligeiramento e de apropriação privatista (Shiroma, 2018).

Assim, as políticas educacionais oficiais têm privilegiado a formação continuada, cada vez mais reduzida a treinamento para implementação de programas ou de metodologias de ensino. Tal treinamento desenvolve-se sob a égide de aparelhos privados de hegemonia – APH (Evangelista, 2021)1, que também, via de regra, são os proprietários dos programas, dos pacotes de ensino e dos materiais didáticos a serem utilizados.

Partícipe dessa privatização neoliberal da educação, a Secretaria de Educação de Campina Grande (Seduc-CG), nas várias gestões ao longo destes anos 2000, jamais prescindiu da presença de organismos empresariais no Sistema Municipal de Ensino. Conforme levantamentos constantes das dissertações de Oliveira (2018) e Morais (2022), constatamos quase uma dezena de organismos empresariais2 atuantes nas escolas da rede municipal de ensino, mediante o desenvolvimento de projetos específicos e pontuais ou de programas mais abrangentes e duradouros.

Os citados levantamentos permitiram-nos observar a predominância de dois APH, de mais longeva e orgânica intervenção na educação municipal campinense: o Instituto Alpargatas – desde 2006 – e a Fundação Lemann – a partir de 20163.

Do primeiro, particular relevância assumem os programas Educação pelo esporte e o Sistema de Gestão Integrado (SGI). Aquele, ainda em execução, desenvolve ações direcionadas à prática da Educação Física, visando “contribui[r] para a melhoria da qualidade da educação pública, em favor da construção da competência escolar” (Instituto Alpargatas, s.d., n.p.). Nessa direção, e considerado, pelo Instituto, como de “importância ímpar”, o pilar de Reconhecimento de Boas Práticas confere o Prêmio de Educação – categorias Aluno Nota 10, Professor Nota 10 e Gestão Nota 10 – que, em nossa compreensão, constitui um processo de formação docente, visto que induz a adoção de pretensas boas práticas e um certo desempenho do professor – indicadores da avaliação para atribuição do prêmio Professor Nota 10.

Embora de duração restrita a 2 anos (2011–2012), consideramos o SGI, desenvolvido pelo Instituto Alpargatas em articulação com o Instituto Camargo Corrêa, como um programa de caráter estruturante, por meio do qual foi instaurado o gerencialismo como padrão de gestão administrativo-pedagógica do Sistema Municipal de Ensino (SME), pautado na defesa da eficiência, eficácia e produtividade, inspirado na qualidade do setor privado e com exigências que resultaram na intensificação do trabalho docente (Medeiros, 2013).

Conquanto formalmente encerrado o SGI, sua lógica continua vigente na rede municipal de Campina Grande, como um pressuposto tácito da gestão escolar e do trabalho docente, à qual vem se agregar, aprofundando-a, o processo de formação e de monitoramento da prática pedagógica, desenvolvido, desde o ano de 2016, pela Fundação Lemann.

Com início na versão piloto (2016) do programa Gestão Para a Aprendizagem – posteriormente programa Formar (2018) –, esse APH, diretamente ou por seu afiliado, o Instituto Gesto (2020), implementa uma pedagogia da hegemonia no SME de Campina Grande-PB. Sob a finalidade proclamada de “aperfeiçoar a gestão de redes públicas de educação” (Fundação Lemann, 2021, n.p.), mediante “orientação e apoio [às redes públicas] para construir políticas que potencializam a aprendizagem” (Fundação Lemann, 2023, n.p.), a Fundação entranha-se de tal modo nas estruturas do SME a ponto de a rede municipal ter sido certificada, em março de 2023, como Rede Graduada pelo Programa Formar, do Instituto Gesto/Veto – premiação que atesta a subordinação da formação de professores e do trabalho docente às prescrições dos programas implementados pelo referido APH.

Analisando a atuação desses APH na rede pública municipal, resta evidente o predomínio do neoliberalismo como ideário fundante da sociabilidade burguesa e da Nova Gestão Pública neste contexto da mundialização do capital financeiro. Tal sociabilidade é forjada sobre a entronização do indivíduo competitivo, consumidor e empreendedor de si, e disseminada por uma educação nutrida pelas concepções de capital humano e capital social.

Essa concepção do indivíduo contemporâneo, ainda mais “voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em sua arbitrariedade privada e dissociado da comunidade” (Marx, 2000, p. 37), implica um cidadão apequenado, dada a nova dimensão de cidadania instaurada, estreitada até quando comparada à liberal clássica: a cidadania financeira, definida como “o exercício de direitos e deveres que permite ao cidadão gerenciar bem seus recursos financeiros” (Banco Central do Brasil, 2018, p. 7).

Apregoando desenvolver ações para promoção de tal cidadania financeira, também agências do campo das finanças, como o Banco Central do Brasil (BCB), compartilham, com os institutos de empresa do ramo da produção, a colonização das escolas públicas, objetivando a construção de um senso comum acerca dessa alienada e alienante compreensão da cidadania. Trata-se, pois, de verdadeira estratégia de construção e disputa de hegemonia no país. Um exemplo desse processo pode ser verificado nos programas implementados no âmbito da Seduc-CG, como demonstrado a seguir.

Nesta perspectiva, o presente artigo propõe-se a analisar as ações de formação continuada dos professores da rede municipal de Campina Grande-PB, focalizando dois programas, iniciados em 2021 e 2022, respectivamente: o Programa Aprender Valor – uma iniciativa do BCB – e o Programa Alfabetização Campina de A a Z, criado pela Seduc-CG.

Em nossas análises, partimos do pressuposto de que as formações deferidas pela Seduc-CG estão coerentes com o aprofundamento da lógica consumista, empreendedora e do mundo dos negócios, destacada do capital financeiro rentista, especulativo e de investimentos, em detrimento de uma concepção de formação crítica e de aprofundamento epistemológico dos processos didático-pedagógicos de ensino e aprendizagem, que apontam para uma perspectiva emancipatória.

O artigo está organizado, além da presente Introdução, em duas seções, nas quais tratamos, primeiramente, da atuação dos APH na formação continuada de professores da rede municipal de Campina Grande-PB e, sequencialmente, da organização, pela Seduc-CG, de ações de formação docente, no âmbito dos referidos programas. Por fim, são expostas nossas sínteses centrais acerca da temática abordada.

A atuação dos aparelhos privados de hegemonia na rede municipal de ensino de Campina Grande-PB

A contrarreforma gerencial na gestão pública, no âmbito da educação, pode ser percebida, entre outros aspectos, por meio de projetos implementados nas redes públicas de ensino, em parceria com o setor privado. No município de Campina Grande-PB, no início dos anos 2000, programas do Instituto Ayrton Senna (IAS), direcionados ao processo de ensino-aprendizagem, implicaram uma determinada formação dos professores e controle da sua atuação.

Tratou-se de programas intercomplementares – Se Liga e Acelera Brasil – cujo foco comum era a alfabetização dos alunos e a correção da distorção idade-série, essa última mais forte no Acelera Brasil, voltado à aceleração de aprendizagem para estudantes do 3º ao 5º anos do ensino fundamental (EF) (Instituto Ayrton Senna, 2022a, 2022b).

Entendemos que a formação continuada desenvolvida no âmbito desses programas assume um caráter subsidiário, como um mero suporte instrumental, visto o IAS apresentá-la como um apoio à implementação das propostas metodológicas. Tal formação consiste no desenvolvimento de atividades visando que os professores “se apropriem das metodologias necessárias”, num primeiro momento, e, ao longo da execução do Programa, “[garantam] o apoio necessário à implementação [das atividades propostas]” (Instituto Ayrton Senna, 2022a, n.p.).

No âmbito da gestão educacional do município em foco, destaca-se a implementação do SGI, desenvolvido pela Fundação Pitágoras e adotado pelo Programa Escola Ideal, do Instituto Camargo Corrêa. Efetivo instrumento de impregnação do gerencialismo nas escolas públicas municipais, o SGI foi implementado a partir de 2009, contando com formação específica para gestores e supervisores nos anos de 2010 e 2011. De acordo com a Seduc-CG, os gestores e os supervisores participantes se tornariam “multiplicadores” para as demais escolas da rede no ano de 2013, o que não ocorreu (Medeiros, 2013).

Essa formação teve o apoio do Instituto Alpargatas, consistindo em um curso para gestores das escolas participantes, que deveriam elaborar uma monografia sobre a implementação do SGI na escola em que atuavam – condição necessária para obterem o título de especialista em Gestão Escolar, validado pelo núcleo de Pós-graduação da Faculdade Pitágoras.

As informações necessárias à implementação do SGI foram repassadas aos professores pelas equipes de liderança (gestores e supervisores) de cada escola, com ações orientadas para a execução de tarefas, o cumprimento de metas e a avaliação voltada para os resultados. Esse modus operandi sugere a existência de uma relação necessária, direta e implícita entre gestão escolar e desempenho na aprendizagem dos alunos, razão pela qual às escolas caberia somente implantar o SGI.

De forma mais nítida que nos programas do Instituto Ayrton Senna, no SGI os professores apenas receberam as instruções das ações a serem executadas em sala de aula, sendo alijados, tanto da participação nas diferentes fases do Programa (concepção e elaboração) quanto de sua autonomia docente, na discussão sobre os desafios na gestão.

As iniciativas políticas em prol da intensificação da atuação dos APH na educação pública campinense ganharam outro patamar quando, em 2011, foi aprovada a Lei n.º 5.043/2011 (Campina Grande, 2011), que instituiu o Programa de Parceria Público-Privada no município. Já em 2013, por iniciativa da prefeitura municipal, foi aprovada a Lei de Gestão Pactuada – Lei municipal n.º 5.277/2013 (Campina Grande, 2013) –, que permite a terceirização dos serviços municipais de saúde. Todavia, o então prefeito Romero Rodrigues (PSDB) intentava ampliar os efeitos dessa lei para as diversas áreas da gestão pública, como a educação, por exemplo, evidenciando sua identificação política com a lógica e racionalidade privatizantes.

No entanto, em decorrência da mobilização dos servidores públicos e da manifesta rejeição social à privatização da gestão da saúde e da educação, a implementação dessa lei não alcançou o êxito esperado. Mas isso não significa que a atuação dos APH na educação pública municipal tenha sofrido descompasso ou retrocessos. Ao contrário, seguiu com todo apoio e centralidade por parte dos gestores que se sucederam.

Um novo passo na direção da racionalidade gerencial na rede foi dado, pela Seduc-CG, ao estabelecer parceria com a Fundação Lemann, que assumiu, desde 2016, o posto de principal APH em atuação na rede municipal de educação. A partir de 2018, as ações de “orientação e apoio” ficaram a cargo do seu afiliado, o Instituto Gesto, mentor do programa Alfabetização Campina de A a Z, ora em desenvolvimento.

Lançado em 2022, esse programa objetivou desenvolver ações para alfabetização e letramento nas turmas do pré-escolar II e dos 1º e 2º anos do EF, conforme divulga a Seduc-CG, destacando que é uma contribuição para a consecução da Meta 5 do Plano Nacional de Educação – PNE (Brasil, 2014). De acordo com o secretário de educação da rede municipal de Campina Grande, Raymundo Asfora Neto4, em entrevista quando do lançamento do Programa, o “Campina de A a Z surgiu a partir da urgência de reparar os danos que a pandemia provocou no processo educacional” (Paraíba Online, 2024, n.p.). Conforme exposto na notícia, o Programa tem como público-alvo as crianças matriculadas em turmas que são submetidas a avaliações de leitura e escrita, com foco na alfabetização nessa fase de desenvolvimento

Desde 2023, a Seduc-CG disponibiliza uma ferramenta denominada Material de Apoio Pedagógico (MAP), para acesso, pelos professores, aos projetos implementados na rede, bem como aos materiais trabalhados ou indicados nas formações, divulgando conteúdos considerados como de apoio para a prática pedagógica docente, de acordo com as ações propostas pela Secretaria. O MAP apresenta textos hiperlinkados, disponibilizados nos grupos de WhatsApp de gestores, equipe técnica e professores. Nessa ferramenta, é possível encontrar informações e arquivos dos dois programas que analisamos, o Aprender Valor e o Alfabetização Campina de A a Z.

O programa Aprender Valor foi efetivado em Campina Grande-PB no ano 2021, sendo nomeado de “Dei Valor”, pela Seduc-CG. De iniciativa do BCB, esse programa visa estimular o desenvolvimento de competências e habilidades de Educação Financeira e Educação para o Consumo em estudantes das escolas públicas brasileiras” (Aprender Valor, s.d., n.p.).

Conforme o sítio do Aprender Valor5, o programa apresenta: 68 projetos escolares, que contam com “aulas prontas” de língua portuguesa, matemática, geografia e história para os professores do ensino fundamental aplicarem em sala; cursos de formação de gestores, professores, educação financeira pessoal e elaboração de projetos escolares com educação financeira; além de avaliações de aprendizagem, com teste de letramento financeiro para turmas do 3º, 5°, 7º e 9º anos do EF.

A educação financeira nas escolas públicas é apresentada de forma “transversal e integrada aos componentes curriculares língua portuguesa, matemática ou ciências humanas, considerando também habilidades socioemocionais” (Aprender Valor, s.d., n.p.). Tanto a educação financeira quanto a educação para o consumo são vistas como urgentes no contexto escolar, considerando os impactos sociais dessa temática na vida das pessoas e a necessidade de que crianças e adolescentes “desenvolvam comportamentos financeiros saudáveis” (Aprender Valor, s.d., n.p.).

O BCB, em parceria com o Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (CAEd/UFJF), desenvolveu ferramentas e recursos educacionais para implementação e execução de ações, quais sejam: plataforma de gestão e monitoramento; formação on-line para gestores e professores; uso de recursos financeiros para poupar e gerenciar o uso de crédito; recursos educacionais para uso em sala de aula, a partir de projetos escolares e avaliações constituídas de testes aplicados ao longo do ano para verificar os efeitos do programa.

Na rede municipal de ensino campinense, conforme informações disponíveis no MAP, o programa Dei Valor apresenta propostas de educação financeira para todos os estudantes do 1º ao 9º anos do EF, inclusive nas modalidades Educação do Campo e Educação de Jovens e Adultos (EJA), com base nos jogos Piquenique e Bons Negócios (Instituto Brasil Solidário, s.d.), em vídeos educacionais da Turma da Mônica e nos e-books do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e do Ministério da Educação (MEC), veiculados em parceria com a Sicredi (Secretaria de Educação de Campina Grande, 2024)

No ano de 2023, as ações do programa Dei Valor foram concluídas nos meses finais do ano letivo, com a realização de uma feira de empreendedorismo organizada pela Seduc-CG. Nessa feira, as crianças comercializaram os produtos por elas confeccionados, utilizando uma moeda própria – Borborema –, criada especificamente para uso no evento e com valor financeiro equivalente à moeda nacional (Real).

Quanto ao Alfabetização Campina de A a Z, que também conta com materiais disponíveis no MAP, a Seduc-CG realizou, em 2023, a “I Jornada Formativa”, a qual foi direcionada aos professores atuantes nas respectivas etapas de abrangência inicial do programa, quais sejam: o pré-escolar II, além do 1º e 2º anos do EF.

Recentemente, em maio de 2024, seguindo orientações do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada – ação do MEC em parceria com o CAEd/UFJF –, foi lançado o curso Leitura e Escrita na Educação Infantil, direcionando as formações para os professores do pré-escolar I e II, de creches e escolas da rede pública municipal de ensino de Campina Grande-PB. Como se vê, foram acrescentados ao público-alvo das formações continuadas os professores do pré-escolar I. A análise dessas ações de formação docente constitui o objeto da próxima seção deste artigo.

Formação continuada no âmbito dos Programas: o que está em jogo?

De início, esclarecemos que as ações de formação docente buscam a consolidação dos programas e iniciativas concebidas por organizações sociais presentes na educação municipal. A seguir, apresentamos breve descrição sobre o desenvolvimento dessas ações no âmbito dos programas aqui enfocados.

Conforme já informado, o Alfabetização Campina de A a Z teve a I Jornada Formativa em 2023. Direcionada aos professores de creches e escolas, urbanas e do campo, essa Jornada foi organizada por grupos: Agrupamentos Produtivos e Planejamento de Atividades com Intervenções Pedagógicas (para professores de 1º e 2º anos do EF); Pensamento Computacional (para professores do pré-escolar II, do 1º e do 2º anos do EF); Educação Infantil: a linguagem que se escreve e a análise da língua escrita (para professores do pré-escolar II); Formação Instituto Gesto (para técnicos pedagogos que atuam no pré-escolar II e no EF); Educação Infantil: apresentação de resultados da 1ª sondagem de escrita/Oficina: produção de atividades (para professores e técnicos pedagogos do pré-escolar II); Educação Infantil: orientação aos professores e técnicos do pré-escolar II quanto à sondagem do 2º bimestre e apresentação do 2º instrumento (professores e técnicos pedagogos do pré-escolar II).

Em parceria com o Instituto Gesto, foram encaminhados às escolas kits pedagógicos – constituídos de um robô e do material de alfabetização –, destinados às turmas envolvidas no referido programa. O encaminhamento de kits de robótica – notebooks para os professores e chromebooks para as escolas – vem sendo divulgado como uma ação fundamental da Seduc-CG, impulsionando a propaganda de que “a educação de Campina Grande é tech”.

Ainda como parte desse intento formativo, a Seduc-CG orientou as escolas para o dia do Matgames, momento em que os professores deveriam desenvolver atividades – plugadas ou desplugadas – utilizando os chromebooks. Os professores também deveriam elaborar, no desenvolvimento das aulas, jogos matemáticos com os estudantes, contemplando os projetos bimestrais, que são orientados pela própria secretaria municipal.

Em relação ao Dei Valor, a Seduc-CG apresentou, em julho de 2023, a ação “Empreender na escola”, mediante a um material de idêntico nome destinado a professores e técnicos e disponibilizado no MAP, no qual estava estabelecida, como culminância, a já referida Feira do Empreendedorismo e uma versão denominada Feira do Empreendedorismo do Campo, colocando em destaque o letramento financeiro, o processo de alfabetização e a recomposição da aprendizagem. Ademais, a Secretaria enviou às escolas os jogos Piquenique e Bons Negócios, adquiridos por meio da parceria com o Instituto Brasil Solidário (s.d.).

Esses jogos supracitados buscam inserir os alunos das escolas públicas em atividades relacionadas ao uso do dinheiro. O Piquenique, jogo de tabuleiro, leva o conceito de poupar em situações de consumo, no qual os alunos precisam tomar decisões objetivando economizar; já o Bons Negócios, jogo de cartas, busca instigar a negociação e exercitar habilidades de empreender e investir.

O que está em jogo nas formações continuadas dos professores da rede municipal de ensino de Campina Grande? No campo semântico do aprendizado por meio de jogos, a Seduc-CG destaca o Matgames como uma ação do Alfabetização Campina de A a Z, usando a justificativa da gamificação da aprendizagem como metodologia de ensino.

No link do Matgame, disponibilizado no MAP, a Seduc-CG explicita que o mesmo é um material orientador aos professores pedagogos e de matemática para “a elaboração e execução de situações de aprendizagem com foco no desenvolvimento das habilidades matemáticas, nas quais os estudantes apresentaram menor nível de aprendizagem na Avaliação Diagnóstica – SAMA6 2024” (Secretaria de Educação de Campina Grande, 2024, n.p.).

No material de orientação para os professores, supervisores e orientadores, disponibilizado no MAP, são utilizadas citações da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) sobre educação financeira, com outros componentes curriculares e um item correspondente à construção de novas práticas e como aplicar em sala de aula. Nesse item do material, há a indicação de como trabalhar com “trilha de aprendizagem”, que busca desenvolver competências necessárias para o desempenho dos estudantes.

No MAP, não há destaque ou detalhamento das formações continuadas da Seduc-CG sobre os jogos encaminhados para as escolas que indiquem uma reflexão mínima sobre os objetivos dessas atividades ou a preocupação com o contexto social no qual as escolas estão inseridas. A rigor, como se evidencia, não foram realizados cursos de formação, no sentido estrito do termo, mas ações pontuais para entrega de material (jogos didáticos) e informações ou instruções rápidas (MAP) com o passo a passo acerca dos usos possíveis em forma de projetos em disciplinas curriculares específicas (português e matemática). Cabia aos professores o estudo individual dos MAPs e a elaboração de estratégias didáticas a serem implementadas em suas aulas, assegurando a veiculação dos conteúdos.

Do ponto de vista legal, os documentos divulgados pela Seduc-CG informam, genericamente, que a formação continuada na rede municipal de ensino está embasada na Resolução CNE/CP n.º 02 de 20157 (Brasil, 2015). Entretanto, analisando as ações formativas organizadas pela Seduc-CG, particularmente a partir dos programas em tela, consideramos que tais ações tornam-se discrepantes com as citadas diretrizes nacionais. A referida resolução, por exemplo, estabelece, em seu Capítulo VI:

Art. 16. A formação continuada compreende dimensões coletivas, organizacionais e profissionais, bem como o repensar do processo pedagógico, dos saberes e valores, e envolve atividades de extensão, grupos de estudos, reuniões pedagógicas, cursos, programas e ações para além da formação mínima exigida ao exercício do magistério na educação básica, tendo como principal finalidade a reflexão sobre a prática educacional e a busca de aperfeiçoamento técnico, pedagógico, ético e político do profissional docente

(Brasil, 2015, p. 13, grifo nosso).

Fica notório, pela análise do MAP disponibilizado pela Seduc-CG e pelas informações acerca de como se deu a I Jornada Formativa, que não há como relacionar tais formações ao que estabelece a Resolução CNE/CP n.º 02/2015 (Brasil, 2015). Primeiro, em nenhum momento tratou-se do processo pedagógico em curso nas escolas, das práticas docentes e de possíveis necessidades formativas, por parte das crianças ou dos próprios professores, em termos teórico-metodológicos – no sentido de se buscar o aperfeiçoamento do trabalho escolar como um todo e, por conseguinte, a melhoria da aprendizagem das crianças. Portanto, o conteúdo dessas ações de formação continuada pode ser considerado como alheio às necessidades formativas dos professores, uma vez que elas não foram previamente identificadas ou sistematizadas como demandas legítimas da própria rede, a partir das quais se definiria o conteúdo formativo a ser trabalhado.

Também a forma dessas ações, verticalizada em sua concepção e em sua implementação, demonstra tratar-se de um modelo concebido alhures, por sujeitos igualmente distantes da realidade escolar da rede municipal de ensino, e cabendo aos realizadores locais apenas as providências institucionais (termos de parceria, agenda, cronograma, equipes responsáveis etc.) e materiais (espaço físico, divulgação, insumos midiáticos, mobilização e articulação com gestores escolares etc.) para sua devida implementação.

Ao adotar os “pacotes formativos” concebidos pelos APH de turno – os chamados parceiros – como alternativa de formação continuada para os profissionais do magistério da rede municipal de ensino, a Seduc-CG abre mão, por um lado, de um princípio constitucional basilar do desenvolvimento educacional público do país, que é a gestão democrática, recorrendo a organizações empresariais para a concepção e implementação da política educacional do município, pelo menos no que diz respeito à formação continuada. Tal escolha política representa claro e total desprezo dos potenciais e capacidades instaladas e disponíveis localmente, seja no corpo docente público municipal, seja nas instituições públicas de educação superior da região, agentes formadores por natureza e excelência.

Ainda quanto à forma, outro aspecto importante da crítica diz respeito ao fato de se promover uma ação pretensamente formadora, a exemplo da I Jornada de 2023, sem que a mesma tenha sido resultado de um processo analítico ou de mapeamento de necessidades pedagógicas – docentes e discentes – e teórico-metodológicas, com contornos minimamente acadêmicos e sem envolvimento efetivo dos profissionais da rede nesse processo. Quando realizada assim, abstraída da realidade escolar, a formação continuada tende a ser inconsequente, sem adesão ou assimilação objetiva por parte das comunidades escolares envolvidas, limitando-se ao oferecimento de pacotes didáticos, de conteúdos alheios ou secundários, com efeitos por vezes mais midiáticos que pedagógicos na qualificação do processo ensino-aprendizagem.

A breve análise documental a que nos propusemos neste artigo demonstra a fragilidade e a superficialidade conceitual com que se aborda a “formação continuada” nas ações da Seduc-CG. A rigor, o que se chama de formação continuada limita-se a uma ação pontual, de caráter instrumental e informativo, desprovida de aprofundamento teórico-metodológico e sem embasamento no diagnóstico das necessidades pedagógicas da realidade escolar da própria rede.

Considerações finais

A escola constitui-se, historicamente, como uma instituição social voltada especificamente ao cultivo e à difusão do conhecimento, nutrindo-se de uma racionalidade antitética a do mundo dos negócios, compreensão – ao menos aparentemente – assumida como um senso comum. Entretanto, no movimento do real, a Educação Básica vem se tornando um promissor nicho de expansão do capital, razão pela qual APH de organizações empresariais capitalistas passam a atuar, direta e indiretamente, nas redes públicas de ensino, consubstanciando uma disputa pela hegemonia no processo de formação das novas gerações.

Como visto neste artigo, a formação continuada dos professores da rede municipal de Campina Grande-PB, sob a égide de APH, limitou-se à entrega de material didático e à instrução para que os professores pudessem desenvolver em suas aulas, junto às crianças, conteúdos de uma educação para o consumo, de modo que estas assimilem, desde cedo, a sociabilidade capitalista – essencialmente individualista, consumista e financeirizada, e especulativa.

Desse modo, o que está em jogo na política educacional do referido município é uma formação para a – pretensa – cidadania financeira neoliberal, desenvolvendo nas crianças alunas da rede pública de ensino o decantado cidadão consumidor e empreendedor que internalizará uma autorresponsabilização por seus êxitos ou fracassos sociais. Tal processo, se bem sucedido, configurará a afirmação, como hegemônica, da sociabilidade característica do atual estágio, intensamente destrutivo, do modo de produção capitalista.

Notas

  • 1
    Os APH são organizações privadas, criadas no âmbito da sociedade civil (Gramsci, 1987), com vistas a uma atuação político-ideológica na defesa dos interesses econômico-políticos – capitalistas – e ideais sociais dos grupos ou frações da classe que representam. Constituídos com personalidade jurídica, esses aparelhos têm atuado direta e indiretamente nas diversas esferas governamentais, sobretudo na definição de políticas públicas (agenda, concepção, elaboração, implementação, acompanhamento e avaliação) voltadas para áreas sociais, como a educacional pública. Dessa forma, infiltrados nos canais oficiais públicos – estatais –, os APH disputam “corações e mentes” e dissipam ideológica e praticamente um modus operandi privado e privatizante na gestão pública, mostrando-se como alternativa à presença e ação estatais; e isso num contexto neoliberal em que se propala uma suposta ineficácia e ineficiência do Estado – o qual, por sua vez, deve ser permanentemente reformado e flexibilizado, aberto à uma “nova governança” que seja, ao mesmo tempo, parceira e benéfica ao ente privado, seu “parceiro fiel” e principal referência.
  • 2
    São eles: Instituto Ayrton Senna (199[8] a 2004); Instituto Alpargatas (2006-atual); Instituto Camargo Corrêa (2011-2012); Instituto Avisalá (2009-2010); Instituto C&A (2011-2012); Instituto Natura (2012); Instituto Mary Kay (2016); Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo – Paraíba/Sistema de Crédito Cooperativo (desde 2001, provavelmente); Fundação Lemann/Instituto Gesto (2016-atual).
  • 3
    Para maiores informações sobre os Institutos: Cf. https://www.institutoalpargatas.com.br/ e https://fundacaolemann.org.br/.
  • 4
    Em 3 de abril de 2024, assumiu a presidência do diretório municipal do União Brasil, partido a que pertence o atual prefeito do município, Bruno Cunha Lima.
  • 5
    Para mais informações sobre este programa, cf. https://www.bcb.gov.br/site/aprendervalor/conhecer.
  • 6
    Por meio do Sistema Municipal de Avaliação da Aprendizagem (SAMA), sistema próprio do município, são realizadas avaliações ao final do Ciclo de Alfabetização, valendo-se dos indicadores da Provinha Brasil e da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA).
  • 7
    Tomamos como referência esta resolução por ser aquela referida pela Seduc-CG. Todavia, ela foi revogada pela Resolução CNE-CP n.º 01, de 2 de julho de 2019 (Brasil, 2019) – Base Nacional Comum (BNC)-Formação Inicial – e Resolução CNE-CP n.º 01, de 27 de outubro de 2020 (Brasil, 2020) – BNC-Formação Continuada. Essas resoluções foram revogadas pela Resolução CNE/CP n.º 4, de 29 de maio de 2024 (Brasil, 2024), que não trata da formação continuada.

Agradecimentos

Não se aplica.

Disponibilidade de dados de pesquisa

Não se aplica.

Referências

Editado por

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2024
  • Aceito
    30 Dez 2024
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