Open-access FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES E EDUCAÇÃO ESPECIAL EM UNIVERSIDADES PÚBLICAS DE MINAS GERAIS

INITIAL TEACHER EDUCATION AND SPECIAL EDUCATION IN PUBLIC UNIVERSITIES OF MINAS GERAIS

FORMACIÓN INICIAL DOCENTE Y EDUCACIÓN ESPECIAL EN UNIVERSIDADES PÚBLICAS DE MINAS GERAIS

RESUMO

O artigo aborda a educação especial nos currículos dos cursos de licenciaturas nas instituições de ensino superior públicas do estado de Minas Gerais. Objetiva discutir concepções norteadoras das disciplinas, fundamentando-se em estudos sobre formação docente no país. Ainda, apresenta levantamentos bibliográfico e das disciplinas, além de documentos normativos. Constatou-se que a educação especial, geralmente, é tratada por meio de uma concepção médica e psicopedagógica com algumas inserções de aspectos mais amplos, como políticos, sociais e econômicos. Não foi possível, apenas por meio da leitura das ementas, perceber discussões que possibilitem a mediação entre a complexidade do contexto histórico e do sujeito inserido neste contexto como forma de tensionar e transformar a realidade.

Palavras-chave
Educação especial; Inclusão escolar; Formação docente; Formação inicial; Currículo

ABSTRACT

The article addresses special education within the curricula of teacher education programs at public higher education institutions in the state of Minas Gerais, Brazil. It aims to discuss the guiding concepts of the courses, based on studies about teacher training in the country. It also presents bibliographic surveys and analyses of courses, as well as normative documents. It was found that special education is generally approached through a medical and psychopedagogical conception, with some inclusion of broader aspects such as political, social, and economic factors. However, the reading of the course descriptions alone did not reveal discussions that enable the mediation between the complexity of the historical context and the individual embedded within this context as a means to challenge and transform reality.

Keywords
Special education; School inclusion; Teacher training; Initial teacher education; Curriculum

RESUMEN

El artículo aborda la educación especial en los currículos de los grados de licenciatura en las instituciones de educación superior públicas del Estado de Minas Gerais, Brasil. Tiene como objetivo discutir las concepciones guía de las disciplinas, basándose en estudios sobre la formación del profesorado en el país. También presenta revisiones bibliográficas y de las disciplinas, además de documentos normativos. Se constató que la educación especial generalmente se trata desde una concepción médica y psicopedagógica, con algunas inserciones de aspectos más amplios como políticos, sociales y económicos. No fue posible, solo mediante la lectura de los programas de estudio, identificar discusiones que permitan la mediación entre la complejidad del contexto histórico y el sujeto inmerso en este contexto, como forma de tensionar y transformar la realidad.

Palabras clave
Educación especial; Inclusión escolar; Formación docente; Formación inicial; Currículo

Introdução1

A formação docente no Brasil, historicamente, é permeada por inúmeras questões e enfrenta uma série de conflitos e disputas. Coimbra (2020) conduziu um estudo e análise dos modelos de formação docente presentes em diferentes momentos históricos no país, evidenciando as múltiplas concepções e formas de se pensar e agir concernente à formação docente. Aponta ainda que a formação docente está diretamente relacionada à perspectiva de sociedade que se deseja em determinado período histórico.

Notadamente quando se trata da educação especial, essas questões são significativamente expressivas. É válido destacar um levantamento realizado por Bueno (2002) sobre a educação especial nos cursos de licenciatura do país, na virada do século 20 para o século 21. O autor evidenciou que os cursos de licenciatura até aquele momento ofertavam poucas disciplinas que se referiam à temática da educação especial, expressando assim um distanciamento entre a formação específica de cada disciplina e a educação especial. Na mesma linha, Michels (2017) desenvolveu uma análise sobre a referida temática nos cursos de formação docente e apontou que “em alguns casos o currículo ajudou a consolidar a educação especial pela sua particularidade e, inevitavelmente, colaborou para a permanência dos alunos considerados deficientes fora da Educação Regular” (Michels, 2017, p. 35).

Entre o momento evidenciado por Bueno (2002) e Michels (2017) até a atualidade, houve algumas mudanças no contexto social e político, tanto em relação ao acesso dos estudantes público da educação especial às escolas regulares quanto no cenário da formação inicial docente. Entretanto, apesar de certos avanços, há, na atualidade, uma forte tensão no campo da formação docente no país, principalmente no que se refere a legislações que orientam a estruturação curricular dos cursos de licenciaturas, desconsiderando avanços evidenciados até então e, consequentemente, impactando negativamente a formação de professoras e professores para atuação na educação básica.

Este artigo tem como objetivo apresentar e discutir, de forma ainda inicial, as concepções norteadoras das disciplinas que tratam sobre educação especial e inclusiva nas Instituições de Ensino Superior (IES) públicas do estado de Minas Gerais. Metodologicamente, apresenta a) um levantamento bibliográfico com foco na formação de professores e políticas de educação, especificamente Educação Especial, a fim de evidenciar um cenário concernente à discussão; b) documentos normativos que tratam sobre a formação de professores em geral; c) levantamento de disciplinas que abordam a temática em questão.

Para colher os dados concernentes às disciplinas realizou-se uma busca, primeiro pelas IES públicas do estado de Minas Gerais e, depois, por meio de seus sites. Buscou-se os currículos dos cursos das licenciaturas, com o intuito de identificar: a) os títulos das disciplinas que tratam sobre educação especial e inclusiva; b) as ementas; c) a carga horária; e a d) modalidade, ou seja, se a disciplina é obrigatória ou não. Os dados obtidos, correspondentes aos currículos vigentes até o início de 2023, foram organizados em tabelas, quadros e gráficos para análise. Das 20 IES localizadas em Minas Gerais, 2 não oferecem cursos de licenciaturas; assim, este trabalho analisou disciplinas de 116 cursos de licenciaturas diferentes, distribuídos em 18 IES públicas.

Para a análise sobre as concepções norteadoras da formação inicial docente nas IES, utilizou-se a conceituação sobre perspectivas de educação da pessoa com deficiência (PcD) desenvolvida por Jannuzzi (2004), que aborda três grandes perspectivas educacionais relacionadas à educação especial: a perspectiva médico-pedagógica e psicopedagógica; a perspectiva que insere o sujeito com deficiência no contexto, ou seja, apresenta as consequências sociais da deficiência; e a perspectiva “que procura considerar os dois lados da questão: a complexidade do indivíduo num momento histórico específico” (Jannuzzi, 2004, p. 11), em que a educação pode atuar como mediadora no processo de transformação da realidade, compreendendo que a trajetória social institui a identidade do sujeito com deficiência.

Por meio do objetivo proposto será possível compreender como a educação especial está sendo tratada nos cursos de formação de professores do estado: se há uma abordagem que dialoga com a realidade social e, portanto, se está inserindo a discussão sobre a deficiência e a pessoa com deficiência no marco das interações sociais de uma sociedade dividida em classes sociais; ou se há a reprodução de um discurso que aparta o sujeito e sua deficiência da vida concreta. Portanto, refletir sobre a estrutura das disciplinas pode ser um indicativo de como estão sendo formados(as) os(as) futuros(as) professores(as) acerca da educação especial na perspectiva da educação inclusiva.

Diante do exposto, destaca-se que a ementa diz muito sobre o andamento da disciplina, porém cada professor(a) tem certa autonomia e uma fundamentação que encaminhará as discussões realizadas, assim como a participação e o envolvimento discente. Portanto, não se pode afirmar que somente com a análise da ementa é possível dizer sobre a atuação profissional no que concerne à inclusão escolar do estudante da educação especial, pois esse processo permeia uma série de outras questões. Segundo Garcia (2013, p. 103) “[...] a simples inserção de disciplinas e/ou conteúdos específicos não atribui à formação docente uma perspectiva orgânica acerca da educação dos sujeitos da Educação Especial, quer seja no curso de pedagogia ou nas demais licenciaturas”. Entretanto, é essencial que haja uma expansão das disciplinas que abordem a educação especial sob uma perspectiva crítica da realidade.

Para efetivar essa discussão, o artigo divide-se em três partes. A primeira discute a formação de professores em âmbito geral interligando a discussão referente à educação especial. A segunda apresenta e discute alguns dados concernentes à pesquisa realizada nos sites das IES públicas do estado de Minas Gerais; e, por fim, apresentam-se as considerações finais.

A formação de professores e a educação especial

Há algum tempo acompanham-se críticas sobre a formação docente permeando a ausência de elementos para lidar com a prática educativa, a insuficiência de conteúdos específicos da área ou da didática, a desarticulação do que é transmitido nesses cursos com a realidade que se enfrenta e, até mesmo, a ausência de perspectiva de carreira e do status profissional impostos à profissão docente.

Michels (2006) indica que a formação docente fundamentada em documentos internacionais basais para a elaboração das normativas nacionais está em consonância com as exigências da “moderna sociedade”, preconizando a aquisição de competências para:

[...] trabalhar em parceria com a comunidade escolar, resolver problemas da escola, achar soluções criativas ao problema concernente ao processo ensino-aprendizagem de seus alunos, até mesmo às situações da comunidade em que a escola está inserida

(Michels, 2006, p. 414).

Nessa medida, as situações reais de trabalho são descartadas, pois entende-se que a boa vontade e a capacidade técnica são suficientes para dar conta da complexidade da atuação profissional; e a formação docente vista como uma estratégia válida para a melhoria da qualidade do ensino é entendida por organismos como o Banco Mundial como um “investimento” marginal entre as prioridades e estratégias propostas aos países em desenvolvimento, desaconselhando:

[...] o investimento na formação inicial dos docentes e recomenda priorizar a capacitação em serviço, considerada mais efetiva em termos de custo. [...] recomenda que ambas aproveitem as modalidades a distância, também consideradas mais efetivas em termos de custo que as modalidades presenciais

(Torres, 2003, p.162).

De acordo com Pereira (2021), para essa entidade o principal desafio não se restringe à universalização da educação por meio do acesso, mas à universalização da aprendizagem. No entanto, curiosamente, destaca que para atingir esse fim:

[...] o que se destaca não é a pedagogia, mas sim a gestão. De fato, a abordagem do Banco busca incidir no desenho e na dinâmica da gestão escolar e do sistema educacional, concebendo a “reforma educacional” a partir de princípios administrativos, e não pedagógicos ou políticos

(Pereira, 2021, p. 7).

Tanto a formação inicial quanto a continuada são importantes no processo de profissionalização docente. Ambas fazem parte de um processo de formação que não deve ser reduzido à simples transferência de técnicas ou conteúdo. Sabe-se que, na relação de ensino e aprendizagem, muito mais do que o saber do conteúdo ou da metodologia a ser utilizada, da atitude e das expectativas do professor, não são de menor importância as condições objetivas para que esse trabalho seja efetivado. Para além das técnicas, faz-se necessário, portanto, as condições efetivas de trabalho, o que não é considerado por organismos que ditam políticas, como o Banco Mundial.

Há 16 anos, referindo-se à política educativa nacional, Patto (2008, p. 35) salientou o fato de que os projetos de reformas educacionais brasileiros contribuem para decretar “a morte do educador, reduzindo-o a um peão do ensino, sob as ordens de uma estrutura hierárquica de educadores, da qual se tornou o último elo”. A forma como as reformas são implementadas no país contribuem sobremaneira para o sucateamento da educação, deixando suas marcas registradas na história.

Nesse contexto, a perspectiva de formação docente filia-se a essa lógica, o que não permite a construção de uma formação com identidade própria, voltada à sólida formação, em que o professor é considerado um profissional que reflete sobre sua prática e suas experiências; apreende as técnicas necessárias ao ensino e à aprendizagem; e estabelece relações entre aquilo que está aprendendo e aquilo que utilizará em sua prática, entre a situação real de trabalho e as questões políticas, sociais e econômicas do país – não sendo um mero executor de práticas com direcionamentos técnicos e pouco reflexivos pensadas por outros.

De acordo com Freitas (2007), propostas pautadas por documentos internacionais de políticas neoliberais preveem a flexibilização na formação docente, relegando as discussões acerca da exclusão para um segundo plano; privilegiando cursos aligeirados, baseados na transmissão de técnicas voltadas para as avaliações externas da educação básica e não contemplando a indissociabilidade entre teoria e prática na formação do professor reflexivo.

Sob ótica semelhante, Tardif (2011) aponta a mudança de significado que o saber escolar passa a ter na nova sociedade. Segundo ele, a escola passa a ser uma empresa que presta serviços a uma clientela de acordo com as expectativas mercadológicas. Assim, a formação que se tem na escola não é mais de nível geral, mas sim de acordo com a flutuação do mercado e de suas exigências.

Nesse cenário, como pensar a educação especial na perspectiva da educação inclusiva? Como pensar a formação docente para atuar nessa escola “inclusiva”?

A formação de professores para a educação especial é um tema recorrente nas discussões do campo, bem como a inclusão escolar do público da educação especial, havendo vasta documentação que trata sobre os processos de inclusão escolar do público da educação especial nas escolas regulares (Brasil, 2008; Brasil, 2009; Brasil, 2015a), bem como estudos sobre a formação docente (Garcia, 2013; Michels, 2006, 2017).

A Resolução n.º 2, de 1 de julho de 2015, que trata sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (Brasil, 2015b), indica a necessidade de que temáticas outrora ausentes dos currículos das licenciaturas sejam incluídas a partir da sua vigência, como: “direitos humanos, diversidades étnico-racial, de gênero, sexual, religiosa, de faixa geracional, Língua Brasileira de Sinais (Libras), Educação Especial e direitos educacionais de adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas” (Brasil, 2015b, p. 11, grifo dos autores).

A partir de alterações após a implementação da Resolução, avanços significativos em relação à ampliação da educação especial têm sido observados nos currículos de cursos de licenciatura no país. Assim, é válido pontuar que “refletir acerca da formação dos professores que atuam na educação especial no modelo vigente implica pensar as tendências atuais para a formação de todos os professores da educação básica” (Garcia, 2013, p. 109). Desse modo, é fundamental compreender como essa temática está sendo abordada para a formação docente na contemporaneidade tendo em vista o cenário social mais amplo.

Souza (2013), em uma busca no banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), encontrou trabalhos que discorrem sobre temáticas presentes nessa discussão num período logo após a promulgação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Brasil, 2008) e anterior à homologação da Resolução n.º 2, de 1 de julho de 2015.

As pesquisas circunscreveram-se na análise da formação inicial, seja através de documentos legais e institucionais que norteiam o Projeto Político Pedagógico dos cursos, seja através de entrevistas, histórias de vida e estudos de casos, propondo discussão sobre as políticas públicas voltadas para a formação do professor e sua atuação na escola regular, a relação teórico-prática presente nos cursos de formação e as impressões dos futuros professores, e as concepções expressas pelas práticas dos professores. Verificou-se como diferentes discursos definem posições e verdades sobre quem precisa ser incluído, e que saberes seriam importantes para que o professor pudesse se sentir preparado para atuar naquela que se convencionou chamar de escola inclusiva. Em algumas pesquisas foi possível explicitar também como a ideia de inclusão aparece aliada aos discursos clínicos, religiosos, psicológicos e educacionais corretivos que a produzem, determinando distintas condições para a inclusão.

Passados alguns anos desde o levantamento apresentado, como a educação especial está sendo tratada nos cursos de formação de professores do estado?

Essa é uma questão que merece destaque, pois a prática do professor expressará as concepções que ele tem sobre inclusão e como esse processo denominado inclusivo se constituiu. Nesse sentido, a formação inicial é de fundamental importância, desde que propicie ambientes favoráveis a discussões e reflexões conceituais e aprofundadas acerca dessa realidade, contribuindo com a formação do futuro professor.

A partir da homologação da Resolução CNE/CP no 2, de 20 de dezembro de 2019 (Brasil, 2019), criada para substituir a anterior, evidenciou-se uma série de disputas no cenário educacional, visto que essa resolução alterava significativamente os cursos de licenciatura, modificando a concepção da formação docente e, consequentemente, transformando todo o currículo dos cursos. Em perfeito alinhamento e influência do modelo neoliberal que, segundo Souza (2013, p. 31), prevê “[...] uma formação de professores aligeirada, desqualificada, desarticulada de qualquer perspectiva reflexiva quanto aos problemas reais que interferem no aprendizado escolar de uma parcela significativa da população”, no entanto, alinhada à perspectiva reformista de organismos internacionais que ditam as políticas internas.

Essas mudanças, segundo Michels (2006), refletem-se dentro da escola, na flexibilização dos tempos, no papel assumido pelo professor nessa nova perspectiva, passando a ser o gestor da educação o mediador entre as políticas e a sociedade. Portanto, sua formação passa a ser pensada sob nova ótica, haja vista a tese central do Banco Mundial para a educação referente a cortes de gastos nos ensinos fundamental, médio e superior.

Houve forte resistência a essa Resolução, e uma nova Resolução foi apresentada. Com a homologação da Resolução CNE/CP nº 4, de 29 de maio de 2024 (Brasil, 2024), sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior de Profissional do Magistério da Educação Escolar Básica, há uma tentativa de conciliar as perspectivas expressas tanto na Resolução n.º 2 de 2015 quanto na Resolução n.º 2 de 2019, demonstrando, assim, as disputas sobre a formação docente em nosso país e o movimento de conciliação com o modelo neoliberal que sustenta a organização social permeando esse cenário.

Assim, o apontamento já feito acima, de que é fundamental compreender como essa temática está sendo abordada para a formação docente na contemporaneidade, tendo em vista o cenário social mais amplo, permanece, agora sob a égide de uma nova resolução2.

As instituições de ensino superior em Minas Gerais e a educação especial

Foram analisados os currículos de 176 cursos de licenciaturas diferentes, em 18 IES de Minas Gerais, a fim de verificar como o tema é abordado. Desses, 60 cursos não oferecem nenhuma disciplina que aborda a temática, sendo assim, a discussão permeará os 116 cursos que a abordam. Para a coleta de dados, realizou-se a busca dos currículos on-line disponíveis nas plataformas das IES e, posteriormente, conduziu-se um levantamento de disciplinas sobre a temática por meio de suas ementas.

Em relação às IES e à quantidade de licenciaturas, apresentamos a Fig. 1 abaixo:

Figura 1
Quantidade de cursos de licenciatura nas IES de Minas Gerais.

Destaca-se que todas as IES analisadas têm ao menos um curso de licenciatura que inclui educação especial e educação inclusiva em seus currículos, seja com foco na educação especial, educação inclusiva ou no público da educação especial, de maneira geral ou específica. Identificou-se 116 cursos que abordam disciplinas entre obrigatórias e optativas – ou seja, 66% das licenciaturas oferecem disciplinas que tratam a educação especial e inclusiva, enquanto 34% ainda não a incluíram em seus currículos. Pode-se refletir que, após 4 anos de implantação da Resolução n.º 2 de 2015, muitas IES do estado de Minas Gerais ainda não inseriram a discussão em seus currículos, e que, a partir de 2019, com a tentativa de implantação de uma nova resolução, houve um adiamento para que essas IES pudessem se adequar à resolução.

Dos 116 cursos de licenciatura analisados, somente 30 deles utilizam o termo educação especial nos títulos das disciplinas obrigatórias, isto é, cerca de 26% em comparação com o total de disciplinas desses cursos, correspondendo a 8 disciplinas nos cursos de pedagogia; 4 disciplinas nos cursos de letras e química; 3 disciplinas nos cursos de ciências biológicas; 2 disciplinas nos cursos de geografia, história e física; e 1 disciplina nos cursos de matemática, dança, educação infantil, educação física e filosofia.

Em relação aos termos educação inclusiva ou inclusão, observa-se que 48% das disciplinas incluem esses termos em seus títulos. Porém, ao analisar as ementas, vê-se, majoritariamente, que a concepção à qual a disciplina está voltada é aquela que abrange a inclusão de maneira geral, com a educação especial inserida nessas disciplinas como uma das temáticas a serem trabalhadas, e não como a temática central.

Sobre as disciplinas que abordam o público da educação especial, de maneira geral ou específica, vemos que elas correspondem a 21% das disciplinas, majoritariamente nos cursos de educação física. Ressalta-se ainda o fato de que o termo portador, seja portador de deficiência ou portador de necessidades especiais, ainda é frequente em algumas ementas das disciplinas, reforçando assim conceitos que não fazem parte das discussões mais recentes do campo.

Com relação à carga horária das disciplinas nos cursos de licenciatura, constatou-se que, dos 158 títulos diferentes das disciplinas, 57 delas têm uma carga horária de 60 horas, 45 apresentam uma carga horária de mais de 60 horas, e 56 têm menos de 60 horas. Dessas, 82% são obrigatórias e 18%, optativas. Esse resultado demonstra, por um lado, um aumento no número de disciplinas que tratam sobre a educação especial nos currículos das licenciaturas em nosso país, o que pode demonstrar um avanço; no entanto, como apontado acima, a inserção de disciplinas não corresponde pari passu a alterações de perspectivas acerca da educação escolar da pessoa com deficiência, como sinalizado por autoras como Michels (2017) e Garcia (2013).

Nesse sentido, vale destacar alguns achados a partir da leitura das ementas das disciplinas. Em primeiro lugar, observam-se discussões que priorizam a adaptação, seja de materiais, seja de atividades, geralmente nos cursos de educação física, dança, química e física. Esse achado revela uma preocupação em adaptar as atividades para envolver os estudantes, assim como os materiais para serem utilizados em aula. Os estudantes da educação especial mais apontados nessas situações são as pessoas com deficiências sensoriais e físicas.

Outro aspecto a se destacar diz respeito ao fato de que apenas cinco cursos abordam a temática Plano de desenvolvimento individualizado, e apenas dois abordam a temática Sala de recursos multifuncionais. Essa situação chama atenção, dado que a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Brasil, 2008) tem o espaço da sala de recursos na modalidade de atendimento educacional especializado como o seu principal serviço e aponta que o plano de desenvolvimento individualizado deve ser o instrumento utilizado para as adaptações necessárias na escola regular.

A partir das concepções apontadas no início deste artigo, embasadas pela perspectiva de Jannuzzi (2004), constatou-se que as disciplinas, em sua maioria, continuam tratando a educação especial por meio do olhar médico. Algumas incluem a perspectiva psicopedagógica, ou seja, são disciplinas que apontam, única e exclusivamente, as intervenções a serem feitas no sujeito para que ele possa acompanhar o ensino em sala de aula regular. Percebe-se, nessa perspectiva, uma forte presença de termos como adaptação de materiais voltados para o ensino, classificações e características das deficiências e formas de atuação em sala de aula para dirimir as especificidades encontradas.

Raras são as disciplinas que abordam a educação especial inserindo a discussão em aspectos mais amplos, como políticos, sociais e econômicos, ou seja, apontando questões históricas e conceituais que impactam a educação de forma geral e, mais especificamente, a educação especial nesse contexto. Não se percebeu, apenas por meio da leitura das ementas, discussões que coloquem a escola e o ensino escolar como possibilidades de mediação entre a complexidade do contexto histórico e do sujeito inserido nesse contexto como forma de tensionar e transformar a realidade.

Algumas ementas apresentam a discussão em torno da educação especial inserida no contexto da diversidade. Por sua vez, a ideia de diversidade aparece como a pluralidade de sujeitos que compõem a sociedade.

É significativo, também, observarmos os termos mais comuns utilizados nas ementas, como portador, deficiente, necessidades educacionais especiais, educação inclusiva e inclusão. São termos que dizem de uma certa perspectiva a respeito da educação escolar dessas pessoas.

De acordo com Souza (2021, p. 19):

Ao analisar os conceitos que fazem parte do campo da Educação Especial, eleitos como constitutivos do argumento da especialização, componentes das políticas para os chamados sujeitos com necessidades educativas especiais, bem como as caracterizações e classificações dessa população como expressão de lutas simbólicas que se travam em determinado campo simbólico, necessariamente a discussão percorre a constituição histórica na qual os conceitos são moldados e sua relação explícita ou implícita como instrumentos de ação político-social.

Vale destacar, como já anunciado, que a ementa, exclusivamente, não assegura uma análise criteriosa acerca da perspectiva adotada – quer seja pela instituição, quer seja pelos professores. No entanto, é uma forma de mapear a constituição de discursos acerca da educação especial, possibilitando, dessa forma, possíveis avanços no próprio campo.

Considerações finais

Importante ressaltar que a formação docente em nosso país, historicamente, é permeada por disputas inseridas em determinados contextos sociais, políticos, econômicos e culturais sinalizando os rumos das políticas educacionais de forma geral.

As políticas postas em prática, portanto, não são neutras e despretensiosas, e corroboram um projeto de país que se deseja forjar. Importante salientar que o objetivo desta pesquisa não foi o de realizar um juízo de valor sobre a organização dos cursos de licenciatura nas IES do estado de Minas Gerais, mas sim observar como e se a educação especial está presente nesses espaços de formação, principalmente levando em conta as tensões referentes às resoluções norteadoras dos currículos da formação inicial docente nos últimos anos.

No que concerne à formação docente no estado de Minas Gerais, pode-se destacar que todas as IES com licenciaturas têm ao menos uma que trata do tema em questão, seja por meio de disciplinas obrigatórias, seja por disciplinas optativas, o que significa um avanço em termos de formação docente, uma vez que os estudantes da educação especial estão nas escolas de educação básica e importa que professoras e professores tenham minimamente conhecimento a esse respeito.

Observou-se que, de acordo com Jannuzzi (2004), é possível organizar as disciplinas aqui analisadas em dois grandes blocos. Primeiramente, aquelas centradas única e exclusivamente no indivíduo e em sua manifestação orgânica por meio de perspectivas médico-pedagógica e psicopedagógica e, assim, a intervenção é pensada sempre no sujeito de forma a individualizar as ações pedagógicas; e aquelas que estabelecem uma relação entre o sujeito e o contexto, apontando as consequências da deficiência para os sujeitos e, assim, poder pensar em estratégias que possibilitem a sua inserção com maior qualidade nos espaços escolares ou sociais. No entanto, não se observou a perspectiva de que a própria sociedade constitui também a identidade desse sujeito.

Relativo ao que Jannuzzi denomina como uma perspectiva que compreende “a complexidade do indivíduo num momento histórico específico” (Jannuzzi, 2004, p. 11) e que a educação deve servir como a mediadora entre esse sujeito e a realidade para que ocorra transformação na vida concreta, não foi possível identificar, apenas pela análise das ementas, nenhuma disciplina com esse tratamento. Para sanar essa questão, pode-se propor uma análise da referência bibliográfica trabalhada como mais uma forma de examinar o conteúdo trabalhado nas disciplinas, embora também não seja uma forma exaustiva de análise dos currículos.

Com isso, podemos identificar avanços referentes à inserção da temática educação especial nos currículos das formações iniciais docentes nas IES do estado de Minas Gerais, embora observe-se diferentes perspectivas e tempos destinados à discussão, bem como à sua priorização nessas formações. Essas constatações nos mobilizam a pensar sobre as transformações que uma nova resolução pode acarretar para a formação docente, haja vista que, após 8 anos da promulgação da Resolução n.º 2 de 2015 – mesmo com os 4 anos em que as IES tiveram que parar as suas reformulações em decorrência das disputas por uma nova Resolução –, nem todas as IES incluem discussões sobre a educação especial em todas as suas licenciaturas, e algumas ainda as fazem de maneira optativa e com diferentes cargas horárias. Portanto, ainda que as ementas não possibilitem aprofundar a discussão, é um indicativo do quanto e de como estamos apresentando a discussão a futuros professores e futuras professoras.

Agradecimentos

Não se aplica.

Disponibilidade de dados de pesquisa

Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo.

  • Financiamento
    Programa de Monitoria da Graduação (PMG-Licenciatura/UFMG).
  • 1
    Este artigo versa sobre a formação de professores para atuação na educação básica. Teve como contexto de produção o Programa de Monitoria da Graduação (PMG-Licenciaturas) da Pró-Reitoria de Graduação da Universidade Federal de Minas Gerais (Prograd/UFMG), entre os anos de 2022 e 2023, na disciplina de Fundamentos de Educação Especial e Inclusiva da Faculdade de Educação (FaE/UFMG). Buscou-se ampliar as discussões abordadas em dois resumos expandidos desenvolvidos e apresentados na 15ª Reunião Regional ANPEd Sudeste (2022) e no XXI Encontro Nacional da Anfope (Enanfope) (2023).
  • 2
    Destaca-se que o presente artigo não analisa os cursos com base na nova resolução, tendo em vista que sua homologação ocorreu em maio de 2024.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jul 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2024
  • Aceito
    10 Jun 2025
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