Open-access NOVOS IMAGINÁRIOS DE FUTURO PARA PORTO ALEGRE: INOVAÇÃO, EMPREENDEDORISMO E PRIVATIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO

NEW IMAGINARIES OF THE FUTURE FOR PORTO ALEGRE: INNOVATION, ENTREPRENEURSHIP, AND THE PRIVATIZATION OF EDUCATION

NUEVOS IMAGINARIOS DE FUTURO PARA PORTO ALEGRE: INNOVACIÓN, EMPRENDIMIENTO Y PRIVATIZACIÓN DE LA EDUCACIÓN

RESUMO

O artigo analisa as propostas vinculadas à inovação e ao empreendedorismo que atravessam a educação e as políticas educacionais, constituindo novas formas de relação entre o público e o privado. A partir do caso de Porto Alegre/RS, retoma-se a trajetória da educação na cidade desde a Escola Cidadã até a “capital da inovação”, revelando como a educação pública é parte das correlações de forças por projetos societários distintos. Os pressupostos que hoje ganham destaque no debate público educacional no município atuam na formação de novos imaginários de futuro para a cidade, acompanhando formulações em nível global, como expressão dos interesses do capitalismo sobre a educação.

Palavras-chave
Educação; Privatização; Inovação; Empreendedorismo

ABSTRACT

The article analyzes the proposals related to innovation and entrepreneurship that permeate education and educational policies, constituting new forms of relationships between the public and private sectors. Based on the case of Porto Alegre/RS, the trajectory of education in the city is revisited, from the “Citizen School” to the “capital of innovation,” revealing how public education is part of the power dynamics surrounding different societal projects. The assumptions that currently lead the public education debate in the municipality contribute to shaping new imaginaries of the future for the city, in line with global formulations, as an expression of capitalism’s interests in education.

Keywords
Education; Privatozation; Innovation; Entrepreneurship

RESUMEN

El artículo analiza las propuestas vinculadas a la innovación y al emprendimiento que atraviesan la educación y las políticas educativas, constituyendo nuevas formas de relación entre lo público y lo privado. A partir del caso de Porto Alegre/RS, se retoma la trayectoria de la educación en la ciudad desde la Escuela Ciudadana hasta convertirse en la “capital de la innovación”, revelando cómo la educación pública forma parte de las correlaciones de fuerzas entre distintos proyectos societales. Los supuestos que hoy cobran protagonismo en el debate público educativo del municipio actúan en la formación de nuevos imaginarios de futuro para la ciudad, en sintonía con formulaciones a nivel global, como expresión de los intereses del capitalismo sobre la educación.

Keywords
Educación; Privatización; Innovación; Emprendimiento

Introdução

Inovação e empreendedorismo são algumas das mais recentes tendências para a educação global. Os novos discursos sobre educação incluem essas perspectivas porque elas estão presentes também nas mais diversas proposições de ordem econômica, política, social e ambiental, em diferentes níveis e contextos, fortemente vinculadas à perspectiva de desenvolvimento. Sob influência do neoliberalismo, surge um novo repertório de valores que atravessam a educação: competição, individualismo, meritocracia, eficiência, entre outros, vinculados a uma forma societária que responde aos interesses do mercado e do capital. A educação é parte de uma totalidade e deve assim ser analisada, como um elemento que compõe o conjunto social em suas diferentes dimensões, que é por ele influenciada, ao mesmo tempo em que o influencia.

Porto Alegre/RS é um caso ilustrativo dessa realidade. A capital gaúcha tem uma importante trajetória política em torno da Escola Cidadã, referência de um projeto educacional democrático, socialmente referenciado e coletivamente construído. No entanto, nos últimos anos, as políticas municipais têm se direcionado a consolidar a cidade como a capital da inovação. Junto ao fomento ao empreendedorismo e à inserção de tecnologias digitais como solução para os problemas sociais, as políticas da cidade se distanciam cada vez mais do projeto popular, conformando um novo léxico para a cidade que abandona a democracia como princípio e forma de fazer educação. Essa mudança de paradigma é representativa do processo de correlação de forças entre projetos societários, aqui tratados enquanto público e privado em disputa.

Nesse sentido, o objetivo deste texto é analisar como os pressupostos de inovação e empreendedorismo redefinem os sentidos da educação pública e da formação societária no contexto do município de Porto Alegre, a partir da criação de um novo imaginário de futuro vinculado à modernização e ao desenvolvimento. Observa-se como o imperativo da inovação amplia as possibilidades de entrada de novos sujeitos privados no campo educacional, que passam a disputar o fundo público e o controle da educação. Em termos metodológicos, foi investigado um diversificado conjunto de fontes relacionadas aos projetos e sujeitos analisados1.

Da Escola Cidadã ao ecossistema educacional

Porto Alegre foi governada entre os anos de 1989 e 2004 pela Administração Popular, uma coligação entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Nesse período, o projeto de educação – a Escola Cidadã – esteve profundamente vinculado a um projeto democrático de cidade, entendendo a escola como “espaço integrante e indissociável dos demais aspectos que compõem a totalidade social e onde os avanços ou recuos sociais são expressos, pensados, analisados e vivenciados” (Porto Alegre, 1998, p. 11). A construção da democracia na educação em Porto Alegre foi parte de um projeto societário mais amplo de construção e fortalecimento do público no contexto de pós-ditadura, abertura democrática e conquista de direitos sociais, consolidados pela Constituição Federal recém-aprovada.

Nesse sentido, a Escola Cidadã foi uma experiência de construção da democracia enquanto materialização de direitos em políticas coletivamente construídas na autocrítica da prática social (Peroni, 2016). Entre disputas, conflitos e contradições, se consolidou uma proposta educacional entendida como parte do processo de construção do público via democratização da gestão pública e da sociedade. Diferentes mecanismos foram criados na cidade para a garantia e o fortalecimento da experiência democrática da sociedade porto-alegrense. Os Congressos, os Conselhos e o Orçamento Participativo são alguns dos principais exemplos de formas de fomento da participação popular e coletivização das decisões na construção da cidade, promovendo uma verdadeira experiência (Thompson, 1981) de aprendizagem da participação e do exercício democrático.

A proposta educacional, nesta mesma direção, foi coletivamente elaborada e aperfeiçoada ao longo dos anos, contemplando instrumentos concretos de exercício democrático: eleição direta para diretores; elaboração coletiva do regimento escolar; caráter participativo e de poder real do Conselho Escolar, que, entre outras atribuições, passou a ser o responsável pela gerência dos recursos financeiros da escola; composição e participação ativa do Conselho Municipal de Educação na política educacional do município; processo democrático de discussão para a implantação do Sistema Municipal de Ensino, com participação das entidades representativas vinculadas à educação, entre outros. Trata-se de uma perspectiva na qual a educação é uma ferramenta para a construção democrática.

[...] a democratização da educação e da escola ocorrem através das relações sociais que carregam em si, um potencial pedagógico, pois envolvem enfrentamentos, conflitos, controvérsias, consensos e soluções, as quais são realizadas por meio do diálogo reiterado entre os integrantes da comunidade escolar, sendo a escola o lócus privilegiado para a intermediação dos vínculos sociais e democráticos

(Peroni et al., 2024, p. 137-138).

Como parte da proposta de democratização da educação, realizou-se uma importante reconstrução curricular sustentada por reflexões acerca da escola que se tinha e a que se pretendia, centrada na garantia do direito à educação e ao conhecimento e no combate à desigualdade e à exclusão social. Dentro dos limites de uma sociedade capitalista, foi um contexto de construção e defesa radical do público, entendido enquanto democrático e pautado na igualdade e justiça social (Peroni; Lima, 2023).

No entanto, esse projeto foi possível em uma determinada correlação de forças. Ao mudar a correlação, mudaram também as concepções que fundamentam os projetos para a cidade e para a educação. A partir de 2005, novos partidos e governantes passam pela gestão municipal e, com isso, as propostas populares e de construção coletiva perdem espaço para concepções gerencialistas de educação. As gestões entre 2005 e 2016, formadas por alianças entre o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT), voltam-se, progressivamente, a uma proposta de gestão focada em resultados e desempenho nas avaliações externas (Bernardi et al., 2021).

Modelos de gestão gerencial seguem presentes nos governos seguintes. Entre 2017 e 2020 uma ampla coalizão de partidos neoliberais esteve à frente da administração de Porto Alegre, com propostas de desestatização de serviços públicos em geral e da educação, em particular, sob argumentos vinculados ao desempenho dos estudantes nos testes nacionais. Como exemplo, a lei de eleição de diretores de escolas municipais foi alterada, incluindo a possibilidade de destituição caso a escola não atinja a meta do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) ou ao menos um aumento de 2% da nota (Lindenbaum; Fontoura, 2020).

A relação entre público e privado se acirra, diante de um contexto de ampla defesa do privado como parâmetro de qualidade na execução e na direção (Peroni, 2016) das políticas sociais. Nessa perspectiva, a proposta é diversificar a oferta da educação e favorecer a competição entre escolas como fatores de qualificação (Brito, 2019a). As propostas incluíram a expansão das parcerias com instituições privadas na oferta da educação infantil e a ampliação para o ensino fundamental, por meio das chamadas escolas charter (Mismas; Lindenbaum, 2020; Bernardi et al., 2021).

Em entrevista concedida à pesquisa em 2019, o então secretário de educação sustentou categoricamente que “o sistema educacional precisa ser um ecossistema plural [...] favorecendo uma multiplicidade de atores no ecossistema” (Brito, 2019b, n. p.). Suas críticas ao monopólio estatal da educação (Brito, 2019a) evidenciam como o projeto educacional era parte de um projeto mais amplo de desestatização. Desse projeto amplo – de consolidação de um ecossistema de atores na construção da cidade – nasce o Pacto Alegre, uma articulação entre prefeitura, empresários, universidades e entidades do terceiro setor em torno de um Pacto pela Inovação:

Porto Alegre vive um momento importante para construir uma nova visão de futuro. Poder público, universidades, empresas e sociedade estão se organizando para tornar a Capital uma referência, guiada pela inovação, com base na criatividade, no empreendedorismo, na colaboração e nas novas tecnologias

(Marchezan Júnior, 2018, n. p.).

Lançado em 2018, o Pacto Alegre se apresenta como “um movimento que busca transformar Porto Alegre em uma referência como um ecossistema global de inovação de classe mundial” (Pacto Alegre, s. d.a, n. p.). Essa articulação marca o início de uma nova era na cidade, pautada pelo pressuposto de inovação e por uma forte tendência de naturalização da relação entre público e privado, perpassando Estado e sociedade civil (Peroni, 2016). A partir da figura do ecossistema, propõe-se a “intersecção de todas as forças da cidade em torno de uma agenda estratégica” (Marchezan Júnior, 2018, n. p.). Entre as mais de 80 instituições que compõem o Pacto, estão presentes órgãos públicos, universidades, bancadas partidárias, instituições financeiras e coletivos locais.

No âmbito da iniciativa, um conjunto de projetos vêm sendo desenvolvidos, sendo alguns deles voltados à educação. Como um primeiro projeto (Lac, 2018), que bem ilustra a proposta do Pacto e dos novos pressupostos que atravessam a educação nesta era da inovação, foi lançado, ainda em 2018, o Programa Start.edu. Além do conjunto do Pacto Alegre, o programa contou com apoio da Associação Gaúcha de Startups (AGS) e da Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec), “cujo caráter liberal e empreendedor reforçaram a proposta do poder municipal de romper com as estruturas e narrativas do direito público, ampliando a oferta de atendimento privado” (Bernardi et al., 2021, p. 63).

O programa selecionou startups com “soluções inovadoras que possam contribuir com os desafios de qualificar os processos de aprendizagem e o desempenho dos alunos, ampliar a eficiência da gestão escolar e melhorar os serviços prestados à sociedade” (Porto Alegre, 2018, p. 1). Foram listados 19 desafios no edital de chamamento público, agrupados em 3 categorias: desafios para a promoção das aprendizagens; gestão escolar e gestão das aulas; e melhoria dos serviços públicos na educação2. As startups selecionadas puderam testar suas soluções em escolas municipais (Lac, 2019a, 2019b), que se converteram em laboratórios vivos de experimentação, sob o argumento de que “trazer a sociedade civil para contribuir com a escola pública é fundamental para que a educação funcione” (Brito, 2019 apud Lac, 2019c, n. p.). Na mesma direção, defendia-se abrir as escolas “para a colaboração da sociedade civil, que precisa conhecer, acompanhar e participar mais das estruturas públicas para trazer não só ideias, mas também soluções e formar parcerias com os governos” (Brito, 2018 apud Lac, 2018, n. p.).

A proposta de envolvimento da sociedade civil na educação é muito diferente do que ocorria no projeto da Escola Cidadã e do que se propõe na perspectiva da gestão democrática. Não mais as comunidades escolares e entidades representativas pensam e constroem a educação – agora a proposta de participação da sociedade civil se volta ao mercado e ao terceiro setor, redefinindo a própria função da secretaria de educação:

A secretaria toma posição de pensamento estratégico, de organização do sistema, favorece a participação da sociedade civil e isso cria uma competição virtuosa, que é avaliada independentemente pela secretaria que dá devolutiva para essas instituições, tanto públicas estatais quanto as públicas não estatais para que a gente comece a discutir boas experiências

(Brito, 2019b, n. p.).

Esse exemplo evidencia que a abertura das escolas ao privado abre a educação também aos pressupostos tão caros ao mercado na formação da juventude brasileira, como a competição e o empreendedorismo (Peroni; Caetano; Lima, 2021), que acompanham o ideal de inovação. Assim, os processos de privatização na rede municipal de Porto Alegre se verificam não apenas na execução, mas na direção das propostas, uma vez que não somente a oferta da educação é transferida ao privado, pois mesmo quando a escola permanece pública o seu conteúdo é definido a partir da lógica do privado (Peroni, 2016).

Empreendedorismo, inovação e privatização do público

A partir da oposição ao chamado monopólio do Estado sobre os serviços públicos, incluindo a educação, os processos de privatização vêm se acentuando no último período em Porto Alegre. Na forma de parcerias, concessões e terceirizações, diversos serviços públicos passam a ser transferidos à iniciativa privada. A gestão atual da prefeitura, que iniciou seu mandato em 2021, coaduna com as concepções que vinham se materializando na cidade sob os governos anteriores e aposta no mercado para superação dos históricos problemas e desafios da cidade. Ao destacar projetos de interesse social que consistem em incentivos fiscais para que o mercado resolva o problema, o atual prefeito se afirma favorável ao mercado com a convicção de que somente o empreendedorismo garante a proteção social (CuboPlay, 2023).

A inovação e o empreendedorismo se tornam pontos-chave das transformações da cidade. Isso se verifica na dimensão objetiva de fomento, incentivos e investimentos em projetos de empreendedorismo e iniciativas empreendedoras; assim como na dimensão subjetiva de construção do senso comum a partir de um imaginário de solucionismo privado, em que “o privado é tomado como parâmetro de qualidade e como caminho possível para a solução dos problemas educacionais” (Lima; Peroni; Pires, 2024, p. 12-13).

A crença no empreendedorismo como projeto salvacionista, nessa mesma direção, “tem representado uma estratégia ideológica que sustenta o projeto de sociedade defendido pelos grupos hegemônicos representantes do capital que legitimam o mercado como solução para os problemas sociais” (Peroni; Caetano; Lima, 2021. p. 8). Já que o empreendedorismo – e, portanto, o solucionismo privado – é tomado como caminho para o desenvolvimento, diferentes projetos para a cidade vêm sendo propostos, visando a “desburocratização e incentivo para um ambiente propício ao empreendedorismo” (CDL POA, 2024).

Pegando carona no Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador, instituído pelo governo federal em 2021, diversas medidas foram tomadas na cidade, que busca se qualificar como uma startup city e tornar Porto Alegre uma referência na gestão de negócios inovadores, fomentando o senso de empreendedorismo na cidade (Pacto Alegre, s. d.b). As startups se apresentam como aliadas na missão de tornar Porto Alegre uma cidade inteligente, que pode ser definida como uma cidade que “consegue alinhar os avanços tecnológicos com o progresso social e ambiental, por meio de tecnologias digitais e disruptivas” (PUCRS, 2024, n. p.).

A educação é diretamente atravessada por essa proposta:

Para que tenhamos uma cidade inteligente, precisamos de cidadãos inteligentes. E isso começa com alunos que saibam ler, escrever, somar e dividir. Mais do que um ambiente de ensino tradicional, a escola precisa ser um espaço onde as crianças e jovens/adultos sejam preparados para os desafios do século XXI

(Coligação Estamos Juntos Porto Alegre, 2020, p. 8).

Este excerto, que compôs a proposta de governo da atual gestão da prefeitura, evidencia uma concepção que relaciona diretamente a inteligência com o domínio da Língua Portuguesa e da Matemática, justamente as disciplinas que compõem os testes e as avaliações nacionais até então. Nessa concepção, são relegadas a um segundo plano outras áreas de conhecimento de fundamental importância para a sociedade no sentido da construção e apropriação do conhecimento historicamente acumulado.

Além disso, afirma-se o papel da escola em preparar os estudantes para os desafios do século 21. Essa é uma concepção que se materializa nas formulações recentes para a educação, em nível global e nacional, centradas no desenvolvimento tecnológico-digital e nas transformações que dele decorrem. Ela sustenta uma determinada ideia de presente e futuro abstratos, independentes da ação humana e de sua intencionalidade histórica, ao tempo em que se naturaliza uma realidade determinada, supostamente vazia de conteúdo econômico, político e social (Lima; Peroni; Pires, 2024).

No entanto, a chamada educação para o século 21, que contempla temas como empreendedorismo, inovação e educação financeira3, se constitui como uma estratégia para promoção de novas bases para a formação da juventude, vinculadas a novas formas de organização do trabalho produtivo: “ganham impulso a inovação e a tecnologia, que têm acompanhado a ideia de que a educação está desatualizada e precisa urgentemente se adaptar, facilitando negócios das instituições que vendem todo tipo de produtos e serviços educacionais” (Peroni; Mendes; Caetano, 2021, p. 7).

Assim, sob o argumento de capacitar os estudantes com habilidades e competências necessárias à sociedade da era digital, segue-se uma tendência tecnossolucionista (Morozov, 2013), que busca nas tecnologias e na inovação – e, por isso, nas startups e empresas de tecnologia educacional (EdTechs) – as soluções para todo e qualquer problema, seja qual for a origem e as condições históricas de sua existência. Assim, abrem-se as portas das escolas públicas para a entrada de novos sujeitos privados que prometem resolver os problemas da educação, agora via mercadorias digitais, como é o caso das ferramentas digitais de aprendizagem e gestão escolar como o Google for Education e a plataforma Córtex/Eduspace, que ganharam espaço principalmente a partir do contexto da pandemia em 2020 e se tornaram parte do cotidiano das escolas municipais – acompanhando o imperativo da inovação e da implementação de tecnologias educacionais na rede de ensino.

Há um conjunto de projetos e programas promovidos na cidade que reforçam o ideal da inovação e da tecnologia como instrumentos capazes de qualificar a educação municipal. No âmbito do Pacto Alegre, por exemplo, o projeto Professor Inovador4 tem como proposta “engajar professores como agentes de indução para elevar o padrão do ensino público de Porto Alegre, em linha com os mais altos padrões globais de formação” (Pacto Alegre, s. d.c, n. p.). Na mesma direção, o projeto Educação Transformadora5 propõe “transformar a educação pela conexão e parceria com o ecossistema de inovação e conhecimento da cidade, preparando os jovens para o presente e o futuro” (Pacto Alegre, s. d.d, n. p.).

Verifica-se, assim, a proposta de construção de um imaginário de futuro ideal vinculado à inovação, construído na suposta sinergia do conjunto de atores sociais que oculta os interesses de classe e naturaliza as particularidades atuais do capitalismo (Peroni, 2023). A privatização se torna uma política pública no município, reforçando a tese de que a relação entre público e privado não se refere à contraposição entre Estado e sociedade civil, mas à disputa por projetos societários que os atravessam (Peroni, 2016).

Considerações finais

A mudança de paradigma na educação em Porto Alegre, da Escola Cidadã à capital da inovação, é resultado de processos de correlação de forças por projetos societários em disputa. As experiências de construção do público como ferramenta de democratização da sociedade que, entre conflitos e contradições, caracterizam a Porto Alegre da Administração Popular foram substituídas por novos ideários de influência neoliberal.

Empreendedorismo e inovação são palavras-chave no projeto de cidade que se materializa pela ação das administrações recentes, com uma nova concepção de público e propondo novas relações com o setor privado. São propostas novas bases para a formação de crianças e jovens, vinculadas aos pressupostos caros ao capitalismo e a uma determinada concepção de desenvolvimento que dele decorre.

Assim, a educação em Porto Alegre está profundamente envolvida pelo chamado ecossistema de inovação e é tomada como um setor a ser explorado para o desenvolvimento de soluções empreendedoras e com uma determinada visão de futuro. A inovação e a tecnologia são o centro das atenções, rompendo com outras formas de construir a educação que já foram experimentadas na cidade. Nesse sentido, o rompimento com o projeto de cidade que vinha sendo progressiva e coletivamente construída ao longo da Administração Popular não foi um acaso, mas uma expressão da correlação de forças por projetos distintos de sociedade e, no limite, da própria luta de classes.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • Financiamento
    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
    Projeto No: 402847/2023-7

Notas

  • 1
    Este estudo integra a pesquisa Relação público-privado em países latino-americanos: sujeitos e conteúdo da proposta, do Grupo de Pesquisa Relações entre o Público e o Privado na Educação (GPRPPE), a qual conta com diversas ferramentas metodológicas, incluindo a análise de documentos, revisões bibliográficas e entrevistas.
  • 2
    Disponível em: https://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/smed/usu_doc/edital_start_up_chamam ento_publico_05_2018.pdf. Acesso em: 07 jun. 2025.
  • 3
    Consta no site da prefeitura que, no programa das competências da Educação do Século 21, “são desenvolvidos os temas contemporâneos transversais nos currículos escolares, como Empreendedorismo, Educação Financeira, Inovação, Projeto de Vida, Educação Ambiental e Sustentabilidade” (Porto Alegre, s. d., n. p.).
  • 4
    A respeito do projeto, voltado à formação de professores, poucas informações foram encontradas. Em uma reunião transmitida ao vivo pelo Pacto Alegre em dezembro de 2020, ocorreu o lançamento da plataforma Sqed, que hospedaria o projeto Professor Inovador (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VSHAzBim2Qg Acesso em: 7 jun. 2025). No entanto, a plataforma não teve continuidade após a mudança da gestão da prefeitura em janeiro de 2021 e nem sequer foi divulgada entre os professores da rede.
  • 5
    Também com poucas informações disponíveis, o projeto foi lançado em 2020 prevendo, entre outras coisas, o “mapeamento de novas abordagens pedagógicas, centradas nos alunos e uso intensivo de novas tecnologias”. Disponível em: https://pactoalegre.procempa.com.br/projetos/educacao-transformadora Acesso em: 7 jun. 2025.

Disponibilidade de dados de pesquisa

Não se aplica.

Referências

Editado por

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2025
  • Aceito
    16 Jun 2025
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