RESUMO:
Este artigo discute a organização do meio social educativo para a criação musical na infância, a partir da teoria de Vygotsky e de uma pesquisa realizada com crianças da educação infantil de uma comunidade ribeirinha da Amazônia. Os resultados demonstram que o meio social educativo organizado pela professora, envolvendo as relações das crianças com o tempo, espaços, materiais e pessoas, possibilitou a livre expressão e a criação musical. Conclui-se que o conceito de meio social educativo é potente para fundamentar um trabalho pedagógico direcionado à criação musical na infância.
Palavras-chave: Música na educação infantil; Criação musical na infância; Teoria de Vygotsky
ABSTRACT:
This article discusses the organization of the social educational environment for musical creation in childhood, based on Vygotsky’s theory and a research carried out with children in a community riverine of the Amazon. The results demonstrate that the social environment organized by the teacher, involving children’s relationships with time, spaces, materials and people, allowed the free expression and musical creation. It is concluded that the concept of social educational environment is potent to base a pedagogical work focused on the musical creation in childhood.
Keywords: Music in early childhood education; Musical creation in childhood; Theory of Vygotsky
INTRODUÇÃO
Apesquisa acerca da educação musical das crianças de 0 a 6 anos de idade expandiu-se, consideravelmente, nos últimos 20 anos, e embora ainda seja um campo epistemológico pequeno, se comparado a outros campos de estudos da área da educação musical, reúne uma rica e diversificada literatura, que pode subsidiar os(as) professores(as) da educação infantil na organização de trabalhos pedagógicos que potencializem a criação musical e a interação entre as crianças por meio da música.
De acordo com Young (2016), mudanças de paradigmas nas pesquisas sobre a educação musical na infância transformaram teoricamente o modo de conceber a educação musical dessas crianças, avançando de uma perspectiva em que predominavam as atividades musicais baseadas na repetição e nos treinos, dirigidas pelos professores, para uma educação musical que reconhece a criança como criadora de música, o valor da brincadeira musical livre e o papel do professor como o profissional que apoia as crianças durante a realização das atividades musicais. No entanto, curiosamente, estudos apontam que na prática isso ainda não se efetivou completamente, prevalecendo as atividades musicais centradas no(a) professor(a), cabendo às crianças cumprirem as instruções fornecidas (BREMMER, 2015; SMITH; MONTGOMERY, 2007; YOUNG, 2016).
No Brasil, a situação parece não ser diferente. Estudos mostram que nas escolas da infância, a música é geralmente apresentada às crianças como algo mecânico, repetitivo, para marcar rituais de entrada, lanche e saída, com fins de recreação e entretenimento ou ainda como forma de ocupar o tempo ocioso (LOUREIRO, 2010; RIBEIRO, 2012).
Nesse sentido, o presente artigo teve por objetivo discutir formas de organização do meio social educativo para estimular a livre expressão e a criação musical de crianças da educação infantil, a partir de princípios e conceitos formulados por Vygotsky e de uma pesquisa realizada com crianças de uma turma de educação infantil de uma escola localizada em uma comunidade ribeirinha da Amazônia.
Parte-se do pressuposto de que a forma como a professora da turma organizou o meio social educativo para a criação musical pode ser inspiradora para novas práticas que contribuam para diminuir a lacuna existente entre os conhecimentos científicos produzidos acerca da educação musical das crianças de zero a seis anos de idade e a prática pedagógica dos professores de educação infantil.
VYGOTSKY E O ESTUDO DA DIALÉTICA DO HUMANO
Vygotsky preocupou-se em construir um conjunto dinâmico e articulado de conceitos críticos para compor sua compreensão dialética do ser humano, que se distingue de outras abordagens da psicologia por estudar o desenvolvimento humano tentando estabelecer a contradição dialética subjetivo-objetivo. Em seus estudos (VYGOTSKY, 1996; 2000), concluiu que o desenvolvimento humano consiste num sistema interfuncional integral, em que as partes mantêm uma relação com a totalidade, sendo essa totalidade a personalidade, conforme afirma o próprio autor: “O processo de desenvolvimento cultural pode ser definido quanto a seu conteúdo, como o desenvolvimento da personalidade da criança e de sua concepção de mundo” (VYGOTSKY, 2000, p. 328).
O autor fez questão de enfatizar que a explicação para a formação da personalidade reside na existência social da pessoa, em seu devir histórico. No dizer do autor, “a personalidade é o social em nós” (VYGOTSKY, 2000, p. 337). Em suas últimas produções, ele enfatizou a noção de “personalidade consciente”, concebendo a consciência como a capacidade de olharmos para nós mesmos e entendermos que temos um lugar no mundo, que temos relações sociais e vivemos em uma determinada realidade.
É nessa perspectiva que tomaremos a teoria de Vygotsky neste artigo para discutir a presença da música na educação infantil, de um modo específico sobre as possibilidades de organização do meio social educativo para a criação musical na infância.
O CONCEITO DE MEIO SOCIAL EDUCATIVO
Na elaboração de seu sistema conceitual, Vygotsky reservou um lugar central para a educação, colocando-a no núcleo de sua teoria. Tal deferência deve-se ao fato de que para o autor, “educar significa organizar a vida” (VYGOTSKY, 2003, p. 220). Se quisermos interferir no desenvolvimento social da personalidade consciente das crianças, não podemos deixar que a vida siga espontaneamente, ao contrário, precisamos organizá-la. Nessa perspectiva, a educação escolar, por sua organização sistemática com a finalidade explícita de educar mediante ação consciente, deliberada e planejada, assume grande importância.
Para potencializar sua concepção de educação como organização da vida e contemplar as peculiaridades da educação escolar, Vygotsky (2003) elaborou um conceito que, a nosso ver, ainda não foi incorporado aos estudos sobre a educação musical na infância, mas que pode constituir uma referência para os professores da educação infantil organizarem uma educação musical que possibilite a livre expressão e a criação musical das crianças. Trata-se do conceito de meio social educativo.
Vygotsky (2003), em coerência com seu pensamento dialético, concebe o processo educativo como uma totalidade, uma síntese formada por três elementos: o professor, o aluno e o meio social educativo, em que todos são ativos. “O processo educativo, portanto, é trilateralmente ativo: o aluno é ativo, o professor e o meio existente entre eles são ativos” (VYGOTSKY, 2003, p. 79).
Comumente, as teorias da educação e da psicologia, ao tratarem do processo educativo, admitem a existência de dois elementos: o aluno e o professor. Esse terceiro elemento é a novidade apresentada por Vygotsky, tendo sido formulado pelo autor para garantir a relação dialética entre os dois primeiros, uma vez que ele representa a unidade onde estão contempladas tanto as intenções do professor quanto do aluno.
O conceito de meio social educativo está relacionado ao conceito de meio social formulado pelo autor, ou seja, ao “conjunto das relações humanas” (VYGOTSKY, 2003, p. 79). Nessa perspectiva, o meio social educativo vem a ser o conjunto de todas as relações humanas vividas na escola. E como educar é organizar a vida, esse meio também precisa ser organizado, o que significa organizar as relações sociais vividas pelas crianças na escola e que interferirão no desenvolvimento social de suas personalidades conscientes.
Precisamos ainda acrescentar mais um conceito formulado por Vygotsky, ligado à educação e, mais especificamente, ao meio social educativo. O autor atribuiu uma importância muito grande ao professor. Em sua perspectiva, “o professor é o organizador do meio social educativo, o regulador e o controlador de suas interações com o educando” (VYGOTSKY, 2003, p. 76).
Desse modo, neste artigo concebemos como organização do meio social educativo para a criação musical na educação infantil, a organização deliberada, intencional e sistemática das relações vivenciadas pelas crianças na escola da infância, realizada e conduzida pelos professores da educação infantil, em diálogo com as crianças, visando estimular e direcionar o processo de criação musical.
A CRIAÇÃO MUSICAL NA INFÂNCIA
Até onde temos conhecimento, Vygotsky não chegou a escrever um texto específico acerca da música ou da educação musical, de onde pudéssemos extrair princípios para a organização do meio social educativo para a criação musical na infância, mas seu sistema teórico-científico geral e seus pressupostos sobre a arte e a atividade criadora na infância, bem como suas proposições acerca do meio social educativo e do papel do professor, aqui abordados, credenciam-nos a realizar essa tarefa.
A formulação de Vygotsky (2003, p. 233) de que “a arte não é um complemento da vida, mas o resultado daquilo que excede a vida no ser humano”, a nosso ver, constitui o princípio geral para a organização do meio social educativo para a criação musical na educação infantil. A música precisa estar presente na escola da infância como uma forma de ampliação da vida, como uma possibilidade de as crianças transcenderem o real, de recriá-lo, por meio da imaginação.
Na obra Imaginação e criação na infância, Vygotsky (2009) afirma que a atividade criadora é a modalidade humana de reordenar o real em combinações inéditas, a partir da relação dialética entre imaginação e realidade. Embora não trate especificamente da criação musical, localizamos cinco princípios específicos que podem orientar a organização do meio social educativo para a criação musical na infância. São eles:
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a imaginação como a base da criação musical;
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formas de vinculação entre a imaginação e a realidade na criação musical;
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a brincadeira como a raiz da criação musical;
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o significado da criação musical para a criança e para própria música;
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a lei principal da criação musical na infância.
A IMAGINAÇÃO COMO BASE DA CRIAÇÃO MUSICAL
Segundo Vygotsky (2009), a imaginação, neoformação guia da idade pré-escolar, constitui a “base de toda atividade criadora” (VYGOTSKY, 2009, p. 14). A imaginação é, portanto, a base da criação musical na infância.
FORMAS DE VINCULAÇÃO ENTRE A IMAGINAÇÃO E A REALIDADE NA CRIAÇÃO MUSICAL
No processo de criação, imaginação e realidade vinculam-se de diferentes formas, gerando distintas configurações. Essa formulação de Vygotsky permitiu a Gonçalves (2017) pensar formas de vinculação desses dois elementos no processo de criação musical. De acordo com o Gonçalves (2017), essa vinculação dá-se de quatro formas:
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a imaginação musical tem como base a experiência musical vivenciada pela pessoa em suas relações sociais;
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a experiência musical é internalizada da experiência musical alheia, em um processo de colaboração, via zona de desenvolvimento proximal;
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a imaginação musical está profundamente ligada aos nossos sentimentos e emoções;
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a imaginação musical se cristaliza ou se encarna em algo novo.
A BRINCADEIRA COMO A RAIZ DA CRIAÇÃO MUSICAL
Vygotsky (2009) afirma que a criação artística, em sua gênese, é sincrética, ou seja, os diferentes tipos de arte nascem juntos, só se diferenciando, posteriormente, e a raiz comum, a “mãe” de todas as artes, é a brincadeira. Desse modo, a brincadeira é a atividade infantil que pode potencializar a criação musical na infância, devendo se constituir no eixo da organização do meio social educativo para esse fim.
O SIGNIFICADO DA CRIAÇÃO MUSICAL É MAIS IMPORTANTE PARA A CRIANÇA DO QUE PARA A MÚSICA
Na perspectiva de Vygotsky (2009), seria incorreto e injusto perceber a criança como um músico, aplicando às suas criações musicais todas as exigências que fazemos à obra de um músico. Diz o autor: “A criação infantil está para a criação dos adultos assim como a brincadeira para a vida” (VYGOTSKY, 2009, p. 90). Desse modo, as atividades que envolvem a criação musical não constituem um treino para formar um futuro músico, mas tal qual a brincadeira, seu objetivo é inerente à própria atividade.
A LEI PRINCIPAL DA CRIAÇÃO MUSICAL NA INFÂNCIA: SEU VALOR ESTÁ NO PROCESSO E NÃO NO RESULTADO
Segundo Vygotsky (2009), “não se deve esquecer que a lei principal da criação infantil consiste em ver seu valor não no resultado, não no produto da criação, mas no processo” (VYGOTSKY, 2009, p. 100-101). Nesse sentido, no processo de criação musical é fundamental que valorizemos o ato artístico musical em si da criança em suas diferentes manifestações - compondo, cantando, tocando, interpretando, dançando, dentre outras formas - sem preocupação com o resultado, com o sucesso ou insucesso, com o fornecimento de elogios, repetições dos atos de criação ou possíveis correções ou contornos do que foi criado pela criança.
UM ESTUDO COM CRIANÇAS RIBEIRINHAS DA AMAZÔNIA
Tais formulações de Vygotsky, somadas às de autores da área da educação musical, possibilitaram à primeira autora deste artigo planejar e desenvolver uma pesquisa colaborativa de cunho histórico-cultural com a professora da turma de educação infantil de uma escola ribeirinha da Amazônia, onde realizava a pesquisa de sua tese de doutorado. A primeira autora trabalhou com a professora em processo de colaboração, via zona de desenvolvimento proximal, com o objetivo de organizar o meio social educativo para estimular e direcionar a criação musical das crianças.
Os participantes foram 17 crianças, sendo 9 meninas e 8 meninos, com idades entre 3 e 6 anos, que frequentavam a turma de educação infantil da Unidade Pedagógica da Ilha do Combu, localizada no município de Belém, Pará, bem como a professora da turma. As fontes que geraram os dados incluíram registro em vídeo e anotações em diários de campo. O procedimento de análise dos dados seguiu as diretrizes da abordagem microgenética de matriz histórico-cultural. Assistimos às filmagens para selecionar as atividades ligadas à criação musical, transcrevemos as falas das crianças e da professora durante as atividades e organizamos em episódios.
Todas as 17 crianças participantes deste estudo viviam com seus familiares na comunidade denominada Ilha do Combu, localizada no município de Belém, Pará, às margens do Igarapé do Combu. A população da ilha integra o modo de vida denominado “ribeirinho da Amazônia” (HARRIS, 2000), caracterizado pela profunda relação do homem com a natureza, especialmente com o rio e a floresta.
A ORGANIZAÇÃO DO MEIO SOCIAL EDUCATIVO PARA A CRIAÇÃO MUSICAL DAS CRIANÇAS DA TURMA DE EDUCAÇÃO INFANTIL
O trabalho colaborativo foi desencadeado a partir das necessidades identificadas no trabalho pedagógico realizado com as crianças da turma de educação infantil. A primeira autora havia constatado em sua pesquisa que as crianças das turmas anteriores afirmavam gostar muito de música, mas que apresentavam um repertório musical muito limitado e vivenciavam poucas experiências musicais em casa e na escola (TEIXEIRA; ALVES, 2008). Ao compartilhar esses resultados com a professora da turma, ambas concluíram que uma possibilidade seria a elaboração de um projeto que oportunizasse a interação das crianças com a música de uma forma viva e criativa.
O ponto de partida para a organização do meio social educativo foi a tese de Vygotsky (2001; 2003; 2009) de que a atividade criadora não se dá por geração espontânea da criança e nem pelo simples fornecimento de estímulo e material. Torna-se necessário que o(a) professor(a) crie as condições de possibilidades dessa criação na escola. No dizer de Vygotsky, “o melhor estímulo para a criação infantil é uma organização da vida e do ambiente das crianças que possa gerar necessidades e possibilidades para tal” (VYGOTSKY, 2009, p. 92).
A professora da turma passou, então, a organizar o meio social educativo para a criação musical das crianças, possibilitando que elas percebessem os sons, criando condições de emergência da atividade musical e acompanhando todo o processo de criação. Para isso, em colaboração com a primeira autora, as crianças e a comunidade, ambientou espaços para a livre musicalidade; propiciou a interação das crianças com diferentes paisagens sonoras; recolheu, selecionou, organizou e forneceu materiais que favorecessem a criação; mostrou-lhes procedimentos de criação; convidou pessoas que poderiam fazê-lo; estimulou a livre exploração das propriedades musicais de objetos diversos e a livre expressão das crianças. A iniciativa de envolver-se musicalmente era sempre da criança no meio previamente organizado pela professora, em diálogo com a turma. O grau de intervenção da professora variava em uma escala que ia da organização das relações das crianças com os tempos, espaços, materiais e pessoas até a intervenção direta, quando necessário.
FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DO MEIO SOCIAL EDUCATIVO PARA A CRIAÇÃO MUSICAL
Em nossas análises, identificamos quatro principais formas utilizadas pela professora para organizar o meio social educativo visando à criação musical das crianças:
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organização da relação das crianças com tempos, espaços e materiais;
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organização da relação das crianças com as atividades;
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organização da relação das crianças com as outras crianças;
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organização da relação das crianças com adultos, especialmente com músicos.
Para este artigo, separamos dois episódios relacionados à segunda categoria, em que a professora organizou um conjunto de atividades visando promover a percepção sonora e musical das crianças.
EPISÓDIO 1: OUVINDO OS SONS DA PAISAGEM AMAZÔNICA
As crianças e a professora caminharam até o porto da escola para ouvirem os sons da beira do igarapé. Ao chegarem ao local, a professora pediu que fechassem os olhos e ficassem em silêncio. Depois de um breve tempo, todos abriram os olhos e começaram a conversar sobre o que tinham ouvido. Ficaram mais um tempo apreciando a paisagem e retornaram à sala de referência. Ao chegarem na sala, a professora formou um círculo e conversaram sobre o que ouviram.
EPISÓDIO 2: UMA COMPOSIÇÃO AMAZÔNICA
No outro dia, a professora sugeriu que formassem grupos e ficassem livres para brincar com os sons que ouviram no dia anterior. Um dos grupos era formado por quatro crianças que na composição incluíram quatro sons: barulho de alguém pisando na ponte de madeira da escola, zumbido de um inseto, barulho da água do igarapé e das árvores, além do barulho da chuva e do barco, que não ouviram, mas resolveram incluir. Elas fizeram uma dobradura de papel para imitar o inseto e foram até o terreiro providenciar um galho de árvore para balançar de modo a imitar o barulho das árvores. Depois, pegaram uma cuia para colocar água e balançar imitando o barulho das águas, um pau-de-chuva que haviam confeccionado em uma atividade anterior para fazer o barulho da chuva e iniciaram a composição musical.
Gustavo pega um barquinho de miriti e fala “o homem e a mulher vão no barco”. Eles ouvem o barulho da chuva. Pega o pau de chuva para imitar o barulho da chuva e continua: “e a água baruuuulha”. Rosa movimenta uma cuia na mão para imitar o barulho da água. André pega o galho de árvore e balança, imitando o barulho da árvore balançando. Heitor pergunta: “E eu não entro?” Pegou a dobradura de papel e fez “zzz”, imitando o barulho do inseto. Gustavo diz “Eles chegaram na ilha, desceram do barco, pisaram na ponte”. Bate três vezes com a mão direita na perna direita, imitando o barulho dos passos. Repete o som corporal.
Os episódios retratam como a professora organizava o meio social educativo para as crianças realizarem percepções sonoras de uma forma lúdica, viva e colaborativa. As atividades musicais eram livres, mas faziam parte de um trabalho pedagógico planejado e realizado de modo intencional. Vimos como as crianças criaram uma “música” a partir da organização dos sons percebidos e de outros que lhes eram significativos, como foi o caso do barulho do barco e da chuva, que não ouviram durante a “aventura” à beira do igarapé, mas que são típicos da realidade em que vivem. Essa criação não é pura imaginação, nem pura realidade, é uma combinação inédita, como afirma Vygotsky. As crianças usaram a imaginação para criar a cena musical do barco navegando na chuva com duas pessoas, passando pelas árvores e chegando à ilha, momento em que as pessoas desceram do barco e andaram na ponte. No entanto, só puderam criá-la porque todos conheciam, ou pelo menos Gustavo conhecia, a prática social de viajar de barco pelos rios e igarapés da Amazônia e em colaboração com seus pares, usou a imaginação para recriá-la. Vimos também que esse episódio confirma a afirmação de Vygotsky (2001; 2009) de que a criação infantil é muito peculiar, assemelhando-se à brincadeira. O valor dessa criação musical das quatro crianças está no processo, sendo mais significativas para elas do que para a própria música.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo, que analisou como uma professora de educação infantil organizou o meio social educativo para estimular a criação musical das crianças da turma, mostrou que uma das primeiras ações que um(a) professor(a) pode tomar visando alcançar esse objetivo é proporcionar um ambiente musical desafiador, rico e adequado à idade das crianças, no qual elas participem de todos os momentos de sua organização. No caso das crianças deste estudo, na faixa etária entre 3 e 6 anos, isso significou a organização das interações das crianças com o tempo, os espaços, os materiais, as atividades, com as outras crianças e com adultos da comunidade.
Comprovou que embora a criação musical seja livre, o (a) professor (a) desempenha um papel fundamental que implica em criar meios que possibilitem a expressão musical das crianças e acompanhar o desenvolvimento dos atos de criação. Para isso, ele (a) precisa ter uma compreensão do desenvolvimento musical na infância, que o permitirá identificar aspectos peculiares desse desenvolvimento, proporcionando a intervenção certa no momento certo. Isso nos leva a uma implicação desse achado para a formação dos professores da educação infantil, sinalizando a necessidade de a formação musical estar presente na formação inicial desses profissionais.
O conceito de meio social educativo, aliado ao conceito de atividade criadora, mostrou-se potente para fundamentar o trabalho pedagógico ligado à criação musical na infância.
Finalmente, consideramos que a análise microgenética ajuda a compreender como a criação musical na infância se processa em realidades sociais específicas, como é o caso da realidade ribeirinha da Amazônia, esclarecendo como as crianças constituem-se como seres musicais mediante a internalização dos significados presentes nos meios técnicos e simbólicos disponíveis em suas realidades concretas de vida.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Maio 2019 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2019
Histórico
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Recebido
24 Ago 2018 -
Aceito
11 Dez 2018