Open-access ARTE, IMAGINAÇÃO E REALIDADE: A FICÇÃO COMO AÇÃO EDUCATIVA

ART, IMAGINATION AND REALITY: FICTION AS EDUCATIONAL ACTION

RESUMO

Este ensaio tem dois objetivos: à luz dos textos de Vigotski sobre a relação entre imaginação e realidade (no prelo), propor uma nova interpretação da obra Psicologia da Arte (2005), definida como ação educativa. Em contraponto, e no contexto de um debate contemporâneo, elaboramos uma possível concepção vigotskiana da prática da ficção, transitando entre considerações gerais sobre a arte e reflexões relativas à questão da ficção. Por fim, concluímos com um olhar sobre as reflexões brechtianas sobre a catarse não identificatória.

Palavras-chave Arte como ação educativa; Imaginação e realidade; Conceito vigotskiano de ficção; Catarse não identificatória

ABSTRACT

This essay has two aims: in the light of Vigotski’s texts on the relationship between imagination and reality (in press), we propose a new interpretation of the work Psychology of Art (2005), defined as educational action. As a counterpoint, referring to contemporary debates, we propose a possible Vygotskian conception of fictional practices, moving back and forth between general considerations about art and reflections on the question of fiction. Finally, we conclude with a look at Brechtian reflections on non-identificatory catharsis.

Keywords Art as educational action; Imagination and reality; Vygotskian conception of fiction; Non-identificatory catharsis

RÉSUMÉ

Le présent essai vise deux objectifs : à la lumière des textes de Vygotskij sur le rapport imagination et réel (1930/2022) proposer une nouvelle interprétation de l’ouvrage Psychologie de l’art (1925/2005) définie comme action éducative. En contrepoint, nous situant dans un débat contemporain, nous proposons une possible conception vygotskienne des pratiques de la fiction par un va-et-vient entre considérations générales concernant l’art et réflexions sur la question de la fiction. Nous terminons par des ouvertures à travers les réflexions brechtiennes sur une catharsis non identificatoire.

Mots-clés Art comme action éducative; imagination et réel, conception vygotskienne de la fiction; catharsis non identificatoire

Introdução

Este ensaio tem dois objetivos: à luz dos textos de Vigotski sobre a relação entre imaginação e realidade (no prelo), propomos uma nova interpretação da obra Psicologia da Arte (1999), lançada originalmente em 1925 e que constitui, de fato, uma teoria geral da arte e da sua função, definida em particular como ação educativa. Como contraponto a esta releitura, e de modo a situá-la em um debate contemporâneo, elaboramos uma possível concepção vigotskiana das práticas ficcionais. Para isso, transitaremos entre considerações gerais sobre a teoria da arte de Vigotski, com particular ênfase na questão da relação entre imaginação e realidade, e reflexões sobre a possibilidade de repensar a questão da ficção. Por fim, concluiremos com algumas aberturas oferecidas pela teoria de Vigotski relativas à relação entre imaginação e pensamento no pensamento de Brecht na catarse não identificatória e a ideia de “realismo alucinatório”, que faz eco à alucinação voluntária de Vigotski.1

Psicologia da arte: uma visão ampliada arte - o ciclo da imaginação

Comecemos pelo que é a essência da teoria de Vigotski: “A arte é o social em nós” (1999, p. 315). Não parece errado tomar isto à letra. Mas há uma forte ideia de que a arte, enquanto “técnica social do sentimento”2, desempenha um papel essencial na regulação do comportamento numa dada sociedade. Isso implica, antes de mais nada, que Vigotski (1999, p. 327) tem uma visão ampliada da arte.

Não é por acaso que, desde a remota Antiguidade, a arte tem sido considerada como um meio e um recurso da educação, isto é, como certa modificação duradoura do nosso comportamento e do nosso organismo. Tudo de que trata esse capítulo - todo o valor aplicado da arte, acaba por reduzir-se ao seu efeito educativo.

Não sem razão se refere a Guyau, que atribui à arte “uma importância colossal” (Vigotski, 1999, p. 316).

A teoria da técnica social do sentimento assenta num pressuposto que Vigotski explicita: a diferença fundamental entre os homens e os animais reside no fato de os primeiros exteriorizarem tanto os instrumentos técnicos como os conhecimentos, tornando-os acessíveis a todos. E faz uma analogia explícita com a arte, que é também uma “ferramenta”, uma técnica “por meio da qual ela atrai para o círculo da vida social os aspectos mais íntimos e pessoais do nosso ser” (Vigotski, 1999, p. 347). Esta ferramenta é o resultado da “reformulação dos sentimentos fora de nós [que] se realiza graças ao sentimento social que é objetivado, projetado fora de nós, materializado e fixado nos objetos exteriores da arte, que se tornaram as ferramentas da sociedade” (Vigotski, 1999, p. 342). Trata-se, portanto, de um movimento de exteriorização-interiorização por meio da “vivência artística” (ou “estética”)3.

The use of the Russian ‘across’ word for experiences, perezhivaniya, literally ‘across-livings’, suggests […] that art not be solely ‘the social in us’ but the social outside of us as well, and indeed that art be the social as the experiential crossing itself.” 4

(Robinson, 2008, p. 216)

A vivência artística é precisamente o que liga exterior e interior. A arte é o que faz a mediação entre o interior e o exterior, o que transforma o interior em exterior, ao mesmo tempo que torna possível a transformação do exterior pelo interior, e assim por diante. “Entre o homem e o mundo está ainda o meio social, que a seu modo refrata e direciona qualquer excitação que age de fora sobre o homem, e qualquer reação que parte do homem para fora.” (Vigotski, 1999, p. 319). ele escreve sobre a música, este “assunto grandioso e terrível”. Por conseguinte, é necessário tomar “a arte é o social em nós” e “a arte é a técnica social do sentimento” (Vigotski, 1999, p. 315) no sentido mais amplo e literal possível.5 Nessa formulação, encontramos já as sementes da teoria do ciclo da imaginação que Vigotski desenvolverá mais tarde (Moro; Zampione, no prelo), nomeadamente o efeito de retorno dos produtos cristalizados da imaginação – “imaginação cristalizada”, Vigotski escreve (no prelo).

O início do ciclo é da ordem de exteriorização: os elementos da experiência real, tanto no sentido da experiência adquirida (opyt) como da vivência (pereživanie), são exteriorizados numa variedade de formas, “cristalizando-se”. Isso pode ir desde as cenas teatrais imaginadas pelas crianças, aos escritos dos adolescentes sobre as suas experiências, até às obras de arte. Esses produtos da imaginação, criados por meio da atividade criadora, atuam no interior, são interiorizados e, por sua vez, transformam profundamente a vivência, ampliando-a, dando-lhe um novo significado e abrindo novas possibilidades imaginativas. O ciclo da imaginação é uma ilustração perfeita de como a dialética funciona: “a inversão do interno ao externo e sua recíproca, a interiorização do externo” (Seve, 2018, p. 63).

Uma nova forma de pensar a ficção?

As reflexões de Vigotski sobre a arte fornecem respostas interessantes aos complexos debates sobre as teorias da ficção. No entanto, tanto quanto sabemos, a sua obra tem sido pouco utilizada neste contexto. O sistema conceitual a partir do qual ele pensa permite imaginar soluções teóricas diferentes das que podem ter caracterizado – na medida em que se interessavam pelas obras ficcionais – os grandes movimentos do pensamento estético formalista, estruturalista e pós-modernista, e mesmo – o que à primeira vista pode parecer surpreendente – certas correntes que se pretendem marxistas (por exemplo, Lukács, 2009; Macherey, 2014; Eagleton, 2008). Do mesmo modo, a filosofia anglo-saxônica de tradição analítica, embora tenha produzido uma rica reflexão sobre o enigma da ficcionalidade, não parece ter-se interessado particularmente pela obra de Vigotski – mesmo na sua relação com a imaginação e as emoções.6 No que diz respeito ao mundo francófono, as contribuições substanciais de duas obras (Schaeffer, 1999; Lavocat, 2016) também apontam na mesma direção. Para Lavocat, por exemplo, a desconstrução e o pós-modernismo tendem a aniquilar as fronteiras entre fato e ficção. Em resposta, considera a questão de um ponto de vista cultural, jurídico e pragmático, recorrendo à semântica, às ciências cognitivas e até à psicanálise lacaniana – em suma, um vasto panorama crítico, mas sem recorrer a uma psicologia histórico-cultural. No entanto, como veremos, Vigotski apresenta um argumento convincente a favor de uma relação dialética entre fato e ficção, que exige uma clarificação conceitual da distinção.

Talvez tenhamos uma grande tendência a ocultar o que há de singular na prática da ficção7. Por que é que existe uma convenção que permite esta forma de comunicação sem que seja considerada falsa ou, pior ainda, mentirosa? Vigotski, graças à sua compreensão da dialética entre realidade e imaginação, dá respostas significativas a esta questão. Explica, por exemplo, que se alguém lhe contar uma história sobre macacos, o seu pensamento orienta-se para a realidade e, de acordo com o seu “aparelho intelectual”, julga se a história é verdadeira ou falsa. Mas acrescenta que não é a mesma coisa se um macaco é destacado numa história que pretende provocar uma reação estética; nesse caso, a referência “de maneira nenhuma deve confundir-se com a realidade no sentido habitual do termo. Trata-se de uma realidade especial, puramente convencional, por assim dizer, da realidade da alucinação voluntária na qual o leitor se coloca” (Vigotski, 1999, p. 139). A expressão “alucinação voluntária” é essencial para compreender a experiência da ficção. Refere-se tanto a uma intenção por parte do receptor – ele deseja voluntariamente colocar-se nesse estado –, mas também ao fato de a alucinação gerar uma emoção específica (Ronveaux; Leopoldoff Martin, no prelo).

A questão da convenção é aqui central. Tanto mais que a reação estética está ligada a uma outra caraterística do efeito psicológico da ficção. Sobre a questão dos animais na fábula, Vigotski (1999, p. 120), explica que “eles representam as figuras convencionais mais adequadas, que criam imediatamente um isolamento da realidade absolutamente necessário e indispensável à impressão estética”. Sem este isolamento,

[...] é o mesmo que privar um quadro da sua moldura na parede e fundi-lo com o ambiente de tal modo que o espectador não pode adivinhar de imediato se está vendo diante de si frutas reais ou pintadas. Deste modo, a literariedade, a convencionalidade desses heróis garante o isolamento necessário para o efeito artístico

(Vigotski, 1999, p. 120).

Este isolamento – garantia de efeito estético – caracteriza, por definição, as obras de ficção. Além disso, a metáfora da moldura pode ser interpretada como uma ilustração da escolha e utilização do gênero na produção e recepção de textos (uma convenção da comunicação), na medida em que implica que o receptor tenha consciência da ficção – os índices de ficcionalidade constituindo, por assim dizer, a moldura do quadro.8.

Poder-se-ia, no entanto, objetar que o conceito de ficção não é central nos textos que tratam do fenômeno da criação artística: Psicologia da arte (1999) e os textos reunidos em Imaginação. Textos Escolhidos (no prelo) – estes publicados originalmente entre 1926 e 1933.9 Será então legítimo extrapolar de uma psicologia da arte e da imaginação para uma psicologia da ficção? Uma resposta afirmativa justifica-se se nos colocarmos na perspectiva mais ampla de uma teoria da imaginação acima delineada.10

A catarse em todas as formas de arte: uma nova maneira de defini-la e de conceber a sua função

A “técnica social do sentimento” atua por meio da catarse, o fio condutor do livro, o elemento definidor da arte como técnica do sentimento. Reação estética ou vivência artística “encerra em si a emoção que se desenvolve em dois sentidos opostos e encontra sua destruição no ponto culminante, como uma espécie de curto-circuito” (Vigotski, 1999, p. 270). Ou em outro lugar:

E nessa unidade de sentimento e fantasia que se baseia qualquer arte. Sua peculiaridade imediata consiste em que, ao nos suscitar emoções voltadas para sentidos opostos, só pelo princípio da antítese retém a expressão motora das emoções. [...] É nessa transformação das emoções, nessa sua autocombustão, nessa reação explosiva que acarreta a descarga das emoções imediatamente suscitadas, que consiste na catarse da reação estética.

(Vigotski, 1999, p. 272)

Este princípio aplica-se a todas as expressões artísticas. A música, evidentemente, como já vimos, “abre caminho e dá livre acesso a forças que mais profundamente subjazem em nós, age como um terremoto, desnudando novas camadas” (Vigotski, 1999, p. 320). Embora concorde com Ovianiko-Koulikovski que a arte lírica erótica contribui tanto como a ética para domar o instinto sexual, Vigotski considera que este autor subestima a arte por meio de imagens: “também ali as emoções, suscitadas por imagem, são paralisadas pela emoção da arte.” (Vigotski, 1999, p. 307) O virtuosismo inato das mulheres maoris ou as lamentações do século XVIII, bem como o canto das camponesas, indo muito além do contágio de alegria evocado por Tolstói (Vigotski, 1999, p. 305), têm um efeito catártico. E esboça a possibilidade de catarse na gravura Batalha dos Nus, de Pollaiolo, “onde o pavor da morte é superado integralmente e dissolvido no júbilo dionisíaco das linhas rítmicas” (Vigotski, 1999, p. 300). “O célebre Laocoone, que clama em uma escultura lambuzada, é a melhor ilustração da oposição entre formas e material de que parte a escultura” (Vigotski, 1999, p. 301). Na arquitetura, “se o artista extrai da pedra essa ousadia e essa ternura, ele se sujeita à mesma lei que o obriga a projetar para o alto a pedra que é atraída para o chão e criar na catedral gótica a impressão de uma flecha que voa para o alto. Essa lei se chama catarse” (Vigotski, 1999, p. 301).

Para que essa catarse funcione, é necessário considerar dois processos como constituindo efetivamente um só: o sentimento ou a emoção e a imaginação. “As emoções da arte são emoções inteligentes.11 Em vez de se manifestarem de punhos cerrados e tremendo, resolvem-se principalmente em imagens da fantasia” (Vigotski, 1999, p. 267). E ainda mais claro: “É nessa unidade de sentimento e fantasia que se baseia qualquer arte” (Vigotski, 1999, p. 272). Mas, obviamente, como vimos, essa imaginação contém emoções contraditórias, que por esse mesmo fato criam a catarse, como Vigotski mostra em pormenor em relação à fábula, à tragédia e ao conto. É, portanto, na própria obra artística, em todas as suas formas, que reside a especificidade da arte, que desencadeia a catarse possível. E tal como a produção artística, a reação estética, a vivência artística, baseia-se inteiramente na unidade do sentimento e da imaginação. Torna possível uma espécie de identidade entre a criação e a percepção da obra: “todo esse trabalho necessário pode ser chamado de ‘síntese criadora secundária’, pois ele exige do receptor a unificação e a síntese de elementos dispersos do todo artístico” (Vigotski, no prelo).

A função desta catarse é trabalhar as emoções, transformá-las, consciencializá-las e abrir a possibilidade de uma relação diferente com a vida.

Mas a tarefa do estilo e da forma consiste justamente tomar esse tema material real ou essa tonalidade emocional das coisas e superá-la, transformá-la em algo totalmente novo; por isso, o sentido da atividade estética, desde os tempos mais remotos, era compreendido como catarse, ou seja, como resolução e libertação do espírito de paixões que o atormentam.

(Vigotski, no prelo)

E para colocar a questão retórica no capítulo sobre a relação entre imaginação e realidade – e não é por acaso que é aqui que ela é colocada –: “Para que serve, de fato, uma obra de arte? Será que ela não influencia nosso mundo interior, nossos pensamentos e sentimentos tão precisamente quanto uma ferramenta técnica o faz com o mundo exterior, o mundo da natureza?” (Vigotski, no prelo).

O efeito catártico da ficção e a forma ficcional como técnica

Como vimos, a imaginação, inseparável dos elementos da realidade, materializa-se em objetos da cultura técnica (Vigotski, no prelo), mas também em obras de ficção, com toda a dimensão emocional que isso implica. Em contrapartida, a imaginação é enriquecida, e este processo é uma parte fundamental da cultura. Neste sentido, a ficção pode ser vista como uma técnica social, e as histórias da literatura mostram uma extraordinária diversidade de produções imaginativas e o imenso trabalho criativo das gerações passadas; ou, dito de outro modo: a variedade de mediações formais testemunha o engenho necessário para reelaborar o material socialmente transformado pelo processo histórico, ou seja, para encontrar soluções ficcionais para problemas reais, transmitidos de geração em geração, por vezes a longo prazo, por vezes também esquecidos.

Vigotski (no prelo) mostra claramente a função adaptativa da imaginação para a sobrevivência da espécie, contribuindo para “uma aquisição de importância capital para a experiência social coletiva da humanidade”, e a ficção, neste caso, é uma das suas manifestações mais emblemáticas.

O primeiro fator, como mostra a análise psicológica, é a necessidade do ser humano de se adaptar ao meio circundante. Se a vida ao redor não impusesse tarefas para a pessoa, se suas reações primárias e herdadas a equilibrasse perfeitamente com o mundo ao redor, não haveria qualquer fundamento para a emergência da criação. Uma criatura que seja completamente adaptada ao mundo circundante não poderia desejar nada, não almejaria nada e, é claro, não poderia criar. Por isso, a base da criação será sempre a não adaptação, de onde se origina a necessidade, o anseio ou o desejo

(Vigotski, no prelo).

A ficção pode constituir uma resposta psicológica à inadaptação ligada a provações existenciais (medo da morte, paixão, etc.), mas também a uma necessidade de evasão, de espanto e de distração. Tudo isso pode ser visto como uma catarse: “a arte parte de determinados sentimentos vitais, mas realiza certa elaboração desses sentimentos [...] essa elaboração consiste na catarse, na transformação desses sentimentos em sentimentos opostos, nas suas soluções” (Vigotski, 1999, p. 309). Note-se que, no entanto, estando esta resolução intimamente ligada aos afetos, ela pode assumir a forma, para usar o vocabulário de Espinosa12, de afetos ativos – que aumentam a potência de agir – ou de afetos passivos – que conduzem à servidão. E, de fato, os perigos da imaginação não são ignorados por Vigotski (nomeadamente nos capítulos 4 e 5 de Imaginação. Textos Selecionados). Como se inscreve num movimento de contradições internas e externas, o resultado representa um desafio em termos de desenvolvimento, e é o caso durante os períodos de crise em que o psiquismo se reestrutura – o período da adolescência é particularmente preocupante a este respeito.

Imaginação, pensamento e afeto: esboço de uma psicologia enriquecida da arte

Como mostramos (Hofstetter; Schneuwly, 2018), Vigotski nunca voltou à questão da vivência estética. Uma das razões, sem dúvida, é que isso teria envolvido uma teoria elaborada da emoção. Tomando elementos da teorização desenvolvida a partir de 1930, podemos esboçar algumas vias possíveis para completar a sua teoria. Quando ele menciona um “pensamento emocional” (Vigotski, 1999, p. 56), escreve que a sua particularidade deve ser definida em relação a outras formas de pensamento. Há aqui uma brecha para imaginar o lugar do pensamento em relação aos sentimentos. Mas, para isso, é necessário definir a relação entre imaginação e pensamento, o que ele conseguirá fazer graças à sua leitura de Lenin (Schneuwly, no prelo):

É impossível expressar de modo mais claro e profundo a idéia de que a imaginação e o pensamento, em seu desenvolvimento, são contrários cuja unidade já está contida na generalização mais primária, no primeiro conceito que o homem forma. Essa sugestão da unidade de contrários e de seu desdobramento, do desenvolvimento do pensamento e da fantasia em ziguezague, o que consiste em que qualquer generalização, por um lado, é um desvio da vida e, por outro, um reflexo mais profundo e verdadeiro dessa mesma vida naquilo que é o fragmento da fantasia em qualquer conceito geral

(Vigotski, 2001, p. 71, grifo nosso).

Esta nova concepção da imaginação como unidade contraditória com o pensamento permite-nos reinterpretar de outra forma o papel desempenhado pela imaginação na vivência artística, seja ela produtiva ou receptiva. Tal concepção é perfeitamente compatível com a tese principal da Psicologia da Arte, que é “o reconhecimento da superação do material da forma artística ou, o que dá no mesmo, o reconhecimento da arte como técnica social do sentimento” (Vigotski, 1999, p. 3). Trabalhar com a forma para transformar o material é um processo de tipo abstração que cria um novo pensamento concreto. Mas, e isto é o que é novo, isso não pode ser feito sem o “pensamento emocional”. Também aqui, portanto, há uma relação de ziguezague, uma fuga do que é imediatamente dado para reestruturá-lo de outra forma. Essa fuga implica uma reflexão sobre as emoções ou os afetos, que define em outro texto: “o grau de desenvolvimento dos conceitos corresponde ao grau de transformação dinâmica do afeto, da dinâmica da ação real na dinâmica do pensamento” (Vigotski, 2024, p. 20). Em outras palavras: a “técnica social do sentimento”, de fato, pressupõe muito mais do que imaginação; implica um “pensamento emocional”, para usar a terminologia esboçada por Vigotski, um pensamento de afetos cujo funcionamento é também profundamente marcado pela arte. A arte é o lugar onde se elaboram conceitos de um tipo especial, não discursivos e, sem dúvida, mais profundamente enraizados no corpo. Não é por acaso que Vigotski utiliza como epígrafe e termina o seu livro com a famosa citação de Espinosa:

Até hoje ninguém definiu aquilo de que o corpo é capaz [...] mas dizem que seria impossível deduzir apenas das leis da Natureza, uma vez considerada exclusivamente como corpórea, as causas das edificações arquitetônicas, da pintura e coisas afins que só a arte humana produz, e que o corpo humano não conseguiria construir nenhum templo se não estivesse determinado e dirigido pela alma, mas eu já mostrei que tais pessoas não sabem de que é capaz o corpo e o que concluir do simples exame da sua natureza

(Espinosa, s. d., n. p., apud Vigotski, 1999, p. 9)

Uma ficção catártica não identificatória: a arte como ação educativa em Brecht e Vigotski

Resumamos as teses acima: a ficção como prática artística permite que a imaginação – e o pensamento emocional, poderíamos acrescentar, ecoando concepções posteriores – seja posta em prática num processo dialético particular que integra o tratamento do isolamento material e estético por meio da forma. Desta maneira, abre a possibilidade da catarse, ou seja, a capacidade de viver as emoções, dominando-as e dando-lhes um poder de ação positivo. Ora, esta reflexão tem uma ressonância singular se a situarmos no debate sobre a questão da identificação, que opôs duas grandes figuras da teoria estética do século XX: Brecht e Lukács. Poderíamos dizer que as suas diferenças resultam em parte das suas concepções de realismo, no caso de Lukács, e de distanciamento, no caso de Brecht. Lukács (2009, p. 109) argumenta:

A concepção marxista do realismo afirma que a arte deve tornar sensível a essência. Ela representa a aplicação dialética da teoria do reflexo ao campo da estética. E não é casual que o conceito de tipo13 seja aquele que, com maior clareza, evidencia tal peculiaridade da estética marxista. Por um lado, o tipo fornece uma solução para a dialética essência-fenômeno, solução específica da arte, que não se repete em nenhum outro campo; e, por outro lado, remete ao mesmo tempo àquele processo histórico-social do qual a melhor arte realista constitui o fiel reflexo.

É compreensível que tais apreciações críticas se concentrem sobretudo no valor mimético do romance, em suma, na qualidade da reflexão, mas não na questão da reflexão em si e da mediação artística por meio da forma – um aspecto que, como vimos, é essencial para Vigotski e... Brecht. Pela própria natureza do seu objetivo mimético, o reflexo induz a identificação, sendo por isso relevante para a crítica de Brecht (2000a, p. 845) à obra de Stanislavski: “A arte de forçar a identificação”. No entanto, Brecht ironiza os “autores de esquerda” que, por meio de dramatizações naturalistas da miséria social, pensam lutar contra o fascismo, a propriedade privada ou o servilismo. A identificação com um proletário não altera a consciência crítica nem a ação política, porque “as massas não parecem ser capazes de levar a cabo uma revolução na hipnose tão facilmente” (Brecht, 2000b, p. 261). Se este teatro comprometido falhar, é porque a alucinação hipnótica, neste caso encorajada por uma emoção empática “espontânea”, permanece numa fase que não permite a sua superação e que “uma feira de ilusões [transforma-se] num lugar de experiências novas” (Brecht, 2000b, p. 329).

Aqui está um problema central que ressoa de forma impressionante com o pensamento de Vigotski sobre as emoções inteligentes, mesmo que Brecht coloque a questão dos afetos em uma perspectiva muito mais explícita de luta de classes:

Emoções que hoje jogam a favor dos detentores do poder [...] É precisamente a técnica da identificação que permite organizar reações emocionais que nada têm a ver com interesses. Uma representação que prescinda largamente da identificação permitirá tomar partido com base em interesses reconhecidos, isto é, uma toma partido cujo lado emocional está em harmonia com o seu lado crítico

(Brecht, 2000b, p. 265).

Para Brecht, o carácter histórico é crucial: não só as emoções não são universais nem intemporais, como é necessário que a prática artística renove as emoções e as distancie, para que a imaginação possa desempenhar o seu papel na elucidação de novos problemas. Sublinha também o fato de a catarse por identificação não ser universal, não ter sido sempre aplicada e, sobretudo, não produzir os mesmos efeitos emocionais consoante à época: a experiência de Antígona condenada à morte num palco grego do século V a.C. não tem o mesmo efeito emocional que a vivida num teatro alemão da República de Weimar. Recorda, por exemplo, que, embora rejeite a purgação baseada na identificação e que “descrevemos uma dramática como aristotélica quando esta identificação é provocada por ele” (Brecht, 2000b, p. 245), o fato é que o distanciamento, na medida em que cria um isolamento estético, faz parte de uma catarse. Brecht (2000c, p. 437) não recusa que “há um processo de purificação por meio da geração de emoções. No entanto, isso requer que as emoções também sejam purificadas” – ou seja, que sejam distanciadas. Vigotski (1999, p. 250, tradução modificada) lamentou que “até hoje não dispomos de uma teoria sistemática da emoção e da imaginação, de certo modo completa e universalmente reconhecida”. Não é impossível argumentar que Brecht, à sua maneira, tanto teórica como praticamente, deu um contributo importante, e é tentador imaginar que Vigotski o teria apreciado, especialmente porque a ficção brechtiana, tal como a arte em geral para Vigotski, é claramente uma ação educativa.

Disponibilidade de dados de pesquisa

Não se aplica.

Agradecimentos

Não se aplica.

Notas

  • 1
    Em um texto anterior (Védrines; Schneuwly, no prelo; cf. Védrines, 2023), mostramos como ele chegou a postular uma abordagem psicológica da arte, o que lhe permitiu desenvolver o conceito de reação estética, que lhe conferiu uma posição original nos debates sobre estética durante os anos revolucionários na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
  • 2
    Vigotski utiliza “sentimento” e “emoção” sem fazer uma distinção sistemática.
  • 3
    Observe que ele utilizava regularmente esta expressão em vez de “reação estética”. O termo “vivência” (pereživanie), ao contrário do que se diz muitas vezes, já tinha uma função conceitual importante em 1925; é também utilizado em Pedologia do Adolescente.
  • 4
    Tradução: “O uso da palavra russa ‘através’ para experiências, perezhivaniya, literalmente “através das vidas”, sugere [...] que a arte não seja apenas ‘o social em nós’, mas também o social fora de nós, e de facto que a arte seja o social como a própria travessia experiencial.
  • 5
    Menciona repetidamente três “técnicas”: para além da arte como técnica dos sentimentos, “o aparelho da técnica e o aparelho do conhecimento científico” (Vigotski, 1999, p. 347). Isso mostra a imensa importância da arte. [Sobre a palavra “científico”: “The Russian word means systematic knowledge more broadly”, o que amplia esta técnica científica a todo o conhecimento de uma sociedade; (Potapov, comunicação pessoal, 2024)]
  • 6
    Pelo menos, se as recensões recentes servirem de referência (Nichols, 2006; Gaut; Lopes, 2013; Lamarque; Olsen, 2019). Para uma apresentação clara e bem documentada da filosofia anglo-saxônica da ficção, cf. Renauld (2014).
  • 7
    É mérito de Searle (1982, p. 109) e Currie (1990, p. 1), por exemplo, de nos recordar este fato.
  • 8
    Observe que contemporâneos de Vigotski, como Medvedev (2008) e Volosinov (2010), se interessaram por essa questão do gênero dos textos (Tylkowski-Ageeva, 2012).
  • 9
    Há, no entanto, alguns exemplos disso: “Quando o poeta diz: ‘por alga ficção eu verto lágrimas’, a ficção é tomada por algo irreal, mas as lágrimas vertidas pertencem à realidade.” (Vigotski, no prelo); Cf. também pp. 56, 68, 175 [na tradução francesa]; e, em Psicologia da Arte, pp. 22, 169, 223, 287.
  • 10
    Nesta perspectiva, a imaginação engloba a ficção, na medida em que esta é definida, da forma mais geral, como uma disposição mental ligada a um fenômeno de faz de conta (make believe). A ficção como faz de conta foi particularmente defendida por Walton (1990); Cf. Schaeffer, 1999. Vigotski (1999, p. 264) escreve que o faz de conta, “segundo Meinong, é a base dos jogos infantis e da ilusão estética, e é a fonte daqueles ‘sentimentos e fantasias’ que acompanham essas duas atividades”. Note-se que Meinong continua a ter um lugar no pensamento atual sobre a ficção (cf. Thomasson, 2008; Renauld, 2014).
  • 11
    Aqui também se refere a Ribot e aos sentimentos que se exprimem em fantasias, loucuras, delírios de perseguição e emoções pouco inteligentes, poder-se-ia dizer.
  • 12
    A importância do pensamento de Espinosa para Vigotski foi assinalada em numerosas ocasiões. Cf., por exemplo, Sévérac (2022) e Sawaia; Silva; Magiolino (no prelo).
  • 13
    O tipo não é o reflexo de uma pessoa real, mas a essência ou a síntese de uma relação com o mundo – em Balzac, por exemplo, o Padre Goriot, o “Cristo da paternidade”; Vautrin, o vilão; o Barão de Nucingen; o homem de negócios, etc. – e é isso que lhes permite encarnar as relações sociais de uma forma idealista.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2024
  • Aceito
    03 Set 2024
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