Open-access APRESENTAÇÃO

PRESENTATION

PRESENTACIÓN

O presente dossiê debate três faces de um contínuo processo social: a formação para o magistério; o enfraquecimento da função pública, via avanço de contratos temporários, em movimento concomitante de degradação das condições de trabalho; e, mais recentemente, a ascensão da educação digital, por meio das EdTechs, as startups da educação, com nítida transfiguração da profissão.

A formação de docentes é aqui considerada um campo sensível, pois sua remodulação visa perfilar o exercício do trabalho das professoras e dos professores, com sucessivos ajustes para responder às demandas do capital (Fonseca, 2009). Nessa seara, tem-se demonstrado a opção política, a exemplo da adotada no Brasil, de: substituição da formação aprofundada e crítica pela certificação em massa; ampla adesão ao treinamento com base em competências e habilidades; ausência de densidade de conteúdos e de mediações substantivas e essenciais para o exercício pleno das funções intelectuais e políticas do magistério; substituição das disciplinas de fundamentos teóricos por práticas e técnicas instrumentais; licenciaturas aligeiradas; profusão de teorias estadunidenses sobre o desenvolvimento infantil, frequentemente associadas às aspirações neocognitivistas; crescente domínio privado em nível superior na formação do magistério; expansão da formação pelo ensino a distância, que já representa no Brasil a maioria absoluta das novas matrículas em licenciaturas (Inep, 2023), e a concentração destas em um número reduzido de grandes corporações, que reafirma a oligopolização privada – além de dar-se cada vez mais com punção dos fundos de vida dos e das estudantes e a oferta, em contrapartida, de um retrato melancólico do futuro trabalho.

Neste sentido, o leitor e a leitora encontrarão neste dossiê o artigo de Antônio Lisboa Leitão de Souza, Melânia Mendonça Rodrigues e Sonayra da Silva Medeiros Macêdo, que analisa as ações de formação continuada de professores e professoras implementadas na rede municipal de ensino de Campina Grande-PB e demonstra como estas estão alinhadas aos interesses dos aparelhos privados de hegemonia (APH) e, consequentemente, orientadas por uma perspectiva que instrumentaliza os e as docentes e dissemina uma sociabilidade pautada em valores capitalistas individualistas, consumistas e especulativos.

Olinda Evangelista, Mauro Titton e Priscila Monteiro Chaves analisam três documentos de 2024 relacionados à docência, com destaque para o Plano Nacional de Educação 2025-2035. As autoras e o autor sublinham como o sentido da formação e do trabalho docente, expresso na política educacional brasileira atual, está estreitamente vinculado aos slogans dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), tal como propalados pela Organização das Nações Unidas (ONU). Não obstante, demonstram como, por detrás desse circuito de verbalismos, subjaz estreita articulação de interesses capitalistas entre APH, Estado e organismos internacionais; e concluem que os slogans anunciam direitos, mas não políticas capazes de realizá-los.

Ulrike Buchmann, por sua vez, oferece uma perspectiva complementar sobre a formação de professores e professoras na Alemanha, destacando como o contexto pós-pandêmico agravou as contradições existentes no sistema educativo. A autora enfatiza a insistência em avaliações estandardizadas e a resistência em integrar temas atuais ao currículo, como as transformações provocadas pela socialização midiática, que contribuem para uma visão unidimensional de mundo. Para a autora, assim, são reforçadas as estruturas de significado autoritárias e limita-se o potencial reflexivo e emancipatório que deveria existir na formação docente.

Esse conjunto de aspectos sobre a formação tem estreito rebatimento sobre o trabalho docente, pois antecipam tendências de reformismos que buscam reconfigurar o conteúdo e o sentido social do trabalho das professoras e dos professores. Por tal razão, a segunda face, que trata das relações e condições de trabalho, discute centralmente a questão das precariedades e as modificações introduzidas na regulação dos regimes de trabalho docente. O trabalho de Selma Venco analisa as formas de contratação de professores e professoras no Brasil e na França (2010-2020) e constata que os contratos temporários cresceram em vários estados brasileiros, ao ponto de, no Acre, alcançar a marca de 74% dos docentes da rede estadual; enquanto na França há uma clara geopolitização, pois os territórios com maior vulnerabilidade social concentram percentuais mais elevados de docentes precários.

Por sua vez, o artigo de João Batista Silva dos Santos analisa a produção acadêmica sobre professoras e professores temporários no Brasil até 2020, último ano de publicação dos microdados do Censo Escolar. E aponta que, já nos anos 1990, a Nova Gestão Pública introduziu a flexibilização nos regimes de contratação e fragilizou as relações de trabalho. Desde os anos 2000, a contratação temporária foi ampliada e resultou em alta instabilidade no emprego e baixa adesão sindical. Destaca-se, na análise, o conjunto de estudos que apontam a adesão da administração pública à redução de custos.

E, por fim, o artigo de Eneida Oto Shiroma examina o documento “Reimaginar o nosso futuro juntos”, da Unesco (2021) e salienta como as reformas educacionais propostas, ao articular a ideia de um “futuro sustentável”, propõem, de fato, uma modificação substantiva do significado de aprendizagem, escola e trabalho docente ao subtrair as tarefas formativas das instituições e apontar o setor privado como o lócus de excelência na promoção dos serviços públicos.

Os textos aqui reunidos exploram o papel estratégico das tecnologias educacionais (EdTechs) em uma conjuntura específica, discutida nas duas faces anteriores, caracterizada por disputas e litígios relacionados à formação e ao trabalho docente. Tal cenário reflete mudanças estruturais e dinâmicas aceleradas pela pandemia de SARS-COV-2 (Covid-19), período em que as tecnologias educacionais digitais ganharam impulso significativo tanto nas redes públicas quanto privadas de ensino. O dossiê busca analisar algumas das tendências dessa indústria em expansão, considerando as implicações econômicas, políticas e sociais de sua consolidação no Brasil e em escala global.

O desenvolvimento de tecnologias educacionais – como Plurall, PROF, Livrofácil, Learning Book, Niduu, Descomplica, Witseed, Brain Academy e Qranio – evidencia a capacidade dessas plataformas de oferecer uma ampla gama de serviços e soluções digitais. Tais ferramentas não se limitam a atuar como suportes didáticos, mas desempenham funções mais amplas e complexas, como a coleta e análise de dados sobre o comportamento de estudantes, suas famílias e professores e professoras. Ainda, permite o monitoramento e a modelagem de práticas pedagógicas e institucionais, sob o risco crescente de aumento do controle direto sobre docentes e todas as dimensões de suas práticas profissionais.

Essas tecnologias configuram-se como mecanismos que não apenas mediam a prática educativa, mas também condicionam comportamentos, orientam planejamentos educacionais e redefinem currículos e avaliações. Por meio de artefatos e objetos de ensino digitais, os capitais envolvidos nessa indústria constroem novos mercados educacionais, ampliando sua influência sobre o trabalho docente, os processos de ensino-aprendizagem e as políticas públicas relacionadas à educação. Essa dinâmica acentua a mercantilização da educação, introduzindo tensões e contradições no trabalho dos(as) professores(as) e na autonomia pedagógica, especialmente no contexto brasileiro, no qual as disputas sobre a escola tornam-se instrumentos na escalada dos conflitos políticos. Nesse cenário, emergem tendências como a “Escola Sem Partido”, a militarização, a censura a materiais didáticos, o crescimento das escolas confessionais, o controle parental sobre o currículo e a regulamentação de conteúdos e práticas pedagógicas. Faz-se um convite à reflexão, a partir das contribuições aqui reunidas, sobre quais papéis primários ou secundários as EdTechs desempenharão nessa conjuntura, agravada pelo fato de que a expansão dessas tecnologias reflete, na quase totalidade da indústria, um movimento mais amplo de financeirização e mercantilização da educação, no qual as soluções digitais tornam-se parte de estratégias de acumulação de capital baseadas em dados e no controle dos processos educacionais.

Assim, as leitoras e os leitores têm a oportunidade de acessar análises que iluminam diferentes aspectos desse fenômeno. Vânia Pereira Moraes Lopes, Patrícia Menezes dos Santos e Elza Margarida de Mendonça Peixoto discutem a invasão das empresas de tecnologias educacionais (EdTechs) na educação pública da Bahia, examinando contratos de aquisição de equipamentos e serviços dessas empresas, à luz de seus impactos no trabalho docente e na disputa pelo projeto de educação pública. Moacir Fernando Viegas e Marcelo Eder Lamb sintetizam os trabalhos publicados sobre plataformas digitais na educação básica, que descrevem como parte de um processo de “plataformização da educação”, associado à reconfiguração do Estado. Geo Saura, por sua vez, analisa o potencial e o fetichismo da inteligência artificial (IA) na transfiguração da educação, alavancados pela crise da SARS-COV-2. Fechando este bloco, Allan Kenji Seki examina a indústria de EdTechs na França (2002-2022) ao destacar a alta concentração de empresas voltadas à formação profissional e continuada, impulsionada por políticas de financiamento estatais. Além disso, o autor aponta o protagonismo dos capitais financeiros e a concentração de mercado, resultando na formação de oligopólios e na financeirização do ensino.

Intenciona-se com o dossiê demonstrar a força e a pertinência de ações adotadas, a exemplo de como a entrega da formação e do trabalho docente às determinações do capitalismo atual terá, direta e indiretamente, largo alcance sobre a formação futura da juventude brasileira e do destino nacional. É nesse ensejo que convidamos os pesquisadores e as pesquisadoras aqui reunidos a se interrogarem, a partir de suas concepções teórico-metodológicas e de seus campos de pesquisa, sobre como perseguir os caminhos da crítica.

Agradecimentos

Não se aplica.

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Referências

Editado por

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2024
  • Aceito
    30 Dez 2024
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