Open-access FORMAÇÃO E TRABALHO DOCENTE NO TERCEIRO GOVERNO LULA: NOVAS POLÍTICAS, VELHO ALVO

TRAINING AND TEACHING WORK IN LULA’S THIRD GOVERNMENT: NEW POLICIES, OLD TARGET

FORMACIÓN DOCENTE Y TRABAJO EN EL TERCER GOBIERNO DE LULA: NUEVAS POLÍTICAS, VIEJO OBJETIVO

RESUMO

Neste texto, discutimos três documentos de 2024 atinentes à docência: o da Conferência Nacional de Educação; o PL n.º 2.614/24 do Plano Nacional de Educação 2025-2035; e o Parecer CNE/CP n.º 4/2024, com Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Profissionais do Magistério. Há íntima articulação entre Estado, aparelhos privados de hegemonia e seus intelectuais com organizações multilaterais na produção de consenso. Slogans anunciam direitos, mas não políticas que os realizem. O sentido da formação e do trabalho docente liga-se ao 4° Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – Educação de Qualidade –, elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Compõem-na “conhecimentos e habilidades para o desenvolvimento sustentável”, educação como direito humano, igualdade de gênero, cultura de paz e cidadania global, respeito à diversidade, atenção aos vulneráveis e qualificação docente segundo padrões internacionais. A “valorização docente” impele ao alargamento da base de legitimação da sociabilidade capitalista.

Palavras-chave
Política Educacional; Governo Lula 2023-2027; Formação docente; Trabalho docente; Plano Nacional de Educação 2025-2035

ABSTRACT

In this text, we discussed three documents published in 2024 relating to teaching in which the directions to be followed are indicated: the final text of the National Education Conference, Bill nº 2614/24 of the National Education Plan 2025-2035 and CNE/CP Opinion nº 4/2024, which imposes new National Curricular Guidelines for the Initial Teaching Educations. There is intimate articulation of State institutions, private apparatuses of hegemony and their intellectuals with multilateral organizations in shaping strategies for consensus common ideas. Slogans announce rights, but without policies that allow their realization. The intended meaning of work and teaching education is linked to the 4th Sustainable Development Goal – Quality Education –, drawn up by the United Nations (UN). It comprises “knowledge and skills for sustainable development”, education as a human right, gender equality, a culture of peace and global citizenship, respect for diversity, attention to the vulnerable and concern with teaching qualifications according to international standards. “Teacher valorization” encourages the expansion of the basis for legitimizing capitalist sociability.

Keywords
Educational policy; Lula Government 2023-2027; Teacher training; Teaching work; National Education Plan

RESUMEN

En este texto, discutimos tres documentos 2024 relacionados con la enseñanza: la Conferencia Nacional de Educación, PL N° 2614/24 del Plan Nacional de Educación 2025-2035 y el Dictamen CNE/CP N° 4/2024, con Lineamientos Curriculares Nacionales para la Formación Inicial de Profesionales de la Enseñanza. Existe una íntima articulación entre el Estado, los aparatos privados de hegemonía y sus intelectuales con los organismos multilaterales en la producción de consenso. Los eslóganes anuncian derechos, pero no políticas que los realicen. El significado de la formación y el trabajo docente está vinculado al 4º Objetivo de Desarrollo Sostenible (ODS), Educación de Calidad, desarrollado por la Organización de las Naciones Unidas (ONU). Incluye “conocimientos y habilidades para el desarrollo sostenible”, la educación como derecho humano, la igualdad de género, una cultura de paz y ciudadanía global, el respeto a la diversidad, la atención a los vulnerables y la cualificación de los docentes de acuerdo con las normas internacionales. La “valorización de los maestros” impulsa la ampliación de la base de legitimidad de la sociabilidad capitalista.

Palabras clave
Política educativa; Gobierno de Lula 2023-2027; Formación del profesorado; Labor docente; Plan Nacional de Educación 2025-2035

Há uma objetividade em vista?

É corrente o chiste de que o “Brasil não é para os fracos”! É um fato, e o mesmo pode ser dito da situação dos professores no país: não é para os fracos... Objeto de todo tipo de ataques desairosos, é também objeto de toda política reformista. Responsabilizados pela crise educacional, o Governo Federal esconde nessa acusação o fato objetivo e cruel de que não tem qualquer interesse nem em dar aos professores o devido tratamento, nem de resolver a crise na educação. E não estamos falando do período Bolsonaro, pois a degradação docente é projeto político de longa data, acumulado e agravado nos dias que correm. Onde estão as evidências dessa afirmação?

Comecemos pelo novo arcabouço fiscal ou “Regime Fiscal Sustentável” (Brasil, 2023). Em entrevista ao Correio da Cidadania, Plínio de Arruda Sampaio Júnior afirmou que se trata de um aperfeiçoamento do Teto de Gasto do governo de Michel Temer (2016-2018) (MDB). “Por trás de tudo, a prioridade é mercantilizar os serviços públicos e garantir a sustentabilidade intertemporal da relação dívida-PIB. Essas são as duas prioridades implícitas. O arcabouço dá continuidade à penúria que asfixia as políticas públicas” (Brito, 2023, n.p.). Impõe-se um limitador de investimentos na área, agravado pela proposta federal de flexibilização dos limites constitucionais de aplicação mínima nas áreas de saúde e educação. O novo regime, segundo Fernando Haddad, levaria a uma economia de R$ 131 bilhões até 2033, “uma espécie de poupança do governo para garantir o pagamento dos credores do Tesouro Nacional”. (Salviatti, 2024, n.p.).

A Auditoria Cidadã da Dívida (2024, n.p.), frente aos dados do Censo Escolar brasileiro de 2023, concluiu que, no total:

Foram registrados 47,3 milhões de estudantes, considerando todas as etapas educacionais, distribuídos em 178,5 mil escolas. Mesmo com essa quantidade de escolas e alunos, o Governo Federal destinou apenas 3% do orçamento federal aprovado para 2024 para a área.

Ao lado desse escândalo, a Auditoria (2024, n.p.) refere que, no mesmo ano, “a dívida pública receberá cerca de R$ 2,5 tri, ou seja, 45,98% do orçamento federal, ainda mais que no ano passado, que recebeu R$ 1,89 tri e corresponde a 43,23% do orçamento”. Caso fossemos considerar o PNE 2014-2024, o Estado deveria ter destinado, “no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio” (Brasil, 2014, n.p.), percentuais jamais alcançados. Estudo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2024) mostra que de 2015 a 2020 o percentual do Produto Interno Bruto (PIB) à educação pública girou em torno de 5%. Não obstante, a meta de financiamento da educação, de 10% do PIB, foi reeditada (Meta 18.a) no projeto de Lei n.º 2.614/2024 (Brasil, 2024a), enviado pelo Governo Federal à Câmara dos Deputados.

Há paradoxos. O documento da Conferência Nacional de Educação – Conae (Brasil, 2024b, p. 185, grifo do autor) indica a ampliação do “volume de recursos públicos aplicados exclusivamente em educação pública de maneira a atingir, no mínimo, o patamar de 7% do [...] PIB do país no 4º ano de vigência do PNE, 9% no 8° ano e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio”. Ao contrário, no PL n.º 2.614/2024, a meta 18a prevê:

Ampliar o investimento público em educação, de modo a atingir o equivalente a 7% (sete por cento) do [...] PIB até o sexto ano de vigência deste PNE, e 10% (dez por cento) do PIB até o final do decênio, em consonância com o que estabelece o art. 214, caput, inciso VI, da Constituição

(Brasil, 2024b, n.p.).

Sem pejo por parte dos proponentes, nos dois casos os “dez por cento” foram postergados para 2035. Olhando para as informações apresentadas, ficamos à vontade para dizer que dificilmente a área educacional se deslocará de seu atual lugar: degradada, demolida, desestruturada!

Por que razão esses dados objetivos não são levados em consideração nas proposições relativas à valorização docente? Por que tantas forças políticas, das menos às mais poderosas, investem em proposições não realizáveis (talvez as periféricas)? Tais perguntas fazem sentido quando três complexas ações políticas estão colocadas diante de nossa capacidade de entendimento; as três assentadas sobre ideias, conceitos e slogans que pretendem estruturar a atividade docente no Brasil e, por decorrência, precisariam de ser efetivamente financiadas – ainda que na contramão do que desejássemos.

Sem perder de vista as determinações orçamentárias acima, importa dizer que o pretendido sentido da formação e do trabalho dos professores tem em seu horizonte o 4° Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) – Educação de Qualidade –, componente dos 17 ODS propostos pela Organização das Nações Unidas – ONU (s.d.). No bordão estão compreendidos “conhecimentos e habilidades para o desenvolvimento sustentável”, educação como direito humano, busca da igualdade de gênero, construção da cultura de paz e da cidadania global, respeito à diversidade, atenção aos “vulneráveis” e preocupação com a qualificação docente segundo padrões internacionais.

Essas formulações concretizam-se em três documentos do ano de 2024 atinentes à docência. Trata-se do texto final aprovado pela Conae (Brasil, 2024b); do citado Projeto de Lei n.º 2.614/24 do Plano Nacional de Educação (PNE) – 2024-2034 (Brasil, 2024a), agora 2025-2035 em razão de sua prorrogação até dezembro deste ano; e do Parecer CNE/CP n.º 4/2024, que impõe novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a Formação Inicial de Profissionais do Magistério (Brasil, 2024c)1. Não há como apreender seus desígnios sem levar em conta aspectos relativos aos interesses políticos, aos litígios de classe expressos no financiamento, demonstrando que o movimento da história apresenta inescapáveis elementos a serem inquiridos. As formas de organização da vontade política – e seus frutos organizacionais e documentais – que derivam desse moto-contínuo respondem a demandas nem sempre perceptíveis. Organicamente construídas por e em nossas relações sociais e econômicas, precisam de um tirocínio particular que as interpele e possa expor seus fundamentos ordenadores. É nosso objetivo discutir algumas das determinações que subjazem à emersão dos três documentos para compreendermos a sinuca histórica em que se encontra o professorado brasileiro.

De onde vieram os documentos?

Os três documentos foram articulados no interior de ampla correlação de forças políticas, expressas em diferentes formas organizativas2, e aprovados nas instâncias decisórias3. Nenhuma dessas formas organizativas e seus intelectuais assumem a inserção de classe que orienta os documentos, diluindo-a num palavrório edulcorado para nele fazer colar os incautos. Todas gravitam em torno dos interesses burgueses e os imprimem em sua ação e nos textos que produzem. Estabelece-se uma relação orgânica entre os processos sociais que geraram tais documentos, o Estado, o capital, e nela são fundamentais os aparelhos privados de hegemonia (APHs), que produzem e difundem concepções de mundo atuando para produzir e reproduzir a hegemonia burguesa (Gramsci, 2021).

O primeiro documento resultou da Conae – evento patrocinado pelo Fórum Nacional de Educação (FNE) e pelo Ministério da Educação –, ocorrida em janeiro de 2024, em Brasília-DF. Tendo circulado a partir de meados de março, tem o desiderato de constituir-se como horizonte privilegiado do próximo PNE 2025-2035. Sua convocação teria ocorrido em um momento crucial de “pacificação e estabilização do país”, derivada de compromissos do Estado de “retomar a participação social na educação” para assegurar que o novo PNE incluísse em sua agenda a “garantia do direito à educação, básica e superior, com qualidade social”, os “desafios atinentes à redução das desigualdades, à valorização das diversidades e à emergência ambiental” (Brasil, 2024b, p. 9-11), bem como políticas de reparação – argumentos que justificariam parte das decisões antipopulares do governo Lula. Entre os sete eixos temáticos que o compõem, o eixo V – Valorização de profissionais da Educação: garantia do direito à formação inicial e continuada de qualidade, ao piso salarial e carreira, e às condições para o exercício da profissão e saúde – é o que mais nos interessa no trato do tema junto aos outros documentos.

O segundo trata-se do PL n.º 2.614/24, do PNE, enviado à Câmara dos Deputados pelo Poder Executivo4 (Brasil, 2024a). Em notícia divulgada pela página do Governo Federal (Brasil, 2024d), Camilo Santana, Ministro da Educação, informou que o Ministério da Educação (MEC) criou, em junho, um Grupo de Trabalho5 para o novo Plano, e que o documento da Conae foi acatado – porém, sem especificar em que pontos.

O terceiro é a Resolução CNE/CP n.º 4/2024 (Brasil, 2024e), expedida pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), que trata da formação inicial de profissionais do magistério. Tendo rejeitado a Resolução CNE/CP n.º 2/2019 (Brasil, 2019), própria do governo Bolsonaro, chama a atenção o fato de que o governo Lula não tenha reincorporado a Resolução CNE/CP n.º 2/2015 (Brasil, 2015), frustrando a pressão de setores progressistas da área que vinham reivindicando sua retomada. Esse desenlace não nos interessa discutir no momento, mas note-se que, após a publicação do Parecer CNE/CP n.º 4/2024 (Brasil, 2024c), o TpE apresentou sua posição. Fazendo uma “conta de chegada” ao comparar as três resoluções, avaliou que a terceira:

[…] apresenta importantes avanços, como a manutenção da carga horária mínima de 3.200 horas para os cursos de licenciatura, clareza em relação a como essa carga horária deve ser distribuída entre diferentes partes dos cursos e o aumento na carga horária dos cursos de formação pedagógica para graduados não licenciados. Outra melhoria extremamente significativa refere-se às restrições impostas aos cursos oferecidos na modalidade a distância, definindo que ao menos 50% da carga horária total dos cursos EaD deve ser realizada de forma presencial

(Todos pela Educação, 2024, p. 4)6.

A nota de posicionamento do TpE procura dissimular sua posição política sob um discurso técnico, e pede que as Diretrizes sejam homologadas pelo MEC, o que foi atendido em maio (Brasil, 2024e).

Antes de tratarmos da formação, dois aspectos precisam ser elencados: 1) nas três intervenções políticas das quais derivaram esses textos, oriundos da ação estatal, algumas organizações se destacaram, em especial APHs ligados a frações burguesas, a exemplo do TpE; 2) os três materiais compartilham a visão de docência, a despeito de algumas dissensões. Procuramos verificar as coerências entre eles, tanto em seu conteúdo, quanto no que tange às forças políticas e econômicas que os propuseram. Nosso interesse é, ao discutirmos as ideias centrais dos documentos aludidos, verificar as formulações articuladas em torno do que deverá ser a formação docente no próximo período. Queremos compreender as proposições vulgarmente nomeadas de “valorização docente” e o quanto condicionam as posições construídas por intelectuais e forças políticas ligados à Conae, ao PNE e ao CNE – e como respondem aos conflitos da relação de exploração capital-trabalho, determinação por excelência da política educacional brasileira.

Formação e trabalho docente como alvo?

Após os anos de 1990, a formação e o trabalho docentes vêm sendo sistematicamente derrubados pelas políticas capitalistas que, no âmbito discursivo, colocam os professores como centrais para o sucesso de qualquer intervenção7, mormente as ligadas ao desenvolvimento econômico, enlaçadas por seus pares mais palatáveis: o desenvolvimento social e ambiental.

A Conae (Brasil, 2024b, p. 160), ao propor uma Política Nacional de Valorização dos(das) Profissionais da Educação, entende a valorização como:

[...] regime de trabalho; cuidados de saúde; piso salarial profissional; carreira; concurso público; profissionalização; formação inicial e formação continuada; condições de trabalho, com destaque para o equilíbrio entre número de alunos por ano/série/turma e professor; redução do número de alunos por turma; reconhecimento do tempo de planejamento extraescolar com jornada digna; cumprimento legal de 1/3 da carga horária para planejamento; participação ativa em todos os processos decisórios da escola e da administração dos sistemas de ensino; reconhecimento social e a dignidade profissional; a saúde em sua integralidade; a autonomia, a liberdade e a possibilidade de realização profissional, o que implica em validar a autonomia e a autoria no fazer pedagógico da escola, garantindo os preceitos da Constituição Federal, de 1988, que assegura liberdade de cátedra aos(às) profissionais da educação, conforme as diretrizes da gestão democrática, da qualidade social, do acesso, da permanência das crianças, jovens, adultos e idosos nas instituições educativas.

A enunciação acima horizontaliza os direitos dos professores, pondo na mesma condição piso salarial profissional e carreira, por exemplo, e autonomia e liberdade. Os primeiros precisariam dos recursos do Estado; os segundos, do engajamento docente. São formulações com as quais em geral todos concordam, pois não há uma relação imediata entre a proposta e suas efetivas condições materiais de realização. O estabelecimento de objetivos e metas, muitas vezes genéricas e irreais, serve como panaceia para ocultar o caráter ideológico das proposições de organizações multilaterais (OMs), de governo, de APHs (Evangelista, 2021).

Abstraindo a escassez de recursos, a Conae construiu um conceito amplo de educação para organizar a formação: “[...] educação para uma cultura democrática e humanizadora, fundamental na efetivação de valores de respeito e tolerância, de solidariedade, de justiça social e ambiental, de sustentabilidade, de inclusão, de valorização da diversidade e pluralidade” (Brasil, 2024b, p. 11). Essas ideias conferem grande parte do sentido a ser atribuído aos conteúdos da formação docente e, por decorrência do trabalho docente, aos conteúdos da formação de crianças e jovens no futuro na escola pública – aqueles que constituirão a classe trabalhadora. Nem no primeiro excerto, nem no segundo, o sujeito da proposta é claramente descrito; aparecerá em outras passagens como “vulneráveis”, “pobres”, “desiguais”, “diferentes” – eufemismos que escondem a exploração de classe, incluídos os professores.

O reconhecimento das necessidades dos professores é mencionado no Eixo V, o que não significa que, ao ser posto em andamento o novo PNE, sua realização de fato venha a ocorrer. Importa avaliar que tais enunciados produzem, em grande medida, mesmo em uma conjuntura de “austericídio fiscal”, algum grau de apaziguamento das almas daqueles que, subservientes às demandas do capital, oferecem a seu favor a controversa justificativa de termos um “governo em disputa” e uma luta contra o protofascismo. Os professores – na briga de foice – estão encurralados pelos interesses do capital, e faz parte desses interesses a sua degradação e a daqueles que formam e formarão a classe trabalhadora. O seu quinhão dos recursos públicos tem sido cada vez menor e fictício; a política oficial sempre o alçará aos cumes das montanhas, enquanto, objetivamente, o fará viver a seus pés.

Para onde estaríamos indo?

As ideias do texto da Conae estão presentes nas DCNs (Brasil, 2024c, p. 3-4) com formulação semelhante. Ao definir os princípios da formação, rezam que:

X - o compromisso de que a formação dos profissionais do magistério busque contribuir para a consolidação de uma nação soberana, democrática, justa, laica (sic!), inclusiva e que promova a emancipação dos indivíduos e grupos sociais, atenta ao reconhecimento e à valorização da diversidade e, portanto, contrária a toda forma de discriminação;

XI - educação para a construção de um mundo sustentável, abordando questões que ameaçam o futuro, tais como, a pobreza, o consumo predatório, a deterioração urbana, o conflito e a violação dos direitos humanos, sempre respeitando a pluralidade e a diversidade cultural.

O PL n.º 2.614/2024 propõe metas e estratégias que, em tese, materializariam o ideário educacional que comparece nos demais documentos. É recorrente a focalização em pessoas em “situação de vulnerabilidade socioeconômica”; na “redução das desigualdades de aprendizagem no ensino médio entre grupos sociais definidos por raça, sexo, nível socioeconômico e região” (Brasil, 2024a, n.p.). De outro lado, o PL alude à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como portadora das orientações da formação docente, calcada na pedagogia das competências, das aprendizagens essenciais, da igualdade educacional, da diversidade e equidade (Brasil, 2017). Ademais, ratifica os compromissos que o governo atual tem para a área. Além da referência explícita à BNCC, produzida pelo Movimento pela Base (MpB) (Pereira, 2019), o Ministro da pasta está ligado à Fundação Lemann, ambos famosos pelo trabalho em Sobral-CE. Na contramão de tantas pistas, frações organizadas em defesa da educação pública conseguem ver espaços de disputa no aparelho de Estado.

As lacunas conceituais que se apresentam em um e outro documento não escondem a dimensão fundamental dos três aqui examinados: a comunhão em torno de um projeto formativo direcionado ao controle da classe trabalhadora, controle cujo elo de transmissão seria o professor. Esse projeto está em pleno desenvolvimento em âmbito mundial, patrocinado por diferentes organizações do capital. Apropriado, higienizado e revestido de interesses locais, plasma nacionalmente uma política educacional negociada com aquelas organizações, entre elas a OCDE, o Banco Mundial (BM), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), e importantes APHs, como o TpE8 e o MpB. O que está em jogo pode ser entendido com base em uma passagem de Mészáros (2005, p. 44): “o sentido verdadeiramente amplo do termo educação [...] [refere-se à] intimidade da posição que lhes foi atribuída na hierarquia social, juntamente com suas expectativas ‘adequadas’ e as formas de conduta ‘certas’”.

Como a tarefa atribuída ao professor se realizará se as condições materiais não forem dadas? A tarefa será posta no interior de políticas ideológicas; caberá aos professores a responsabilização pela própria “formação” burguesa, com seu “engajamento”. A perspectiva pragmática em desenvolvimento no Brasil nas últimas duas décadas não sofre contestação; a crítica, no caso da Conae, se restringe ao período bolsonarista, nova datação para os males da escolarização, aceitando-se a formação em cursos EaD, em instituições privadas – problema que não se resolve com o termo “preferencialidade” para formação em instituições de ensino superior (IES) públicas. Não é demais lembrar que, em 2022, 65٪ dos concluintes em cursos de formação inicial o fizeram na modalidade EaD e, destes, 93% em instituições privadas (Todos pela Educação, 2024, p. 15). A despeito das DCNs estabelecerem que 50% da carga horária de cursos EaD deve ser presencial, não há referência à sua garantia. A política de expansão das matrículas em IES privadas, após 2006, via aplicação de recursos do fundo público de forma crescente (Fundo de Financiamento Estudantil – FIES e Programa Universidade para Todos – Prouni), ocorreu em detrimento do financiamento das universidades públicas.

Considerando a austeridade com que tem sido tratado o orçamento da educação e o número crescente de professores temporários nas redes públicas (Venco, 2021) – hoje na casa dos 800 mil –, não é excessivo inferir que a restrição da carga horária servirá às perspectivas praticistas da formação, haja vista a carga horária prescrita aos estágios, às práticas e aos 10% de extensão obrigatória nos currículos.

O arco de questões postas não esgota os documentos, mas três pontos precisam ser pensados: a repetição de proposições não cumpridas de planos e políticas anteriores; a congruência entre as formulações oficiais e as de alguns APHs; e a ampliação dos mecanismos de controle docente via avaliações (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – Enade, prova nacional para os professores), desempenho e ranqueamento de cursos, eivados das políticas baseadas em evidências e experiências exitosas.

Educação para uma cultura democrática e humanizadora?

As principais pautas desses documentos – direito humano, justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável – dão vazão a ilações defendidas por OMs, como a Unesco, a OCDE e o BM. A concepção de educação, de modo geral, expressa as ideias de inclusão, formação integral, educação como bem comum e direito humano inalienável. Converge para a constituição de um sujeito público, solidário, ético, pacífico que, por isso mesmo, poderá gozar de um futuro sustentável, justo e de reparação. Tal agenda surge como elemento ideológico, de produção de hegemonia e apassivamento (Mészáros, 2012). Diversidade, discriminação, violência, qualidade, equidade e inclusão sustentam a concepção de educação, signos associados à regulamentação, à avaliação e ao monitoramento. Agregando gestão democrática, cidadania ativa, cidadania global e competência cidadã, temos o horizonte da conformação docente. Uma falsa coexistência harmoniosa que leva a atuação e formação docente a, quiçá, replicar pautas conflitantes e antagônicas às classes subalternas. É o que se lê no excerto que segue:

[...] 1038. 1.26. Expandir a educação profissional de qualidade, em diferentes modalidades e níveis, em instituições públicas, na perspectiva do trabalho como princípio educativo (?), com financiamento público permanente que atenda às demandas produtivas e sociais locais, regionais e nacionais, em consonância com a sustentabilidade socioambiental, com a gestão territorial e com a inclusão social, de modo a dar suporte aos arranjos produtivos locais e regionais, contribuindo com o desenvolvimento econômico e social

(Brasil, 2024b, p. 163, grifo nosso).

A passagem condensa o espírito do tempo: inclusão social, fomentada pela Unesco (2021), diversidade e justiça social harmonizadas com avaliação em larga escala! Quem ganha o sentido da política é a abstrata “sustentabilidade socioambiental” e o fortalecimento da “democracia”, com nenhum impacto que difira seja do atual destino do fundo público9, seja do modo pelo qual o capital mantém as condições funestas e violentas de apropriação da mais valia. As noções de igualdade, alívio da pobreza e equidade social, defendidas pelos documentos, são o tiro derradeiro para o abandono de conceitos como classe social, acúmulo de capital e outros que expõem a relação de exploração capital-trabalho, dada sempre como incorrigível ou, pior, como ficção de mentes alienígenas.

É necessário investir na compreensão da força que têm esses projetos na construção de posições-sujeito, relações sociais e no reforço e na constituição de sistemas de conhecimentos e crenças amplamente difundidos (Fairclough, 2001). Tais enunciados e ideários se apresentam em diretrizes educacionais e em projetos de lei como independentes de origem política e epistemológica10. O apelo democrático, justificado pela ideia esgarçada de educação, de acolhida da diversidade e das demandas individuais, fortalece a privatização não clássica da educação – resultando no seu mais desumano encurtamento.

A coesão social (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2021), estratégia de reposição do pensamento liberal, atuaria como antídoto contra o retorno da extrema direita, que tem sido “[...] explicada como decorrente da intolerância e desconsideração do pluralismo, numa abordagem que confere à cultura o status de categoria explicativa da crise” (Rodrigues, 2014, p. 224). Oculta-se a despolitização vivida, amortizam-se conflitos próprios da existência material e da dificuldade de reprodução da vida. Sem alienação generalizada, o Estado não conseguiria “[...] exercer, no plano estrito do jogo econômico, o papel de ‘comitê executivo’ da burguesia monopolista” (Netto, 1992, p. 23).

Quando o que se propõe para a formação e o trabalho docente não aponta para nada que possa promover uma ruptura social, nossa tarefa corre o risco de se reduzir à legitimação política desse papel, incorporando ainda outros “protagonistas” sociopolíticos no jogo de perde-perde. Formação e trabalho docente estão sendo impelidos ao alargamento da base de sustentação e legitimação do capital e sua sociabilidade. Estaríamos nós, professores, pondo nosso esforço e força de trabalho disponíveis à institucionalização de parcos direitos, de garantias cívicas e sociais (sempre em risco), e cooperando na organização do consenso burguês que garante o enriquecimento de quem deseja o nosso fim?

Notas

  • 1
    Expedido em 12 de março pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), abrange os cursos de licenciatura, de formação pedagógica para graduados não licenciados e de segunda licenciatura. Setores da área propuseram o revogaço das políticas do período Bolsonaro. Contudo, a Resolução CNE/CP n.º 2/2019 foi uma das poucas a ser revogada. Mantiveram-se o Novo Ensino Médio (novamente modificado); a BNCC; o “ensino híbrido”; a EaDeização da formação docente e do sistema público de ensino; a “educação digital”; a curricularização da extensão; entre outras políticas anteriores ao período Temer-Bolsonaro (2016-2022). O governo recriou a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (SECADI); aprovou a Política Nacional de Educação Digital e o Programa Educação Conectada; possibilitou a existência das Escolas Cívico-Militares nos estados e referendou a alteração da Política Nacional de Educação Especial – decisão tomada em 2020 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
  • 2
    Referimos às organizações no interior do aparelho de Estado – como o CNE –, em siglas políticas – como o Partido dos Trabalhadores –, em organizações multilaterais – como a ONU –, e em institutos sem fins lucrativos – como o Todos pela Educação (TpE).
  • 3
    Os documentos foram aprovados em uma Conferência Nacional de caráter popular (Conae), embora convocada pelo Estado, no CNE (Parecer CNE/CP n.º 4/2024) e na Presidência da República antes de serem encaminhados à Câmara dos Deputados Federais (PL n.º 2.614/24).
  • 4
    Em 26 de junho, a Frente Parlamentar Mista de Educação realizou, em Brasília, o Seminário Nacional 10 anos do Plano Nacional de Educação. Participaram deputados e senadores; Governo Federal; FNE; Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE); TpE; Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup); Serviço Social da Indústria (SESI); Fundação Getulio Vargas (FGV); Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC); Instituto Unibanco; União Nacional dos Estudantes (UNE); Fundação Lemann; Instituto Alana; Dados para um Debate Democrático na Educação (D3E); Fundação Maria Cecília Souto Vidigal; Campanha Nacional pelo Direito à Educação, entre outros. Coordenado pelo deputado Pedro Uczai (PT), foi aberto pelo Presidente do FNE, Heleno Araújo, órgão estatal coordenador da Conae. No evento, associou-se o documento da Conae e o PL n.º 2.614/24 do PNE e, a julgar pelas forças envolvidas, há sintonia entre eles (Brasil, 2024f).
  • 5
    Dele fizeram parte a Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes); o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep); o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE); o CNE; o Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais e Distrital de Educação (Foncede); a União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme); o FNE; a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime); o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed); a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados (CE/CD) e a Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal (CE/SF), coordenado pela Secretaria de Articulação Intersetorial e com os Sistemas de Ensino (Sase) do MEC (Brasil, 2024d).
  • 6
    “O MEC anunciou que até 31 de dezembro de 2024 será realizada uma revisão completa do marco regulatório da Educação a distância. O objetivo é criar um conjunto de regras que equilibrem a [...] oferta de cursos EAD com a manutenção da qualidade educativa.” (Schmidt, 2024, n.p.)
  • 7
    Paulo Santigo, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), afirma: “Professores são peças-chave para a melhoria da educação brasileira, mas ainda existem muitos desafios no sistema” (Brasil, 2022, n.p.).
  • 8
    O Todos pela Educação reivindicou o status de “MEC da sociedade civil” na pandemia; alcançou o Prêmio Empreendedor Social, em 2022, para sua dirigente. Segundo o jornal Folha de S. Paulo (Mantovani, 2022), o critério foi o papel que a Organização Social cumpriu na retomada das atividades escolares após a pandemia.
  • 9
    O “ponto de não retorno na questão social” e a “responsabilidade individual” têm liderado a pauta das referências em filantropia no país. Neca Setubal afirmou: “Três coisas para mim são fundamentais: fortalecer a democracia, trabalhar no combate às desigualdades e mudanças climáticas. [...] Vivemos um momento histórico muito desafiador, um momento de múltiplas crises. Para sair disso, temos que pensar na construção de políticas públicas inovadoras e que vão, de alguma forma, trazer novas esperanças e que vão fortalecer a democracia”. (Mari, 2024, n.p.).
  • 10
    O Deputado Federal Rafael Brito (MDB-AL), presidente da Frente Parlamentar Mista de Educação, no Seminário dos 10 anos do PNE, afirmou ser necessário “despolitizar” o debate sobre o PNE, trazendo à cena a razão e afastando as paixões (Brasil, 2024f).

Agradecimentos

Não se aplica.

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Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2024
  • Aceito
    30 Dez 2024
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