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HISTÓRIA E CULTURAS INDÍGENAS NA EDUCAÇÃO: ETNICIDADE, DIFERENÇA E OS 10 ANOS DA LEI Nº 11.645/2008

Levamos 20 exemplares do livro paradidático Aldeamentos Indígenas do Rio de Janeiro à aldeia Sapukai, Angra dos Reis (RJ), em 1998, para ser utilizado na escola Kyringue Yvoty. O professor Algemiro Poty recebeu, agradeceu, folheou e esclareceu que os Guarani já conheciam o seu conteúdo. Com um leve tom de ironia, recomendou que o livro fosse distribuído às escolas não indígenas, dos juruá, uma vez que as escolas dos brancos “não ensinam aos alunos quem somos nós, nem mostram a importância dos índios para o Brasil. Por que as crianças brasileiras não conhecem os índios se na nossa escola aprendemos sobre quem é diferente de nós?” (FREIRE, 2001FREIRE, J.R.B. A representação da escola em um mito indígena. TEIAS, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 1-11, 2001., p. 1). O fato ocorreu dez anos antes da Lei nº 11.645/2008 (BRASIL, 2004BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: MEC, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://portal.inep.gov.br/informacao-da-publicacao/-/asset_publisher/6JYIsGMAMkW1/document/id/488171 >. Acesso em: 14 abr. 2017.
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; 2008BRASIL. Lei nº 11.645. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 2008.). Seguimos sua recomendação. Levamos para as escolas não indígenas o livro que a EdUERJ editou em 1997 e reeditou mais de uma década seguinte (FREIRE; MALHEIROS, 2009FREIRE, J.R.B.; MALHEIROS, M.F. Aldeamentos Indígenas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: EdUerj, 2009.).

A questão é como ensinar o que pouco ou eurocentricamente se conhece. A obrigatoriedade do ensino indígena, extensiva à obrigatoriedade do ensino de história e culturas africanas na educação básica, foi um choque para o corpo acadêmico e escolar quando ambas emergiram no cenário brasileiro (BASTOS LOPES, 2013BASTOS LOPES, D. E todo dia era dia de índio: a representação dos povos indígenas nos currículos escolares do Rio de Janeiro. Revista Poiésis, Santa Catarina, v. 7, n. 11, p. 96-113, 2013. http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v7e11201396-112
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; 2017BASTOS LOPES, D. A presença do invisível em escolas indígenas: escolarização, diferença e cosmologia entre os povos Mbyá (Guarani) do Rio de Janeiro. Cadernos Cimeac, Uberaba, v. 7, n. 2, p. 103-119, 2017. https://doi.org/10.18554/cimeac.v7i2.2089
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; BENITES, 2012BENITES, T. A escola na ótica dos Avá Kaiowá: impactos e interpretações indígenas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2012.; GRUPIONI, 2013GRUPIONI, L.D. Quando a Antropologia se defronta com a Educação: formação de professores índios no Brasil. Revista Pró-Posições, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 69-80, 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73072013000200006
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; FREIRE, 2014FREIRE, J.R.B. A demarcação das línguas indígenas no Brasil. In: CARNEIRO DA CUNHA, M.; CESARINO, P. de N. (orgs.). Políticas culturais e povos indígenas. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. p. 363-389.). Mundos e sistemas culturais complexos foram submetidos a pesquisadores, externando certo colonialismo (ESCOBAR, 2014ESCOBAR, A. America Latina en una encrucijada: ¿modernizaciones alternativas, posliberalismo o posdesarrolo? In: QUINTERO, P. Crisis Civilizatoria, Desarrollo y Buen Vivir. Buenos Aires: Del Signo, 2014. p. 59-106.) e falta de familiaridade com o objeto quando a Lei foi aprovada.

As reformas curriculares dos anos 1990 aprovaram a obrigatoriedade do ensino indígena e africano, abrindo espaço para um ensino culturalmente híbrido, emergente e múltiplo. No entanto, as aprovações e novas diretrizes não foram capazes de superar as dificuldades encontradas nas universidades ao oferecer cadeiras com disciplinas específicas em contexto simbólico e étnico predominantemente ocidental.

Um expressivo número de cursos de formação continuada e materiais pedagógicos foram, nesses esforços, reunidos em articulação com instituições acadêmicas latino-americanas (CORTÉS; APODACA, 2016CORTÉS, A.R.; APODACA, E.G. El carácter interactoral en la Educación Superior con enfoque intercultural en México. Revista Liminar, México, v. 14, n. 1, p. 73-91, 2016.; MELIÀ, 2010MELIÀ, B. Passado, presente y futuro de la lengua guaraní. Assunção: CEADUC/ISEHF, 2010.; MUÑOZ, 2010MUÑOZ, H. Reflexividad sociolingüística de hablantes de lenguas indígenas: concepciones y cambio sociocultural. México: Metropolitana, 2010.; CEPAL, 2018COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (CEPAL). Boletín de la infancia y adolescencia sobre el avance de los objetivos del desarrollo del milenio, Santiago. Desafíos, n. 21, p. 1-32, 2018.). Um mergulho em literaturas e fontes históricas contextualizam, nas últimas décadas, tentativas de implementação do ensino sobre indígenas. Passados dez anos, este dossiê tem o objetivo, portanto, de explorar a história e o ensino sobre culturas ameríndias, investigando mudanças e os atuais reveses políticos dos quais o campo tem sido objeto. Assim, chegamos ao ponto central deste volume dos Cadernos CEDES: explorar limites e possibilidades em um cenário que tem discutido, por exemplo, configurar uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e extinguir diretamente o debate étnico-racial dos currículos (MACEDO, 2016MACEDO, E. Base nacional curricular comum: a falsa oposição entre conhecimento para fazer algo e conhecimento em si. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 32, n. 2, p. 45-68, 2016. http://dx.doi.org/10.1590/0102-4698153052
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; PEREIRA; OLIVEIRA, 2014PEREIRA, F.B.; OLIVEIRA, I.B. Ponderações ao Currículo Mínimo da Rede Estadual do Rio de Janeiro: uma contribuição ao debate em torno da Base Comum Nacional. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 12, n. 3, p. 1669-1692, 2014.). Esta edição traz artigos de docentes e pesquisadores indígenas para tanto.

Danielle Bastos Lopes, ao abrir o dossiê, analisa experiências gerais e localizadas sobre a Lei nº 11.645/2008 nas escolas da rede pública do Rio de Janeiro. A autora pesquisa a ocidentalização de culturas indígenas no ensino. Entender o conflito, a sedução e os estranhamentos quando mundos indígenas são apresentados a crianças em idade escolar assume um dos pontos centrais do artigo.

José Bessa Freire, coordenador do PROÍNDIO-UERJ, e Ana Paula da Silva, membro do mesmo programa, investigam, dez anos depois, a recepção dos materiais didáticos produzidos em parceria com o Ministério de Educação (MEC) para ser utilizado em escolas públicas indígenas e não indígenas. Investigam a impressão do público na recepção das exposições museais e os produtos criados pelo PROÍNDIO-UERJ, apresentando a contribuição do programa à Lei nº 11.645/2008.

Passando à atuação dos movimentos indígenas e ao debate intercultural, os pesquisadores Francisca Navantino (Chiquinha Paresi) e Edson de Andrade (Edson Krenak) narram experiências como pesquisadores e autores ameríndios. Chiquinha Paresi investiga a implementação da obrigatoriedade da Lei nº 11.645/2008 nas Secretarias de Educação do estado e universidades do Mato Grosso.

Ao defender a presença dos acadêmicos indígenas no ensino, no Poder Judiciário e demais esferas políticas, Edson Krenak debruça-se sobre como o movimento social abrange uma múltipla teia de relações entre indígenas e não indígenas, narrando suas experiências como parte do movimento social criado pela caravana Mekukradjá, um projeto para difundir a literatura e os conhecimentos ameríndios nas escolas.

Ana Paula da Silva, com base nas trocas e saberes tradicionais das sociedades Tupi do período seiscentista, investiga o modo de ser, comer e ensinar na temporalidade jesuítica. A autora explora categorias classificatórias a respeito de plantas, objetos e animais, o que permite discutir parte do sistema taxonômico e o modo como os falantes Tupinambá conheciam e transmitiam seus ensinamentos.

No contexto universitário, Adir Casaro Nascimento, Carlos Vieira e Beatriz Landa focalizam aspectos do curso de formação de professores indígenas no estado do Mato Grosso do Sul. O artigo exalta a presença dos acadêmicos indígenas no âmbito institucional e suas contribuições à Lei nº 11.645/2008. Os depoimentos de ameríndios e não indígenas evidenciam as fissuras, as produções e as reelaborações produzidas nos locais de tensão acadêmica.

Héctor Muñoz Cruz mapeia um panorama latinoamericano da representação indígena no campo sociolinguístico, analisando como as línguas nativas são representadas nos círculos de socialização linguística, incluindo o campo pedagógico e o político como contextos relevantes de representação.

O dossiê concentra, portanto, os assuntos ativos do campo da Educação e Etnologia.

Estudos recentes apontam o aumento de pesquisas evidenciando a agenda intercultural indígena na América Latina (CORTÉS; APODACA, 2016CORTÉS, A.R.; APODACA, E.G. El carácter interactoral en la Educación Superior con enfoque intercultural en México. Revista Liminar, México, v. 14, n. 1, p. 73-91, 2016.; MELIÀ, 2010MELIÀ, B. Passado, presente y futuro de la lengua guaraní. Assunção: CEADUC/ISEHF, 2010.; ROCKWELL, 2015ROCKWELL, E. Conversaciones en torno a la educación con pueblos indígenas/migrantes. In: NOVARO, G.; PADAWER, A.; HECHT, A. (orgs.). Educación, Pueblos Indígenas y Migrantes: reflexiones desde México, Brasil, Bolivia, Argentina y España. Buenos Aires: Biblos, 2015.). Explorar tais limites foi o que levou os autores deste volume a vasculhar em arquivos, manuscritos e narrativas outras. Esperamos, dessa forma, que o trabalho possa contribuir com a pergunta inicial feita pelo professor Guarani, estimulando novas reflexões e estranhamentos a pesquisadores indígenas e não indígenas.

REFERÊNCIAS

  • BASTOS LOPES, D. A presença do invisível em escolas indígenas: escolarização, diferença e cosmologia entre os povos Mbyá (Guarani) do Rio de Janeiro. Cadernos Cimeac, Uberaba, v. 7, n. 2, p. 103-119, 2017. https://doi.org/10.18554/cimeac.v7i2.2089
    » https://doi.org/10.18554/cimeac.v7i2.2089
  • BASTOS LOPES, D. E todo dia era dia de índio: a representação dos povos indígenas nos currículos escolares do Rio de Janeiro. Revista Poiésis, Santa Catarina, v. 7, n. 11, p. 96-113, 2013. http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v7e11201396-112
    » http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v7e11201396-112
  • BENITES, T. A escola na ótica dos Avá Kaiowá: impactos e interpretações indígenas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2012.
  • BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: MEC, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://portal.inep.gov.br/informacao-da-publicacao/-/asset_publisher/6JYIsGMAMkW1/document/id/488171 >. Acesso em: 14 abr. 2017.
    » http://portal.inep.gov.br/informacao-da-publicacao/-/asset_publisher/6JYIsGMAMkW1/document/id/488171
  • BRASIL. Lei nº 11.645. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 2008.
  • COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (CEPAL). Boletín de la infancia y adolescencia sobre el avance de los objetivos del desarrollo del milenio, Santiago. Desafíos, n. 21, p. 1-32, 2018.
  • CORTÉS, A.R.; APODACA, E.G. El carácter interactoral en la Educación Superior con enfoque intercultural en México. Revista Liminar, México, v. 14, n. 1, p. 73-91, 2016.
  • ESCOBAR, A. America Latina en una encrucijada: ¿modernizaciones alternativas, posliberalismo o posdesarrolo? In: QUINTERO, P. Crisis Civilizatoria, Desarrollo y Buen Vivir Buenos Aires: Del Signo, 2014. p. 59-106.
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  • FREIRE, J.R.B. A representação da escola em um mito indígena. TEIAS, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 1-11, 2001.
  • FREIRE, J.R.B.; MALHEIROS, M.F. Aldeamentos Indígenas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro: EdUerj, 2009.
  • GRUPIONI, L.D. Quando a Antropologia se defronta com a Educação: formação de professores índios no Brasil. Revista Pró-Posições, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 69-80, 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73072013000200006
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  • MACEDO, E. Base nacional curricular comum: a falsa oposição entre conhecimento para fazer algo e conhecimento em si. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 32, n. 2, p. 45-68, 2016. http://dx.doi.org/10.1590/0102-4698153052
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  • MELIÀ, B. Passado, presente y futuro de la lengua guaraní Assunção: CEADUC/ISEHF, 2010.
  • MUÑOZ, H. Reflexividad sociolingüística de hablantes de lenguas indígenas: concepciones y cambio sociocultural. México: Metropolitana, 2010.
  • PEREIRA, F.B.; OLIVEIRA, I.B. Ponderações ao Currículo Mínimo da Rede Estadual do Rio de Janeiro: uma contribuição ao debate em torno da Base Comum Nacional. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 12, n. 3, p. 1669-1692, 2014.
  • ROCKWELL, E. Conversaciones en torno a la educación con pueblos indígenas/migrantes. In: NOVARO, G.; PADAWER, A.; HECHT, A. (orgs.). Educación, Pueblos Indígenas y Migrantes: reflexiones desde México, Brasil, Bolivia, Argentina y España. Buenos Aires: Biblos, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2019
  • Aceito
    09 Set 2019
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