Open-access APRESENTAÇÃO

PRESENTATION

PRESENTACIÓN

Este dossiê aborda os processos atuais de privatização da educação e reúne um conjunto de pesquisas que analisam realidades diversas no Brasil e no exterior. A partir de uma concepção ampla de privatização e da correlação de forças entre o público e o privado em um contexto neoliberal, entende-se que há muitas disputas atuais, entre as quais podemos destacar a disputa pelos fundos públicos, pelo princípio da educação enquanto direito e pela proposta de formação humana. Belfield e Levin (2002, p. 19, tradução nossa) afirmam que a privatização pode ser compreendida como:

[...] uma designação genérica de vários programas e políticas educativas que podem ser globalmente definidos como “a transferência de atividades, provisão e responsabilidades do governo/instituições e organizações públicas para indivíduos e organizações privadas”. Muitas vezes a privatização é vista como uma “liberalização” – quando os agentes são libertados das regulações governamentais – e uma “mercantilização” – quando são criados mercados que proporcionam alternativas aos serviços do governo ou aos sistemas de distribuição estatal.

Nessa perspectiva, a educação escolar, enquanto política social que depende de tributação, vontade política e movimentos sociais mobilizados para constituir-se efetivamente como direito humano, é fortemente atingida pela privatização. Se tomarmos o Brasil como exemplo, em oposição ao projeto de uma educação pública oficial gerida democraticamente, tal como consta no texto constitucional de 1988, enfrenta-se em 2025 verdadeiras operações de desmonte nas redes públicas por parte de administrações estaduais de ensino – do que são exemplos as privatizações promovidas pelos governos de Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e São Paulo. Entidades científicas e de categorias profissionais têm se mobilizado promovendo a denúncia dos riscos implicados nas recentes medidas que transferem a gestão da escola e contratação de profissionais para a iniciativa privada; projetos de lei que visam introduzir os chamados vouchers educacionais1.

Embora citemos exemplos recentes da realidade brasileira, é necessário registrar que a privatização da educação escolar, como política deliberadamente proposta por agências multilaterais, assumidas por governos locais e abraçadas por empresários, têm histórico de mais de cinco décadas. Segundo Klees e Edwards Jr. (2015), desde o início dos anos 1980 o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial já indicavam a inviabilidade de países em desenvolvimento ampliarem tributações para assegurar a oferta educacional, propondo como única solução a transferência da educação para atores privados. Para os autores, essa “[...] política é, há trinta anos, a pedra angular do neoliberalismo” (Klees; Edwards Jr, 2015, p. 13)2.

O avanço da incidência privada na educação pública brasileira vincula-se, entre outros aspectos, à reforma da administração pública iniciada nos anos 1990 que visou a reforma do aparelho de estado segundo as diretrizes da administração gerencial, ou seja, da introdução da lógica gerencial na administração pública. Tal defesa foi marcada pelo discurso da eficiência privada em contraposição à ineficiência estatal. É a sanha privatista em tempos de hegemonia neoliberal e afirmação do gerencialismo com solução para o alcance da eficiência na administração pública.

A imprensa, por sua vez, também cuida de construir na “opinião pública” a aceitação e valorização da privatização como solução para as chamadas crises fiscais dos estados regionais, atuando assim como ator importante para a hegemonia do projeto neoliberal. No campo educacional, importante estudo desenvolvido por Thais Marin (2024) explora as narrativas construídas pela mídia nacional não especializada, mais especificamente o jornal Folha de São Paulo¸ ao longo de 15 anos (2005-2020). Os dados permitem que a autora identifique o discurso predominante de depreciação do serviço público, desqualificação dos profissionais e valorização das competências do setor privado em promover qualidade educacional (Marin, 2024).

Para além de uma disputa por eficiência e/ou competência, Hill (2003) indica as múltiplas possibilidades de o capital se reproduzir com a atividade educativa. Assim, do ponto de vista do empresariado, a educação escolar pode significar lucro imediato ou a médio prazo. De toda forma, trata-se de um “investimento” importante, seja ele realizado por empresas que vendem produtos nas portas das secretarias de educação; fundos de participação em bolsas de valores; empresas de capital aberto; ou para os chamados “filantrocapitalistas”, que por meio de seus institutos e fundações sem fins lucrativos imediatos encontram na educação um campo para realização de investimentos de risco. As possibilidades são múltiplas e se ampliam com a financeirização da educação. Tais possibilidades são sintetizadas por David Hill (2003), em análise da privatização nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Segundo o autor, os capitalistas têm planos em três perspectivas para a educação:

1 – um Plano de Negócios para a Educação: este se concentra em, socialmente, produzir a força de trabalho (a capacidade das pessoas para trabalhar) para as empresas capitalistas; 2 – um Plano de Negócios na Educação: este se concentra em liberar as empresas para lucrar com a educação; 3 – um Plano de Negócios para as Empresas Educacionais: este é um plano para as “Edubusinesses” (empresas educativas) inglesas e americanas lucrarem com as atividades internacionais de privatização

(Hill, 2003, p. 26).

A produção acadêmica, portanto, que percorre o histórico da privatização da educação e inventaria suas formas em diferentes contextos políticos (Verger; Fontdevila; Zancajo, 2016; Adrião, 2022; Peroni, 2018), indica a complexidade do tema e a necessidade da continuidade de estudos e busca de questões sobre as formas por meio das quais a privatização se materializa no interior das escolas, bem como quais são os atores e seus projetos.

Para os que militam, quer na pesquisa, quer no ativismo social em prol da educação como direito humano fundamental, esta compreensão é fundamental.

Nesse contexto de avanço dos processos de privatização e diversificação, complexidade dos atores e formas de incidência privada na educação, esta proposta tem por objetivo contribuir para o debate e apresentar resultados de pesquisas que se debruçaram sobre diferentes contextos locais. O conjunto de artigos aqui reunidos, produzidos por pesquisadores que se dedicam de longa data ao estudo da privatização da educação e gestão educacional, caracteriza-se pelo rigor e pela criticidade na abordagem do tema.

O dossiê se inicia socializando uma proposta metodológica de investigação sobre a privatização na educação básica que vem sendo realizada no Brasil há mais de 15 anos. Os próximos artigos abordam a materialização dos processos de privatização em diferentes contextos e territórios. O texto “Los rostros de la privatización de la educación en Chile” tem como foco a materialização dos processos de privatização no contexto chileno. Os autores analisam o processo de privatização da educação no Chile fundamentados na revisão de diferentes áreas do sistema educacional: alimentação escolar, livros escolares e produção de política educacional.

Em seguida, três artigos abordam processos de privatização da educação em estados brasileiros. O artigo intitulado “Privatização do fundo público: renúncias de ICMS e a desestabilização do financiamento da educação básica” desvela que essa estratégia do neoliberalismo de apropriação do fundo público não só desestabiliza o financiamento da educação básica do ente que renuncia, mas também o financiamento da educação básica nacionalmente, em função dos reflexos sobre a política de fundo. A pesquisa seguinte aborda o contexto do Mato Grosso e é intitulado “Neoliberalismo e as articulações do capital pela apropriação do fundo público da educação em Mato Grosso”. O terceiro artigo com foco estadual tem como título “A Rede Pitágoras no Pará e os grandes projetos na Amazônia” e analisa a incursão da Rede Pitágoras no estado do Pará, explicitando as estratégias do grupo na oferta educacional em municípios inseridos nos grandes projetos na Amazônia, nos quais foram instaladas empresas mineradoras de grande porte.

Considerando-se a materialização dos processos de privatização em municípios brasileiros, dois artigos fazem este destaque. Tendo como foco o município de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, o artigo “Novos imaginários de futuro para Porto Alegre: inovação, empreendedorismo e privatização da educação” analisa as propostas vinculadas a inovação e empreendedorismo que atravessam a educação e as políticas educacionais, constituindo novas formas de relação entre o público e o privado. Já o artigo seguinte aborda a privatização da oferta educativa em Belém: “Privatização da oferta da educação infantil de Belém-PA: análise do centro comunitário São Paulo (2018-2022)”. O estudo investiga a relação estabelecida entre a Secretaria Municipal de Educação de Belém-PA e o Centro Comunitário São Paulo, a partir dos convênios de 2018 a 2022, para oferta educacional.

Por fim, este dossiê traz um artigo e a entrevista final que problematizam, em diferentes contextos, as tecnologias digitais no ambiente escolar. O artigo intitulado “Tecnologias digitais na produção acadêmica nacional: incidências sobre trabalho na gestão escolar” caracteriza e analisa implicações da introdução de tecnologias digitais no processo de trabalho de dirigentes escolares e a entrevista do professor Licínio Lima, realizada por Nadia Drabach. Nessa entrevista o professor Licínio Lima levanta questões importantes sobre os cenários que compõem o contexto histórico e político atual marcado pelo ideário neoliberal e por mudanças culturais em curso no campo da educação. O pesquisador aponta que a introdução das tecnologias digitais; a hiperburocratização crescente dos processos de gestão da educação, própria do gerencialismo; a agenda complexa de valores; e opções políticas favoráveis ao processo de privatização da educação pública são alguns cenários que marcam o contexto atual. Ainda, na medida em que avançam, colocam em risco a garantia do direito humano à educação e fragilizam a relação entre democracia e educação como prática humanizadora.

Assim, convidamos os leitores do Cadernos Cedes a refletirem conosco acerca desse abrangente processo e mobilizar esforços na defesa da educação pública e do direito humano à educação.

Agradecimentos

Agradecemos a todas e todos as/os pesquisadoras e pesquisadores que colaboraram com este dossiê.

Notas

  • Financiamento
    Não se aplica.

Disponibilidade de dados de pesquisa

Não se aplica.

Referências

Editado por

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2025
  • Aceito
    16 Jun 2025
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