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AULAS DE ARTE NO CAMPO DE TEREZÍN E A ATUAÇÃO DE FRIEDL DICKER-BRANDEIS

ART CLASSES IN THE TEREZÍN CAMP AND FRIEDL DICKER-BRANDEIS’ TEACHING PRACTICES

RESUMO

O presente texto apresenta um estudo documental sobre a atuação da austríaca Friedl Dicker-Brandeis, artista plástica e professora de arte encarcerada em Terezín, um campo de concentração montado pelo regime nazista perto de Praga. Contextualiza o campo como pano de fundo e discute o ensaio deixado pela professora sobre os seus objetivos e modos de pensar o ensino de arte para que possamos compreender como emergiu, em meio aos escombros de vida, um espaço de criação artística para crianças e adolescentes.

Palavras-chave
Ensino de arte; Criatividade; Metodologia do ensino de arte; Holocausto; Campo de concentração

ABSTRACT

This paper presents a documentary study on the work of Friedl Dicker-Brandeis, an Austrian visual artist and art teacher imprisoned in Terezín, a concentration camp set up near Prague by the Nazi regime. As a backdrop, we present contextual information on the camp and then discuss the handwritten essay left by the teacher on her objectives and how she conceptualized and carried out her art teaching in the camp. Addressing this historical initiative helps us understand how an important space of artistic creation for children and adolescents could emerge amid such devastation.

Keywords
Art teaching; Creativity; Methodology of art teaching; Holocaust; Concentration camps

Introdução

A história sobre a atuação de Friedl Dicker-Brandeis como professora de Arte no campo de concentração Terezín de 1942 a 1944 foi estudada e publicada por diversos pesquisadores e curadores de exposições. A maior parte dos estudos detalhados aconteceu depois da derrubada do muro de Berlim, em novembro de 1989, levando à abertura do Leste Europeu e, consequentemente, ao acesso a arquivos e acervos guardados em Praga. A coleção de mais de quatro mil desenhos, pinturas e colagens das crianças de Terezín guardados por Friedl foi objeto de numerosas exposições na Europa, em Israel e nos Estados Unidos (POTOK, 1994POTOK, C. Prefácio. In: VOLAVKOVÁ, H. (ed.). I never saw another butterfly: Children’s drawings and poems from Terezín Concentration Camp, 1942-1944. Nova Iorque: Schocken, 1994.).

Em 2017, quando visitei a exposição do acervo dos alunos de Friedl no Museu Judeu de Praga, senti-me muito impactada pela iniciativa da professora que buscou criar condições para a produção criativa das crianças em meio a um contexto de total negação dos direitos humanos. Reconheci de imediato o resultado de um trabalho de orientação sobre uso de cor, espaço negativo e positivo, forma, ritmos gráficos, estudos de variação de linha e textura. A curadoria da exposição permanente esclarecia a trajetória da educadora e artista plástica vienense, com formação na Bauhaus e passagem pelas oficinas para crianças de Franz Čížek, com quem conheceu uma perspectiva pedagógica progressista no ensino de arte (LESHNOFF, 2006LESHNOFF, S. K. Friedl Dicker-Brandeis, Art of Holocaust Children, and the Progressive Movement in Education. Visual Arts Research, Champaign, v. 32, n. 1, p. 92-100, 2006. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/20715406. Acesso em: 30 nov. 2016.
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). Comecei a reunir subsídios para estudar com maior profundidade seu percurso artístico e pedagógico e seu legado em Terezín. Trata-se de um singular momento da história do ensino de arte, atestando a coragem de uma mulher que desafiou o nazismo e conseguiu preservar um acervo valioso e singular para um futuro que ela própria não pôde conhecer.

O objetivo do presente artigo é contextualizar as condições de vida em Terezín e lançar um olhar sobre os dizeres da professora com relação a sua atuação entre 1942 e 1944, discutindo segmentos do texto Kinderzeichnen (do alemão O desenhar das crianças) que evidenciam os objetivos do seu projeto pedagógico, seu modo de atuar e o processo criativo da docente que buscava soluções para os desafios colocados pelas condições extremamente adversas em que viveu. Reunidos por eles mesmos (BRENNER, 2014BRENNER, H. As meninas do quarto 28: Amizade, esperança e sobrevivência em Theresienstadt. Tradução: Renate Müller. São Paulo: Leya, 2014.) ou coletados por pesquisadores (KASS, 2015KASS, S. Kinderzeichnungen aus dem Ghetto Theresienstadt (1941- 1945): ein Beitrag zur Erinnerungs- und Vermächtniskultur. Marburg: Tectum, 2015.) que entrevistaram os sobreviventes, fragmentos de depoimentos de adultos que vivenciaram e testemunharam as aulas de arte oferecem um rico contraponto à perspectiva da docente e nos ajudam a construir um retrato dos momentos clandestinos de produção artística promovidos por Friedl no campo.

O ensaio Kinderzeichnen escrito por Friedl Dicker-Brandeis (com assinatura Friederike Brandeis) em meados de 1943, por ocasião de uma exposição montada no subsolo de um dos prédios de Terezín, fornece uma base para entendermos como Friedl pensava o ensino de arte naquele contexto. Tivemos acesso a uma reprodução fotográfica datilografada em alemão de três páginas em espaço simples publicada como anexo em Pagel (2016)PAGEL, V. Friedl Dicker-Brandeis und ihr Zeichenunterricht im KZ Theresienstadt: wie die Pädagogik des Bauhauses den Zeichenunterricht von Friedl Dicker-Brandeis beeinflusste. Saarbrücken: Akademiker Verlag, 2016.; o manuscrito original se encontra nos arquivos do Museu Judeu de Praga. O ensaio destaca o pensamento da educadora sobre suas aulas de arte com as crianças, evidenciando seus objetivos, sua forma de incentivar a apropriação da linguagem artística, e as respostas das crianças a suas propostas. Também tivemos acesso a outro texto traduzido para o inglês por Lerke Foster e publicado por Wix (2010)WIX, L. Through a narrow window: Frield Dicker-Brandeis and her Terezín students. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2010.. Trata-se de uma edição realizada pela tradutora, agrupando assuntos do manuscrito citado e de outro texto de Friedl publicado em Makarova (2000)MAKAROVA, E. Friedl Dicker-Brandeis: ein Leben für Kunst und Lehre. Viena: Brandstätter, 2000., que elabora com maior detalhamento algumas ideias presentes em Kinderzeichnen, pontuando aspectos sobre os trabalhos apresentados na exposição de julho de 1943 e seus autores.

A vida de Friedl Dicker-Brandeis em síntese

Friedl Dicker nasceu em Viena, Áustria, em 30 de julho de 1898. Única filha de uma família judia, foi criada pelo pai, Simon Dicker, porque a mãe faleceu antes de ela completar quatro anos de idade. Segundo Wix (2010)WIX, L. Through a narrow window: Frield Dicker-Brandeis and her Terezín students. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2010., o pai trabalhava numa loja de artigos de papel, e ali ela passou muitas horas da infância, desenhando. De 1909 a 1912 estudou numa escola para meninas e depois cursou fotografia e gravura no Graphischen Lehr- und Versuchsanstalt em Viena de 1912 a 1914 (JÜDISCHES MUSEUM FRANKFURT, 1991JÜDISCHES MUSEUM FRANKFURT (org.). Vom Bauhaus nach Terezín: Friedl Dicker-Brandeis und die Kinderzeichnungen aus dem Ghetto-Lager Theresienstadt. Frankfurt: Jüdisches Museum Frankfurt, 1991.). Não se afeiçoou à fotografia como linguagem, pois a considerava um processo de registro que não capturava plenamente os relacionamentos entre as pessoas (WIX, 2010WIX, L. Through a narrow window: Frield Dicker-Brandeis and her Terezín students. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2010.). Procurou a classe de arte têxtil de Franz Čížek, que naquela época lecionava na Kunstgewerbeschule (Escola de Artes Aplicadas) em Viena. Ali teve contato com o trabalho do professor com crianças, o que despertou seu interesse pelo ensino de arte (PAGEL, 2016PAGEL, V. Friedl Dicker-Brandeis und ihr Zeichenunterricht im KZ Theresienstadt: wie die Pädagogik des Bauhauses den Zeichenunterricht von Friedl Dicker-Brandeis beeinflusste. Saarbrücken: Akademiker Verlag, 2016.). Em seguida, estudou em curso particular com Johannes Itten de 1916 a 1919, a quem seguiu para ingressar na Staatliche Bauhaus Weimar, na Alemanha. Frequentou os estágios do Vorkurs (curso preparatório) de Itten. Segundo Hájková (2001)HÁJKOVÁ, M. Friedl Dicker-Brandeis: Lady in a car. In: DUTLINGER, A. D. (org.). Art, music and education as strategies for survival: Theresienstadt 1941-1945. Londres: Herodias, 2001. p. 84-105., na Bauhaus obteve uma formação privilegiada com artistas de vanguarda altamente qualificados, tais como Johannes Itten, Paul Klee, outro artista plástico interessado na imagética infantil, Georg Muche, Oskar Schlemmer, Lothar Schreyer, Vasily Kandinsky e Lyonel Feininger — formação essa que transparece na sua abordagem de ensino em Terezín.

Segundo Leshnoff (2001)LESHNOFF, S. K. Holocaust survival and the spirit of the Bauhaus. In: DUTLINGER, A. D. (org.). Art, Music and education as strategies for survival: Theresienstadt 1941-1945. Londres: Herodias, 2001. p. 106-121., o método de ensino de Itten tinha como objetivo conscientizar os alunos sobre seus processos sensitivos.

Buscou levar cada aluno a entrar em contato com o núcleo de seu centro criativo natural. Acreditava que “experienciar é uma faculdade da mente e do espírito” e queria que cada aluno vivenciasse a essência do objeto/sujeito diante de si para depois recriá-lo artisticamente.

(LESHNOFF, 2001LESHNOFF, S. K. Holocaust survival and the spirit of the Bauhaus. In: DUTLINGER, A. D. (org.). Art, Music and education as strategies for survival: Theresienstadt 1941-1945. Londres: Herodias, 2001. p. 106-121., p. 108)

Com esse objetivo, promovia exercícios de conscientização das sensações corporais de dedos, mãos, braços e finalmente do corpo todo, para que os alunos conseguissem se deslocar de forma flutuante entre um estado de relaxamento e o de concentração e foco, para atingir uma visão interior pessoal.

Na Bauhaus, Friedl teve ampla formação em design, com vivência em tecelagem (com Klee e Muche), encadernação (com Klee), gravura (com Feininger), estudo da cor (com Kandinsky), cenário teatral (com Shreyer e Schlemmer) (WIX, 2010WIX, L. Through a narrow window: Frield Dicker-Brandeis and her Terezín students. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2010.). Abandonou o curso antes de obter o diploma, quando Itten se desentendeu com a direção do curso (LESHNOFF, 2001LESHNOFF, S. K. Holocaust survival and the spirit of the Bauhaus. In: DUTLINGER, A. D. (org.). Art, Music and education as strategies for survival: Theresienstadt 1941-1945. Londres: Herodias, 2001. p. 106-121.). Em 1923, abriu um estúdio próprio de design em Berlim e também montou um ateliê de arte têxtil em Viena, onde criou peças para interiores.

Diante do recrudescimento da perseguição aos judeus, voltou para Viena, onde trabalhou com vários projetos de design e arquitetura. Entre 1930 e 1932, diminuiu suas atividades em design para orientar professores em Viena sobre o ensino de arte na pré-escola. Nessa época, teve uma participação ativa no partido comunista austríaco, e, como resultado da sua militância política, foi presa e interrogada por ocasião dos movimentos de fevereiro de 1934.

Resolveu mudar para Praga depois desse episódio traumático; lá trabalhou com projetos arquitetônicos e deu aula de arte para filhos de refugiados judeus. Conheceu seu primo Pavel Brandeis, por intermédio de parentes, e casou-se em 30 de abril de 1936; dessa forma, obteve cidadania checa. Continuou envolvida em atividades políticas de imigrantes alemães e austríacos (JÜDISCHES MUSEUM FRANKFURT, 1991JÜDISCHES MUSEUM FRANKFURT (org.). Vom Bauhaus nach Terezín: Friedl Dicker-Brandeis und die Kinderzeichnungen aus dem Ghetto-Lager Theresienstadt. Frankfurt: Jüdisches Museum Frankfurt, 1991.).

Em 1938, o casal mudou-se para Hronov, uma cidade no leste da Boêmia, buscando distância das medidas cada vez mais drásticas contra os judeus, impetradas a partir da invasão nazista da Checoslováquia em 15 de março de 1939. O casal não teve filhos. Em Hronov, continuou dando aula para crianças judias que eram impedidas de frequentar a escola; ela tinha uma acanhada oficina de projetos de design e também trabalhou pintando paisagens, retratos e naturezas mortas. As condições financeiras do casal ficaram cada vez mais difíceis devido às restrições impostas pelo regime nazista à vida econômica dos judeus (JÜDISCHES MUSEUM FRANKFURT, 1991JÜDISCHES MUSEUM FRANKFURT (org.). Vom Bauhaus nach Terezín: Friedl Dicker-Brandeis und die Kinderzeichnungen aus dem Ghetto-Lager Theresienstadt. Frankfurt: Jüdisches Museum Frankfurt, 1991.). Em dezembro de 1942, Friedl e Pavel foram deportados para Terezín.

Contextualização de Terezín

Terezín era uma pequena cidade murada a 60 km ao noroeste de Praga em meio aos campos e morros da Boêmia; antes do estabelecimento do gueto/campo de trânsito de Theresienstadt — assim chamada pelos nazistas —, nunca hospedara mais de 8.000 pessoas (ADLER, 2017ADLER, H. G. Theresienstadt 1941 – 1945: The face of a coerced community. Tradução: Belinda Cooper. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. https://doi.org/10.1017/9781139017053
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). A cidade foi fundada em 1780 por ordem do imperador Joseph II de Habsburgo como uma fortaleza militar. A construção em estilo barroco desenhada com perímetro oval com projeções em formato de estrela com bastiões em ponta tinha capacidade para até 11.000 soldados. De um dos lados, o rio Ohře criava uma barreira contra invasão e todo o conjunto era ladeado por trincheiras profundas que poderiam ser inundadas para eventual defesa (HOLICKY; SYKORA; VACEK, 2014HOLICKY, M.; SYKORA, M.; VACEK, V. Assessment of the masonry strength of the fortress in Terezin. WIT Transactions on the Built Environment, Southampton, v. 143, p. 151-161, 2014. Disponível em: https://www.witpress.com/elibrary/wit-transactions-on-the-built-environment/143/29324. Acesso em: 20 jan. 2021.
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). Do outro lado do rio havia uma instalação prisional chamada de Pequena Fortaleza com celas de confinamento, cadafalso e praça para pelotão de fuzilamento (MILTON, 2001bMILTON, S. Chronology of Theresienstadt. In: DUTLINGER, A. D. (org.). Art, Music and education as strategies for survival: Theresienstadt 1941-1945. Londres: Herodias, 2001b. p. 162-169.). O modelo da construção e o isolamento da cidadela, com apenas três portões de entrada, tornavam esse espaço ideal para os propósitos nazistas. Quando Reinhardt Heydrich decidiu tomar a fortaleza com seus alojamentos militares e cidadela para isolar os judeus checos num gueto, havia cerca de 3.700 habitantes entre civis e militares, que foram todos retirados e transferidos para outro local (POTOK, 1994POTOK, C. Prefácio. In: VOLAVKOVÁ, H. (ed.). I never saw another butterfly: Children’s drawings and poems from Terezín Concentration Camp, 1942-1944. Nova Iorque: Schocken, 1994.).

Theresienstadt foi transformada em setembro de 1941 num espaço de trânsito, prevendo a reunião de judeus para posterior deportação para extermínio ou campos de trabalho ao leste. Segundo Arendt (2016)ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., teve a função de tirar temporariamente de circulação muitos judeus proeminentes, personagens da elite cultural e idosos, incluindo judeus condecorados e inválidos que haviam lutado durante a Primeira Guerra Mundial no exército alemão. O plano era que ficassem longe da atenção por tempo suficiente para não provocarem protestos na população alemã antes de serem enquadrados na “solução final”1 1 A “solução final” — eufemismo para o extermínio — foi decidida como política na famigerada reunião da cúpula nazista de 31 de julho de 1941. (ARENDT, 2016ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.). Inicialmente, o campo recebeu judeus da Boêmia (região próxima à Alemanha) e Morávia (região próxima à Áustria), mas no decorrer da guerra chegaram novos grupos de alemães, austríacos, luxemburgueses, holandeses, poloneses, húngaros e dinamarqueses (POTOK, 1994POTOK, C. Prefácio. In: VOLAVKOVÁ, H. (ed.). I never saw another butterfly: Children’s drawings and poems from Terezín Concentration Camp, 1942-1944. Nova Iorque: Schocken, 1994.).

Theresienstadt ficou sob o comando de Adolf Eichmann, também responsável pelas deportações para Auschwitz-Birkenau, primordialmente, e outros campos ao leste (ARENDT, 2016ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.). Como explicou Eichmann no seu julgamento em Jerusalém em 1961, o processo de deportação ocorria à medida que chegavam novos carregamentos de “privilegiados”. Nas palavras de Arendt (2016, p. 150)ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., “os judeus menos ‘famosos’ eram constantemente sacrificados em prol daqueles cujo desaparecimento no Leste levantaria perguntas desagradáveis”.

Segundo Adler (2017)ADLER, H. G. Theresienstadt 1941 – 1945: The face of a coerced community. Tradução: Belinda Cooper. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. https://doi.org/10.1017/9781139017053
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, os judeus deportados para Theresienstadt chegavam de trem na estação de Bauschwitz. Carregando seus pertences pesando até 50 quilos, andavam até o quartel externo próximo às comportas do rio Ohře, que beirava a fortaleza para serem triados, antes do encaminhamento para os alojamentos. O Conselho Judeu (Ältestenrat) era responsável pela organização e pelo gerenciamento do campo. O papel desses conselhos já foi amplamente criticado por sua aceitação, obediência e colaboração com as imposições nazistas. Como disse Arendt (2016, p. 134)ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., “para um judeu, o papel desempenhado pelos líderes judeus na destruição de seu próprio povo é, sem nenhuma dúvida, o capítulo mais sombrio de toda uma história de sombras”. Segundo Adler (2017)ADLER, H. G. Theresienstadt 1941 – 1945: The face of a coerced community. Tradução: Belinda Cooper. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. https://doi.org/10.1017/9781139017053
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, a chefia judaica tinha autoridade para, entre outras coisas, produzir as listas dos transportes para o leste e com isso preservavam e favoreceram familiares e conhecidos, até que o comando nazista assumiu essas decisões, enviando os próprios líderes do Conselho Judeu para a morte.

O Conselho Judeu se preocupava com “o desenvolvimento moral e intelectual dos jovens. Todo esforço foi empreendido para proteger e nutri-los. Adultos sacrificavam parte de suas rações para melhor alimentar as crianças” (WONSCHICK; DUTLINGER, 2001WONSCHICK, M.; DUTLINGER, A. D. Coming of age in Theresienstadt: Friedl’s girls from Room 28. In: DUTLINGER, A. D. (org.). Art, Music and education as strategies for survival: Theresienstadt 1941-1945. Londres: Herodias, 2001. p. 60-83., tradução nossa). As crianças com menos de 12 anos ficavam com seus pais (meninos com o pai, meninas com a mãe); mais tarde apenas as crianças com menos de quatro anos ficavam com suas mães. As crianças de 4 a 10 ficaram alojadas em lares de crianças denominados de Heime (L413, L414); as crianças maiores nas instalações do quartel em alojamentos coletivos. Os meninos foram colocados no prédio da antiga escola (L417) e as meninas na antiga sede do quartel no L410. A distribuição de aproximadamente 30 crianças por quarto era organizada por data de nascimento e proveniência/língua comum. Os jovens (16 a 20) ficavam em alojamentos para jovens trabalhadores. As residências eram supervisionadas por prisioneiros adultos denominados de líderes de alojamentos (Heimleiter). Eram permitidos encontros com os pais aos finais de semana e eventualmente à noite depois do horário de trabalho (ADLER, 2017ADLER, H. G. Theresienstadt 1941 – 1945: The face of a coerced community. Tradução: Belinda Cooper. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. https://doi.org/10.1017/9781139017053
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).

O mapa de Terezín desenhado a partir de inúmeras referências (imagens de satélite, plantas oficiais do regime, plantas reproduzidas em livros e dados fornecidos em sites da internet2 2 Sites de plantas que serviram de referência para o desenho da planta: http://www.ghetto-theresienstadt.de/terezinstadtplan.htm; https://www.vedem-terezin.cz/en/toulky_terezinem_en.html. ) auxilia na compreensão da organização espacial do campo (Fig. 1).

Figura
Mapa de Terezín.

O que os números falam sobre as condições de vida e morte em Terezín

A tentação de entender o gueto de Terezín como um espaço privilegiado de convivência cultural para os judeus não se sustenta diante dos índices de superlotação, fome, morte e do baixo índice de sobrevivência dos prisioneiros (MILTON, 2001aMILTON, S. H. Art in the context of Theresienstadt. In: DUTLINGER, A. D. (org.). Art, Music and education as strategies for survival: Theresienstadt 1941-1945. Londres: Herodias, 2001a. p. 10-59.). Segundo Potok (1994)POTOK, C. Prefácio. In: VOLAVKOVÁ, H. (ed.). I never saw another butterfly: Children’s drawings and poems from Terezín Concentration Camp, 1942-1944. Nova Iorque: Schocken, 1994., não se pode esquecer que os dados numéricos se referem a vidas. Adler (2017)ADLER, H. G. Theresienstadt 1941 – 1945: The face of a coerced community. Tradução: Belinda Cooper. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. https://doi.org/10.1017/9781139017053
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apresenta o seguinte resumo: até 20 de abril de 1945, aproximadamente 155.000 prisioneiros foram transportados para Terezín, dos quais se estima que 10.000 eram crianças com menos de 16 anos e 62.000 eram idosos acima de 61 anos de idade. Em Terezín morreram 35.088 até 6 de junho de 1945. O número de prisioneiros deportados de Terezín para outros campos de concentração (primordialmente Auschwitz-Birkenau) foi 88.196. O número de sobreviventes foi de aproximadamente 3.500. Segundo Potok (1994)POTOK, C. Prefácio. In: VOLAVKOVÁ, H. (ed.). I never saw another butterfly: Children’s drawings and poems from Terezín Concentration Camp, 1942-1944. Nova Iorque: Schocken, 1994., quando o gueto foi libertado em 9 de maio de 1945 pelo Exército Vermelho, havia 16.832 judeus em Terezín. Apenas 100 crianças transportadas para os campos de extermínio sobreviveram — todas com mais de 14 anos.

O alto índice de mortes no campo se devia às péssimas condições de higiene e nutrição, bem como à superlotação. As doenças mais comuns foram “encefalite e meningite (as causas mais comuns de morte na infância), escarlatina, enterite, icterícia infecciosa, sarampo, caxumba, rubéola, varicela, coqueluche, pneumonia, otite média, tifo e outras infecções intestinais” (HORÁČKOVÁ et al. 2020HORÁČKOVÁ, K.; EVČOVIČOVÁ, A.; HRSTKA, Z.; WICHSOVÁ, J.; ZAVI, M. Paediatrics in Theresienstadt Ghetto. Central European Journal of Public Health, Praga, v. 28, n. 2, p. 155-160, 2020. https://doi.org/10.21101/cejph.a5557
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, p.156-157, tradução nossa). Além dessas doenças, os autores citam tuberculose, poliomielite, impetigo e também vários distúrbios psiquiátricos. Havia um hospital e enfermarias em alguns dos alojamentos das crianças, mas as condições de tratamento eram bastante precárias, com poucos medicamentos.

Preparativos para ir para Terezín

Friedl e Pavel receberam o aviso de deportação para Theresienstadt no final de novembro de 1942 e tiveram poucos dias para organizar a vida. Hilde Kothny, uma amiga de Friedl que esteve com ela quando preparava o que levaria para Terezín, relatou que ela tingiu suas toalhas e lençóis de verde, e outras cores porque os tecidos brancos ficariam sujos, enquanto os verdes poderiam ser usados em atividades de teatro, representando florestas. Antes de viajar, Friedl já planejava trabalhar com as crianças. Também orientou seus alunos que perguntavam quais papéis, pigmentos e lápis deveriam levar consigo (HEUBERGER, 1991HEUBERGER, G. Im Ghetto-Lager Theresienstadt. In: JÜDISCHES MUSEUM FRANKFURT AM MAIN (org.). Vom Bauhaus nach Terezín: Friedl Dicker-Brandeis und die Kinderzeichnungen aus dem Ghetto-Lager Theresienstadt. Frankfurt: Jüdisches Museum Frankfurt am Main, 1991.). Todos tinham direito a 50 quilos de pertences, e ela optou por levar materiais de arte. Já em Terezín, devido ao passaporte checo, nos primeiros tempos, podia receber a cada três meses pacotes mandados pelo irmão de Pavel; ela pediu revistas de arte, postais, tintas e outros materiais para reabastecer as aulas de arte (KASS, 2015KASS, S. Kinderzeichnungen aus dem Ghetto Theresienstadt (1941- 1945): ein Beitrag zur Erinnerungs- und Vermächtniskultur. Marburg: Tectum, 2015.).

O estúdio técnico de desenho em Terezín

Havia um estúdio de produção artística e design gráfico em Terezín, com tarefas relacionadas a registro visual, produção de campanhas, gráficos, pôsteres, mapas, placas e também filmagens (MELI, 2013MELI, S. Art from Within: An Encounter with Holocaust Art from the Terezin Ghetto. 2013. Dissertação (Mestrado em Artes) – Faculty of Graduate Studies (Art Education), University of British Columbia, Vancouver, 2013.). Alguns artistas trabalharam também na oficina Lautsch criando objetos decorativos, peças de cerâmica, cópias de obras de arte e retratos de familiares dos comandantes nazistas. Os artistas destacados para esse trabalho tinham formação em artes plásticas (pintura, escultura) e também arquitetura e design (MELI, 2013MELI, S. Art from Within: An Encounter with Holocaust Art from the Terezin Ghetto. 2013. Dissertação (Mestrado em Artes) – Faculty of Graduate Studies (Art Education), University of British Columbia, Vancouver, 2013.).

Quando Friedl chegou, por ser artista plástica, ela foi direcionada para trabalhar no estúdio, mas insistiu em ficar como cuidadora (Erziehungin) das crianças. Faz bastante sentido que ela não tenha aceito trabalhar em prol da máquina propagandística alemã, quando se sabe da militância política da artista, que era membro do Partido Comunista, preocupada com a formação das crianças para a solidariedade. Ela foi, então, mandada para um quarto no terceiro andar do Heim L410. De sua janela avistava as montanhas por trás da cidadela, que inspiraram algumas pinturas dessa paisagem.

Alguns dos artistas do estúdio realizaram retratos clandestinos da realidade vivida em Terezín e buscaram formas de escoar tais registros para fora dos muros do gueto — material este que documentou as condições de vida do campo. Vários artistas foram descobertos e mortos por esse motivo (MILTON, 2001aMILTON, S. H. Art in the context of Theresienstadt. In: DUTLINGER, A. D. (org.). Art, Music and education as strategies for survival: Theresienstadt 1941-1945. Londres: Herodias, 2001a. p. 10-59.). O acesso a materiais de qualidade para os projetos oficiais facilitou aos artistas eventualmente desviar materiais para outras finalidades. Friedl também conseguia com seus colegas do estúdio alguns materiais para suas aulas com as crianças (KASS, 2015KASS, S. Kinderzeichnungen aus dem Ghetto Theresienstadt (1941- 1945): ein Beitrag zur Erinnerungs- und Vermächtniskultur. Marburg: Tectum, 2015.).

Dentro dos alojamentos, atendendo 12 a 15 crianças por vez, ela dava aulas não autorizadas, com uma criança vigiando a porta, já que o ensino formal era proibido. Apenas determinados tipos de atividades de lazer (Freizeitgestaltungen) eram permitidos pela Schutzstaffel (SS).

Destaques do ensaio Kinderzeichnen3 3 Todas as citações de Kinderzeichnen constam da tradução neste número temático (tradução de Ireô Lima).

Passemos para o texto de Friedl que abre uma janela para perscrutarmos sua atuação docente. A autora abriu o ensaio dizendo que seu objetivo não era formar pintores profissionais, mas sim “levar todos a serem criativos, independentes para se desenvolverem melhor ou buscar fontes de energia, encorajando a fantasia, fortalecendo o pensamento crítico próprio e a capacidade de observação”. Num discurso que remete a Franz Čížek (VIOLA, 1960VIOLA, W. Child art. 2. ed. Londres: University of London Press, 1960.), com quem estudou, indicou que é preciso diferenciar os objetivos considerando a maturidade das crianças. Entendia que a prioridade para as crianças com menos de dez anos era favorecer o espaço imaginário da fantasia, do lúdico, sem interferir no seu modo próprio de expressão. Alertou que os desenhos infantis “oferecerão insights importantes e pistas sobre a vida interior das crianças” (DICKER-BRANDEIS, 1943DICKER-BRANDEIS, F. O desenhar das crianças. Tradução: Ireô Lima. Cadernos CEDES, v. 42, n. 116, p. 122-127, 2022. Título original: Kinderzeichnen., p. 122), desde que o professor não imponha a sua própria visão de mundo, atravessando os interesses da própria criança com uma perspectiva que não condiz com o momento da criança.

Já no caso das crianças maiores, destacou a importância da técnica e do conhecimento sobre a arte, o contato com imagens da história da arte, mas sempre considerando as necessidades expressas por seus alunos. Afirmou:

Os elementos com os quais [a criança] opera são naturalmente os mesmos da “grande arte”, na medida em que se leva a criança a ter consciência deles de maneira separada [um por vez], abrindo o caminho. Tamanho, relações entre tamanhos (proporção), ritmo, claro – escuro, – escultura – espaço, cor e o valor do exagero e da sutileza na composição.

(DICKER-BRANDEIS, 1943DICKER-BRANDEIS, F. O desenhar das crianças. Tradução: Ireô Lima. Cadernos CEDES, v. 42, n. 116, p. 122-127, 2022. Título original: Kinderzeichnen., p. 123)

Trabalhava com os contrastes entre elementos, como orientada por Itten. A partir dessas linhas, entende-se a sua busca por abastecer seus recursos didáticos com referências do mundo da arte, as quais solicitava do irmão de Pavel. Na coleção do Museu Judeu há diversos estudos pautados em imagens como Ticiano, Boticelli, Dürer e Vermeer (KASS, 2015KASS, S. Kinderzeichnungen aus dem Ghetto Theresienstadt (1941- 1945): ein Beitrag zur Erinnerungs- und Vermächtniskultur. Marburg: Tectum, 2015.).

Friedl dedicou algumas linhas para explicar os exercícios rítmicos com os quais iniciava suas aulas.

Eles se revelam (um resultado paralelo, eles devem submeter, de forma alegre, a mão e toda a pessoa do pintor à sua vontade) como um meio apropriado para transformar uma horda num grupo de trabalho pronto para se dedicar cooperativamente a uma causa, ao invés de se perturbarem mutuamente, culminando em última instância na destruição do seu trabalho.

(DICKER-BRANDEIS, 1943, p. 124)

Nos depoimentos dos sobreviventes, o uso da música e do movimento, dos exercícios rítmicos marcou a memória dos alunos (BRENNER, 2014BRENNER, H. As meninas do quarto 28: Amizade, esperança e sobrevivência em Theresienstadt. Tradução: Renate Müller. São Paulo: Leya, 2014.). Além de criar maior flexibilidade e coordenação, Friedl parece entender que os movimentos corporais ajudam no engajamento do grupo, no plano coletivo.

Quando fala da “horda de indivíduos”, emerge como subtexto a tensão resultante das condições de vida do campo. Como bem coloca Adler (2017)ADLER, H. G. Theresienstadt 1941 – 1945: The face of a coerced community. Tradução: Belinda Cooper. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. https://doi.org/10.1017/9781139017053
https://doi.org/10.1017/9781139017053...
em seu seminal estudo sobre Terezín, ao abarrotar 60.000 pessoas onde caberiam confortavelmente no máximo 8.000, ao privá-las de alimento, higiene, cuidados de saúde e educação, e separar as crianças de suas famílias, o resultado só poderia ser o desmoronamento da tecitura social e das regras de convivência.

O processo criativo e o equilíbrio entre ensino da técnica e da linguagem da arte

O fato de as aulas de arte acontecerem num campo de concentração não é o principal foco do texto. A realidade emerge nas entrelinhas, quando aborda outros temas, como a mediação do trabalho coletivo, a quebra do paradigma do belo e a busca criativa por materiais alternativos. Um dos segmentos particularmente elucidativo sobre o seu modo de atuar evidencia sua capacidade para identificar as insatisfações expressas pelos alunos, contornando barreiras com uma mudança de rumo.

Quanto entrave um hábito pode mostrar, isso vivenciei trabalhando com uma classe de meninas de 10 a 12 anos. Muitas delas brincavam com grandes bebês de celuloide. Um dia resolvemos fazer bonecas simplesmente para fazer alguma coisa em conjunto, por exemplo, brincar de teatro. As meninas tinham inibições muito fortes, não achavam nada legal, todas só queriam fazer princesas, estavam insatisfeitas com tudo o que faziam. Finalmente elas me mostraram os bebês — gordos, lisos, de cílios longos, maquiados. Bem, é claro que as suas bonecas de pano não conseguiriam competir. Sugeri então que elas as confeccionassem, com os objetos “feios” que encontraram, uma figura do Putzkolonne3, e, logo depois, com bom humor, criaram então um Wassermann (espírito da água — um personagem do folclore eslavo), cozinheiras, um mágico, animais, bem como um boneco do serviço de banheiro.

(DICKER-BRANDEIS, 1943DICKER-BRANDEIS, F. O desenhar das crianças. Tradução: Ireô Lima. Cadernos CEDES, v. 42, n. 116, p. 122-127, 2022. Título original: Kinderzeichnen., p. 124)

Ela aproveitava muitos materiais encontrados. Formulários militares do antigo quartel eram pintados e aproveitados em colagens. Às vezes, enviava um grupo de meninos para catar restos de papéis no campo. Várias crianças tinham trazido seus materiais de casa. Em entrevista para Sarah Kass (2015)KASS, S. Kinderzeichnungen aus dem Ghetto Theresienstadt (1941- 1945): ein Beitrag zur Erinnerungs- und Vermächtniskultur. Marburg: Tectum, 2015., Michaela Vidláková explicou que as crianças do quarto colocavam seu lápis de cor numa grande caixa coletiva para que todos pudessem usá-los.

Friedl lamentava o problema da falta de materiais, mas não se deixava afundar numa sensação de impotência. Tampouco comentava a dificuldade de comunicação, já que ela falava alemão e a maioria das crianças com quem trabalhou eram checas. Nos depoimentos das testemunhas, todos, geralmente, conseguiam se entender (WONSCHICK; DUTLINGER, 2001WONSCHICK, M.; DUTLINGER, A. D. Coming of age in Theresienstadt: Friedl’s girls from Room 28. In: DUTLINGER, A. D. (org.). Art, Music and education as strategies for survival: Theresienstadt 1941-1945. Londres: Herodias, 2001. p. 60-83.).

Segundo Kass (2015)KASS, S. Kinderzeichnungen aus dem Ghetto Theresienstadt (1941- 1945): ein Beitrag zur Erinnerungs- und Vermächtniskultur. Marburg: Tectum, 2015., o acervo digital de desenhos de crianças e adolescentes de Terezín do banco de dados do Museu Judeu de Praga contém 5.817 imagens, incluindo uma grande porcentagem de produções das aulas de arte de Friedl. Concretamente são 4.323 folhas, das quais 1.494 têm imagens no verso. Em muitos trabalhos constam data, assinatura e alojamento. Foi possível identificar 573 crianças, além de 67 com assinaturas parciais. Para as crianças identificadas, há 380 trabalhos de meninas e 193 de meninos. Nos dados estatísticos apresentados por Kass (2015)KASS, S. Kinderzeichnungen aus dem Ghetto Theresienstadt (1941- 1945): ein Beitrag zur Erinnerungs- und Vermächtniskultur. Marburg: Tectum, 2015., 75% das crianças identificadas foram mortas, a maioria em Auschwitz-Birkenau, e 133 sobreviveram em Terezín ou voltaram dos campos a leste. A pesquisadora classificou os trabalhos em cinco categorias: estudos/aula de arte (42,5%), lembranças do tempo anterior e desejos para o futuro (44,5%); ocorrências em Terezín (1,5%), mundo de viagens (3,0%) e diversos (8,5%). A categoria “estudos” inclui trabalhos de desenho de observação e natureza-morta, estudos a partir de reproduções de arte (hoje denominados de releituras), exercícios caligráficos, estudos de linguagem plástica. A menor categoria é a de eventos no campo de Terezín. Alguns jovens de Terezín sistematicamente registraram por meios plásticos e poéticos os acontecimentos e horrores vividos em Terezín, como vemos nos desenhos e nas pinturas de Helga Weissová (1998)WEISSOVÁ, H. Zeichne, was Du siehst: Zeichnungen eines Kindes aus Thesesienstadt/Terezín. Göttingen: Wallstein, 1998. no livro Desenhe o que você vê (tradução nossa) e nos poemas em ...I never saw another butterfly (VOLAVKOVÁ, 1994VOLAVKOVÁ, H. I never saw another butterfly: Children’s drawings and poems from Terezin Concentration Camp, 1942-1944. 2. ed. Nova Iorque: Schocken, 1994.). Entretanto essa não era a ênfase das aulas de Friedl.

Ela (DICKER-BRANDEIS, 1943DICKER-BRANDEIS, F. O desenhar das crianças. Tradução: Ireô Lima. Cadernos CEDES, v. 42, n. 116, p. 122-127, 2022. Título original: Kinderzeichnen., p. 124) entende que “a falta de meios técnicos para o professor” é um desafio superado ao se travar contato com as crianças. “Por meio de intenso esforço coletivo, e mesmo com recursos pessoais, o grupo e os indivíduos alcançam os melhores resultados”. Admite que “o começo é o mais difícil, mas a pobreza dos materiais artísticos é algo que infelizmente continua”. Ela prefere trabalhar com as crianças em grupos grandes porque “as crianças se beneficiam das ideias uns dos outros”, e acredita que, para o futuro das crianças, o trabalho que visa à realização coletiva será relevante na sua formação para a cidadania.

Quando não havia pincéis para todos que queriam pintar, ela organizava turnos, garantindo que todos tivessem oportunidade:

[...] um organiza uma lista de escala dos grupos; outro gerencia o material e quer ser responsável por isso. Aquele quer manter um diário de pintura, enquanto outros querem apenas pintar ou fazer esboços no papel. Outro está até mesmo pronto para vasculhar e adquirir material. Todas essas atividades não devem ser menos valorizadas; os meninos devem saber que todos terão sua vez.

(DICKER-BRANDEIS, 1943, p. 124)

Sobre o processo crítico

Friedl abordou o processo crítico por várias frentes, mostrando que incorporava na rotina da aula de arte uma etapa que ela também vivenciou na sua formação: ao final da atividade, reunia as crianças para olhar a produção de todos e identificar aspectos positivos e aspectos a melhorar. De um lado destacou a importância de as crianças conhecerem as várias soluções possíveis para uma proposta plástica por meio das produções dos seus colegas. De outro, pontuou que o acidente, o erro, pode ser um disparador para interessantes resultados e não deve ser desprezado. Afirmou que as crianças aprendiam em grupo a realizar críticas sem caçoar e desprezar os colegas.

“As falhas, ou melhor, as partes insatisfatórias da tarefa dada, dão margem a novas ideias”. Na última linha retoma o objetivo do seu trabalho: “Onde uma força reflete sobre si mesma e tenta sobreviver por conta própria sem medo do ridículo, ali brota uma nova fonte da criatividade. Este é o objetivo das nossas aulas de pintura” (DICKER-BRANDEIS, 1943DICKER-BRANDEIS, F. O desenhar das crianças. Tradução: Ireô Lima. Cadernos CEDES, v. 42, n. 116, p. 122-127, 2022. Título original: Kinderzeichnen., p. 123 e 124).

Conclusão

Acompanhando 30 crianças, aproximadamente, Friedl foi deportada para Auschwitz uma semana depois de seu marido Pavel, no dia 6 de outubro de 1944, num dos últimos transportes que saiu de Terezín; foi morta na câmara de gás logo depois de chegar, em 9 de outubro. Seu marido sobreviveu. Anteriormente, Friedl havia reunido as produções das crianças em duas malas, que foram escondidas por sua amiga Rosa Engländer. Em agosto de 1945, esse material foi entregue a Willy Groag, também prisioneiro em Terezín (MAKAROVA, 1991MAKAROVA, E. Friedl Dicker-Brandeis: ein großartiger Mensch. In: JÜDISCHES MUSEUM FRANKFURT AM MAIN (org.). Vom Bauhaus nach Terezín: Friedl Dicker-Brandeis und die Kinderzeichnungen aus dem Ghetto-Lager Theresienstadt. Frankfurt: Jüdisches Museum Frankfurt am Main, 1991. p. 11-12.). Ele levou as malas à comunidade judia em Praga e ali ficaram esquecidas. Redescobertos dez anos mais tarde, os desenhos infantis despertaram grande interesse e foram expostos internacionalmente (POTOK, 1994POTOK, C. Prefácio. In: VOLAVKOVÁ, H. (ed.). I never saw another butterfly: Children’s drawings and poems from Terezín Concentration Camp, 1942-1944. Nova Iorque: Schocken, 1994.), com diferentes temas de curadoria.

Esta não é uma história com final feliz. O regime nazista foi derrotado, mas a protagonista deste relato foi morta, juntamente com a maioria de seus alunos. As contribuições para o ensino de arte proporcionadas por Friedl ficaram marginalizadas na história da educação. Com poucas exceções, há parcas publicações no Brasil sobre Friedl Dicker-Brandeis — artista e professora. Entre as lições desta “história de sombras”, aprendemos que os regimes de extrema direita tratam os vulneráveis, a infância, a educação e a arte como inimigos. Uma lição que não deve ficar no esquecimento.

Notas

Agradecimentos

Agradecemos o suporte de Ireô Lima na tradução do texto Kinderzeichnen. Agradecemos ainda a colaboração de Alice Reily de Souza na aquisição de inúmeros livros que permitiram a realização da presente pesquisa.

  • Financiamento

    Não se aplica.
  • Número temático organizado por: Lucia Reily e Selma Machado Simão

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Editado por

Editoras Associadas:

Elizabeth dos Santos Braga e Silvia Cordeiro Nassif

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2020
  • Aceito
    11 Dez 2021
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