RESUMO
Este artigo tem por objetivo analisar a relação entre as marcas pessoais de alunos com deficiência e a desigualdade social, por meio do cotejamento dos dados estatísticos disponibilizados pelos Censos Escolares de 2019 (Inep, 2019), entre dois distritos paulistanos: Moema, o de mais alto padrão da qualidade de vida; e São Miguel, o de pior qualidade. Para tanto, foi criado o Índice do Bolsa Família (IBF): ranqueamento da relação entre o total de famílias residentes e o número daquelas beneficiárias desse programa. O cotejamento realizado evidencia as diferenças entre as características pessoais dos estudantes (tipo de deficiência, cor/raça, sexo e faixa etária), bem como entre eles e as instâncias administrativas das escolas em que estavam matriculados.
Palavras-chave
Educação especial; Deficiência; Desigualdades sociais; Indicadores sociais; Cidade de São Paulo
ABSTRACT
This article aims to analyze the relationship between the personal characteristics of students with disabilities and social inequality, by comparing statistical data provided by the 2019 School Census (Inep, 2019) between two districts in São Paulo: Moema, the one with the highest standard of quality of life, and São Miguel, the one with the worst quality. To this end, the Bolsa Família Index (IBF) was created: a ranking of the relationship between the total number of resident families and the number of those benefiting from this program. This comparison emphasizes the differences between the personal characteristics of the students (type of disability, color/race, sex, and age group), as well as between them and the administrative instances of the schools.
Keywords
Special education; Disabilities; Social inequalities; Social indicators; São Paulo City
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo analizar la relación entre las características personales de los estudiantes con discapacidad y la desigualdad social, a través de la comparación de datos estadísticos disponibles por el Censo Escolar de 2019 (Inep, 2019) entre dos distritos de São Paulo: Moema, el de mayor nivel de calidad de vida, y São Miguel, el de peor calidad. Para ello, se creó el Índice Bolsa Familia (IBF): clasificación de la relación entre el número total de familias residentes y el número de beneficiarios de este programa. La comparación pone de relieve las diferencias entre las características personales de los estudiantes (tipo de discapacidad, color/raza, sexo y grupo de edad), así como entre ellos y las instancias administrativas de los centros educativos en los que estaban matriculados.
Palabras clave
Educación especial; Discapacidad; Desigualdades sociales; Indicadores sociales; Ciudad de São Paulo
A relação deficiência – desigualdades sociais
Este artigo é um subproduto de pesquisa que teve por objetivo analisar a relação entre deficiência e desigualdades sociais nos distritos metropolitanos do município de São Paulo, com ênfase nos índices de pobreza, expressa pelo cotejamento entre a proporção de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família em 2019 em relação ao total de famílias de cada um desses distritos. Para isso, foram utilizados os indicadores educacionais divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Educacionais Anísio Teixeira (Inep, 2019), cuja contextualização do espaço social utilizou as informações contidas na plataforma ObservaSampa (São Paulo, 2019) e Rede Nossa São Paulo (2019).
Nesse sentido, o foco se refere aos desafios para compreensão da relação estabelecida entre deficiência e pobreza, com atenção nas diferenças entre espaços sociais que possuem distintas estruturas organizacionais, na medida em que a falta de acesso aos serviços básicos (como água potável e saneamento adequado), à mobilidade e aos meios de comunicação, assim como a serviços sociais (como os de saúde e educação), resulta em desvantagens em relação à subsistência de seus habitantes nos mais variados aspectos sociais de suas vidas (Nugraha; Prayitino; Nandhiko, 2022).
Sob este mesmo diapasão, Medeiros e Oliveira (2020) assinalam que a pobreza está articulada às dimensões domiciliares (características internas às residências e aos seus moradores) e locacionais, na medida em que uma parcela significativa da pobreza é determinada pelos recursos e bens de um espaço geográfico – ou seja, os fatores e condições de um local em que uma família reside podem influenciar de forma negativa a vida de seus membros.
Esses estudos também evidenciam a importância da análise com base em indicadores educacionais como uma das principais variáveis para se entender os impactos da infraestrutura na condição de vida da população.
França e Pagliuca (2007), por sua vez, indicam que a realidade das pessoas com deficiência é diretamente afetada pela condição de pobreza, e esse aspecto propicia a exclusão dessa população, bem como restringe o acesso a serviços básicos.
Com base no que foi até aqui exposto, o cotejamento entre os índices de pobreza e riqueza dos distritos do município de São Paulo e os indicadores de escolarização das pessoas com deficiência oferece panoramas diversificados das condições educacionais voltadas ao respectivo público, para a compreensão das implicações do efeito do lugar na constituição desses sujeitos.
O presente artigo se inclui entre aqueles que privilegiam análises com recortes regionais para desvelar as singularidades, entre os mais variados espaços sociais, em um país continental e de extrema variação regional, conforme a advertência de Ferraro (1999, p. 46), em seu estudo pioneiro sobre a escolarização no Brasil, quando afirma que;
[...] por mais interessante e importante que seja o diagnóstico nacional, ele isoladamente é incapaz de desvelar as enormes desigualdades e especificidades regionais. Poder-se-ia acrescentar que, dentro de cada região ou estado, o diagnóstico deveria, da mesma forma, levar em conta as desigualdades regionais.
A perspectiva teórica elaborada por Bourdieu (1997) sobre a relação entre espaço físico e espaço social serviu de base para as análises das diferenças e aproximações, não somente entre distritos com melhores e piores condições de vida, mas entre distritos com posição hierárquica semelhantes, na medida em que;
[...] o lugar pode ser definido absolutamente como o ponto do espaço físico onde um agente ou uma coisa se encontra situado, tem lugar, existe. Quer dizer, seja como localização, seja, sob um ponto de vista relacional, como posição, como graduação em uma ordem.
[Assim como não] há espaço, em uma sociedade hierarquizada que não seja hierarquizado e que não exprima as hierarquias e as distâncias sociais, sob uma forma (mais ou menos) deformada e, sobretudo, dissimulada pelo efeito de naturalização que a inscrição durável das realidades sociais no mundo natural acarreta: diferenças produzidas pela lógica histórica podem, assim, parecer surgidas da natureza das coisas
(Bourdieu, 1997, p. 160).
Para ele, não “se pode romper com as falsas evidências e com os erros inscritos no pensamento substancialista dos lugares a não ser com a condição de proceder a uma análise rigorosa das relações entre as estruturas do espaço social e as estruturas do espaço físico” (Bourdieu, 1997, p. 159, grifo do autor).
Portanto, este artigo – com base na perspectiva teórica que permite que se estabeleça e se analise relações entre a deficiência e as condições de vida expressa pelos territórios onde se situam (existem) – pretende constituir mais uma contribuição na busca da incorporação de bases das ciências sociais ao campo da educação especial, conforme indicação de Skrtic (1996).
Procedimentos de pesquisa
Justifica-se a escolha do município de São Paulo por ser aquele que apresenta os mais elevados níveis de vida (como o maior produtor de riqueza) e, contraditoriamente, uma das maiores expressões da pobreza do país, na medida em que;
[...] grandes cidades são propícias a receber e acolher gente pobre e a lhes oferecer alguma espécie de ocupação (não propriamente empregos). Mas as grandes cidades também criam gente pobre: a extrema variedade de capitais nela presentes, tanto fixos como variáveis, assegura uma extrema variedade de trabalho
(Santos; Silveira, 2001, p. 286).1
Entre todos os distritos paulistanos envolvidos no projeto original, para este artigo foram selecionados os distritos de Moema e de São Miguel – o primeiro apresentando os melhores índices de qualidade de vida e o segundo, os piores.
A escolha de 2019 para a coleta dos dados educacionais e a distribuição dos participantes do Bolsa Família se justifica, de um lado, por ser o ano imediatamente anterior à eclosão da pandemia da covid-19.2
O ranqueamento da relação entre a quantidade de famílias beneficiárias do programa Bolsa Família (NBF) pelo total de famílias residentes em cada distrito (NTF), conforme dados da Rede Nossa São Paulo (2019)3, foi efetivado por meio da seguinte fórmula:
A segunda fonte adotada foi o Censo Escolar da Educação Básica, elaborado e organizado pelo Inep, cujos indicadores educacionais são coletados anualmente por meio do formulário eletrônico disponibilizado no site Educacenso, que apresenta informações detalhadas sobre quatro eixos: matrículas, escolas, turmas e docentes (Inep, 2019).
São Miguel e Moema como casos exemplares
Antes de apresentarmos os dados da pesquisa, cabe caracterizar os dois distritos de forma breve e, com base nos dados da Rede Nossa São Paulo (2019), apresentar alguns cotejamentos sobre as condições de vida dos dois lugares, que evidenciam a extrema discrepância do espaço social como local de existência (Bourdieu, 1997).
O distrito de Moema, no início do século passado, ainda chamado de Indianópolis, era formado por chácaras, tendo experimentado grande crescimento a partir da década de 1960, mais especialmente da década seguinte, tanto em razão da especulação imobiliária quanto de transformações urbanas promovidas pela prefeitura municipal.
Fica situado no início da Zona Sul, a parte mais valorizada do chamado Centro Expandido do município, hoje considerado como um dos espaços mais nobres da cidade, abrigando casas e condomínios residenciais habitados por famílias da classe média alta, ao lado de restaurantes, bares e butiques de alto padrão.
O distrito de São Miguel situa-se no extremo da Zona Leste, distante a 32 km do centro financeiro da cidade, caracterizado, especialmente a partir dos anos 1950, por ocupações em grande parte desordenadas por imigrantes, especialmente do Nordeste, em busca de melhores condições de vida (Massara, 2002).
Com populações totais muito próximas (Moema: 88.949; S. Miguel: 89.364), as discrepâncias entre os distritos são evidentes na população preta ou parda (Moema: 5,8%; S. Miguel: 44,1%); população jovem (Moema: 27%; S. Miguel: 43,9%); e nas famílias sem automóvel (Moema: 17%; S. Miguel: 51,6%).
Quanto ao uso social do espaço, verifica-se que o índice de acesso ao transporte de massa em Moema é 40,3, e de 9,2 em S. Miguel; além disso, o tempo médio de viagem para trabalho em Moema é de 41,2 minutos e em S. Miguel, de 68,9 minutos.
No que tange às condições financeiras da população, a taxa de emprego formal em Moema é de 9,4 e, em S. Miguel, de 1,6 para cada 10 habitantes da População em Idade Ativa (PIA); a renda média mensal por emprego formal em Moema é de R$ 3.742,48 e em S. Miguel, de R$ 2.098,87.
Para concluir esse cotejamento, dados da caracterização da educação escolar mostram que, enquanto as matrículas em escolas públicas no ensino básico em Moema somam apenas 19,4% da população escolar do distrito, em S. Miguel esse percentual é três vezes mais elevado (62,7%).
Tendo traçado o perfil dos dois distritos, que evidencia a enorme desigualdade entre eles, passamos a apresentar os dados referentes à relação entre as marcas pessoais e a desigualdade social de alunos com deficiência nesses locais.
Deficiência, marcas pessoais e desigualdade social
Esta seção está dedicada à apresentação e análise dos dados estatísticos referentes às matrículas de alunos com deficiência nesses dois distritos, iniciando pela distribuição por tipo de deficiência, conforme a Tabela 2.
A discrepância do número total de matrículas de alunos com deficiência já mostra a desigualdade entre os dois distritos, pois em Moema foram contabilizadas 260 matrículas, contra 592 em São Miguel.
A incidência das matrículas de alunos com deficiência em relação ao número total de habitantes de cada distrito torna ainda mais evidente essa discrepância, pois, em Moema, a proporção em relação à população total foi de uma matrícula de aluno com deficiência para 342 habitantes (88.849 ÷ 260 = 341,7), enquanto em São Miguel ela se concentrou em 1 aluno com deficiência para 151 habitantes (89.364 ÷ 592 = 150,9).
No entanto, essa discrepância é ainda maior quando analisada de forma mais detalhada, pois constatou-se que uma centena de matrículas de alunos com deficiência em Moema referiam-se àquelas efetuadas na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), conforme a Tabela 3.
Distribuição das matrículas dos estudantes da educação especial pelo tipo de deficiência matriculados – AACD.
Ocorre que a AACD é uma entidade filantrópica de abrangência nacional “focada em garantir assistência médico-terapêutica de excelência em Ortopedia e Reabilitação”, que mantém um setor escolar que “visa promover a inclusão social e o desenvolvimento educacional de crianças e adolescentes com deficiência física” (AACD, s. d., n. p.), com a maioria esmagadora, se não a totalidade, de alunos residentes em todas as regiões da Grande São Paulo.
Dessa forma, a proporção de matrículas efetivas de alunos com deficiência que residem em Moema é de uma matrícula para 556 habitantes (88.849 ÷ 160 = 555,9), razão pela qual, a partir deste momento, os dados e as respectivas análises vão se efetivar com as 160 matrículas de alunos com deficiência residentes no distrito.
A Tabela 4 apresenta os mesmos dados da Tabela 2, com a supressão das matrículas na AACD.
Os dados aqui expostos evidenciam que, apesar da incidência muito mais elevada em dados brutos de matrículas no distrito de São Miguel, com 3,6 vezes mais do que as de Moema, a distribuição proporcional entre os diferentes tipos de deficiência não apresenta distinções expressivas.
As diferenças mais elevadas reduzem-se a 6% a mais de matrículas de alunos com deficiência visual em São Miguel e, inversamente, 6,6% a mais de matrículas de alunos com deficiência intelectual em Moema.
No entanto, os percentuais próximos de matrículas de alunos com deficiência intelectual nos dois distritos nos obrigaram a realizar detalhamento das matrículas desse tipo de deficiência no distrito de Moema para compreender a diferença em relação aos dados de São Miguel.
As 111 matrículas de pessoas com deficiência intelectual registradas em Moema foram distribuídas em 19 escolas. Dessas matrículas, 57,7% (64) se distribuíam por 7 escolas públicas e 42,3% (47), por 12 escolas privadas de caráter particular5 – com destaque para 20 matrículas no Centro da Dinâmica de Ensino (Cede) perfazendo 43% do total de matrículas de alunos com deficiência intelectual nas escolas da rede privada do distrito.6
Tendo em vista o seu caráter de escola particular, seus alunos, com certeza, são moradores do distrito de Moema, pois somente famílias com alto índice de poder aquisitivo podem manter financeiramente seus filhos nessa escola, da mesma forma que sustentam as matrículas de seus filhos não deficientes nas inúmeras escolas privadas do distrito.
A Tabela 5 apresenta os dados de alunos da educação especial em Moema e São Miguel por cor/raça.
Os dados indicam que, no distrito de Moema, a população com deficiência em espaços escolares é predominantemente branca (71,9%), diferente da realidade de São Miguel, em que os dados de estudantes autodeclarados brancos computaram menos da metade das matrículas (41,2%).
No que tange às matrículas de estudantes negros, observa-se que em Moema apenas 13,8% foram de estudantes assim declarados, com 1,9% como pretos e 11,9% como pardos; já em São Miguel, totalizaram 27%, com 3,4% de pretos e 23,6% de pardos.
Nesse sentido, verifica-se uma discrepância expressiva entre as matrículas de alunos com deficiência negros e brancos, que totalizaram um pouco menos do que o dobro delas em São Miguel (27%) em relação às matrículas em Moema (13,8%).
Outro achado significativo em relação à distribuição racial dessa população se expressa pela diferença entre os 13,7% de matrículas de alunos sem declaração de raça em Moema e 31,8% em São Miguel.
Embora não se possa afirmar que todas essas matrículas se referem a pretos e pardos que não se dispuseram a tanto, pode-se inferir que a maioria deveria pertencer a essas duas categorias, porque os sujeitos que se consideram brancos, com base em sua ascendência e evidência precisa de sua cor da pele, não teriam qualquer restrição em se declararem brancos, tal como argumenta Oliveira (2004, p. 57):
Assumir a identidade racial negra em um país como o Brasil é um processo extremamente difícil e doloroso, considerando-se que os modelos “bons”, “positivos” e de “sucesso” de identidades negras não são muitos e poucos divulgados e o respeito à diferença em meio à diversidade de identidades raciais/ étnicas inexiste.
A concentração de matrículas de estudantes negros no distrito mais pobre é a expressão da desigualdade de raça e classe. A relação estabelecida entre raça e desigualdade social se dá pela assimetria encontrada entre pessoas brancas e negras que historicamente tiveram condições e oportunidades de inserção social discrepantes – a favor das primeiras.
É preciso compreender que as políticas brasileiras reproduzem o racismo na medida em que grande parcela da população negra é obrigada a viver em espaços degradados, “que se definem, fundamentalmente, por uma ausência – essencialmente a do Estado e de tudo que disso decorre: a polícia, as instituições de saúde, as associações, etc” (Bourdieu, 1997, p. 159, grifo do autor).
A Tabela 6 apresenta os dados das matrículas dos alunos da educação especial em Moema e São Miguel por sexo.7
Os dados apontam que os maiores índices de matrículas foram de alunos do sexo masculino em ambos os distritos. Apesar disso, a diferença entre o percentual de matrículas de estudantes do sexo masculino e alunas do sexo feminino é maior no distrito de São Miguel, que apresentou 28,6% a mais de matrículas de homens em relação às de mulheres do que no distrito de Moema (17,6%).
O fato de que em Moema as estudantes com deficiência do sexo feminino possuem maiores possibilidades de acesso à escola do que as alunas de São Miguel evidencia as vantagens de se habitar em um distrito com toda a infraestrutura, constituído predominantemente pela alta classe média, evidenciando que condições de vida favoráveis podem diminuir os distanciamentos de oportunidades entre homens e mulheres.
No entanto, essa discrepância entre os dois distritos no número de matrículas em relação ao sexo é muito menor do que a observada em relação às diferenças raciais (Tabela 5), o que corrobora com os achados de Bueno e Santos (2021, p. 17), os quais, com base em dados nacionais, concluem “que o menor índice percentual de mulheres brancas com deficiência intelectual (30,2%) em relação aos homens negros na mesma condição (26,4%) evidencia que, neste caso, a raça se sobrepõe ao gênero”.
Ao contrário, o cotejamento das matrículas realizado por Pereira (2016), em que não foram encontradas distinções nos percentuais de matrículas de homens e mulheres com deficiência entre as regiões geográficas brasileiras e as desta investigação, entre os distritos paulistanos, sustenta a necessidade de pesquisas de recortes locais, pois, como foi indicado por Ferraro (1999), são estes recortes que possibilitam desvelar desigualdades e particularidades que expressam processos de mediação social distintos daqueles colhidos em âmbito nacional, regional, estadual – ou mesmo por meio de dados brutos das cidades –, sem que considere as diferenças em espaços restritos como os aqui analisados.
Os dados em relação à faixa etária das matrículas de estudantes com deficiência estão dispostos na Tabela 7.
Pode-se apontar uma série de discrepâncias em relação à faixa etária do alunado com deficiência entre os dois distritos.
Em primeiro lugar, destaca-se a diferença para mais de alunos frequentando a escola com idade até 5 anos em Moema (11,9%) em comparação com as de São Miguel (5,9%), ou seja, praticamente o seu dobro. Isso expressa, de um lado, as possibilidades que essas famílias têm de acesso a serviços de saúde especializados, o que permite a realização de diagnósticos precoces que favorecem a incorporação de seus filhos por escolas selecionadas.
Outra diferença expressiva diz respeito à faixa etária mais incidente, em Moema, de alunos com idades entre 6 e 10 anos (26,3%) e, em São Miguel, entre 11 e 14 anos (38%). Essa discrepância parece ser resultado da qualidade pregressa de suas escolarizações, o que possibilita, para os alunos de Moema, o encaminhamento de muitos deles para a rede comum, especialmente para escolas privadas, com todo o apoio clínico-terapêutico-pedagógico para garantia de um rendimento escolar compatível com as expectativas dessa classe social.
Ao contrário, em São Miguel, a prevalência das matrículas de estudantes com deficiência na faixa dos 11 aos 14 anos deve-se, sem dúvida, à super-representação da deficiência intelectual entre o alunado das camadas populares e da população negra, que fica ainda mais evidente quando cotejadas as matrículas dos dois distritos por instância administrativa das escolas, objeto da Tabela 8.
Distribuição das matrículas dos estudantes da educação especial pela instância administrativa das escolas.
Em Moema, as matrículas de alunos com deficiência se distribuem praticamente de forma equitativa entre escolas públicas e privadas (50,6% x 49,4%), o que se deve, com alta probabilidade, à divisão entre filhos das famílias moradoras do distrito nas escolas privadas e os filhos de seus empregados ou dos estabelecimentos comerciais de alto luxo, nas públicas.
Além disso, se mantida a mesma proporção das matrículas de alunos com deficiência intelectual apresentada na Tabela 4 (483 – 62,8% entre 952), deveremos ter em São Miguel, entre os 573 alunos matriculados nas escolas da rede pública, aproximadamente 360 alunos assim diagnosticados.
Esse número com certeza é superestimado, se levarmos em consideração os achados da The National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine (2015) sobre a enorme discrepância em um conjunto de seis estimativas da prevalência da deficiência intelectual: enquanto a variação das deficiências graves se encontrava entre 2,5 e 5 para cada 1.000 crianças, a das deficiências leves se distribuíam entre 8,7 e 36,8, com a grande maioria em crianças de famílias de baixa renda (Low-Income Children).
Ou seja, em um país com índices de escolarização muito baixos, em que 34% dos concluintes do ensino fundamental são analfabetos funcionais, há enorme probabilidade de parte significativa desse alunado expressar a medicalização do fracasso escolar (cf. Moysés, 2001).
Considerações finais
Os resultados e as análises apresentados colocam em xeque investigações sobre a escolarização de alunos com deficiência sem a referência a outros marcadores sociais, bem como a processos de socialização/educação por eles percorridos.
A primeira grande discrepância entre os dois distritos refere-se ao número de matrículas: Moema somou 160 alunos com deficiência e São Miguel, 592; ou seja, 3,7 vezes mais, demonstrativo de que a distinção de classe é fator significativo na incidência de crianças caracterizadas como deficientes.
Verifica-se, ainda, que sem instrumentos mais apurados corre-se o risco de os dados colhidos não corresponderem à realidade, como se verificou sobre a quantidade de alunos com deficiência de Moema, pois foi por meio do refinamento dos dados que se pôde constatar que 100 alunos da educação especial, entre os 260 matriculados nas escolas do distrito, frequentavam o programa escolar da AACD, cujas moradias se distribuem por toda a região da Grande São Paulo.
Com relação às características pessoais, o alunado com deficiência de Moema é majoritariamente branco, do sexo masculino e com prevalência na faixa etária de 6 a 10 anos, enquanto o de São Miguel é predominantemente negro, do sexo masculino e com prevalência dos 11 aos 14 anos – ou seja, o local de residência, além das distinções de classe indicadas acima, é uma expressão concreta das distinções sociais de raça e sexo. Além disso, a prevalência de alunos mais jovens em Moema é mais uma expressão das distinções de classe.
Por fim, a brutal diferença de matrículas nas escolas públicas e privadas, com o alunado de Moema dividido equitativamente entre ambas, enquanto mais de 80% do alunado de São Miguel estão matriculados em escolas públicas é a prova cabal que, de um lado, as instituições especializadas de alto reconhecimento social e político não se fixam nas regiões mais necessitadas, assim como não podem ser consideradas como restritas ao atendimento da população local; e, de outro, que parcela significativa de alunos com deficiência das camadas sociais superiores usufrui de escolas privadas especializadas, de alto custo.
Além disso, o equilíbrio das matrículas em Moema entre escolas públicas e privadas deve refletir a distribuição da população que usa esse espaço: nas escolas privadas, os filhos com deficiência das famílias de alta classe média que ali residem e, nas públicas, os filhos de trabalhadores domésticos ou dos prestadores de serviços.
A contribuição mais expressiva que este artigo pretende oferecer pode ser sintetizada por dois elementos: 1) os dados nacionais são pouco úteis na investigação da educação especial em espaços sociais restritos; 2) a pesquisa, nesse campo, se quiser efetivamente contribuir com a luta contra a discriminação de pessoas com deficiência deve, além dela, levar em consideração as marcas sociais, que são substanciais na constituição de suas identidades sociais, calcadas nas possibilidades concretas de classificação social, em que o sucesso escolar é elemento imprescindível.
Agradecimentos
Não se aplica.
Notas
-
1
No Censo Populacional de 2022 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022), o percentual da população do município com renda nominal até ½ salário-mínimo era de 31,6%.
-
2
Está prevista, após o encerramento da presente investigação, a sua continuidade com dados de 2024, para análise das consequências da pandemia e das políticas do governo Bolsonaro sobre a escolarização desse alunado.
-
3
Indicadores macrossociais, como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), são de pouca utilidade em espaços sociais restritos: todos os 96 distritos paulistanos situam-se no nível “Muito Alto” desse índice.
-
4
De acordo com o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese, 2021), o tamanho médio da família paulistana é de 3,8 pessoas por família.
-
5
No Censo Escolar são distinguidas três categorias de escolas básicas privadas: confessionais; comunitárias (filantrópicas); e particulares, estas últimas de caráter comercial.
-
6
O Cede, segundo informações colhidas em seu site, é uma escola privada particular especial (de educação infantil e ensino fundamental) exclusiva para alunos com Síndrome de Down, com programação diversificada e que, por esta razão, deve ter anuidades de valor elevado (Cede, s. d.).
-
7
Em todo o artigo, nos referimos a sexo, porque este é o termo constante dos Censos Escolares, mas cujas diferenças refletem distinções de gênero, na medida em que elas não se devem à marca biológica, mas à construção social da diferença entre os sexos.
-
Financiamento
Não se aplica.
Disponibilidade de dados de pesquisa
Dados serão fornecidos mediante solicitação.
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Editado por
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Editoras associadas:
Ana Luiza Bustamante Smolka https://orcid.org/0000-0002-2064-3391 e Silvia Dubrovsky https://orcid.org/0000-0001-6339-2855
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
20 Jun 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
13 Dez 2024 -
Aceito
05 Maio 2025
