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Para romper a invisibilidade da educação infantil em territórios rurais: uma homenagem à Fúlvia Rosemberg

Este número temático é uma homenagem à Fúlvia Rosemberg (1942-2014), psicóloga social que dedicou a sua vida acadêmica ao estudo e à denúncia das desigualdades de gênero, étnico-raciais e etárias que conformam a realidade brasileira. No debate e na disputa por direitos, ela sempre teve como eixo orientador a “lealdade com as crianças”, como gostava de frisar. Foi esta lealdade que fez dela uma pesquisadora militante da infância de 0 a 6 anos no Brasil, de modo a utilizar toda a potência de sua capacidade investigativa, de sua inteligência e de suas palavras na produção de um material crítico acerca das condições de oferta da educação infantil.

Os estudos de Fúlvia Rosemberg (2002ROSEMBERG, F. Organizações multilaterais, estado e políticas de educação infantil. Cadernos de Pesquisa, v. 115, p. 25-63, 2002.; 2006ROSEMBERG, F. Políticas de educación y cuidado de la primera infancia en América Latina y reproducción de la desiguald. In: FORO POR LA PRIMERA INFANCIA. Memorias del segundo foro internacional: movilización por la primera infancia. Bogotá: Foro por la Primera Infancia, 2006, p. 61-70.) foram cruciais para conhecermos as desigualdades de acesso a vagas em creches e pré-escolas, sempre piores para as crianças mais pobres, negras, das regiões Norte e Nordeste e moradoras de áreas rurais. Incessantemente, chamou atenção para a necessidade de superarmos as diversas invisibilidades que subjazem as estatísticas oficiais de atendimento educacional às crianças pequenas no país. Uma dessas invisibilidades foi objeto de dedicação de Fúlvia nos seus últimos anos, quando passou a atuar, em 2011, como consultora da Pesquisa Nacional Caracterização das práticas educativas com crianças de 0 a 6 anos residentes em áreas rurais (BRASIL, 2012BRASIL. Caracterização das práticas educativas com crianças de 0 a 6 anos residentes em áreas rurais. Pesquisa Nacional. Brasília: MEC/UFRGS, 2012.).

Fúlvia envolveu-se com a temática de modo apaixonado, fornecendo uma fotografia atual dos efeitos da política de atendimento em educação infantil em área rural, caracterizada por ela e por Amélia Artes (ROSEMBERG & ARTES, 2012ROSEMBERG, F.; ARTES, A. O rural e o urbano na oferta de educação infantil para crianças de até 6 anos. In: BARBOSA, M.C.S.; SILVA, A.P.S.; PASUCH, J.; LEAM, F.L.A.; SILVA, I.O.; FREITAS, M.N.M.; ALBUQUERQUE, S.S. (Orgs.). Oferta e demanda de educação infantil no campo. Porto Alegre: Evangraf, 2012. p. 13-69.) como insuficiente, discriminatória e precária. Chama a atenção que essa realidade, ao mesmo tempo em que é explicada pela falta de investimento, regula o conjunto de ausências da política pública, mantendo um ciclo de reprodução que reitera uma posição de abandono por parte do Estado.

A educação das populações dos territórios rurais, a partir do final dos anos 1980, passou a ser objeto de reivindicação dos movimentos sociais e sindicais do campo, que protagonizaram a construção de um paradigma denominado Educação do Campo (MUNARIM, 2008MUNARIM, A. Trajetória do movimento nacional de educação do campo no Brasil. Educação, Cuiabá, v. 33, p. 59-76, 2008.). O reconhecimento das populações rurais como produtoras de saberes e uma proposta de educação crítica ao assujeitamento ganharam força institucional a partir desse movimento. Um conjunto de ações e vários programas oficiais passaram a incorporar o paradigma em questão. Nos anos 2000, foram aprovadas, no Conselho Nacional de Educação (CNE), importantes Resoluções da Câmara de Educação Básica (CNE/CEB 01/2002; CNE/CEB 02/2008) no sentido de estabelecer diretrizes para o desenvolvimento de políticas de educação básica do campo e de orientar os sistemas municipais e as propostas pedagógicas das instituições.

O debate educacional travado na última década incorporou mais intensamente o tema da educação infantil das crianças do campo, que passou a ser pautado na agenda dos movimentos sociais e sindicais, de grupos de pesquisa e de órgãos do governo federal. Do ponto de vista institucional e normativo, em 2008, a Coordenação-Geral de Educação Infantil (COEDI), da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação, também assumiu para si a responsabilidade de, junto a outros setores, tematizar a oferta de creche e pré-escola das crianças de áreas rurais. Essa confluência de aspectos fez com que, na revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, em 2009 (Resolução CNE/CEB 05/2009), a problemática das crianças dos territórios rurais estivesse presente. O seu artigo 8º, parágrafo 3º, promoveu a primeira interlocução, em termos legais, entre as diretrizes da educação infantil e as da educação do campo.

Se o cenário da educação básica, nos territórios rurais como um todo, é bastante desafiador, no caso da educação infantil, aspectos adicionais devem ser considerados, uma vez que as crianças pequenas do campo sofrem um processo de dupla invisibilidade, relativo tanto à sua filiação territorial quanto à questão etária, em uma sociedade que valoriza e possui como horizontes a vida urbana e a idade adulta.

Este processo tem como substrato um contexto social, cultural e político marcado pela fragilidade e pela disputa em torno da consolidação do atendimento a crianças de 0 a 6 anos de idade no sistema educacional. Também a origem da educação infantil - atrelada às dinâmicas e transformações familiares decorrentes do processo de urbanização -, a tradição da organização pedagógica em espaços de concentração populacional e a obrigatoriedade de matrícula de crianças de 4 e 5 anos na educação infantil adicionam interrogações sobre a necessidade e a adequação da oferta e da qualidade de creche pré-escola nos territórios rurais.

O debate dessas questões resulta, permeado por tensões e problematizações da ordem, por exemplo, das concepções sobre o rural brasileiro e as melhores formas de educar as crianças pequenas nesses territórios, do grau de conhecimento das características econômicas e sociopolíticas que configuram as ruralidades brasileiras, dos modos de organização das famílias e relações de gênero no espaço rural, do conhecimento das demandas pelo atendimento, das políticas de financiamento educacional, da gestão e formação de professores, dos materiais, espaços e tempos e das interações e processos vividos pelas crianças no interior das instituições e propostas pedagógicas.

Os desafios são enormes, uma vez que a produção acadêmica acerca da oferta/demanda e das práticas pedagógicas da educação infantil nos territórios rurais ainda é bastante incipiente.

Nesse sentido, os artigos que compõem este número temático procuram apresentar resultados de pesquisas relativas à problemática da oferta educacional às crianças pequenas dos territórios rurais, dando continuidade à construção recente desse campo de investigações, assim como ao compromisso com as crianças e as famílias que reivindicam, às instituições públicas e de educação coletiva, o compartilhamento da educação de seus filhos.

O artigo de Isabel de Oliveira e Silva e de Iza Rodrigues da Luz, ambas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explicita aspectos da relação entre as famílias e a educação infantil do campo, fornecendo elementos para a compreensão de que as características sociodemográficas e geográficas, as condições estruturais e a mobilidade nos territórios rurais subsidiam e impactam as demandas e as expectativas das famílias em relação à creche e pré-escola no campo e questionam as racionalidades econômica e pedagógica que regem as políticas educacionais dominantes.

Marle Aparecida Fidéles de Oliveira Vieira e Valdete Côco (Universidade Federal do Espírito Santo - UFES) abordam um aspecto que joga força na construção da educação infantil de qualidade, como na formação dos professores. A pesquisa torna o tema complexo quando explora uma realidade que faz cruzar as demandas formativas dos professores com a formação ofertada pelo poder público e pelo movimento social. Na intersecção dessas instâncias, emergem iniciativas, mas também ausências que clamam por processos de formação significativos e empreendidos pelo poder público.

Fernanda de Lourdes Almeida Leal, Fabiana Ramos, Fabíola Cordeiro de Vasconcelos (todas da Universidade Federal de Campina Grande - UFCG) e José Vilton Costa (Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN) discutem a oferta da educação infantil das populações de áreas rurais na Paraíba. Dados quantitativos são explorados como forma não apenas de apresentar a realidade, mas de problematizar que a demanda mostra-se sempre relacionada às condições de oferta das instituições educacionais.

Por meio de uma pesquisa realizada no assentamento rural de Vila Nova, município de Santa Rosa do Sul, extremo sul de Santa Catarina, Cynthia Nalila Souza Silva e Soraya Franzoni Conde (Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC) recuperam a memória da escola e os seus significados para os diferentes sujeitos. No movimento de focar o local, as autoras nos convidam a identificar características que, embora singulares, dialogam com e são marcadas por aspectos gerais da política de educação nos assentamentos rurais da reforma agrária.

As vozes das crianças são trazidas no artigo de Carmem Virgínia Moraes da Silva (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB) e Liana Gonçalves Pontes Sodré (Universidade do Estado da Bahia - UNEB) e no artigo de Cléria Paula Franco e Jaqueline Pasuch (Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT). No primeiro caso, a partir do referencial vigotskiano, que assume a relação intrínseca entre o sujeito e o seu meio, as autoras apresentam as brincadeiras de crianças de uma escola de educação infantil localizada em um assentamento da reforma agrária em Vitória da Conquista, sudoeste da Bahia. Explorando a vivência de crianças oriundas de um mundo rural diverso, em Nova Mutum (MT), o segundo trabalho apresenta enredos, objetos e personagens associados ao cotidiano dos meninos e meninas e reivindica que o currículo escolar valorize as práticas culturais constitutivas das identidades sociais e coletivas das crianças.

As práticas pedagógicas também são objeto de reflexão no texto de Bronwen J. Cohen (University of Edinburgh, Escócia) e Wenche Rønning (Nord University, Noruega). As autoras, filiadas a uma perspectiva de construção da educação baseada no lugar e a partir de exemplos de duas áreas na Noruega e na Escócia, relatam como a exploração dos ambientes externos, da natureza e da vida cultural e produtiva constitui uma referência curricular necessária para a educação das crianças pequenas. Aprofundamentos dessa ordem podem ser promissores para os desenvolvimentos de propostas pedagógicas afinadas com a comunidade e os recursos naturais da localidade. Evidentemente, estamos tratando de territórios rurais muito diferentes da realidade brasileira, o que dificulta tentativas de aproximação dos conceitos de rural, de comunidade e de sujeitos do campo. Contudo, pelos exemplos apresentados, fica claro que a inspiração de práticas em ambientes externos no espaço rural ocorre quando existem políticas educacionais que estruturam e apoiam a sua inserção no currículo, assim como a participação da comunidade na escola.

Os efeitos da política na produção da oferta de serviços de atenção à infância nos territórios rurais do Canadá são discutidos criticamente no artigo de Susan Prentice (University of Manitoba, Canadá). O texto evidencia que, mesmo em países com alto desenvolvimento econômico, a atenção à criança pequena não é prioridade. A autora discute a estrutura de serviços à pequena infância nas regiões rurais, remotas e do norte do Canadá e demonstra como a sua base liberal incide na configuração de uma oferta precária, inclusive de educação infantil, com forte impacto para as crianças e mulheres. Embora o artigo explore a realidade daquele país, a sua leitura convida a tomarmos consciência de que as concepções das políticas para a criança pequena, pobre e de áreas menos empoderadas, extrapolam limites territoriais, reproduzindo-se em diferentes nações, a partir de referências liberais. O modelo econômico, ao mesmo tempo em que mantém a concentração da terra e a injustiça social nos territórios rurais, em diferentes países, (re)produz as desigualdades do acesso aos bens educacionais. Talvez este artigo seja o que melhor dialoga com os estudos e as inquietações de Fúlvia Rosemberg. Fechar o número temático com ele é manter vivo o convite da Fúlvia para que estejamos firmemente atentos às concepções de campo em disputa no cenário atual, mas não esqueçamos que as concepções de infância também estão em jogo, nas tramas do modelo socioeconômico e das ideologias que produzem e sustentam as políticas para os pobres, as mulheres e as crianças. Só assim será possível enfrentar os desafios para a construção de uma educação infantil brasileira efetivamente democrática (ROSEMBERG, 2006ROSEMBERG, F. Políticas de educación y cuidado de la primera infancia en América Latina y reproducción de la desiguald. In: FORO POR LA PRIMERA INFANCIA. Memorias del segundo foro internacional: movilización por la primera infancia. Bogotá: Foro por la Primera Infancia, 2006, p. 61-70.).

REFERÊNCIAS

  • BRASIL. Caracterização das práticas educativas com crianças de 0 a 6 anos residentes em áreas rurais Pesquisa Nacional. Brasília: MEC/UFRGS, 2012.
  • MUNARIM, A. Trajetória do movimento nacional de educação do campo no Brasil. Educação, Cuiabá, v. 33, p. 59-76, 2008.
  • ROSEMBERG, F. Organizações multilaterais, estado e políticas de educação infantil. Cadernos de Pesquisa, v. 115, p. 25-63, 2002.
  • ROSEMBERG, F. Políticas de educación y cuidado de la primera infancia en América Latina y reproducción de la desiguald. In: FORO POR LA PRIMERA INFANCIA. Memorias del segundo foro internacional: movilización por la primera infancia Bogotá: Foro por la Primera Infancia, 2006, p. 61-70.
  • ROSEMBERG, F.; ARTES, A. O rural e o urbano na oferta de educação infantil para crianças de até 6 anos. In: BARBOSA, M.C.S.; SILVA, A.P.S.; PASUCH, J.; LEAM, F.L.A.; SILVA, I.O.; FREITAS, M.N.M.; ALBUQUERQUE, S.S. (Orgs.). Oferta e demanda de educação infantil no campo Porto Alegre: Evangraf, 2012. p. 13-69.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2017
  • Aceito
    20 Jun 2017
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