A proposta do dossiê aqui apresentado está articulada em torno das seguintes categorias: educação especial; políticas educacionais; projetos de escola; escolarização de estudantes da educação especial; e formação docente. As discussões estão desenvolvidas mediante a análise de conjuntura da realidade social e dos processos críticos de pensamento com base no materialismo histórico e dialético, pressupondo um sentido de práxis, atividade humana teórico-prática e histórico-social (Marx; Engels, 2007).
Podemos considerar, a partir das formulações próprias do materialismo histórico e dialético, que a práxis:
[...] é a atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la, transformando a si mesmos. É a ação que, para se aprofundar de maneira mais consequente, precisa da reflexão, do autoquestionamento, da teoria; e é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desafio de verificar seus acertos e desacertos, cotejando-os com a prática
(Konder, 1992, p. 115).
Gramsci (2024), em seus escritos carcerários, tratou o materialismo como filosofia da práxis, considerando que não se pode separar o pensar do agir, o mundo material da esfera das ideias, portanto ações e reflexões sobre os atos praticados por seres humanos concretos constitutivos das relações sociais. Para Semeraro (2005, p. 31), “relações dialeticamente concretas, consideradas dentro de precisas condições de trabalho, de um modo de produção material e simbólico, de divisões de classe, de distribuição da riqueza e do poder no mundo que nos engloba”.
Pressupomos, portanto, que a educação especial existe como um objeto de pesquisa, mas não somente, pois a consideramos como um campo de práticas sociais, históricas, educacionais e pedagógicas, constituída por tensões, na qual sujeitos individuais e coletivos disputam concepções, perspectivas, organizações, políticas, conceitos, modos de pensar e apreender o real e formas de disseminar conhecimentos e ideologias. Tomamos como mote de nossas análises um pensamento que possibilite agir em consequência da leitura da realidade, vislumbrando horizontes possíveis, agendas político-pedagógicas, e a formulação de pautas mínimas para a atuação militante e acadêmica.
O núcleo central de pesquisadores que participam da publicação constitui o grupo do Ciclo de debates sobre políticas de educação especial na atual conjuntura, organização interinstitucional criada em 20201, ano em que promovemos um primeiro evento, organizado no formato de cinco palestras online, em função da situação de pandemia da covid-19. Nos anos seguintes, o grupo permaneceu reunindo-se para estudos e debates, acompanhando os movimentos da educação especial no país.
Para situar alguns elementos sociais e históricos que balizam o desenvolvimento da educação especial no Brasil recente, escolhemos começar por mencionar a crise estrutural do capital (Mészáros, 2002). A segunda metade do século 20 foi o tempo histórico sobre o qual Mészáros buscou compreender o desenvolvimento recente do capital, seu sociometabolismo e suas características expansionista, de destrutividade e de incontrolabilidade, caracterizando uma crise estrutural e sistêmica e que tem na erosão do trabalho um pilar central.
Saviani (2017, p. 12) contribui com essa compreensão ao analisar que:
[...] a produção capitalista hoje é uma produção destrutiva, pois só pode se manter pela reconstrução do que é destruído, já que isso pode ser feito sem abrir mão das relações privadas de produção, o que se evidencia pelos constantes desastres ambientais, acidentes de trânsito, conflitos bélicos, expansão da criminalidade e da violência, cujos resultados destrutivos movimentam capitais para sua reconstrução, sem que as forças produtivas possam avançar para além do nível já atingido.
Em meio à crise estrutural, observamos a emergência internacional de blocos no poder orientados por uma doutrina política e filosófica afeita ao pensamento conservador, identificados com práticas de extrema direita, contra o desenvolvimento dos direitos de grupos subalternos e operando com base na violência física e psicológica. Segundo Löwy (2019, n. p.)2, alguns dos exemplos mais conhecidos são: “Trump (USA), Modi (Índia), Urban (Hungria), Erdogan (Turquia), ISIS (o Estado Islâmico), Duterte (Filipinas), e Bolsonaro (Brasil)”. O autor também refere vários outros países próximos dessa tendência, ainda que sem uma definição explicita como “Rússia (Putin), Israel (Netanyahu), Japão, (Shinzo Abe), Áustria, Polônia, Birmânia, Colômbia, etc” (Löwy, 2019, n. p.). Não por acaso, a extrema direita tem por mote o ataque aos direitos humanos, o que Fontes (2010) considera como “expropriações de segunda ordem”.
A onda conservadora expande no Brasil em meados da segunda década do século 21, o que pode ser observado, entre outros eventos, nas marchas de rua em 2013. Em 2016, o golpe de Estado é síntese da atuação de forças políticas de cariz conservador e facilitador da expansão e do aprofundamento de ideologias que culminam na eleição presidencial de Jair Bolsonaro em 2018.
Para Leher e Santos (2023) há um conjunto de elementos políticos que conjugados contribuíram para a eleição de Bolsonaro, tais como a operação lava-jato, a prisão de Lula e a atuação de aparelhos privados de hegemonia de matiz empresarial. O período de seu mandato foi caracterizado por desmandos institucionais de um governo autocrático, política armamentista, desregulamentação das leis de proteção ambiental, agravamento das políticas da área da saúde complexificadas pela pandemia da covid-19, restrição das relações internacionais e, ainda, por um conjunto importante de contrarreformas. No que se refere aos aspectos econômicos, manteve o regime fiscal da Emenda Constitucional 95/2016 implementado no governo Temer com apoio do Congresso Nacional e que limita os investimentos na área social.
Na educação, observamos sucessivas trocas na liderança do ministério, mas mantendo o fio condutor de assumir o lugar de “bunker da ‘guerra cultural’” (Leher; Santos, 2023). Registramos o ataque às universidades públicas, seja pela restrição orçamentária ou pelo ataque à autonomia institucional com a nomeação de reitores não escolhidos pelos pares, além da ampliação de disciplinas a distância nos cursos presenciais. Já em relação às escolas de educação básica promoveu ataques à sua credibilidade com o projeto do homeschooling, a proposta cívico-militar para a educação e o fortalecimento do movimento escola sem partido. Também é relevante mencionar que foi fundamental para fazer avançar o projeto do Novo Ensino Médio, da Base Nacional Comum Curricular e das diretrizes para a formação de professores com base na restrição da formação escolar e com mote no empreendedorismo – entre outros elementos nefastos ao desenvolvimento de uma educação pública e de formação integral.
Na educação especial, o governo Bolsonaro deu sequência à revisão ou atualização da política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva, iniciada no governo Temer, o qual encaminhou a contratação de consultorias para essa finalidade, com a produção de uma minuta disponibilizada para uma frágil consulta pública eletrônica. A partir do entendimento de que o conteúdo das mudanças propostas traria regressão das políticas de perspectiva inclusiva para a modalidade, muitas organizações científicas e políticas em defesa do direito à educação escolar dos e das estudantes da educação especial reagiram fortemente, com manifestações públicas. Mais uma vez, também nesse campo específico, vimos o governo autocrático atuar mediante a publicação do Decreto 10.502/2020, ampliando as formas organizativas de realização dos serviços de educação especial, recuperando o protagonismo de instituições de atendimento exclusivo e promovendo segregação escolar e responsabilização dos estudantes em função de seus diagnósticos clínicos. Esse capítulo da educação especial brasileira sofreu a atuação do Supremo Tribunal Federal, que respondeu às ações da sociedade civil e suspendeu os efeitos legais do referido decreto por seu caráter inconstitucional. Entretanto, os efeitos de seu conteúdo nas práticas educacionais, pela disseminação de suas ideias, foram de alterações profundas nas redes de ensino nos últimos anos, no sentido da segregação escolar e discriminação estudantil.
Os processos sociais, históricos e políticos que produziram a alternância de poder com a eleição de Lula para um terceiro mandato a partir de 2023 são complexos e conflitivos. Podemos dizer que a retomada das práticas democráticas; da defesa do Estado de direito; das ações de redistribuição de renda; do reconhecimento dos direitos sociais estão acontecendo em níveis rebaixados, tendo em vista o amplo arco de alianças políticas e partidárias que compõem o bloco no poder hegemonizado pelo grande capital. Nesse sentido, os processos centrais na realidade econômica do país, orientados pela lógica dos ajustes fiscais, se mantiveram no novo governo e são base para um conjunto importante de contrarreformas e outras medidas que não foram revogadas e que atuam no desmonte dos direitos sociais, dentre os quais a educação escolar. Ademais, ao final de 2024, a Polícia Federal indiciou o ex-Presidente Jair Bolsonaro e mais 36 pessoas por suspeita de tentativa de golpe de Estado em 2022, logo após as eleições presidenciais, denotando uma instabilidade política no país.
Ao longo dos últimos anos o grupo do ciclo manteve-se articulado e analisando os movimentos que produzem as políticas de educação especial no Brasil, de forma situada na conjuntura internacional e nacional. Em 2024 realizamos o segundo evento promovido pelo grupo, agora de forma presencial, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, de onde emerge a presente proposta de publicação a partir das mesas de debate. Para a realização do evento contamos com um convidado nacional externo ao ciclo e, para essa publicação, com convidados externos que são pesquisadores em outros países.
A proposta para esse dossiê considera que a educação especial tem sido organizada e implementada nas redes de ensino mediante políticas nacionais e subnacionais, disputadas em termos de perspectivas – mais ou menos inclusivas e democráticas – no embate de posições de grupos de interesse, tanto em um viés mercantil como assistencial, perpassando e constituindo projetos escolares e suas respectivas concepções políticas e pedagógicas, com correlações no que tange à formação docente.
Propomos o debate por meio de dois eixos centrais de artigos. No primeiro eixo enfrentamos a reflexão sobre as políticas de educação especial no Brasil e na América Latina; analisamos as disputas políticas produtoras de conflitos e de consensos; refletimos sobre o Estado, as relações de poder e as reconfigurações que a classe dominante imprime ao seu aparelho e às suas finalidades; e discutimos os limites das políticas sociais e educacionais para o enfrentamento das desigualdades socialmente produzidas e a persistência da participação de organizações sociais filantrópicas na oferta de serviços nesse campo.
No segundo eixo adensamos a discussão sobre a escola, tendo em vista que as políticas públicas e os fatores conjunturais incidem na forma de sua organização, seu funcionamento e na função social desempenhada por essa instituição. Em se considerando a escola pública como lócus de projetos educacionais em disputa, são apresentados fundamentos teórico-metodológicos referentes aos modos de conceber o humano, a condição de deficiência, os processos de ensino e aprendizagem, a organização do trabalho docente e as bases sobre as quais produzimos conhecimentos, os quais podem ancorar uma práxis educacional transformadora. Nesta linha de reflexão, coloca-se em discussão os projetos de escola pública e a formação inicial de professores para a educação especial no Brasil.
Agradecimentos
Não se aplica.
Notas
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1
Constituem o ciclo nove universidades: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal de São Carlos/São Carlos e Sorocaba (UFSCar), Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Federal do Paraná/Litoral (UFPR), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) e Pontifícia Universidade Católica-SP (PUC-SP).
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2
Cf. Löwy (2019).
-
Dossiê organizado por:
Rosalba Maria Cardoso Garcia https://orcid.org/0000-0003-3260-6982, Débora Dainez https://orcid.org/0000-0002-8223-098X, Kamille Vaz https://orcid.org/0000-0003-2277-929X e Kátia Regina Moreno Caiado https://orcid.org/0000-0002-3091-5135
-
Financiamento
Não se aplica.
Disponibilidade de dados de pesquisa
Não se aplica.
Referências
- FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.
- GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: caderno 11 (1932–1933): Introdução ao estudo da filosofia. Trad. Giovanni Semeraro; Rodrigo Lima. Rio de Janeiro: IGS-Brasil, 2024.
- KONDER, L. O futuro da filosofia da práxis: o pensamento de Marx no século XXI. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
- LEHER, R.; SANTOS, M.R.S. Governo Bolsonaro e autocracia burguesa: expressões neofascistas no capitalismo dependente. In: LEHER, R. (org.). Educação no Governo Bolsonaro: inventário da devastação. São Paulo: Expressão Popular, 2023. p. 9-42.
-
LÖWY, M. Neofascismo: um fenômeno planetário – o caso Bolsonaro. Portal A terra é redonda. Publicado em: 24 out. 2019. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/neofascismo-um-fenomeno-planetario-o-caso-bolsonaro/ Acesso em: 10 maio 2024.
» https://aterraeredonda.com.br/neofascismo-um-fenomeno-planetario-o-caso-bolsonaro/ - MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feurbach, B. Bauer e Stirner e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
- MÉSZÁROS, I. Para além do capital São Paulo: Boitempo, 2002.
-
SAVIANI, D. Educação, práxis e emancipação humana. Revista Práxis e Hegemonia Popular, v. 2, n. 2, p. 5-20, 2017. https://doi.org/10.36311/2526-1843.2017.v2n2.p5-20
» https://doi.org/10.36311/2526-1843.2017.v2n2.p5-20 -
SEMERARO, G. Filosofia da práxis e (neo)pragmatismo. Revista Brasileira de Educação, n. 29, p. 28-40, 2005. https://doi.org/10.1590/S1413-24782005000200003
» https://doi.org/10.1590/S1413-24782005000200003
Editado por
-
Editoras associadas:
Ana Luiza Bustamante Smolka https://orcid.org/0000-0002-2064-3391 e Silvia Dubrovsky https://orcid.org/0000-0001-6339-2855
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Jun 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
13 Dez 2024 -
Aceito
25 Abr 2025
