Open-access Apresentação

APRESENTAÇÃO

Filigranas da memória: intercâmbios de gerações

A longevidade humana atual tem oferecido inúmeros desafios práticos, diários, reflexivos, discursivos e intelectuais por constituir uma nova configuração do viver nas temporalidades e espacialidades do mundo contemporâneo.

Dentre outros, os estudos desenvolvidos acerca do funcionamento do cérebro e os produzidos na área da história oral indicam a riqueza e a sofisticação da memória e de seus mecanismos de elaboração, evocação, recalques, imaginação, lembranças e esquecimentos.

As reflexões e interpretações aqui presentes assumem o desafio de pensar as relações entre gerações forjadas na heterogeneidade, assumindo que os trabalhos que se embasam na memória podem permitir, estabelecer e construir "costuras" entre as gerações, garantindo suas especificidades.

Apesar do crescimento vertiginoso das produções intelectuais envolvendo a temática da memória, percebemos uma concentração desses trabalhos nas populações adultas e velhas. Os jovens vêm recebendo maior atenção e preocupação para narrarem suas memórias, embora isso ainda aconteça de forma incipiente e as crianças nos ofereçam novas possibilidades de conhecimento ao falarem de si e por si, a partir de suas memórias recentes, sejam elas visuais, sensoriais ou orais.

Os espaços da universidade e de centros e núcleos de estudo e pesquisa têm voltado seus olhares e permitido que essas discussões apareçam e ganhem contribuições de diferentes profissionais, com seus diversos conhecimentos e habilidades criativas de investigação e pesquisa.

O Grupo de Estudos Memória, Educação e Cultura (GEMEC), originado em 1994 no Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisa em Diferenciação Sócio-Cultural (GEPEDISC), da Faculdade de Educação da mesma Instituição, tem priorizado o estudo e a pesquisa em diferentes contextos educativos e formativos envolvendo o campo da memória. Como membros desse grupo desde a sua formação, temos estudado, participado de pesquisas, ministrado cursos, oficinas, palestras, organizado seminários nessa temática, e isso nos tem mostrado o quanto se tornam necessárias a publicação e a divulgação de trabalhos produzidos em âmbitos mais gerais (geográficos e teóricos) que colaborem para ampliar, embasar e aprofundar as discussões envolvendo o campo da memória e diferentes faixas etárias.

Os artigos que compõem essa proposta apresentam discussões e questões práticas, teóricas e metodológicas, construídas por diferentes olhares e lugares. São memórias singulares, porque pessoais, mas plurais, porque coletivas e, portanto, abrangentes cultural e socialmente.

A memória e os esquecimentos são focos centrais, tratados de forma interrelacional e interdisciplinar, buscando estabelecer diálogos entre o que se observa, interpreta e analisa. Os diferentes olhares se mostram pelas falas e imagens que provocam memórias em crianças, em adultos reapresentando um passado recente ou remoto, em velhos. Os lugares são os espaços de ocupação que disparam ou motivam as lembranças: uma viagem, uma roda de capoeira, um museu de arte.

A idéia da filigrana como fios que se entrelaçam em uma trama complexa, formando desenhos delicadamente intrincados, aproxima-se da idéia de um cérebro em ação, com conexões, ramificações, articulações que possibilitam pensamentos, memórias, lembranças e esquecimentos. O desvelamento desse desenho, que por vezes se satura e por vezes se deixa entrever, é o exercício que todos os autores que se ocupam do tema da memória tentam fazer, como o cuidadoso, delicado e preciso trabalho de um ourives.

A importância de uma composição como essa é iluminar as filigranas, que são as tessituras, sabendo que sempre haverá pontos de sombras – os esquecimentos, os apagamentos.

Pelas falas e imagens dos sujeitos pesquisados – eu e/ou os outros –, nos movimentos da memória de construções, reconstruções e evocações, os esquecimentos são sentidos ora de forma dolorosa, traumática, ora com certa indiferença, com estranhamentos e similutes, de formas proustianas de experienciar odores e gostos. Nos espaços do museu de arte e na roda de capoeira a memória é tratada como patrimônio e tradição. Para um, a oralidade e os rituais se encarregam de manter as persistências. Para outro, os objetos é que possibilitam a emergência das memórias, assim como dos esquecimentos.

Nos seus modos diferenciados de trabalhar, os autores apresentam suas filigranas:

O artigo da professora Jerusa Pires Ferreira aproxima lugares distantes geográfica e temporalmente, mas próximos ao passar pelo exercício de sua memória, apontando as formas, os caminhos e os desenhos que suas experiências passadas em diferentes momentos vão construindo, permitindo andanças por tempos sem tempo.

Fabiana Bruno e Etienne Samain elaboram uma reflexão centrada na metodologia da antropologia visual, conjugando depoimentos de velhos e fotografias pessoais com o intuito de entender como esses velhos reconstroem o tempo da infância e as formas escolhidas pela memória para expressar essa representação.

Renata Sieiro Fernandes e Margareth Brandini Park apresentam uma discussão teórica, a partir de um exercício prático de construção de conjuntos fotográficos com crianças de uma escola, na faixa etária de 9 e 10 anos. Neles, as representações das memórias infantis são aproximadas, contrapostas e complementadas com as formas e mecanismos escolhidos e usados por velhos em exercício semelhante para repensar momentos passados de vida.

Mônica Kassar apresenta um estudo feito ao longo do tempo, com 15 anos de espaçamento, envolvendo pessoas, hoje adultas e deficientes mentais, acerca de suas memórias escolares, de suas auto-imagens e das construídas por outros, a partir de uma óptica da diferenciação e da especificidade.

Maria Isabel F. Pereira Leite apresenta o museu como local privilegiado da memória, onde o velho e o antigo convivem com o recente e o atual, servindo como materiais informativos e formativos para a construção da memória da criança, em contato com seus referenciais e os produzidos pela humanidade no decorrer dos tempos.

Pedro Jungers Abib mostra a capoeira como uma manifestação sócio-cultural que traz em si uma resistência de memória, inclusive corporal, gestual, do toque, como garantia de preservação de valores e saberes próprios e valorizados pelo grupo, bem como uma possibilidade de estabelecimento de contato entre os velhos mestres e os jovens aprendizes.

O conjunto de reflexões aqui apresentado contempla a memória sob várias perspectivas; como é um tema em aberto, acena com possibilidades de estudos e pesquisas a partir dos conhecimentos e enfoques das diferentes áreas. Acreditamos que a temática abordada vai ao encontro do interesse de vários segmentos educacionais, instigando-os a trilhar esses caminhos de tempos sem tempo.

Margareth Brandini Park

Renata Sieiro Fernandes

(ORGANIZADORAS)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Abr 2006
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