Resumos
Conhecemos cada vez melhor as lógicas de mercantilização da universidade pública e da educação em geral. Tal transformação neoliberal do ensino superior passa essencialmente pela concorrência entre estabelecimentos públicos e privados, assim como entre os próprios estabelecimentos públicos. Opera em todos os níveis, regional, nacional e internacional. Tem efeitos múltiplos, notadamente na “governança” das universidades, até mesmo nas condutas dos estudantes e docentes. Esta transformação é global; ela diz respeito, ao mesmo tempo, a estruturas, modos de regulação e práticas. Durante muito tempo, foi pouco compreendida teoricamente, porque – realizada por reformas e mutações parciais – responde a um paradigma coerente, que só pode ser entendido reconstruindo sua gênese e sua coerência. O artigo pretende definir e expor as grandes articulações da episteme capitalista, ou seja, a concepção original do conhecimento e da verdade que acompanha o desenvolvimento do capitalismo, desde o utilitarismo à ideologia do cérebro-máquina, passando pelas teorias do conhecimento-informação e do capital humano. Sem a compreensão de tal paradigma, entende-se como difícil a oposição de um paradigma alternativo mais igualitário e mais respeitoso dos valores de verdade.
Palavras-chave:
Conhecimento; Universidade; Neoliberalismo; Episteme Capitalista
Sabemos cada vez mejor la lógica de la mercantilización de las universidades públicas y de la educación en general. Esta transformación neoliberal de la educación superior implica esencialmente competencia entre establecimientos públicos y privados, pero también entre establecimientos públicos. Opera en todos los niveles, regional, nacional e internacional. Tiene múltiples efectos, en particular en la “gobernanza” de las universidades, e incluso en la conducta de estudiantes y profesores. Esta transformación es global y concierne al mismo tiempo a estructuras, modos de regulación y prácticas. Durante mucho tiempo poco comprendido teóricamente, porque llevado a cabo mediante reformas y mutaciones parciales, responde a un paradigma coherente, que sólo puede entenderse reconstruyendo su génesis y coherencia. El artículo tiene como objetivo definir y exponer las principales articulaciones de la episteme capitalista, es decir, la concepción original del conocimiento y la verdad que acompaña el desarrollo del capitalismo, desde el utilitarismo hasta la ideología cerebro-máquina, a través de las teorías del conocimiento-información y el capital humano. Sin comprender este paradigma, será difícil oponerse a un paradigma alternativo que sea más igualitario y más respetuoso de los valores de verdad.
Palabras clave:
Conocimiento; Universidad; Neoliberalismo; Episteme capitalista
We are increasingly aware of the logicofcom modificationof public universities and education in general. This neoliberal transformation of higher education is essentially based on competition between public and private institutions, but also between public institutions. It operates at all levels, regionally, nationally and internationally. It has multiple effects, notably on the “governance” of universities and even on the conduct of students and teachers. This transformation is global, and concerns structures, modes of regulation and practices at the same time. For a long time, little understood the or etically, because it wascarried out through partial reforms and mutations, it responds to a coherent paradigm, which can only be understood by reconstructing its genesis and coherence. This article aims to define and expose the major articulations of the capitalist episteme, that is, the original conception of knowledge and truth that accompanies the development of capitalism, from utilitarianism to the ideology of the brain-machine, including theories of knowledge-information and human capital. Without understanding this paradigm, it will be difficult to oppose it with na alternative paradigma that is more egalitarian and more respectful of truth values.
Key words:
Knowledge; University; Neoliberalism; Capitalist Episteme
INTRODUÇÃO
Julgamos saber o que é um conhecimento verdadeiro, que opomos – na linguagem corrente – à ignorância e ao erro. Haveria instituições apropriadas para produzir o conhecimento verdadeiro assim como para difundi-lo: são as instituições de pesquisa científica e de ensino. Elas deveriam produzir, codificar, formalizar, publicar, transmitir conhecimentos acumulados, verificados e corrigidos sem cessar pela livre circulação das ideias bem como a livre discussão das pesquisas e de seus resultados. Isso graças às formas regulamentadas da instituição científica, durante seminários, colóquios, conferências, publicações etc. Nós temos em mente, quando pensamos no conhecimento verdadeiro, a ideia secular do conhecimento que as Luzes nos transmitiram. Esta é facilmente associada à democracia, liberal ou social, e a seu ideal de emancipação e de cidadania. Continuamos a pensar, em grande medida, nos quadros legados pelos pensamentos de Condorcet, Kant ou Humboldt. A ideia do conhecimento verdadeiro – se não é sempre verificável, pelo menos sempre discutível e provisório – não é somente uma ideia reguladora do conhecimento ou uma concepção ideal da ciência. É uma instituição histórica do conhecimento verdadeiro, um momento daquilo a que Michel Foucault chamou “a história da verdade”. Esta relação entre o conhecimento verdadeiro e a emancipação é uma concepção histórica particular, ao mesmo tempo secular e política do conhecimento, que encontrou sua condição na liberdade de pensar e naquilo a que Kant chama “o uso público da razão”, em seu famoso opúsculo Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento?
Sabemos que esta liberdade é o fruto de lutas que duraram séculos contra o dogma religioso. Recordamos a forma como a Igreja assujeitou o pensamento durante muito tempo e proibiu o conhecimento científico do mundo. Este foi o trágico destino do cientista italiano Giordano Bruno, queimado pela Inquisição em praça pública no Campo dei fiori, dia 17 de fevereiro de 1600, por ter defendido a hipótese da infinidade dos mundos. Na Enciclopédia, Diderot diz a respeito de Bruno que ele “estimula por seu exemplo e por seus escritos os homens a pensar segundo eles próprios” (Diderot, 1751, p. 117). E devemos também relembrar a condenação de Galileu, forçado a retratar-se pela heresia de sua tese sobre o movimento da Terra. No Discurso preliminar da Enciclopédia (1751), D’Alembert comenta esta condenação enfatizando que “Foi assim que o abuso da autoridade espiritual reunida à temporal obrigou a razão ao silêncio; e faltou pouco para que o gênero humano fosse proibido de pensar” (D’Alembert, 1751, p. 47). Isto é o que D’Alembert chama de “o despotismo teológico”. Deter-se nesta ameaça do “despotismo teológico” seria ficar cego a outro perigo contemporâneo, aquele do neoliberalismo aplicado ao campo do conhecimento.
Se o ideal da liberdade de pensar, criticar e pesquisar foi parcialmente alcançado nas democracias liberais, é hoje insidiosamente ameaçado, de dentro, pela tirania da utilidade e da rentabilidade, por outras palavras, pelo despotismo da racionalidade econômica quando ela se aplica ao campo da pesquisa e da educação em todo o mundo. Esta concepção neoliberal do conhecimento não é apenas uma ideia, sendo institucionalizada há décadas, por meio de políticas em matéria de pesquisa e de ensino inspiradas – ou lideradas por economistas e por razões econômicas. O seu objetivo, baseado na racionalidade econômica tal como é entendida pelo imaginário neoliberal, é fazer com que o conhecimento sirva outros propósitos que não a emancipação e a democracia, fazer que ele sirva a “eficiência econômica”. Em outros termos, as políticas neoliberais aplicadas ao mundo acadêmico não têm outro objetivo senão impor uma nova definição e novas condições para a produção do conhecimento. É por isso que é apropriado questionar o que chamamos “a economia do conhecimento”, pois é a própria razão das reformas no ensino e na investigação que estão a ocorrer hoje em todo o mundo. Se as doutrinas que construíram esta “economia do conhecimento” insistem na função do conhecimento no crescimento ou na acumulação do capital, não deixam intata a natureza do próprio conhecimento. “A economia do conhecimento” não quer dizer nada mais do que a transformação do conhecimento em valor econômico, por isso, em forma-mercadoria. É o cerne da episteme capitalista.
UMA CONCEPÇÃO UTILITARISTA DO CONHECIMENTO
Antes de se tornar uma realidade institucional, que é propriamente a obra neoliberal atual, esta concepção do conhecimento estava já muito presente em todos os discursos imbuídos da razão econômica que acompanharam o desenvolvimento da civilização industrial e capitalista. É mesmo um componente importante do que Max Weber chamou “o espírito do capitalismo”, ele próprio ligado à figura do homem econômico, conduzido apenas por seu interesse. Para este utilitarismo, tal como foi formulado no fim do século XVIII, o conhecimento é um instrumento de produção de bem-estar. Ele representa um valor apenas pelo alcance prático que tem para aquele que o produz, o possui e sabe utilizá-lo. O conhecimento é avaliado pela capacidade de criar um efeito, facilmente assimilado a um efeito econômico ou, pelo menos, a um efeito suscetível de ser mensurável em termos econômicos. Os autores utilitaristas clássicos foram os primeiros a fazer a teoria da subordinação da ciência à “arte”, isto é, à prática a partir de uma filosofia empirista: a ciência é produzida pela prática, mas no outro sentido a ciência vale apenas pelos efeitos de melhoramento da prática. Jeremy Bentham, um dos filósofos utilitaristas mais importantes, passou grande parte de sua vida a refletir sobre instituições de ensino que deveriam ser submetidas ao princípio de utilidade. A crestomatia, no léxico de Bentham, é precisamente o conhecimento simultaneamente do útil e o conhecimento útil. Esta concepção utilitarista, sob formas frequentemente muito mais grosseiras, volta hoje – tanto no ensino como na pesquisa. Tal concepção toma hoje duas formas complementares: a primazia da competência no ensino e a prioridade da inovação na pesquisa. A volta triunfal do utilitarismo não é sem consequência. Se apenas a eficiência importa, zombarão de uma tese, de uma obra ou de uma demonstração que não poderia provar os efeitos benéficos manifestos e rápidos que ela pode acarretar. A relação à verdade acaba sendo profundamente atingida. É assim que se pode legitimamente ensinar nas escolas, e com os fundos públicos, as técnicas de venda embasadas na manipulação e na mentira, assim como o Estado pode financiar as pesquisas de neuromarketing destinadas a aumentar a eficiência das técnicas de manipulação publicitária. Doravante, a eficiência é mais importante que a verdade. O que chamamos por vezes de o reino da “pós-verdade” não deve ser procurado somente nas manipulações da informação nas redes sociais; ele é também o produto de uma concepção que faz do conhecimento um instrumento puro e simples de poder e de lucro.
O CONHECIMENTO SEGUNDO A DOXA NEOLIBERAL
Se a vida econômica e social em geral é uma competição entre indivíduos empreendedores em busca de boas oportunidades, como acreditam os teóricos neoliberais do século XX, a informação terá um altíssimo valor já que é graças a ela que poderemos identificar uma oportunidade para conseguir um “bom negócio”. Ter ou não ter uma informação, tal é o objeto primeiro da luta econômica entre empresas. Como cada um deve comportar-se racionalmente como uma empresa, a luta pela informação diz respeito igualmente aos indivíduos. Friedrich Hayek, em um artigo famoso de 1945 intitulado O uso do conhecimento na sociedade, afirmava, seguindo os passos de seu mestre Ludwig von Mises, que o problema econômico fundamental era um problema de conhecimento, algo que não teria sido visto até então pelos economistas neoclássicos segundo ele.1 Estes últimos pressuponham em seu modelo que o conhecimento do ambiente econômico estava totalmente em posse dos atores, de forma que a questão das escolhas econômicas se resumia a um cálculo matemático dos óptimos das escolhas de produção. Esta revisão por Hayek da teoria econômica – fazendo do conhecimento o problema econômico principal – tinha uma dimensão tanto política como econômica. Tratava-se de saber se um planejamento central da economia era mais eficaz do que um sistema descentralizado de concorrência. Para Hayek (1945),o planejamento recebia tanto prestígio porque se pensava que o conhecimento científico era a única forma de conhecimento, ou, pelo menos, a forma de conhecimento mais interessante do ponto de vista econômico: “Hoje, é quase herético relembrar que o conhecimento científico não é o único de todos os nossos conhecimentos”, lembra Hayek em seu artigo. Denunciar o planejamento começa, portanto, por questionar os “privilégios” concedidos ao conhecimento científico (Hayek, 1945, p. 521).
No entanto, existe outro tipo de conhecimento local e setorial que apenas os agentes econômicos dispersos têm em sua posse e que tem os maiores efeitos benéficos para eles e para toda a sociedade. Trata-se de um “conjunto de conhecimentos muito importante mas inorganizado, que não podem ser qualificados de científicos, visto que não se referem ao conhecimento de regras gerais, mas ao conhecimento das circunstâncias particulares de tempo e de lugar” (Hayek, 1945, p. 521). O conhecimento importante na vida econômica não é o da ciência, que comporta apenas regras gerais, mas o das “circunstâncias particulares de tempo e de lugar” (Hayek, 1945, p. 521). Este “conhecimento especial de circunstâncias efémeras, ignoradas dos outros” (Hayek, 1945, p. 522), a exemplo do corretor de imóveis que conhece os “bons negócios”, é por definição temporário. É um conhecimento que não deve ser conhecido por todos, que tem valor apenas para um determinado indivíduo e que, em certo momento, se encontra em circunstâncias particulares – e que, graças a ele, ganha vantagem sobre os outros por ser o único a possuí-lo.
Para Hayek (1945), o desprezo pelo comércio e pelo tipo de conhecimento a ele ligado provém da crença errônea, segundo a qual a economia é vista como um problema tecnológico de aplicação de regras gerais no modelo da produção industrial (construção de uma planta industrial, instalação de um dispositivo técnico). No entanto, o problema econômico fundamental é antes aquele da mudança permanente no mercado. O conhecimento mais útil será, portanto, aquele que os agentes econômicos possuirão sobre as variações dos mercados e não os científicos sobre os processos contínuos, sobre as tendências de longa duração. Em outras palavras, as leis científicas às quais se recorre na produção dos bens têm menos valor que os conhecimentos que servem para “fazer a diferença” na relação de concorrência. Os agentes econômicos precisam dos “conhecimentos pertinentes” para suas decisões econômicas, eles precisam saber muito rapidamente e da forma menos onerosa para eles como utilizar e interpretar os conhecimentos parciais e locais que possuem. Como estes são muito numerosos, eles só podem ser utilizáveis se se dispõe de um meio prático para resumi-los, reter somente um dado abstrato que os resumirá. Isso só pode ser feito com um sistema de preços no qual as inumeráveis circunstâncias serão resumidas em um valor numérico. Os conhecimentos pertinentes são, portanto, reduzidos a um indicador quantitativo que, por si só, resume a totalidade das informações úteis para o decisor. Para obter esta informação numérica, será necessário atribuir “a cada tipo de recurso raro um índice numérico que não tenha qualquer relação com uma característica deste bem particular, mas que reflete ou em que se resume o seu significado em termos de estrutura de produção” (Hayek, 1945, p. 526-527).
Para F. Hayek (1945), é mister “considerar o sistema dos preços como um mecanismo de “comunicação da informação” (Hayek, 1945, p. 526) que torna inútil qualquer outra forma de conhecimento. Será suficiente que os agentes “observem o movimento de alguns ponteiros, como um engenheiro pode consultar qualquer mostrador, e ajustar assim suas atividades a mudanças das quais nunca saberão mais do que aquilo que o movimento dos preços terá refletido” (Hayek, 1945, p. 527). Em outros termos, a gestão da produção, como a do governo dos homens, encontra o seu modelo no sistema dos preços de mercado. Se pudermos atribuir um valor quantitativo a qualquer atividade, a qualquer função, a qualquer pessoa, teremos então uma informação suficiente e pertinente para fazer escolhas óptimas relativamente à utilização de recursos produtivos. Não se trata necessariamente de criar um mercado em sentido estrito, mas de criar um “pequeno sistema econômico coerente”, como diz F. Hayek (1945), que funcionará como um mercado. Seria um erro denunciar a ignorância que este sistema implicaria se fosse generalizado ao conjunto das atividades humanas. Esta ignorância é, pelo contrário, a sua qualidade primeira: o mecanismo de informação do mercado poupa conhecimentos inúteis.
Para F. Hayek (1945), é vantajoso agir sem saber o que estamos a fazer ou porque o fazemos – de fato, é a maior conquista da civilização. Os benefícios da ignorância são muitas vezes ignorados, as vantagens da inconsciência são ignoradas. No entanto, é com mecanismos não conscientes que melhor fazemos os indivíduos agirem. Os progressos da civilização dependem da implementação de dispositivos e arranjos como o do mercado que permitem “dispensar um controle consciente e criar incentivos que levem os indivíduos a agir em um sentido desejável sem que ninguém lhes tenha dito o que se devia fazer” (Hayek, 1945, p. 527). Agir sem pensar é o objetivo deste tipo de conhecimento. O mercado, basicamente, é um dispositivo que dispensa o pensamento graças a um simples sistema de signos que não compreendemos mas que nos guia entretanto na ação. Entendemos, então, porque Hayek pode considerar que as causas não importam, que o conhecimento científico não tem valor ou, pelo menos, não tem o valor que lhe é atribuído na esfera econômica. Os preços são suficientes para determinar ações de adaptação que sejam racionais.
Qual é a relação entre esta teoria do conhecimento-informação e a transformação em curso do ensino e da pesquisa? Esta teoria propriamente mercantil do conhecimento não foi retomada tal qual pelos governos porque sua transposição prática direta teria sido um ataque frontal contra a ciência e uma destruição rápida das instituições de ensino e de pesquisa. Mas ensina-nos o que está subjacente às reformas neoliberais, nomeadamente uma relativização, para não dizer uma desvalorização do conhecimento verdadeiro, cujo modelo tem sido até o momento a ciência. Esta desvalorização é o lado obscuro do que chamamos “a economia do conhecimento”. É ela que, em última análise, poderia levar à destruição total do aparelho educativo e científico dos Estados.2
O que chamamos “economia do conhecimento”?
“A economia do conhecimento” designa o modelo que se impõe desde os anos 1990 a todas as instituições que lidam com o conhecimento em todo o mundo, sob a pressão de organismos econômicos como a OCDE, o FMI ou o Banco Mundial que deram força temporal às análises econômicas que fazem do “capital humano” para umas e da “inovação” para as outras a chave do crescimento futuro.
O capital humano (ou competências) e inovação são os dois aspectos complementares da forma geral do conhecimento, as duas categorias operacionais a partir das quais os poderes públicos recompõem o campo da educação. Os seus principais indicadores são a colocação profissional dos estudantes e o número de patentes registradas. Esta concepção do conhecimento e suas duas variações – a competência e a inovação –resultam numa redução da formação humana e da atividade intelectual a seu mero valor econômico: valor de troca no mercado de trabalho das formações escolares e universitárias por um lado; valor de troca no mercado das patentes e dos outros títulos de propriedade intelectual da atividade de pesquisa.3
Esta representação econômica muito particular do conhecimento constitui o quadro universal das políticas universitárias e científicas hoje, de tal forma que nenhum país parece poder escapar, influenciado pela globalização, a esta lógica dominante. E ainda menos porque esta imposição retórica anda de mãos dadas com o conjunto dos dispositivos e discursos que fizeram da concorrência econômica o nec plus ultra4 da política geral dos governos. Dito de outra forma, o esquema diretor da economia do conhecimento constitui muito mais do que uma teoria econômica entre outras. “A economia do conhecimento” é o nome oficial da racionalidade política que sustenta, legitima e suscita as atuais transformações no campo do conhecimento e, nesse sentido, constitui hoje uma das maiores peças da política neoliberal.
A expressão tem a vantagem de jogar com a ambiguidade do termo “economia”. Por “economia do conhecimento”, podemos compreender um ramo particular da economia considerada como ciência, e mais precisamente um ramo especializado da economia do crescimento. Podemos também, compreender com este termo uma fase histórica da economia fundada sobre o conhecimento.5 Em realidade, esta ambiguidade não é de todo uma ambiguidade. Se entramos, como alguns pensam, em uma nova fase de desenvolvimento da economia, então sua lei fundamental de desenvolvimento, as molas de seu dinamismo, devem logicamente dar origem ao desenvolvimento de uma teoria adequada aos novos fatos e processos. Esta teoria vem por sua vez reforçar a crença no fato de que o novo papel do conhecimento é realmente o caráter distintivo desta nova era do capitalismo. A teoria tem em suma um duplo aspecto, observacional e performativo.
O principal papel político que impulsionou o conhecimento para o cerne das questões econômicas foi desempenhado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), pela Comissão Europeia que assumiu o controle na década de 1990, e depois por outras organizações econômicas e financeiras neoliberais. A OCDE deu o mote e lançou um programa de investigação de indicadores e recomendações que está bem resumido no relatório de 1996 intitulado “A economia baseada no conhecimento”. Um pouco mais tarde, em 2000, o Conselho Europeu retomou o tema para torná-lo um objetivo da “Estratégia de Lisboa”. O objetivo era fazer da União Europeia “a economia do conhecimento mais dinâmica e competitiva do mundo até 2010, capaz de garantir um crescimento económico sustentável, com mais e melhores empregos, e com maior coesão social”.6 Esta estratégia deriva diretamente das lições que os economistas retiram dos seus modelos, em primeiro lugar a lição de que as “taxas de acumulação de capital humano”, medidas pela percentagem de diplomados na população ativa ou pelas despesas com a educação, têm sempre um efeito positivo na taxa de crescimento econômico. A Estratégia de Lisboa consistia, portanto, em recuperar o atraso em relação aos Estados Unidos, investindo muito mais na educação e na investigação, e ainda mais especificamente no ensino superior,7 uma vez que a literatura econômica supostamente mostra que, quanto mais avançado é um país em termos de educação e tecnologia, menos tem de confiar na imitação e muito mais na inovação.8 Nesse sentido político e estratégico, o conceito de “economia do conhecimento” não designa apenas um determinado estado ou uma determinada dinâmica da economia, mas também designa um conjunto de medidas e políticas capazes de fortalecer, intensificar e acelerar as seguintes características:
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A tendência para o aumento da proporção do chamado capital intelectual, imaterial ou intangível, medido por indicadores do nível de educação, de formação e de qualificação da mão de obra, das despesas em I&D e mesmo do estado de saúde da população;
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A transformação dos modos de produção e de trocas devida à “revolução informacional”;
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O peso crescente dos setores de alta tecnologia na produção industrial e nas exportações, tornando-os num conjunto de setores estratégicos determinando o lugar das economias na divisão internacional do trabalho e sua competitividade;
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A inovação tecnológica que é decisiva no crescimento da produtividade, segundo uma concepção neo-schumpeteriana9 que atribui um papel central ao empresário e ao espírito empreendedor.
Para além de uma série de evidências sobre o aumento da educação e da formação da população ativa ou a respeito do lugar da tecnologia e da informatização na produção, tal estratégia não deve ser aceita sem reflexão como o fazem a maioria dos comentadores ou dos responsáveis políticos, ou seja, como uma progressão linear para uma era mais “cognitiva”.
Quer se trate da economia do conhecimento como uma subdisciplina econômica ou como nova fase histórica da economia real, é notória a falta de precisão e de rigor dos termos utilizados. Não se distingue entre conhecimento científico, conhecimento semi-científico ou conhecimento comum, assim como não se implementa a distinção entre “conhecimento tácito” e “conhecimento codificado” (Michael Polanyi, 1962).10 O conhecimento é alegremente confundido com informação, conhecimento com o imaterial ou intangível, conhecimento com cultura, conhecimento com emoção ou afeto, e assim por diante.
Este regime retórico de deliberada imprecisão, confusão e incerteza não é apenas o resultado de uma falta de rigor conceitual dos economistas do crescimento, é também o resultado de uma estratégia teórica que consiste em considerar o conhecimento apenas em termos da sua utilidade econômica, de modo que o seu valor de uso seja mais importante do que a sua natureza, os seus efeitos mais do que as condições da sua produção. Isto leva a que o termo genérico “conhecimento” seja utilizado para abranger tudo o que, em termos de crescimento econômico, tende a aumentar a produtividade dos fatores, independentemente do seu volume, e tudo o que, no valor das empresas, se relaciona com a valorização do intangível, que desempenha um papel fundamental naquilo a que os economistas chamam “goodwill”.11
Poderíamos nos perguntar se não há uma contradição maior e evidente entre este reconhecimento oficial e internacional do papel do conhecimento e as políticas efetivamente desenvolvidas por numerosos governos (entre os quais os sucessivos governos franceses) que levam a cortes nos orçamentos da pesquisa e do ensino superior. As políticas de austeridade provocam um racionamento da educação e da pesquisa que, mesmo do ponto de vista dominante, parece logicamente contraditório com todas as análises feitas sobre a importância estratégica do conhecimento. De fato, hoje em dia, impossível não sorrir ao recordar os objetivos da estratégia de Lisboa que acabamos de mencionar. Se é incontestável que as despesas privadas em I&D foram privilegiadas pelos poderes públicos mas sem resultados notáveis, é necessário observar que a economia do conhecimento é um fracasso total. Mas, quais são as consequências esperadas pelas políticas de austeridade? Por detrás desta aparente contradição entre a valorização econômica do conhecimento e a realidade dos orçamentos que lhe são dedicados, não haverá uma lógica mais profunda que tem a ver precisamente com a desvalorização “hayekiana” do conhecimento?
A expansão da racionalidade econômica no campo do conhecimento
Para além do racionamento da despesa em educação e em pesquisa, assistimos ao triunfo da racionalização econômica do conhecimento, o que pode parecer paradoxal à primeira vista. Em realidade, o que importa é que o conhecimento seja visto como um fator econômico, e que, por corolário, tudo o que escapa a esta valorização econômica não existe mais verdadeiramente para os contadores que assumiram o comando do mundo acadêmico. Philippe Aghion e Peter Howitt (2010, p. 259) resumem perfeitamente o que eles chamam “as questões que preocupam os governos”: “a educação joga um papel no crescimento? que tipo de investimentos na educação importa mais? qual a melhor alocação possível de fundos públicos no ensino primário, secundário e superior?”.12 A linguagem não é neutra e sem efeito. Há uma performatividade do discurso econômico.13 Utilizar o léxico econômico fora do campo econômico, é estender de facto o império do valor econômico. O léxico é incorporado em dispositivos práticos que padronizam, medem, e que in fine modelam o que é pensado e o que é feito. Esta penetração do discurso econômico é feita simultaneamente a partir de considerações gestionárias locais, a partir das metanarrativas dominantes levadas a cabo pelas instituições neoliberais e pelos governos nacionais. Mas não são apenas os economistas ou os gestores que impõem à pesquisa e ao ensino esta razão econômica. A penetração do discurso econômico no universo acadêmico e científico tem tanto mais força quanto atua de certa maneira por percolação progressiva bem perto das práticas, pelo intermédio dos docentes e dos pesquisadores, que, de uma forma ou outra, são gestores de suas unidades de formação e de pesquisa e são de fato forçados a participar em editais ou em qualquer outra fonte de financiamento, embora possam sentir que são enganados por um sistema contraproducente e ineficiente de financiamento que favorece os ganhadores da concorrência universitária mas desencoraja todos os perdedores. Portanto, não é apenas pelo poder intrínseco da razão econômica “em geral”, que a economia do conhecimento se impõe. É por uma política deliberada que ela se impõe nos dispositivos.
Um conhecimento privatizado
Lembramos acima que a estratégia da economia do conhecimento quando é medida pelo aumento dos investimentos na pesquisa e na educação, está a fracassar. Em realidade, esta estratégia não é somente contábil, ela é estrutural. Consiste em favorecer o setor privado e mercantil da pesquisa, o mais diretamente ligado ao retorno econômico e financeiro da produção do conhecimento. Assistimos assim há pelo menos três décadas ao que o jurista americano James Boyle chamou “o segundo momento de cercamento (enclosures)”.14 O novo capitalismo neoliberal se caracteriza, de fato, por um “frenesi” de apropriação de potenciais fontes de lucro no campo da biologia, da informática e das mídias. O campo do conhecimento tende doravante a ser regido pelos direitos exclusivos de propriedade intelectual, ou seja, por monopólios intelectuais que são a forma tomada pela concorrência imperfeita mas intensa entre grandes grupos. Isto se explica por duas lógicas que se combinam. A primeira, que podemos qualificar de neo-schumpeteriana, está ligada ao papel da inovação tecnológica na concorrência oligopolística. Esta inovação, segundo os neo-Schumpeterianos, está ela própria ligada à figura do empreendedor, que se tornou o verdadeiro herói da guerra econômica. A segunda é a busca automática de rendas monopolísticas obtidas pela obtenção de patentes com a mais ampla cobertura para bloquear a entrada de novos concorrentes e drenar o máximo de rendas.15 Esta corrida ao lucro do monopólio tecnológico está no cerne da concorrência entre oligopólios globalizados e dita em grande parte sua lógica à transformação imposta à universidade e à pesquisa pública em termos de parceria com o setor privado, de valorização econômica dos resultados da pesquisa, de incubação de empresas novas no seio da universidade ou das instituições científicas. Estas duas lógicas levam à imposição de “novos cercamentos” que vão limitar o acesso aos recursos de saberes para aqueles que não foram os seus financiadores.
Com esta financeirização, o conhecimento é cada vez menos sustentado por um objetivo de verdade a respeito de um conjunto de objetos do mundo, ele é essencialmente concebido como um meio de crescimento e de lucro. Pode-se dizer com razão que sempre foi assim na investigação privada, mas esta concepção comercial e capitalista do conhecimento não estruturou o campo acadêmico e não comandou as atividades dos pesquisadores fora do setor privado.16 Mais precisamente, podemos distinguir três tipos de financiamento e de difusão da pesquisa: o modelo da “ciência aberta”, o modelo de gestão estatal direta da pesquisa (campo militar, nuclear, aeronáutico, espacial etc.) e o modelo privado e mercantil que visa restringir o acesso ao conhecimento, concedendo direitos exclusivos ao proprietário da patente que pode então fixar seu preço para o uso do conhecimento.17 No antigo regime histórico do conhecimento, o tipo-ideal da pesquisa estava próximo do primeiro modelo baseado num trabalho científico autônomo cujos resultados, amplamente divulgados, vinham aumentar um patrimônio comum. Os economistas explicaram prontamente que o conhecimento tinha as características de um “bem comum”, isto é, não excludente e não rival. Portanto, os pesquisadores foram incitados a criar novos conhecimentos, essencialmente por remunerações simbólicas e progressão na carreira independentemente dos rendimentos diretos eventuais que pudessem advir de suas aplicações. Quanto à difusão do conhecimento, encontrou seu lugar de predileção na universidade pública.18 Este modelo de “ciência aberta” e do conhecimento como bem público vem sendo progressivamente suplantado por um modelo de pesquisa privada que repousa na posse de um direito privado sobre o conhecimento, cujo investidor pretende tirar o maior lucro possível graças ao monopólio tecnológico que uma patente lhe assegura.
O que caracteriza o período aberto nos anos 1980 é, portanto, a predomínio de um regime proprietário do conhecimento que se estende progressivamente ao setor público, o qual é intimado a se alinhar sobre o modelo da pesquisa privada ou a se hibridar com ela para obter subsídios. Inicialmente, esta mercantilização da pesquisa foi favorecida por todas as medidas que obrigaram os laboratórios públicos a encontrarem recursos junto das empresas e a vender no mercado das patentes o resultado de seus trabalhos. Datamos frequentemente a partir de uma lei americana, intitulada Bayh-Dole Act, em 1980, o início de um processo contínuo “de abertura ao mercado” das estruturas públicas de pesquisa. Esta lei possibilitou que as universidades americanas se apropriassem e negociassem para si próprias os resultados das pesquisas financiadas por fundos públicos, o que as encorajou a tornar-se “centros de lucro” para suas universidades anfitriãs e a tecer laços de natureza comercial com as empresas privadas desejosas de explorar as patentes registradas pelas universidades. Medidas de natureza semelhante foram tomadas nos diferentes países da OCDE no decorrer dos anos 1990. Revelaram uma nova figura do científico, o “pesquisador empreendedor” que comercializa ele próprio sua descoberta em seu proveito pessoal; que pode criar sua própria empresa paralelamente ao seu emprego universitário; que pode até estabelecer contratos “mutuamente vantajosos” entre a universidade que o acolheu e sua empresa.
O ensino não sai ileso desta transformação. As universidades postas em concorrência entre si, e cujas fontes de financiamento público secam, precisam encontrar outros meios para funcionar. Assim, elas são convidadas a “diversificar” suas fontes de recursos. Todos os meios são bons para aumentar suas receitas, ou pelo menos para compensar a diminuição dos créditos públicos: aumento das taxas de matrícula dos estudantes no modelo das escolas e universidades privadas, o que tem como efeito o crescimento da dívida estudantil; cofinanciamento sistematizado dos projetos de pesquisa; bolsas de estudos outorgadas pelo setor privado (com contrato de confidencialidade); patrocínio de cátedras que permite aumentar consideravelmente as rendas dos professores que ingressaram no grande mercado das estrelas acadêmicas, etc.19
Esta transformação é assumida há muito tempo pelas instituições oficiais. Em 2002, a Comissão europeia declarava em um de seus órgãos de divulgação: “o tempo em que, tradicionalmente, os conhecimentos adquiridos no espaço científico acadêmico constituíam um patrimônio aberto, colocado à disposição de todos, pertence ao passado. No campo dos conhecimentos, produção rima hoje com proteção e exploração”.20 A universidade, como qualquer empresa no seio da nova economia fundada no conhecimento, deve aumentar seu capital de conhecimento, protegê-lo e obter dele o máximo retorno. Sobretudo, deve explorar seu capital simbólico e cultural, construir uma reputação, fazer frutificar internacionalmente sua imagem de marca (a exemplo da Sorbonne que é exportada no Emirados Árabes Unidos), extrair a máxima renda possível de seu “estoque” de docentes e de pesquisadores.
A política neoliberal no caso das universidades
Se, segundo a nova doxa, a universidade e a pesquisa devem ser colocadas a serviço da competitividade econômica, convém evidentemente governá-las segundo os princípios empresariais. O que os americanos chamam a universidade empreendedora é um modelo institucional elaborado e implementado desde os anos 1980 por especialistas em gestão da qualidade e em benchmarking,21 e ele tem três características maiores: é regido pelo modelo de uma empresa (em realidade como um grupo composto de filiais administradas por uma holding que as controla); trabalha em simbiose com o mundo dos negócios; difunde em todos os níveis a “cultura empresarial”, ou seja, seu “espírito” é o do empreendedorismo (entrepreneurship) que visa promover a criação de empresas pelos pesquisadores e pelos estudantes. As universidades empreendedoras têm um “dever de desempenho” econômico. Transformação do management, autonomia de gestão, competição e polarização entre universidades são as palavras chaves do padrão global, que ocupam o lugar da velha universidade humboldtiana do início do século XIX, orientada para o conhecimento desinteressado e enciclopédico. Mergulhados na concorrência, dependentes das agências de financiamento público ou privado que os colocam em competição, os estabelecimentos são forçados a adotar um comportamento empreendedor que aumentará seu desempenho econômico. A concorrência é o único horizonte e o único quadro estratégico de tal reforma. Ela é seu objetivo e seu meio. Quanto maior a concorrência entre estabelecimentos e entre pesquisadores, eles melhores serão. A palavra que resume esta lógica concorrencial é “excelência”. Esta cultura da excelência anda de mãos dadas com uma “obsessão de controle” segundo a fórmula de Michael Power, uma cultura que se baseia sobre uma verdadeira relação de desconfiança para com os pesquisadores, docentes ou estudantes, todos supostamente movidos por seus interesses privados22. Modifica bastante o princípio da colegialidade, uma vez que a equipe “governante” se confere um direito de controle sobre as políticas dos laboratórios e a qualidade dos pesquisadores, e isto através de bônus ou da modulação de serviços e de carreiras a sua disposição. Relações hierárquicas parecidas às que encontramos nas empresas privadas substituem as relações mais igualitárias e cooperativas que dominavam as instituições da “ciência aberta”.
A avaliação do conhecimento e a incitação econômica
A política econômica do conhecimento fabrica um mercado do conhecimento de duas maneiras. Em primeiro lugar, fazendo de tal forma que a lógica dos direitos exclusivos se estenda à produção pública, por outro, fazendo de tal forma que a lógica concorrencial regule a repartição dos recursos em função das prioridades politicamente definidas, conduzindo ipso facto a uma desigualdade crescente nos rendimentos dos pesquisadores e nos financiamentos de pesquisa e de ensino. A construção de um modo de regulação competitiva pressupõe a implementação de dispositivos específicos, notadamente a elaboração de ferramentas de avaliação ad hoc, que sejam consistentes com o objetivo, ou seja, à valorização econômica da produção científica. Mais precisamente, isto pressupõe um trabalho de produção estatística orientada para a medição da produtividade e do desempenho, através de índices que não levem em conta os contextos particulares devido ao próprio postulado de comensurabilidade do que se pretende medir e classificar.
Tal produção de números no meio científico não tem nada de “científico”. É feita para “liderar as condutas”, segundo a expressão de Foucault. Os sistemas de medição e de classificação são utilizados como sistemas de governo dos indivíduos e das unidades nas quais eles trabalham.
O julgamento pelos pares no seio de uma comunidade científica é substituído por um sistema de preços dos produtos do conhecimento supostamente mensuráveis com base em indicadores “objetivos” de desempenho e excelência. A instauração de bônus de excelência, a estratégia que visa aumentar consideravelmente as diferenças nas condições materiais entre indivíduos e entre centros de pesquisas segundo seu desempenho, a desigualdade das condições de trabalho e a consequente remuneração, constituem diferentes aplicações dos preceitos de gestão, conforme o objetivo da universidade empreendedora. Isto não deixa de produzir efeitos diversos. As pontuações numéricas podem induzir manipulações, fraudes, ou mais simplesmente reorientações da atividade, reorientada para o resultado mensurado em detrimento de outros aspectos mais substanciais. Este sistema de incentivos, como bem mostrou Maya Beauvalet, pode até ser muito “desincentivador”. A concorrência pode induzir uma queda no investimento dos indivíduos no coletivo, uma diminuição da ajuda mútua, uma destruição da cooperação.23
O jogo dos indicadores incitativos ocorre em todos os níveis da construção dos mercados. Está presente até mesmo no nível das políticas científicas e universitárias nacionais graças à importância dada pelas políticas e as mídias aos “rankings universitários” no nível mundial como o de Xangai ou o do Times Higher Education. As críticas não faltam a respeito de sua ausência de significação e de sua falta de validade para uma comparação de estruturas muito diferentes entre um país e outro.24 Mas, pouco importa que as agregações de dados não tenham muito sentido por causa da heterogeneidade do que se mede e da ponderação arbitrárias dos elementos escolhidos (Prêmio Nobel, publicações, patentes etc.) e que correspondem apenas a certos tipos de estabelecimentos. Os critérios escolhidos correspondem de fato evidentemente ao que os construtores do ranking julgam determinante na qualidade de uma universidade, e ao que, de acordo com eles, deveria orientar as políticas seguidas pelos estabelecimentos e os governos. O objetivo da classificação das universidades e sua utilização pelos governos nacionais não é produzir um conhecimento científico sobre os sistemas universitários, mas sim produzir uma pressão social e política pela midiatização da classificação. Como toda prática de benchmarking e de ranking, trata-se de produzir uma diferença social e, portanto, condutas de comparação e de competição. Nesta competição, as práticas de comunicação e de branding são essenciais, e as classificações acabam por primar sobre os conteúdos científicos e as atividades reais. O essencial é ser visível, conhecido, apreciado. O cinismo comercial dos especialistas em comunicação aos quais recorrem cada vez mais as administrações universitárias tomam a dianteira sobre o ethos científico que até então era a norma da comunidade científica. A corrupção moral corrói então de dentro a nova universidade neoliberal.25
CONCLUSÃO
Tudo isto nos conduz a uma interrogação fundamental a respeito do próprio conhecimento. De que tipo de conhecimento falamos no âmbito da “economia do conhecimento”? Será que não estamos diante de uma distorção, e até mesmo uma perversão do que se entende por “conhecimento” em relação às aquisições da própria ciência? Retomemos um instante o exemplo destes rankings e destas classificações. Eles pretendem oferecer um conhecimento válido e relevante a respeito do sistema de ensino superior e da pesquisa. No entanto, os espíritos mais lúcidos no mundo acadêmico conhecem seus preconceitos e sua falta de valor científico. Como é que pode acontecer que as instituições pretensamente regidas pelas regras da racionalidade científica se deixem impor políticas guiadas por indicadores tão pouco fiáveis em relação às exigências elementares do conhecimento objetivo? Aliás, poderíamos dizer a mesma coisa dos critérios quantitativos de avaliação individual de um pesquisador, quando em vez de ler o que ele publicou para julgar o valor científico de sua produção, preferimos estabelecer a lista de suas publicações nas revistas bem situadas no ranking das revistas. Toda a “governança” da ciência assenta assim num conhecimento da atividade científica que não respeita as propriedades elementares de um conhecimento científico a respeito de um objeto dado. Em realidade, como vimos, não é a validade do conhecimento fornecido por estes indicadores que importa, é o caráter operacional da informação que conta. Não é mais o conteúdo intrínseco do conhecimento que é determinante, é a construção da informação sobre o conhecimento, uma informação que não depende em nada dos critérios geralmente admitidos no âmbito da ciência, mas que permite fazer uma seleção, estabelecer uma classificação, produzir um valor. A concepção hayekiana como sistema de preços instala-se assim no centro da atividade científica. A gestão de desempenho e seus dashboards quantitativos aplicados ao campo do ensino e da pesquisa nunca passam da implementação desta concepção. Apenas importa a informação pertinente a respeito de um “produto cognitivo”, ou seja, seu valor abstrato no sistema de avaliação (número de citações, número de publicações etc.). Assim, o universo acadêmico aos poucos está perdendo o domínio de sua autonomia através da perda de seus próprios critérios de julgamento. Poderíamos corretamente aqui parafrasear Marx quando, no início do Livro I do Capital, ele escreve que “na produção de mercadorias, o valor de uso não é absolutamente algo que amamos por si só. Aqui se produz somente valores de uso porque e na medida em que são o substrato material, o suporte do valor de troca”.26 Na economia do conhecimento, não amamos o conhecimento por si próprio. Só o amamos com a condição de que seja o suporte e o meio de obter lucro.
REFERÊNCIAS
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- POWER, M. La société de l'audit, l'obsession de contrôle. [ s.l.]: La Découverte, 2005.
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1
HAYEK, F. A. The Use of Knowledge in Society. The American Economic Review, [s.l.], v. 35, n. 4, p. 519-530, 1945.
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2
A política de Javier Milei se aproxima deste limite em que se passa de uma política de controle a uma problemática de destruição do ensino e da pesquisa.
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3
Cf Isabelle Bruno, Pierre Clément et Christian Laval, La grande mutation, Néolibéralisme et éducation en Europe, Syllepse, 2010.
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4
Expressão de origem latina que significa “não mais além”, utilizada para demarcar o limite máximo, aquele que não se pode ultrapassar. Este é o sentido aqui empregado para o lugar que ocupa a concorrência econômica na política dos governos.
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5
É assim que alguns autores distinguem “a economia do conhecimento” como teoria especializada e “a economia baseada sobre o conhecimento”.Cf. Dominique Foray, L’économie de la connaissance, Repères, La Découverte, 2000, p. 5.
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7
Cf. P. Aghion et P. Howitt. L’économie de la croissance, Economica, 2010, p.280.
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8
Esta é a ideia de que quanto mais próximos os países estiverem da “fronteira tecnológica”, mais deverão investir no ensino superior para promover a inovação.
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9
O enfoque neo-schumpeteriano analisa as mudanças econômicas, a partir das transformações tecnológicas de produtos ou de processos, consideradas principal meio de competição entre as empresas, enfatizando não somente as grandes inovações, mas também as pequenas e pontuais, realizadas em países da periferia. Nesta medida os empresários inovadores e empreendedores são sujeitos fundamentais para a dinâmica da concorrência econômica.
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10
Polanyi, M. The tacit dimension. Chicago: University of Chicago press, 1962. 108 p.
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11
Goodwill ou “sobrevalor” é a diferença entre o valor dos ativos no balanço da empresa e a avaliação de mercado em um determinado momento. Provavelmente, vão dizer que houve a crise de 2008. Mas o fracasso já era óbvio antes dessa altura. Nenhum dos objetivos tinha sido alcançado nessa altura, e ainda não o foi hoje, nem em termos de despesa nacional em I&D, nem em termos do aumento do número de estudantes por geração.
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12
Philippe Aghion e Peter Howitt, op.cit., p. 259.
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13
Fabian Muniesa et Michel Callon, “La performativité des sciences économiques”, in Philippe Steiner et François Vatin, Traité de sociologie économique, PUF, 2009.
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14
Cf. James Boyle, The Public Domain, Enclosing the Commons of the Mind, Yale University Press, 2008.
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15
Cf. Michele Boldrin et David K.Levine, Against Intellectual Monopoly, Cambridge University Press, 2008.
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16
A economia do conhecimento rompe com o ethos da ciência tal como Robert King Merton o tinha definido: universalismo, “comunismo” (isto é, organização e gestão do conhecimento como bem comum), desinteresse, integridade moral, ceticismo organizado.CF.Robert K.Merton, The Sociology of Science, The University of Chicago Press, 1973, pp. 267-278.
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17
Cf. Maurice Cassier et Dominique Foray, “Économie de la connaissance: le rôle des consortiums de haute technologie dans la production d’un bien public”, Économie et prévision, n°150, La Documentation française, 2001.
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18
Cf. Dominique Foray, “Science, technologie et marché”, in Les sciences sociales dans le monde, Unesco-Éditions de la Maison des sciences de l’homme, 2001, p. 284.
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19
Uma lei francesa de 2006 possibilitou e encorajou a criação das fundações e das cátedras financiadas pelos grandes grupos de bancos, de seguros e de energia fóssil (Axa, Total, BNP Paribas, Crédit agricole).
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20
“Vers un marché des connaissances”, in Magazine de la recherche européenne, n°34 juillet 2002, p. 12.
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21
Uma técnica de análises apuradas sobre as empresas concorrentes para verificar, através de métricas e informações, a que se deve o seu sucesso (ou fracasso). Também chamada de “análise competitiva”, comparando as concorrentes com a sua empresas em diversos aspectos.
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22
Michael Power, La société de l’audit, l’obsession de contrôle, La Découverte, 2005.
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23
Cf. Maya Beauvallet, Les stratégies absurdes, Comment faire pire en croyant faire mieux, Le Seuil, 2009.
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24
Uma das anedotas mais absurdas e mais divertidas é narrada por Yves Gingras. O fato de ter formado ou hospedado um prêmio Nobel faz variar consideravelmente o lugar na classificação de Xangai. É assim que, já que Einstein trabalhou na Universidade de Berlim em 1922, a colocação da universidade berlinense pode pular de 100 lugares. Mas, como a divisão da Alemanha cortou em dois a universidade de Berlim, há duas universidades berlinenses que pretendem ter sido os anfitriões de Einstein há um século. Cf. Yves Gingras, Les dérives de l’évaluation de la recherche, Du bon usage de la bibliométrie, Raison d’agir, 2014, p. 102-103.
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25
Como escreve Yves Gingras: “este cinismo no meio acadêmico é um produto direto da criação do “mercado do ensino superior”. Cf.Yves Gingras, op.cit., p. 101.
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26
Karl Marx, Le Capital, Livre I, Quadrige PUF, p. 209.
Editado por
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Editor Chefe:
Renato Francisquini Teixeira
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Out 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
17 Dez 2024 -
Aceito
08 Mar 2025
