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MULHERES DE EXTREMA-DIREITA: empoderamento feminino e valorização moral da mulher

FAR RIGHT WOMEN: Female Empowerment and Traditional Moral Standards

LES FEMMES D’EXTRÊME DROITE: Autonomisation des Femmes et Normes Morales Traditionnelles

Resumos

O objetivo deste artigo é analisar a noção de empoderamento feminino à luz da literatura contemporânea para compreender a atuação de mulheres de extrema-direita e sua interlocução com mulheres comuns. Com base em pesquisas qualitativas conduzidas com mulheres brasileiras que votaram em Jair Bolsonaro, aventamos a hipótese de que a massificação de uma cultura posfeminista ao longo das décadas de 1990 e 2000, bem como a emergência de fenômenos como o feminismo neoliberal e o feminismo popular (Banet Weiser; Gill; Rottenberg, 2020), propiciaram novas sensibilidades que tornaram possível um novo tipo de atuação feminina de extrema-direita baseada na valorização de padrões morais tradicionais.

Empoderamento feminino; Extrema-direita; Feminismo neoliberal; Pós-feminismo


The aim of this article is to analyze the notion of female empowerment considering contemporary literature to understand the actions of far-right women and their discourses towards ordinary women. Based on qualitative research conducted with Brazilian women who voted for Jair Bolsonaro, we hypothesize that the massification of a postfeminist culture throughout the 1990s and 2000s, as well as the emergence of neoliberal feminism and popular feminism (Banet Weiser; Gill; Rottenberg, 2020), provided new sensibilities that made possible a new type of far-right female discourses based on the valorization of traditional moral standards.

Female empowerment; Far-right; Neoliberal feminism; Post-feminism


L’objectif de cet article est d’analyser la notion d’autonomisation des femmes dans la littérature contemporaine afin de comprendre les actions des femmes d’extrême droite et leurs discours à l’égard des femmes ordinaires. Sur la base d’une recherche qualitative menée auprès de femmes brésiliennes ayant voté pour Jair Bolsonaro, nous émettons l’hypothèse que la massification d’une culture postféministe tout au long des années 1990 et 2000, ainsi que l’émergence du féminisme néolibéral et du féminisme populaire (Banet Weiser ; Gill ; Rottenberg, 2020), ont fourni de nouvelles sensibilités qui ont rendu possible un nouveau type de discours féminins d’extrême droite fondés sur la valorisation de normes morales traditionnelles.

Autonomisation des femmes; Extrême droite; Féminisme néolibéral; Post-féminisme


INTRODUÇÃO

O campo feminista vem acumulando uma série de conquistas nos últimos anos em diversos países. Maior visibilidade e combate de violências sexuais, maior centralidade da ideia de cuidado na academia e em políticas públicas, avanços relacionados à dignidade menstrual, à paridade de gênero em instituições políticas e à legalização do aborto, sobretudo na América Latina, são indicativos nesse sentido.

Ao mesmo tempo, países democráticos em todo o mundo testemunharam a eleição de lideranças de extrema-direita, bem como a difusão de movimentos com agendas conservadoras e reacionárias no debate público marcados, sobretudo, pela centralidade de temas relacionados ao gênero (Correa, 2018; Mude, 2018MUDE, Cass. A Extrema-direta hoje. 1º ed. Rio de Janeiro: Eduerj, 211p. 2018.). No entanto, em paralelo à valorização de estruturas ligadas à dominação masculina, determinadas ativistas, influenciadoras e mulheres comuns passaram a se compreender como feministas conservadoras, ou ainda femonacionalistas, se apropriando de agendas em defesa das mulheres para se tornarem mais atraentes e palatáveis ao eleitorado feminino.

Com o intuito de compreender em maior profundidade a emergência de tais fenômenos, argumentamos neste artigo que a noção de empoderamento feminino, associada à valorização moral das mulheres a partir de uma estrutura binária de gênero, é crucial para compreender a atuação de mulheres de extrema-direita e sua interlocução com mulheres comuns. Com base em pesquisas qualitativas conduzidas com mulheres brasileiras que votaram em Jair Bolsonaro, aventamos a hipótese de que a massificação de uma cultura posfeminista ao longo das décadas de 1990 e 2000, bem como a emergência de fenômenos como o feminismo neoliberal e o feminismo popular (Banet Weiser; Gill; Rottenberg, 2020), propiciaram novas sensibilidades que permitiram que um novo tipo de atuação feminina de extrema-direita se tornasse possível.

Para tanto, dividimos este artigo em quatro seções. Na primeira seção apresentamos como a extrema-direita transnacional tem enquadrado a defesa de direitos das mulheres a partir de uma perspectiva familista e anti gênero. Na segunda seção, a partir da literatura especializada, apontamos como a emergência de uma cultura posfeminista fomentou novas sensibilidades relacionadas ao empoderamento feminino e à celebração da positividade, as quais fundamentaram a emergência de dois fenômenos correlatos, o feminismo neoliberal e o feminismo popular. Na terceira seção, com base em entrevistas realizadas com mulheres brasileiras que votaram em Jair Bolsonaro, analisamos como o empoderamento feminino, sobretudo aquele divulgado por influenciadoras digitais, é apropriado em um contexto de desigualdades sociais acentuadas. Na quarta e última seção, argumentamos que a rejeição do ativismo feminista contemporâneo, lido como imoral e autoritário, favorece a interlocução com discursos de extrema-direita sobre a valorização moral das mulheres, a partir de uma estrutura binária de gênero, por meio da celebração do empoderamento feminino e da positividade.

MULHERES E EXTREMA-DIREITA

O gênero é um componente transversal aos diversos segmentos das direitas contemporâneas (Mude, 2018MUDE, Cass. A Extrema-direta hoje. 1º ed. Rio de Janeiro: Eduerj, 211p. 2018.). Seja no âmbito local ou global, seja em sua dimensão política mais moderada, radical ou ultrarradical, há um entendimento compartilhado de que diferenças físico-biológicas entre homens e mulheres servem como fundamento para naturalização de papéis sociais relacionados ao gênero, como os papéis de cuidado que são atribuídos, nesse perspectiva, essencialmente às mulheres.

A naturalização de diferenças de gênero é fundamental para a cosmovisão de direita, sobretudo da direita radical e ultrarradical, ao postular a defesa da família tradicional como fundamento de uma pátria próspera. Ao investigar a atuação de movimentos de extrema-direita na Europa a partir da análise de publicação de suas cartilhas, panfletos e da mobilização em protestos, o sociólogo alemão Andreas Kemper (2016KEMPER, Andreas. Foundation of the Nation: How Political Parties and Movements are Radicalising Others in Favour of Conservative Family Values. Friedrich-Ebert-Stiftung, 83p. 2016., p. 60) chamou essa perspectiva de “familismo”,1 1 […] This form of familialism opposes individual lifestyles that do not envisage a parental role. This familialism is also nationalistic, bound to a national population policy” (Kemper, 2016, p. 60) isto é, uma posição biopolítica de entender a família tradicional como o princípio fundamental de criação e reprodução da nação – bem como da reprodutibilidade de identidades e valores nacionais. Para além de subjugar identidades individuais, sobretudo em relação aos direitos reprodutivos das mulheres e ao reconhecimento de direitos de grupos LGBTQIAP+, no caso europeu, o familismo é particularmente importante devido ao contexto anti-imigração.

Atualmente, as direitas radicais são majoritariamente masculinas quando consideramos suas principais lideranças, o perfil de seu eleitorado e de seus militantes, sobretudo os grupos ativistas que empregam ações diretas violentas (Coffé, 2018COFFÉ, Hilde. Gender and the Radical Right. In: The Oxford Handbook of the Radical Right. Edited by Jens Rydgren. Oxford University Press. 2018., p. 7; Mudde, 2018, p. 188). Nas eleições de 2022 no Brasil, por exemplo, as mulheres, especialmente as mulheres negras, corresponderam ao grupo social que mais rejeitou a candidatura de Jair Bolsonaro. Também vale lembrar que nas eleições presidenciais de 2020 nos Estados Unidos, as mulheres corresponderam à porção do eleitorado que mais rejeitou a candidatura de Donald Trump. Logo, partidos e lideranças de extrema-direita perceberam que não podem dispensar o eleitorado feminino se quiserem continuar a ganhar eleições.

De acordo com os dados da IDEA – International Institute for Democracy and Electoral Assistance –, que monitora as eleições ao redor do mundo, a participação eleitoral das mulheres aumentou na maioria das democracias nas últimas décadas (IDEA, 2016, p. 31).2 2 Contudo, ao mesmo tempo em que as mulheres são a maioria do eleitorado em diversos países, a proporção de mulheres candidatas e, sobretudo, de mulheres eleitas ainda é inferior aos dos homens – principalmente no Brasil, que ocupa atualmente um dos piores lugares no índice de representação de mulheres na política, segundo os dados do Global Gender Gap Index e do Global Data on National Parliaments. Esse fenômeno é chamado de “gender gap” na política, isto é, a discrepância entre o número de mulheres na população e no eleitorado quando comparado ao número de mulheres eleitas para cargos políticos eletivos. No Brasil, atualmente, as mulheres são mais de 50% do eleitorado. Cada vez mais, partidos e grupos políticos de direita radical têm interesse em capitalizar o eleitorado feminino para se tornarem mais enraizados socialmente e mais competitivos eleitoralmente. Mas quais são suas estratégias para atrair o eleitorado feminino? Como as mulheres são atraídas para pautas conservadoras e reacionárias? Como movimentos e grupos de direita, inclusive de mulheres pertencentes a esses movimentos, conjugam os avanços feministas em relação aos direitos políticos e econômicos das mulheres – tais como o direito ao voto, a disputa de cargos eletivos e a maior presença das mulheres em postos de trabalho de alta renda – com uma cosmovisão familista?

Atualmente, lideranças e grupos de extrema-direita femininos são capazes de articular ideias-forças como o nacionalismo, tradição e religião para engajar mais mulheres que compartilham ou valorizam uma posição ética conservadora. Sua intenção é que tais mulheres passem a participarem de tais movimentos ou, ao menos, se tornem mais receptivas às plataformas de extrema-direita. Exemplos de ativismo nesse sentido são o feminacionalismo, que postula a ideia de mulheres atuando como vanguarda de um ideário nacionalista, o movimento tradwives (mulheres tradicionais), que enfoca a opção de mulheres por papéis domésticos e um estilo de vida tradicional, considerado, pelas ativistas como contracultural e representativo de uma “submissão subversiva” em meio à sociedade contemporânea (Tebaldi, 2023TEBALDI, Catherine. Tradwives and truth warrios: Gender and nationalism in US white nationalist women’s blogs. Gender and Language. v. 17, n.1. 2023., p. 8-9), e, finalmente, a atuação de mulheres que, a partir da ideia de autonomia feminina, defendem identidades religiosas tradicionais.

Tais perspectivas se interconectam nas narrativas da extrema direita e moldam um enquadramento no qual “as mulheres são bem-vindas, mas o gênero não” (Ylä-Anttila e Luhtakallio, 2020YLÄ-ANTTILA, T.; LUHTAKALLIO, E. Contesting Gender Equality Politics. In: Gender and Far Right Politics in Europe. Palgrave Macmillan, 29-47p. 2020., p. 41). Isto é, a participação política de mulheres é importante para que partidos e movimentos de direita ganhem capilaridade social a partir do questionamento de pautas ligadas aos avanços de direitos que ameaçam a família tradicional. Neste sentido, “as mulheres são bem-vindas, mas o gênero não” é um enquadramento que sintetiza a fundamentação biológica binária na cosmovisão das direitas radicais e, ao mesmo tempo, sinaliza para a identificação de ameaças às “mulheres de verdade”. E, nesse sentido, é importante destacar que, como aponta a pesquisadora Sonia Corrêa (2018, p. 445), a cruzada anti gênero é um fenômeno transnacional que possui continuidades desde os anos 1970, quando teve início em reação aos avanços de pautas relativas à sexualidade e ao feminismo. Contudo, Corrêa afirma que tal cruzada adquiriu novos repertórios e uma nova semântica a partir do século XXI.

Considerando tais novidades, o cientista político Cas Mudde (2018) indica que partidos e grupos de extrema-direita se valeriam, atualmente, de duas abordagens principais: o “sexismo hostil” (direito das mulheres são uma ameaça à família) e o “sexismo benevolente” (mulheres precisam de mais direitos para serem protegidas, pois são mais frágeis), possibilitando a criação de canais de interlocução com mulheres comuns que são, ao mesmo tempo, conservadoras e favoráveis aos direitos das mulheres.

Miller-Idris e Hilary Pilkington (2019), ao analisarem os casos da França, Alemanha e Estados Unidos, apontam como grupos de extrema-direita têm mobilizado eleitoras a partir de uma retórica anti-imigração e anti-muçulmana especificamente ligada aos direitos das mulheres “ocidentais”. Segundo as autoras, estes grupos argumentam que o aumento da imigração conduz, no curto prazo, ao aumento de violência e agressão sexual contra mulheres brancas e, no longo prazo, ao fortalecimento de um ethos cultural e estético não-ocidental que representa uma ameaça às conquistas das mulheres ocidentais a partir de slogans como “proteger as mulheres significa fechar as fronteiras”. Tal fenômeno foi denominado pela socióloga e teórica política Sara Farris (2017)FARRIS, Sara. In the name of Women’s Rights. The rise of femonationalism. Duke University Press, 258p. 2017. de “femonacionalismo”, ou seja, a apropriação de pautas e demandas em defesa dos direitos das mulheres por partidos e movimentos nacionalistas em campanhas políticas racistas e xenofóbicas. O femonacionalismo visa especificamente as mulheres com uma mensagem controversa e contestada de que a imigração, oriundo principalmente de países muçulmanos, traz consigo culturas misóginas que ameaçam as suas liberdades. Nesse sentido, não é apenas a regulamentação dos corpos das mulheres que motiva a extrema direita (sexismo hostil), mas também a difusão de uma suposta retórica de proteção às mulheres (sexismo benevolente).

Isso seria possível porque, na percepção destas mulheres, as pautas que foram mobilizadas por movimentos feministas durante o século XX, como o direito das mulheres de trabalharem, a pauta de paridade salarial, violência contra mulher, seguridade social ao trabalho doméstico, já estariam normalizadas. Assim, partidos de extrema direita reformularam sua retórica antifeminista, concentrando-se em questões sociais por meio de agendas políticas voltadas para a oferta de políticas de cuidado conjugadas com uma ideologia que visa reforçar o papel tradicional das mulheres. Um exemplo disso é a atuação do AfD (Alternative für Deutschland), principal partido de extrema-direita alemã, que incluiu em seu programa de governo a defesa de políticas sociais focalizadas nas mulheres como o pagamento de trabalho doméstico e a inclusão de políticas de auxílio para mães com mais de um filho. Esse tipo de política pública ofertada por direitas radicais na Europa teria, principalmente, dois objetivos. O primeiro é o de aumentar as taxas de natalidade das mulheres nativas, a fim de evitar o que se chama de “great replacement”, ou seja, a substituição da população nativa de determinada região por populações imigrantes. E o segundo é atrair o eleitorado feminino para plataformas eleitorais de direita radical, focando também nas mulheres nativas trabalhadoras que ocupam postos de trabalho menos qualificados e que, nos últimos anos, vem perdendo espaço no mercado de trabalho para imigrantes.

Ao mesmo tempo, em países de maioria islâmica, como a Indonésia, jovens mulheres religiosas que atuam como influenciadoras digitais buscam cooptar outras mulheres para que optem por um modo de vida tradicional. Para tanto, encorajam suas seguidoras nas redes sociais a fazer uma autotransformação e alcançar uma meta ética: serem boas mulheres muçulmanas. A ideia, porém, é que as seguidoras tenham um senso de “escolha” a fim de alcançar o idealizado pelo eu. Dessa forma, uma jovem muçulmana que segue uma influenciadora religiosa pode optar por aprender a se tornar digna do amor de Deus. No entanto, quando suas seguidoras optam por cultivar suas subjetividades piedosas, elas compreendem que são, então, obrigadas a seguirem de perto os mandamentos religiosos, visando o objetivo original estabelecido pela influenciadora (Beta, 2019BETA, A. R. Commerce, piety and politics: Indonesian young Muslim women’s groups as religious influencers. New Media & Society, 21(10), 2140-2159. 2019. https://doi.org/10.1177/1461444819838774
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).

As ideias de autonomia, escolha e empoderamento também perpassam o ativismo de mulheres evangélicas e conservadoras na política brasileira. Em sua ótica, há uma oposição entre mulheres “sem valor” e mulheres “de valor”, ou “mulheres de verdade”. E, nesse sentido, seria possível escolher ser uma mulher valorosa, ocupar posições de poder e lutar por mais direitos para outras mulheres.

Tendo isso em vista, na próxima seção apontamos como a emergência de uma cultura posfeminista, bem como de fenômenos denominados como feminismo neoliberal e feminismo popular, favoreceu a popularização de sensibilidades conectadas ao empoderamento, à autonomia e à valorização de si, as quais, posteriormente, passaram a ser mobilizadas por mulheres ativistas de direita e extrema-direita para cooptar mulheres comuns.

POSITIVIDADE, AUTONOMIA E EMPODERAMENTO FEMININO

A ideia de empoderamento feminino se desenvolveu em meio às lutas feministas que lhe atribuíam um conteúdo controverso ou desafiador em relação à ordem social e econômica. De acordo com a acadêmica feminista Srilatha Batliwala (2010), movimentos radicais de mulheres nos anos 1970 adotaram o conceito em seus discursos e práticas. No entanto, ao final dos anos 1990, “empoderamento” se tornou uma “palavra da moda”. Tal transformação foi marcada por sua reapropriação como mote de atores corporativos e filantropos capitalistas para exaltar as contribuições de mulheres e meninas para o desenvolvimento. Por conta disso, o conceito perdeu seu conteúdo contestatório original, tornando-se o que a antropóloga Andrea Cornwall (2018)CORNWALL, Andrea. Além do Empoderamento Light: empoderamento feminino, desenvolvimento neoliberal e justiça global. Cadernos pagu, 2018. classifica como “empoderamento light”.

Durante as décadas de 1990 e 2000, a noção de empoderamento, agora em sua versão “light”, tornou-se cada vez mais desvinculada das lutas do campo feminista contra a ordem vigente. Ao mesmo tempo, o próprio feminismo perdeu seu apelo, tornando-se algo tido como excessivo e supérfluo à medida que um forte senso de autonomia feminina, agência e escolha passou a permear os discursos da mídia tradicional, fomentando o surgimento do que a acadêmica feminista Rosalind Gill (2020) denomina como “cultura posfeminista”. Em sua visão, tal cultura estaria alicerçada em uma sensibilidade posfeminista que tornou possível enfatizar a ideia de empoderamento a partir da ênfase nas ideias de escolha e autonomia, enfocando, sobretudo, o corpo da mulher como sua fonte de valor e a exigência de “atualizar” a vida psíquica para se tornar positiva, confiante e brilhante.

A campanha da marca Dove intitulada “Beleza Real”, lançada em 2004, figura como um dos melhores exemplos do emprego de sensibilidade posfeminista pelo marketing voltado para a venda de produtos femininos. Para Kasey Windels et al. (2019), tal campanha representou uma mudança de paradigma ao fomentar um debate público sobre padrões de beleza. Suas peças publicitárias, baseadas em pesquisas que apontavam que poucas mulheres se consideravam bonitas, foram capazes de elevar as vendas da marca de 2,5 bilhões dólares para 4 bilhões de dólares. De acordo com as autoras, o sucesso do que ficou conhecido como femvertising (abreviação de publicidade de empoderamento feminino) se comprovou em anos posteriores.

Em 2013, a campanha “Retratos da Real Beleza”, da mesma marca, em que mulheres reais descreviam sua aparência para um retratista, se tornou o anúncio veiculado no YouTube mais visto de todos os tempos até então. Nos próximos anos, foram lançados novos prêmios para promover e incentivar o femvertising. Em 2015, o Festival de Cannes introduziu o Leão de Vidro para a promoção social e o incentivo à publicidade feminina, e, no mesmo ano, a SHE Media lançou o Prêmio #Femvertising Awards para homenagear marcas que desafiam as normas de gênero e desenvolvem mensagens que apelam justamente para a sensibilidade posfeminista descrita por Gill (2007GILL, Rosalind. Postfeminist Media Culture: Elements of a Sensibility. European Journal of Cultural Studies, 10(2): 147-166. 2007., 2020). Embora tais mensagens possam parecer positivas, para a autora, exortar as mulheres a amarem seus corpos seria simplesmente uma forma diferente de regulação das mulheres, exigindo que elas controlem suas crenças através de intensa regulação psíquica.

A despeito de ter recebido duras críticas por utilizar uma linguagem de libertação para alavancar a venda de produtos, a positividade celebrada pelo femvertising preparou o terreno para a emergência de outros dois fenômenos correlatos. Entre 2012 e 2013, dois textos de ampla circulação nos Estados Unidos capturaram a atenção da acadêmica feminista Catherine Rottenberg. O primeiro foi o texto intitulado “Why Women Still Can’t Have It All” (Por que as mulheres ainda não podem ter tudo), publicado em 2012 por Anne-Marie Slaughter, então ex-reitora de Princeton e conselheira de Hillary Clinton, na época Secretária de Estado, que se tornou o ensaio mais lido na história da revista “The Atlantic”. Em 2013, o manifesto “Lean In” (Incline-se) de Sheryl Sandberg, chefe de operações da Meta, tornou-se best seller. De repente, ou assim pareceu à acadêmica feminista Catherine Rottenberg (2020), mulheres poderosas estavam se identificando publicamente como feministas, algo incomum nas décadas do pós-feminismo, e que sinalizaria a emergência de um novo fenômeno, o “feminismo neoliberal”, em consonância com o que a teórica política Nancy Fraser (2019)FRASER, N. The old is dying and the new cannot be born: From progressive neoliberalism to Trump and beyond. Verso Books. 2019. denomina como neoliberalismo progressista.

Segundo Rottenberg, o feminismo neoliberal, ao contrário da sensibilidade posfeminista, afirma claramente a existência da desigualdade de gênero, mas, simultaneamente, nega as estruturas sócio-econômicas e culturais que moldam as vidas das mulheres. Nesse sentido, as mulheres seriam, então, plenamente responsáveis por seu próprio bem-estar e autocuidado, e seus dilemas poderiam ser equacionados a partir da “escolha” por um equilíbrio bem-sucedido entre trabalho e família. Nessa ótica, as mulheres passam a figurar tão somente como empresas hiperindividualizadas que passam a fazer cálculos de custo-benefício, ensejando a perda de qualquer força oposicionista presente em contradiscursos feministas oriundos de lutas políticas coletivas (Rago, 1998RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu (11), p.89-98. 1998.; Fanti e Medeiros, 2019).

A celebração da positividade também está presente no que Sarah Banet-Weiser (2020) denominou como “feminismo popular”. Para a autora, o feminismo popular emerge ao longo de um contínuo em que expressões espetaculares, favoráveis à mídia, tais como feminismo de celebridades e feminismo corporativo alcançam maior visibilidade, e expressões que criticam o patriarcado e sistemas de racismo e violência são obscurecidos (ver McRobbie, 2009McROBBIE, Angela. The Aftermath of Feminism: Gender, Culture and Social Change. London: Sage. 2009.; Gill, 2011GILL, Rosalind. ‘Sexism Reloaded, Or, It’s Time to Get Angry Again!’. Feminist Media Studies, 11(1): 61-71. 2011.; Rottenberg, 2014b; Gill, 2016GILL, Rosalind. Post-postfeminism? New Feminist Visibilities in Postfeminist Times. Feminist Media Studies, 16(4): 610-630. 2016.). Em seu entendimento, o feminismo popular é um conjunto de práticas acessíveis ao grande público que envolvem um “ativismo hashtag” e aquisição de mercadorias, constituindo um feminismo ‘feliz’ que muitas vezes acaba eclipsando críticas feministas estruturais. Para a autora, a visibilidade do feminismo popular na televisão, no cinema, nas mídias sociais e nos corpos é fundamental, no entanto, muitas vezes também é limitante: “como se ver ou comprar feminismo fosse a mesma coisa que mudar as estruturas patriarcais”, afirma. (Banet-Weiser, 2018BANET-WEISER, Sarah. Empowered: Popular Feminism and Popular Misogyny. Durham, NC: Duke University Press. 2018., p.4).

O que há em comum em todos estes fenômenos, que também podem ser lidos como três momentos temporais interconectados por sensibilidades similares, é o foco nas ideias de positividade e autonomia individual. Para além disso, o feminismo neoliberal e o feminismo popular coincidem no diagnóstico de que há uma disparidade de gênero nas esferas econômicas dominantes que pode ser equacionada trazendo mais mulheres à mesa simplesmente porque são mulheres.

Segundo Banet-Weiser, a inclusão das mulheres é autorizada por um contexto político e econômico específico. O mercado do feminismo não se trata simplesmente da mercantilização de slogans, mensagens políticas e produtos feministas; trata-se também de validar um sujeito econômico e um contexto econômico no qual a inclusão das mulheres sinaliza feminismo. Embora esta inclusão não esteja necessariamente comprometida em interrogar questões estruturais, de modo que o feminismo popular raramente critica o neoliberalismo e seus valores. Pelo contrário, sucesso econômico e auto-empreendedorismo, são parte integrante do feminismo popular. Assim, seria preciso compreender tal fenômeno como co-constitutivo de práticas capitalistas.

Na seção seguinte, apontaremos como tais sensibilidades e fenômenos descritos acima atravessam as falas de mulheres brasileiras comuns divididas em dois grupos: 1. eleitoras de Jair Bolsonaro em 2018 que se decepcionaram com sua atuação e 2. eleitoras convictas de Bolsonaro que se autodenominam como conservadoras.

EMPODERAMENTO FEMININO, INFLUENCIADORAS E DESIGUALDADES

Em 2020 e 2022, com apoio do Instituto Update, conduzimos dois estudos qualitativos com mulheres brasileiras que votaram em Jair Bolsonaro.3 3 O estudo também compreendeu um grupo de jovens que não sabiam em quem votar nas eleições presidenciais no ano de 2022, cujos dados não serão abordados. Todos os dados oriundos de entrevistas qualitativas analisados neste artigo foram publicados no livro “Feminismo em Disputa: Um estudo sobre o imaginário político das mulheres brasileiras” (2022), organizado por Beatriz Della Costa, Camila Rocha e Esther Solano. Nestes estudos as mulheres foram reunidas em pequenos grupos e, por duas horas, conversaram conosco sobre questões relacionadas ao seu cotidiano.

No primeiro estudo, realizado de forma exploratória no segundo semestre de 2020, conversamos com seis eleitoras de Bolsonaro do Sudeste e do Nordeste que se autodenominam conservadoras. Um ano e meio depois, no início de 2022, decidimos conversar com trinta e nove mulheres de diferentes faixas de renda, cor, religião e regiões do país que votaram em Bolsonaro em 2018, se decepcionaram com sua atuação mas ainda não haviam decidido em quem votar para presidente.

A despeito de possuírem várias diferenças entre si, praticamente todas as mulheres com quem conversamos almejavam ser mulheres empoderadas. Todas afirmavam que o machismo as prejudicava em seu cotidiano e desejavam ser mulheres autônomas, independentes dos homens tanto materialmente como emocionalmente, e livres para alcançar seus objetivos de vida. A grande diferença que separa as mulheres que se autodenominam conservadoras das demais é a importância que as primeiras conferem ao papel desempenhado pela mulher dentro da família e à harmonia do lar, ainda que todas destaquem a importância de políticas públicas que permitam que as mulheres possam conciliar o trabalho fora de casa com o cuidado com a família.

Muitas mulheres com quem conversamos não se afirmam feministas, ecoando um espírito posfeminista, mas independente de o fazerem ou não, todas são perpassadas, em maior ou menor grau, pelas sensibilidades conectadas à cultura posfeminista, ao feminismo neoliberal e ao feminismo popular. As ideias de independência e autonomia das mulheres são extremamente positivas para as entrevistadas. Todas defendem que as mulheres tenham sua própria renda, sua própria carreira, e que sejam independentes de seus parceiros e familiares, o que consideram ser sinônimo de empoderamento feminino:

Ser empoderada é não precisar de homem para porra nenhuma. Se quero viajar, vou viajar. Se quero ser sozinha, me sustento. É não depender de ninguém, é falar “eu posso”. (Mulher, 54 anos, Rio de Janeiro).4 4 As falas sofreram pequenas alterações textuais para conferir maior fluidez sem, contudo, prejudicar de qualquer forma seu conteúdo original.

Tu não precisa mais de um homem para fazer as coisas. Existe essa questão da dependência da mulher. Se o homem te dá suporte financeiro ele tem esse poder de controlar, e tem mulheres que se submetem. Outras mulheres percebem que não precisam se submeter. São as empoderadas. Isso assusta as pessoas. (Mulher, 26 anos, Rondônia).

Empoderamento é poder escolher o que a gente quer para a nossa vida e nossos corpos. O julgamento da sociedade é tão grande que coloca a gente pra baixo. Tem muitas empresas que usam a questão do empoderamento só na propaganda, mas não tem uma mulher trabalhando lá no corpo da empresa, na publicidade, é bem complicado. A mídia é um processo popular, se a gente tem o tempo todo a mídia falando que a mulher não é capaz daquilo, aquilo impacta o futuro das crianças. A gente educa nossas crianças através da mídia. Tudo está na propaganda, no filme, no desenho. (Mulher, 23 anos, Rio Grande do Sul).

Empoderada é a mulher que trabalha, corre atrás dos objetivos, não depende de homem para nada. (Mulher, 38 anos, Bahia).

Empoderamento é a mulher lutar por seus objetivos, querer conquistar seu espaço no mercado de trabalho e na vida pessoal. É ser livre, sem aceitar julgamentos. (Mulher, 31 anos, São Paulo).

Entre as entrevistadas que se autodenominam conservadoras, o diferencial é que o modelo de mulher empoderada combina, necessariamente, representatividade no espaço público e protagonismo no âmbito familiar e doméstico:

Para mim, ser mulher é ser forte, guerreira, vitoriosa. É estar na lida todos os dias, sair de casa cedo para trabalhar, chegar tarde e cuidar dos filhos, para quem tem filho pequeno. É dar conselho, lidar com marido que muitas vezes é ciumento, machista. A mulher, hoje em dia, tem cargo público, está no congresso, está na política. É ter que estar sempre disposta, ter energia. Porque o homem não tem energia. Eles acham que trabalham fora e não tem que fazer mais nada da vida. Fica tudo em cima da mulher, e a gente ainda é muito discriminada por isso. (Mulher, 49 anos, São Paulo).

Uma mulher empoderada que não é família não me espelha, mas se não for auto suficiente, também não me espelha (Mulher, 32 anos, Ceará).

De qualquer forma, todas as entrevistadas desejam ser mulheres empoderadas. Ou seja, mulheres que “não dependem dos homens” e são livres para correr atrás de seus objetivos, seja estudar e fazer carreira, ser famosa, ser autossuficiente financeiramente, ter filhos, cuidar da família, ou tudo isso ao mesmo tempo. Tais ideias refletem justamente a necessidade apontada por Rottenberg de realizar cálculos de custo-benefício, como empresas hiperindividualizadas, para “estar sempre disposta e ter energia” e “ser vitoriosa” por meio da possibilidade de escolher “o que a gente quer para a nossa vida e nossos corpos”.

A noção de empoderamento feminino, hoje, costuma alcançar e impactar as entrevistadas por meio das redes sociais. Popularizadas no país a partir dos anos 2010, as redes sociais possibilitaram a emergência de influenciadoras digitais, e as influenciadoras que tendem a ser mais valorizadas pelas entrevistadas são justamente aquelas tidas como mulheres empoderadas de sucesso. Ou seja, que conseguiram atingir o equilíbrio entre família e trabalho preconizado pelo feminismo neoliberal e celebram seu sucesso individual por meio de um ethos de positividade transmitido em suas postagens nas redes sociais, muitas delas financiadas pelo femvertising digital. São ressaltadas, sobretudo, as capacidades empreendedoras e de “superação” das influenciadoras, fazendo com que as seguidoras se inspirem e possam então, como aponta Rosalind Gill, “atualizar” suas vidas psíquicas para se tornarem positivas, confiantes e brilhantes.

Porém, também é importante enfatizar o atual cenário de disputa do feminismo e dos papéis de gênero que é possível vislumbrar nas falas das entrevistadas acerca das influenciadoras. Feminismo interseccional, feminismo neoliberal e feminismo popular aparecem muitas vezes misturados e entrelaçados, por vezes até mesmo simultaneamente à cultura posfeminista e perspectivas religiosas mais ou menos conservadoras. Há entrevistadas que, com entusiasmo, afirmam seguir, ao mesmo tempo, influenciadoras de maquiagem e mulheres que falam sobre feminismo, ou são percebidas como feministas, como a cantora Anitta. Outras entrevistadas seguem, simultaneamente, influenciadoras nordestinas, negras, e LGBTQIAP+ e conteúdos golpes e relacionados à maternidade. E, finalmente, há aquelas que priorizam influenciadoras empreendedoras, religiosas e familistas, como, por exemplo, Karina Bacchi, responsável por fazer propaganda dos conteúdos da Brasil Paralelo, produtora brasileira de conteúdos audiovisuais conservadores e de extrema-direita:

As pessoas que eu sigo falam sobre maquiagem, roupa, mas também falam sobre coisas importantes. Eu sigo Shantal Verdelho, ela é uma influencer, ela mostra o que as blogueiras fazem, divulga marcas, mas também fala sobre coisas importantes, sobre feminismo, sobre o papel da mulher. Camila Cabello é uma cantora e fala bastante sobre as coisas que acontecem no mundo, quando estavam acontecendo as enchentes ela postava, pedia doações. Acho muito interessante ler livros sobre feminismo. Eu até já li sobre as sufragistas, mas acho muito interessante ouvir pessoas falando disso e elas também transmitem as informações de outras formas. Essas blogueiras conseguem passar informação às pessoas de forma simples, descontraída. Isso é bom porque elas têm um público feminino muito grande, e esse feminismo ainda pode não ser muito aceito na nossa sociedade, que é extremamente machista. Mas elas estão entre mulheres, e as mulheres entendem. (Mulher, 23 anos, Distrito Federal).

Anitta, Marília Mendonça, GKAY (Gessica Kayane), Thaís Araújo. Essas são as que eu sigo. Anitta é uma mulher pública, ela vai ao público e fala porque as mulheres não podem fazer o que os homens fazem, e porque quando uma mulher tenta fazer algo normal, que um homem hétero faz, ela é apedrejada, ela é feminista. A Marília foi uma mulher que abriu portas num meio masculino, também apoiava o feminismo, falava que não deveria ser feio uma mulher fazer o que um homem faz, e que não deveria ser julgada. GKAY é uma influencer na mesma linha que Anitta, questiona por que fazer algumas coisas é tão ruim, sendo que homens fazem pior. A Thais Araújo também apoia o movimento (feminista). Viralizou uma entrevista em que ela fala que está criando o filho dela para respeitar as mulheres, criando o filho dela para ser livre. (Com elas) eu aprendo que eu não tenho que ser julgada por fazer coisas que um homem hétero faz, e, se eu for, eu não tenho que me importar. Eu aprendo que tenho o mesmo lugar no mundo que um homem tem, que eu posso ser tão grande quanto, que eu tenho os mesmos direitos. (Mulher, 18 anos, Rio Grande do Sul).

Eu sigo a Belle Daltro, da Bahia, e a Tamile Garcia, do Sergipe. Eu gosto da Tamile porque ela era uma mulher casada e dependia só do marido, mas com as redes conseguiu fazer o dinheiro dela, se separou, e conseguiu a independência dela. E da Belle eu gosto porque é uma mulher solteira, e ela não liga para o que as pessoas pensam “ah, tu tem que casar”. Elas são mulheres negras, então elas me incentivam. (Mulher, 23 anos, Amazonas).

A Maju debate todos os assuntos, ela tem conhecimento, é muito bom como ela explica, conversa com a gente. Também sigo a @cenourinha, é uma menina que se achava feia porque tinha o rosto todo manchado e era muito magra. Mas ela começou a se maquiar, brincar com isso, e hoje ela usa a maquiagem dela para levantar as meninas. Sobre maternidade, sigo um casal LGBT+, a Nanda Costa (e a Lan Lahn), que tiveram duas filhas. Elas são ótimas, conversam com todo o mundo. E é muito bonito ver a forma como elas são mães, se dedicam a isso, com muita intensidade, amor e dedicação. Eu também sigo a Priscilla Alcântara. Ela é uma cantora gospel, os hinos dela são uma coisa que acalma, é uma coisa muito boa. Eu também gosto da personalidade dela, eleva o espírito a Deus e leva a paz às pessoas. (Mulher, 28 anos, Amapá).

Debora Pires e Carol Borges, da Comunidade Shalom, Larissa Garbiati, da Comunidade Colo de Deus, Victoria Maciel, Clara Tafner, Renata Lima Viana, Carolina Melo Porto, Samia Marsili, Rebecca Athayde. Todas são católicas. Eu gosto da forma que elas abordam temas voltados à sexualidade que muitas vezes são um tabu muito grande na Igreja e não deveriam ser. Mostram a força de ser mulher, me encorajam. São mulheres fortes e me aproximam mais da minha fé. (Mulher, 18 anos, Ceará).

A Adriana Arydes é uma cantora católica, eu gosto dos posicionamentos dela, ela é de família tradicional. A Simone Fiuza, mulher que trabalha, que é empresária, mas que também gosta de estar com a família, eu me vejo muito nela. Ela também não aceita injustiça, e o esposo dela que é muito companheiro, me representa demais (Mulher, 36 anos, Ceará).

Eu gosto muito da Karina Bacchi, como pessoa, como mãe, ela conta que ganhou autoconhecimento, sabe do que realmente gosta, pode se posicionar. Também gosto da Virgínia Fonseca, é uma youtubber casada com um cantor famoso, veio de família pobre e foi crescendo. Ela mostra que é possível chegar aonde ela chegou, não foi fácil, mas ela demonstra que foi por mérito próprio. (Mulher, 27 anos, Distrito Federal).

Tal disputa de papéis também aparece na própria recepção crítica das entrevistadas em relação às influenciadoras percebidas como empoderadas. Por um lado, quando se fala em empoderamento feminino, o dinheiro é extremamente valorizado como forma de emancipação dos homens. A celebração de trajetórias de ascensão social, lidas na chave de “histórias de superação”, é frequente, sobretudo quando aquelas que ascenderam demonstram continuar “humildes” e procuram ajudar outras mulheres.

Por outro lado, também há o reconhecimento por parte de algumas entrevistadas, inclusive de autodenominadas conservadoras, de que a maioria das mulheres brasileiras não possui uma base material e condições sociais que lhes possibilitem ter uma liberdade similar àquela experimentada por mulheres famosas. Nesse sentido, há um potencial crítico considerando a recepção do feminismo neoliberal e popular por mulheres comuns, sobretudo considerando que o contexto brasileiro possui desigualdades sociais muito mais acentuadas em comparação com aquelas presentes no Norte Global, onde tais conceitos foram formulados:

A Anitta se acha empoderada, e eu, por ser feminista, acho feio. Muita gente fala que Anitta é empoderada porque se expõe e não tem medo. Ela não é empoderada, é só porque ela tem dinheiro. (Mulher, 32 anos, Ceará).

Mulher empoderada envolve dinheiro. Ela não pede para alguém fazer, ela paga para fazer por ela. Uma mulher empoderada não depende de ninguém. Qual foi o processo? Ela teve filho? Casamento? Ela é solteira? Qual o nível dela? Para uma mulher empoderada ter um filho estando solteira é mais difícil. Para crescer muito, uma mulher vai precisar de alguém para ajudá-la, para quando ela estiver bem, ela não depender de ninguém. Hoje a gente fala de mulheres artistas, mas para mim isso não é uma mulher empoderada. Mulher empoderada é quem batalhou, conquistou. Quais são os obstáculos? Tudo envolve dinheiro. (Mulher, 31 anos, São Paulo).

O contato excessivo com a exposição de vidas aparentemente perfeitas eventualmente gera sentimentos de ansiedade e baixa autoestima entre mulheres comuns. Para procurar se distanciar de modelos inalcançáveis, sustentados pela riqueza e aparência de perfeição, as entrevistadas também citam como modelos mulheres empoderadas mais próximas de seu cotidiano, as quais podem ser sintetizadas na figura da “heroína comum”. Exemplos disso são: a mãe solteira que criou bem os filhos, a mulher de origem pobre que batalhou para se formar e fazer carreira, a avó matriarca que tem opiniões fortes, a mulher que venceu barreiras e preconceitos. Tais modelos, por serem mais próximos das realidades das entrevistadas, facilitam sua própria percepção como mulher empoderada:

Eu posso dizer que sou empoderada. Eu atingi o que quero, sou mãe, sou casada, tenho meu dinheiro, não fico pedindo nada para o meu marido. Minha mãe é empoderada porque cuidou do meu irmão com deficiência. A gente utiliza essas famosas como exemplo, mas, olhando para dentro, eu acho que nós somos empoderadas. (Mulher, 30 anos, São Paulo).

A minha mãe é uma mulher muito empoderada, ela cuidou de 4 filhos sozinha. Mas a gente tinha que ficar trancadas dentro de casa, não tinha micro-ondas, tinha que comer comida fria, ela trazia comida das casas de família que ela trabalhava. O primeiro marido bebia muito, ele jogava a comida no chão, batia na minha mãe, até o dia que ela o pegou pelo pescoço e jogou para fora. E o segundo marido começou a fazer a mesma coisa, e quando eu tinha 3 anos, ela o colocou para correr. Ela trabalhava a semana toda, não deixava faltar as coisas, e eu não ficava sozinha, largada. Hoje ela arrumou um companheiro que a sustenta e tem tudo o que sempre quis da vida. Ela tem 71 anos, não aparenta. Então ela é empoderada, filhos encaminhados, todos trabalham. Eu sou a primeira formada da família. É um exemplo de mulher. (Mulher, 31 anos, São Paulo).

Desse modo, além de seguirem influenciadoras famosas nas redes, as entrevistadas também costumam seguir influenciadoras cujas vidas se assemelham mais àquelas da maioria das brasileiras. Tais influenciadoras costumam ser mulheres da mesma cidade ou região das entrevistadas e que carregam marcadores sociais que as marginalizam de algum modo: pobres, gordas, negras, periféricas, com deficiência, idosas, dentre outros. As ideias de autonomia, liberdade, humildade e “superação frente aos obstáculos” demonstrados pelas heroínas comuns são muito valorizados pelas entrevistadas, pois tais atributos tendem a gerar maior bem-estar em comparação com influenciadoras que procuram aparentar e vender perfeição e alto status social:

Em Salvador gosto de seguir Tia Vera. Ela começou a vender empadinhas, e, independente dos filhos terem muitos seguidores, segue com humildade. Sigo também a Rebeca, que teve filho e o corpo mudou muito. Ela mostra o dia a dia, o corpo, mostrando que está gorda e está feliz. São ciclos da vida, mostra mais a realidade. (Mulher, 30 anos, Bahia)

FEMINISMO EM DISPUTA: MULHERES VALOROSAS X MULHERES IMORAIS

É interessante notar, contudo, que, em paralelo às recepções potencialmente críticas em relação às estruturas materiais e sociais que condicionam as “oportunidades de empoderamento” das mulheres, também existem potenciais de interlocução com pautas de direita e extrema-direita, como apontaremos a seguir.

Quando confrontadas com a pergunta: “você se considera feminista?”, independente da resposta dada, a maioria das entrevistadas procurava ressaltar seu distanciamento de comportamentos tidos como autoritários e intransigentes e sua proximidade com a ideia de luta pela igualdade:

Eu acho que, de certa forma, eu sou feminista sim. Quando há diferença por ser mulher, eu acho que devo lutar. Mas eu acredito que tem também o lado negativo. A mulher não deve ser submissa ao homem, mas temos que entender que há coisas que competem ao homem, como trabalho braçal, e as feministas às vezes são um pouco radicais. Existe um certo exagero, uma certa imposição. Deveriam ser mais pacíficas, conversando, mostrando o porquê das questões, com trabalho, com profissionalismo. (Mulher, 42 anos, Ceará).

Não tem problema nenhum uma mulher falar que é feminista, lutar pelos direitos das mulheres. Ser feminista não é a questão em si. Acho que talvez ter uma opinião radical, de que nenhum homem presta, não é bem assim. A gente vê mulheres que têm atitudes que são reprováveis. Não são corretas, ou não teve compaixão do outro, não olhou para outra pessoa. A gente não pode seguir uma opinião de que os homens têm que ser abominados da terra. (Mulher, 30 anos, Bahia).

Quem se diz feminista é muito radical: ‘se não for assim não tá bom’. Se Deus criou o homem e a mulher é porque precisam um do outro. Ninguém vive sozinho. Eu respeito, mas não concordo com todas as ideias. (Mulher, 36 anos, Bahia).

Ainda que nem todas as entrevistadas se reivindiquem feministas, sobretudo por conta da imagem das ativistas, o feminismo, compreendido como a luta por direitos e igualdade, era bem recebido e mesmo reivindicado, inclusive por mulheres que se afirmam conservadoras. Todas as entrevistadas que se afirmaram conservadoras e feministas, entendem que se reconhecer feminista significa apoiar a luta pela valorização das mulheres na sociedade, ainda que discordem da postura adotada por feministas tidas como radicais:

Eu acho que sim, sou feminista. Porque eu estou aqui para lutar com as mulheres. Temos que defender umas às outras. Se eu vir uma mulher apanhando na casa dela, apanhando do marido, eu vou lá ajudar. Vou levá-la à delegacia, fazer o que for para ajudar. Acho que eu sou sim, feminista, as mulheres têm que correr atrás de tudo o que elas querem, serviço, emprego. Tem que poder fazer tudo o que quiser, sem o olho machista do homem em cima. Porque eles são machistas. Se puder deixar trancada dentro de casa eles deixam, para ter a mulher só para ele. Então eu acho que sim. (Mulher, 42 anos, Ceará).

Não acho certo ser aquela feminista totalmente extremista. Por exemplo, a Marielle (Franco), mas gostava dela por ser mulher, negra, estar ali na frente de muitos homens, falando. Gosto, mas discordava dela (Mulher, 32 anos, Ceará).

Nesse sentido, a exceção foi apenas uma entrevistada que disse ser “feminina” e não feminista. Em seu entendimento, as feministas hoje seriam ativistas que expõem seus corpos para chocar a sociedade e que não aceitam o diálogo, “forçam a barra”. Em sua visão, as feministas ativistas não representam as mulheres que são mães e esposas, ideias que também são compartilhadas pelas demais entrevistadas que se afirmaram conservadoras:

Acho que feminismo e conservadorismo são coisas completamente antagônicas. Eu sou feminina. A feminista não me representa em nada, no diálogo, na postura, no posicionamento político. A feminista nem aceita diálogo. (Mulher, 53 anos, Rio de Janeiro).

As mulheres que vão à rua fazendo militância, vandalismo, não me representam. Eu sou feminista, incentivo outras. A gente pode ser feminista e ficar em casa, cuidando dos filhos, ser dona do lar, a gente pode lutar também e correr atrás, incentivar outras. Não sou aquela feminista de sair às ruas, mas a gente pode reivindicar nossos direitos de outras formas. Eu sou feminista, mas não sou ativista, e não é generalizando, porque tem muitas feministas que conheço que lutam de outras formas. Cada uma pode lutar pelos nossos direitos de diferentes formas. É isso que as mulheres estão precisando, de exemplos (Entrevistada 5).

Feministas para mim são as mulheres que defendem seus próprios valores, civis, políticos, sociais. Mas eu sou contra feminista que vai à rua mostrando o peito, tirando a roupa, porque mulher tem que se valorizar. Não pode sair mostrando tudo por aí, tem que ser bem reservada. As feministas querem defender um propósito político, civil, e querem defender a própria mulher também. Que a mulher tem o seu valor, que a mulher não tem que aceitar tudo o que falam, que nós estamos aqui para vencer. Então acho que elas estão aqui para mostrar isso, sabe? Eu acho que as feministas atuam para defender todas as mulheres, e não aceitar homem que bate em mulher, e não aceitar homem que não gosta que mulher sai para fazer a unha, cabelo. (Mulher, 42 anos, Ceará).

A rejeição do feminismo associado pelas entrevistadas à imoralidade e à sensualidade exacerbada, bem como às táticas de choque empregadas por ativistas durante as Marchas das Vadias (Gomes, 2018; Rocha; Medeiros, 2022), que realizaram protestos com seios desnudos e performances sacrílegas, é frequente entre a maioria das entrevistadas:

Através do feminismo tivemos grandes conquistas. Mas o que é apresentado nas redes eu não gosto porque eu não preciso sair à rua expondo meus seios, pegando símbolos religiosos e enfiando (no ânus). Acho que isso é uma falta de respeito, mas as causas que foram ganhas me representam. Deveríamos agir com sabedoria. A mulher sabe se posicionar para conseguir algo, a mulher tem poder de persuasão, de se unir, mostrar o que nós queremos, não precisa de todo esse alvoroço. Eu não posso abusar dos direitos que eu tenho, sair balançando os peitos e achar que todo homem tem que aturar isso. São limites que precisam ser estabelecidos (Mulher, 27 anos, Distrito Federal).

Os homens olham mais uma mulher bem arrumada do que uma mulher pelada. Tudo bem usar um decote, mas as mulheres não precisam disso. Protesto tem que saber fazer, não vou a um lugar público botar os peitos para fora, vamos para uma praia de nudismo. Tem que se dar o respeito. Vou mostrar o peito e resolver o problema? Todo mundo vai falar sobre o peito e não sobre o assunto. (Mulher, 45 anos, Rio de Janeiro).

A Marcha das Vadias dá uma ideia ruim do que é ser feminista. Fica meio com esse estereótipo. Objetifica a mulher. (Elaine).

O que elas pregam não é feminismo. É para que? Para essa sexualidade exarcebada, que não acho bacana, não enquadra no que penso. Feminismo é você ser empoderada, se sustentar, ser alguém decente. Sempre vejo a questão do feminismo mais relacionada à sexualidade, isso não é feminismo. A sexualidade tem que ser respeitada, mas não é isso. Feminismo é estar no poder, ser uma liderança capaz, ser estudada. Mas o que vejo hoje é isso: ‘feminista é sexualidade, vou ficar com todo mundo’. E não é, feminismo não é isso. Esse feminismo desvalorizou a mulher, e não a favoreceu. O que estão pregando é uma coisa de sexualidade. Feminismo é você provar que tem capacidade. Eu sou igual a você, sou intelectual como você, feminismo é isso, se portar na altura do homem. Nessas passeatas botam o peito para fora e tem criança ali. Vamos respeitar o outro, vamos ter bom senso, pelo amor de Deus, cara. Esse feminismo perde a noção do que é certo e errado. (Tatiana).

Tal rejeição abre espaço para a valorização moral da mulher e de seus papéis tradicionais de mãe e esposa, sobretudo entre as mulheres autodenominadas conservadoras:

A feminista nem aceita diálogo. E os ideais, quando você analisa a fundo, são contraditórios com a feminilidade São contraditórios com ser esposa, mãe. O negócio das feministas é ‘liberou geral, vamos tirar a roupa’, olha que loucura. É completamente contra os meus princípios. Eu não sei por que elas foram por esse caminho de ‘ah vamos tirar a roupa’. Por quê? Para chamar a atenção? Eu creio que o feminismo não alcançou por completo seu objetivo, começou de uma forma e depois meio que dispersou. Porque, acima de tudo, a gente tem que preservar a nossa imagem enquanto mulher, enquanto geradora de vida, né? (Mulher, 53 anos, Rio de Janeiro).

As mulheres que vão à rua fazendo militância, vandalismo, não me representam. Eu sou feminista, incentivo outras. A gente pode ser feminista e ficar em casa, cuidando dos filhos, ser dona do lar, a gente pode lutar também e correr atrás, incentivar outras. Não sou aquela feminista de sair às ruas, mas a gente pode reivindicar nossos direitos de outras formas. Eu sou feminista, mas não sou ativista, e não é generalizando, porque tem muitas feministas que conheço que lutam de outras formas. Cada uma pode lutar pelos nossos direitos de diferentes formas. É isso que as mulheres estão precisando, de exemplos (Mulher, 44 anos, Rio Grande do Norte).

Eu acho que a mulher não tem que ir para movimento para se expor tanto assim, mostrar os seios. A gente consegue ocupar o nosso espaço, né? Não precisa ser tão liberal. Eu acho que as feministas deveriam defender as mulheres de uma maneira melhor, que não as expusesse tanto. É preciso defender a família, o casamento, os filhos, e defender as mulheres contra o estupro também. É preciso defender a maneira que a mulher se veste. Não é porque ela veste short, blusinha que quer dizer o que a mulher é, é a postura que tem por trás daquilo. A mulher tem que ser respeitada, independente da roupa que ela esteja usando. Mas, para defender nossos ideais, não precisa se expor tanto assim (Mulher, 49 anos, São Paulo).

É possível dizer que o emprego de tais táticas de choque acabou por reforçar a ideia estereotipada da feminista radical, intransigente, autoritária com a adição da ideia de que a ativista feminista contemporânea é imoral. Na visão das entrevistadas, tais ativistas, ao exibirem o próprio corpo de forma exacerbadamente sensualizada atentam contra a moralidade do espaço público, objetificando e desvalorizando não só a si próprias mas também as mulheres como um todo. E aqui, é possível fazer um paralelo às críticas realizadas às performances sensuais de cantoras como Anitta, Luísa Sonza e Ludmilla.

Na visão das entrevistadas, a radicalidade do feminismo está mais associada à intransigência gratuita e à imoralidade na esfera pública do que a um questionamento radical das estruturas de dominação presentes no sistema capitalista. Dessa forma, os potenciais críticos presentes nas falas de algumas entrevistadas sobre as condições desiguais que produzem o empoderamento feminino encontram pouco ou nenhum eco nos contradiscursos produzidos pelo ativismo feminista contemporâneo. Ao passo que a percepção da imoralidade, oriunda da sensualização exarcebada e da objetificação associada pelas entrevistadas ao ativismo feminista e determindas figuras públicas, abre espaço para discursos religiosos e familistas que encorajam o empoderamento feminino valorizando moralmente as mulheres como mães, esposas e servas de Deus a partir de uma estrutura binária de gênero.5 5 A valorização moral das mulheres a partir de tal estrutura binária de gênero também possibilita que a extrema-direita rejeite mulheres transgênero como “falsas mulheres” em favor de “mulheres verdadeiras”, tanto do ponto de vista biológico como ao celebrar performances de gênero tidas como moralmente aceitáveis e desejáveis.

Assim, seria possível optar por ser uma mulher imoral ou valorosa. Uma mulher obscena e sem propósito ou uma mulher com uma missão divina. Uma mulher autoritária que odeia homens ou uma mulher que os ama e se submete a esse amor. Ser uma mulher empoderada pela objetificação do próprio corpo ou ser uma mulher empoderada pelo poder de Deus. Nesse sentido, o discurso realizado pela cantora, pastora evangélica e influenciadora Eyshila Santos, seguida por 4,4 milhões de pessoas no Instagram, é exemplar:

Eu quero dizer para você que ser mulher não te diminui em nada. Pelo contrário, você é uma ótima ideia de Deus. Deus olhou para o homem e disse ‘não é bom que esse cabra esteja só’. Eu vou fazer para ele uma mulher arretada. Eu vou fazer para ele uma auxiliadora idônea, fiel, uma solucionadora de problemas que ninguém pode resolver. [...] Eu vou colocar ao lado desse homem uma pessoa multifuncional. Ela consegue cozinhar, falar ao telefone, balançar o carrinho do bebê, ouvir a música que está tocando, cantar a outra música que está tocando no vizinho e ainda ouvir o que o marido está falando no celular. Ela é poderosa! Ela consegue fazer tudo ao mesmo tempo! Deus nos fez com essas habilidades, ele não nos fez menores, mas ele também não nos fez com a bandeira do feminismo na mão declarando que nós somos tudo e os homens não são nada. Deus não nos fez para competir com os homens, mas para andar lado a lado com eles. Sendo submissas a eles em amor, porque se o seu homem tem uma missão, ele merece que você se submeta a ela juntos nessa mesma missão e vocês vão caminhar para o alvo e serão vencedores. Não entenda isso como algo pejorativo, pois ser mulher é maravilhoso. Então saia da cama da vitimização e também não assuma um posto que você não dá conta. Pois hoje em dia nos vemos muito extremos. Se antigamente as mulheres se escondiam atrás dessa capa de fragilidade, hoje em dia elas estão a levantar a bandeira do poder, e aí a gente ouve essa palavra empoderamento dessa forma tão banal no mundo. As mulheres gritam que são empoderadas cantando a música da Anitta e vão postar foto no Instagram, com sovaco cabeludo, achando bonito protestar, achando lindo ser diferente. O Senhor não te chamou para sair levantando por aí uma bandeira sem propósito, o Senhor é a tua bandeira e esse é o verdadeiro empoderamento que Deus disse em Atos, capítulo 1, versículo 8. Deus te chamou para ser mulher e esse é um Congresso de Mulheres Empoderadas e quando você sair daqui você vai sair mais forte do que entrou, pois você veio aqui para ser revestida do poder do espírito santo de Deus”. (Pastora Eyshila Santos, em palestra no Congresso das Mulheres Empoderadas em Deus no dia 30 de maio de 2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível considerar que a apropriação da extrema-direita da noção de empoderamento feminino como um novo fenômeno possibilitado pela cultura posfeminista e pela influência do feminismo neoliberal e do feminismo popular. A disseminação de uma cultura posfeminista nas últimas décadas possibilitou, ao mesmo tempo, a assimilação das conquistas dos movimentos de mulheres durante o século XX, como o direito à cidadania política e a participação no mercado de trabalho, e uma normalização despolitizada dessas agendas, contribuindo para impulsionar um entendimento de que o empoderamento das mulheres seria mais dependente de méritos e capacidades individuais do que constrangido por estruturas sociais desiguais. E, nesse sentido, também permitiu que a noção de empoderamento pudesse ser mobilizada por movimentos e agendas antifeministas.

O empoderamento feminino baseado na valorização moral da mulher, realizada a partir de uma estrutura binária de gênero, possibilita que a extrema-direita possa se apropriar de agendas em defesa das mulheres, tornando-se mais atraentes e palatáveis ao eleitorado feminino, e transmitir seus valores para uma gama mais ampla de mulheres. Além disso, também possibilita tanto uma disputa do campo feminista a partir de um viés conservador, como a emergência do femonacionalismo e outros fenômenos correlatos, como as “Mulheres Empoderadas em Deus”. Dessa forma, grupos de extrema-direita conseguem reivindicar o retorno aos papéis tradicionais de gênero como uma celebração do empoderamento das mulheres.

Para tanto, o ativismo de extrema-direita procura enfatizar que o feminismo contemporâneo teria ido longe demais em suas pautas liberalizantes, provocando uma degradação das mulheres como um todo. Isso possibilita oferecer a “opção” pelo resgate do respeito e da valorização moral das mulheres a partir da celebração de papéis tradicionais de gênero. Como forma de tornar tal “opção” mais palatável e atraente, lideranças e ativistas femininas de extrema direita procuram promover políticas de cuidado e assistência social focadas nas mulheres que optam por ficarem em casa e cuidarem da família. Desse modo, a concepção de empoderamento feminino passa a ser maleável e aberta a diversas finalidades políticas, permitindo que atualmente, a extrema-direita e o ativismo religioso conservador avancem na disputa das implicações e significados do que é uma mulher empoderada.

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  • 1
    […] This form of familialism opposes individual lifestyles that do not envisage a parental role. This familialism is also nationalistic, bound to a national population policy” (Kemper, 2016KEMPER, Andreas. Foundation of the Nation: How Political Parties and Movements are Radicalising Others in Favour of Conservative Family Values. Friedrich-Ebert-Stiftung, 83p. 2016., p. 60)
  • 2
    Contudo, ao mesmo tempo em que as mulheres são a maioria do eleitorado em diversos países, a proporção de mulheres candidatas e, sobretudo, de mulheres eleitas ainda é inferior aos dos homens – principalmente no Brasil, que ocupa atualmente um dos piores lugares no índice de representação de mulheres na política, segundo os dados do Global Gender Gap Index e do Global Data on National Parliaments. Esse fenômeno é chamado de “gender gap” na política, isto é, a discrepância entre o número de mulheres na população e no eleitorado quando comparado ao número de mulheres eleitas para cargos políticos eletivos.
  • 3
    O estudo também compreendeu um grupo de jovens que não sabiam em quem votar nas eleições presidenciais no ano de 2022, cujos dados não serão abordados. Todos os dados oriundos de entrevistas qualitativas analisados neste artigo foram publicados no livro “Feminismo em Disputa: Um estudo sobre o imaginário político das mulheres brasileiras” (2022), organizado por Beatriz Della Costa, Camila Rocha e Esther Solano.
  • 4
    As falas sofreram pequenas alterações textuais para conferir maior fluidez sem, contudo, prejudicar de qualquer forma seu conteúdo original.
  • 5
    A valorização moral das mulheres a partir de tal estrutura binária de gênero também possibilita que a extrema-direita rejeite mulheres transgênero como “falsas mulheres” em favor de “mulheres verdadeiras”, tanto do ponto de vista biológico como ao celebrar performances de gênero tidas como moralmente aceitáveis e desejáveis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2023
  • Aceito
    27 Dez 2023
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