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JATARISHUN: revoltas indígenas camponesas do Equador e Bem Viver 1 1 Esse estudo foi possível graças à colaboração das e dos interlocutores e da bolsa de estudos do Instituto de Altos Estudos Internacionais e de Desenvolvimento”

JATARISHUN: révoltes paysannes indigènes d’Équateur et de Bien Vivre

Resumos

Este artigo analisa os Movimentos Indígenas Camponeses (MICs) do Equador como força social e ator político. Ao propor uma alternativa à crise equatoriana baseada nos valores do sumak kawsay (bem viver), os MICs ampliam espaços democráticos e formulam uma acepção expandida de cidadania. Focalizam-se os acontecimentos da greve nacional de 2019 no Equador, em diálogo retrospectivo com mobilizações anteriores. O artigo se baseia nos testemunhos do povo Kayambi, coletados antes e depois da greve, em entrevistas semiestruturadas e trabalho etnográfico. Os dados evidenciam que a memória de lutas anteriores foi uma motivação essencial para a emergência das manifestações. Ademais, a unidade e a solidariedade entre atores rurais e outros setores da sociedade equatoriana foram a base do poder e da força da greve. Em diálogo com o campo das “Políticas rurais emancipadoras”, aportam-se contribuições às abordagens críticas sobre o papel dos povos indígenas camponeses nas lutas por alternativas de vida.

Movimentos sociais; Ação direta; Povos indígenas camponeses; Bem viver; Equador


Cet article analyse les mouvements paysans autochtones (MIC) de l’Equateur en tant que force sociale et acteur politique. En proposant une alternative à la crise équatorienne fondée sur les valeurs du Sumak Kawsay (Bien Vivre), les MIC élargissent les espaces démocratiques et formulent un sens élargi de la citoyenneté. L’analyse se concentre sur les événements de la grève nationale de 2019 en Équateur, en dialogue rétrospectif avec les mobilisations précédentes. L’article s’appuie sur des témoignages du peuple Kayambi, recueillis avant et après la grève, lors d’entretiens semi-structurés et des travaux ethnographiques. Les données montrent que le souvenir des luttes précédentes a été une motivation essentielle pour l’émergence des manifestations. En outre, l’unité et la solidarité entre les acteurs ruraux et les autres secteurs de la société équatorienne ont été à la base de la puissance et de la force de la grève. En dialogue avec le champ de la « politique rurale émancipatrice », l’article apporte des contributions aux approches critiques sur le rôle des peuples paysans indigènes dans les luttes pour des moyens de subsistance alternatifs.

Mouvements sociaux; Action directe; Peuples paysans indigènes; Bien vivre; Équateur


This article analyzes the Indigenous Peasant Movements (IPM) of Ecuador as a social force and political actor. By proposing an alternative to the Ecuadorian crisis based on the Sumak Kawsay (Good Living) values, the IPM expand democratic spaces and formulate an extended sense of citizenship. The text focuses on the events of the 2019 national strike in Ecuador, in retrospective dialogue with previous uprisings. It draws on the testimonies of the Kayambi people, collected before and after the strike, in semi-structured interviews, and ethnographic work. Results show that the memory of previous struggles was an essential motivation for the emergence of the uprisings. Besides, unity and solidarity among rural actors and other sectors of Ecuadorian society were the basis for the strike’s strength and power. Finally, in dialogue with the Emancipatory Rural Politics, the article contributes to critical approaches to the role of indigenous peasant peoples in struggles for life alternatives.

Social movements; Direct action; Indigenous peasant peoples; Good living; Ecuador


INTRODUÇÃO

Os protestos são uma parte constitutiva do imaginário sobre política no Equador. Frequentemente, há manifestações nas cidades, paróquias e nos territórios rurais. Nesse contexto, as pessoas estão habituadas a diferentes formas de ação direta como estratégia política ( Jameson, 2011JAMESON, K. P. The indigenous movement in Ecuador: the struggle for a plurinational state. Latin American Perspectives, Thousand Oaks, v. 38, n. 1, p. 63-73, 2011. doi: 10.1177/0094582X10384210 ). Especialmente em referência aos movimentos indígenas camponeses (MICs), as pessoas costumam dizer que “se não gostam de um presidente, têm o poder de derrubá-lo”. Num período de nove anos, três presidentes foram depostos devido às mobilizações das comunidades indígenas e de outros setores sociais. Nesse sentido, ao longo dos anos 1990, os MICs alcançaram poder de influência política e legitimidade como ator político por meio de diferentes estratégias e táticas, dentro e fora das instituições estatais.

Mas nem sempre eles tiveram esse poder. As populações indígenas e camponesas começaram a se organizar, da forma como conhecemos hoje, por volta dos anos 1920 ( Becker, 2008BECKER, M. 2008. Indians and leftists in the making of Ecuador’s modern Indigenous Movements. London: Duke University Press, 2008. ). Nas décadas seguintes, os MICs tiveram um papel importante nas disputas sobre as agendas de educação intercultural e reforma agrária. Especialmente devido à repressão durante a ditadura e ao suposto sucesso da reforma agrária, que extinguiu o sistema de servidão (chamado huasipungo1 1 Esse estudo foi possível graças à colaboração das e dos interlocutores e da bolsa de estudos do Instituto de Altos Estudos Internacionais e de Desenvolvimento” ), a importância dos MICs declinou depois dos anos 1960. Durante a década de 1990, eles retomaram força por meio da reforma organizativa e da unificação regional de organizações dos Andes, da Amazônia e da Costa.

Alguns estudiosos criticam a ideia de que os MICs são uma força revolucionária ou contra-hegemônica, especialmente considerando que foram marginalizados por meio de forças econômicas e políticas que as levariam a desaparecer ( Hobsbawm, 1995HOBSBAWM, E. The age of extremes: the short twentieth century 1914-1991. London: Abacus, 1995. ) ou considerando que suas exigências e seu discurso não correspondem necessariamente à sua prática ( Henderson, 2017HENDERSON, T. State-peasant movement relations and the politics of food sovereignty in Mexico and Ecuador. The Journal of Peasant Studies, [s. l.], v. 44, n. 1, p. 33-55, 2017. doi: 10.1080/03066150.2016.1236024 ). Esta crítica é cética em relação ao “modo de vida camponês” como alternativa ao sistema capitalista ( Bernstein, 2014BERNSTEIN, H. Food sovereignty via the ‘peasant way’: a skeptical view. The Journal of Peasant Studies, [s. l.], v. 41, n. 6, p. 1031-63, 2014. doi: 10.1080/03066150.2013.852082 ). Há, ainda, uma vertente da literatura sobre o Equador que considera o movimento indígena como uma força social cooptada ( De la Torre, 2013DE LA TORRE, C. In the name of the people: democratization, popular organization, and populism in Venezuela, Bolivia and Ecuador. Revista Europea de Estudios Latinoamericanos y Del Caribe, [s. l.], n. 95, p. 27-48, 2013. doi: 10.18352/erlacs.9229 ; León Trujillo, 2010LEÓN TRUJILLO, J. Las organizaciones indígenas y el gobierno de Rafael Correa. Íconos – Revista de Ciencias Sociales, Quito, n. 37, p. 3-23, 2010. ) que foi debilitada ( Martínez Novo, 2021MARTÍNEZ NOVO, C. Undoing multiculturalism: resources extractions and indigenous rights in Ecuador. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2021. ) pelo considerado governo populista autoritário de Rafael Correa ( Tilzey, 2019TILZEY, M. Authoritarian populism and neo-extractivism in Bolivia and Ecuador: the unresolved agrarian question and prospects for food security as counter-hegemony. The Journal of Peasant Studies, [s. l.], v. 46, n. 3, p. 626-652, 2019. doi: 10.1080/03066150.2019.1584191 ). No entanto, considerando a greve nacional de 2019 empreendida pelas comunidades indígenas e camponesas do Equador, argumentamos que os MICs, com sua multiplicidade de atores rurais e urbanos, ainda contam com uma força social contra-hegemônica no Equador e são capazes de propor uma alternativa econômica para o país.

Na década de 1990, a política neoliberal se tornou a norma na América Latina, e no Equador não foi diferente. Os ajustes estruturais impostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), em troca de apoio aos países para superar suas crises econômicas, foram aplicados extensivamente e à revelia da vontade popular. Ampliaram-se lacunas na desigualdade e a pobreza aumentou ( Breda, 2011BREDA, T. O Equador é verde: Rafael Correa e os paradigmas do desenvolvimento. São Paulo: Editora Elefante, 2011. ), levando a insurreições populares. Nesse contexto, as comunidades indígenas equatorianas apareceram como setor social coeso e organizado a nível local, regional e nacional.

Em 2019, a motivação para protestar era simples: era necessário impedir o aumento do custo de vida. Além disso, os grevistas argumentaram que aprenderam com seus antepassados que protestar era uma estratégia bem-sucedida para exigir seus direitos. Como em décadas anteriores, sustentar a vida se tornou insuportável devido às medidas neoliberais de ajustes estruturais, e protestar era a forma conhecida de exigir direitos, respeito e dignidade.

Além disso, honrando a memória dos anos 1990, os MICs adotaram uma atitude propositiva – coerente com sua liderança popular no país – e apresentaram um modelo econômico alternativo, que continha sua própria perspectiva para o Sumak Kawsay 2 2 O huasipungo ou wasi pungu (do kichwa wasi – casa e pungu – porta) consistia em um sistema servil, em que as pessoas trabalhavam para um fazendeiro em troca do direito de lavrar e viver em um pequeno pedaço de terra em vez de receber um salário. dos povos indígenas e não indígenas.

Assim, considerando os repertórios de contenção ( Tilly, 2005TILLY, C. Popular contention in Great Britain, 1758-1834. London: Paradigm Publishers, 2005. ) que as pessoas têm em mãos para levantar suas preocupações relativas às questões públicas e coletivas, nos perguntamos: por que, como e quando as pessoas decidem fazer um bloqueio e apoiar uma greve? Vários autores da literatura dos movimentos sociais responderam a essas questões com uma série de explicações: as queixas, as emoções, a eficácia, a identificação e o enraizamento social são os principais argumentos para realizar mobilizações sociais ( van Stekelenburg et al., 2013VAN STEKELENBURG, J. et al. The social psychology of the protest. Current Sociology Review Article, Thousand Oaks, n. 61, p. 886-905, 2013. ). Para os movimentos sociais emergentes na América Latina nas décadas de 1980 e 1990, os estudiosos forneceram outros instrumentos conceituais para analisar tais movimentos: a importância crescente da cultura e da identidade ( Alvarez et al., 1998ALVAREZ, S. et al. Cultures of Politics/Politics of Cultures: re-visioning Latin American social movements. Boulder: Westview Press, 1998. ), a luta contra a austeridade neoliberal ( Eckstein et al., 2002ECKSTEIN, S. et al. Struggles for social rights in Latin America. Nova York: Routledge, 2002. ), a abertura democrática e a globalização como forças contraditórias ( Johnston et al., 2006JOHNSTON, H. et al. Latin American social movements: globalization, democratization and transnational networks. Lanham: Rowman & Littlefield, 2006. ). Acrescentando a essa literatura, descrevemos as temporalidades e materialidades de uma ação coletiva que os movimentos indígenas camponeses e outros setores sociais levaram a cabo em outubro de 2019 no Equador.

Além desta introdução, o artigo conta com duas seções e as considerações finais. Na primeira seção, descrevemos a ação política dos MICs na década de 1990 com base na análise do “manifesto dos 16 pontos”, um documento histórico que sintetiza a complexidade dos MICs, bem como reúne a agenda política de direitos de “classe” e “identitários” que orientam sua ação. Na segunda seção, descrevemos a ação política dos MICs durante a greve de 2019 com base em testemunhos coletados, entrevistas semiestruturadas e trabalho etnográfico realizado por uma das autoras entre julho de 2019 e março de 2020. Esta seção se subdivide em três subseções, nas quais abordamos o antes, o durante e o depois da greve nacional de 2019. Nossas análises teóricas são desenvolvidas ao longo do texto, acompanhando a evolução da descrição dos fatos. Por fim, apresentamos as considerações finais, nas quais retomamos e colocamos em perspectiva as perguntas abertas por esse estudo.

YACHAY TINKUY: O MANDATO PARA A DEFESA DA VIDA E OS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS

Desde as primeiras mobilizações, as organizações camponesas ou sindicatos indígenas já assinalavam sua agenda biocêntrica. Suas reivindicações eram dirigidas para alcançar as condições de produção e reprodução material e espiritual das suas vidas. Tal agenda, historicamente elaborada, jogou com as gramáticas contextuais disponíveis em certos momentos históricos, sinalizando a capacidade de construir uma “arquitetura estatal vernacular” ( Colloredo-Mansfeld 2009COLLOREDO-MANSFELD, R. Fighting like a community: Andean civil society in an era of Indian uprisings. Chicago: University of Chicago Press, 2009. ) e de se mover em mundos diferentes.

José Inuca Lechón (2017)INUCA LECHÓN, J. Genealogía de Alli Kawsay – Sumak Kawsay (Vida Buena – Vida Hermosa) de Las Organizaciones Kichwas del Ecuador desde mediados siglo XX. Latin American and Caribbean Ethnic Studies, [s. l.], v. 12, n. 2, p. 155-176, 2017. também apoia essa ideia na sua genealogia dos conceitos de interculturalidade e sumak kawsay quando da construção de um modelo de educação intercultural no país. Lechón afirma que, diante das relações de dominação, opressão e exploração, os povos indígenas criaram práticas de yachay tinkuy 3 3 As discussões sobre Sumak Kawsay e o termo equivalente no contexto boliviano, Suma Qamaña, começaram a ter visibilidade no Equador e na Bolívia a partir de meados dos anos 2000. Atualmente, as expressões passaram as fronteiras nacionais e são referencia em debates múltiplos em outros países, com literatura publicada em kichwa, aymara, espanhol, português, inglês, alemão, francês. A origem e as possíveis traduções da expressão são fonte de debate e, portanto, não há consenso sobre uma tradução correta. Atualmente, há diferentes genealogias publicadas sobre a expressão. Hidalgo-Capitán et al. (2017) defendem que o Sumak Kawsay é um fenômeno social amazônico, promovido por indígenas do povo kichwa de Pastaza. David Cortez (2010) se refere ao Sumak Kawsay como uma expressão andino-amazônica. Já José Inuca Lechón (2017) e Kauffman et al. (2014) identificam raízes andinas da expressão, usada tanto por povos kichwa de Pichincha e de Tungurawa, respectivamente. Sarah Radcliffe (2015) relata que suas interlocutoras na província de Chimborazo também afirmaram que conheciam a expressão Sumak Kawsay antes da aprovação da nova constituição do Equador. Aqui adotamos a tradução buen vivir oferecida pelo Parlamento dos Povos, Coletivos e Organizações Sociais do Equador em seu documento “Proposta ao país”, analisado com mais detalhe na última sessão desse artigo; e a tradução “bem viver”, comumente usada em português. ou práticas de encontro e confronto de conhecimentos . Por meio da análise de vários registos históricos produzidos ao longo do século XX, o autor fornece provas de que surgiram novos significados no processo histórico das lutas indígenas. Os encontros e confrontos de conhecimento produziram novos significados, tais como rikcharimui (acordar), rikcharishun (consciencia social), jatarishun (erguer-se, revolta indígena), kawsaypura (entre culturas ou seres vivos, interculturalidade e plurinacionalidade) e sumak kawsay (vida hermosa) ( Inuca Lechón, 2017INUCA LECHÓN, J. Genealogía de Alli Kawsay – Sumak Kawsay (Vida Buena – Vida Hermosa) de Las Organizaciones Kichwas del Ecuador desde mediados siglo XX. Latin American and Caribbean Ethnic Studies, [s. l.], v. 12, n. 2, p. 155-176, 2017. ). Assim, ainda que as comunidades indígenas fossem marginalizadas e discriminadas de forma sistemática e estrutural, havia uma rotina diária de resistência que emergia na esfera pública de tempos em tempos, com diferentes vocabulários e significados.

Olhar para o “mandato de 16 pontos” nos ajuda a compreender ainda mais o yachay tinkuy em jogo para as comunidades indígenas durante a década de 1990. O documento não é somente um resultado da revolta, nem a revolta em si é apenas um resultado da organização indígena. Ambos servem como ponto de partida para compreender como as comunidades indígenas constroem alternativas a nível nacional. Mais especificamente, o documento destaca a pluralidade da agenda do movimento indígena naquele momento e é uma aproximação do que a revolta significou para o imaginário nacional não só em 1990, mas também nos dias de hoje. Da mesma forma, a revolta de 1990 não será utilizada para explicar o movimento indígena naquele momento, uma vez que não é o foco deste trabalho. Ademais, as mobilizações não podem ser explicadas apenas devido a uma organização anterior do próprio movimento indígena, mas sim como uma situação que abriu o âmbito de participação para as comunidades indígenas a longo prazo e que é recordada no tempo atual.

Várias mobilizações indígenas marcaram a década de 1990, com manifestações, bloqueios, greves de fome e outras ações coletivas que aconteceram desde o ano de 1990, repetindo-se novamente em 1994, 1997 e 2000. Respondendo a diferentes conjunturas econômicas e políticas, as comunidades indígenas tinham agendas diferentes em cada uma delas. A agenda dos movimentos indígenas camponeses nas revoltas dos anos 1990 refletia o yachay tinkuy dessa conjuntura. Tais mobilizações levantaram duas ideias principais que parecem contraditórias aos olhos das perspectivas eurocêntricas modernas: exigiam seus direitos como camponeses e seus direitos como povos indígenas, interligando classe, representação e participação política, identidade e etnicidade, num processo que Rita Segato (2018)SEGATO, R. Identidades políticas/alteridades históricas: uma crítica a las certezas del pluralismo global. Anuário Antropológico, Brasília, DF, v. 22, n. 1, p. 36, 2018. define como “alteridades históricas”. Nesse sentido, por meio do seu mapa de reivindicações, as comunidades indígenas camponesas mostraram que os camponeses não exigem apenas questões relacionadas com conflitos agrários, bem como os povos indígenas não exigem apenas questões relativas à sua etnicidade ou identidade.

Nesse sentido, a revolta de 1990 tornou explícito o encontro e o confronto de ideias entre as comunidades indígenas e a sociedade branca mestiça. Primeiro, decidiram deliberadamente nomear sua ação política como revolta ( jatarishun ), em honra e memória da revolta indígena da década de 1870. Segundo Andrés Guerrero, essa decisão ressignificava o protesto e contrastava com as greves sindicais, “inventando uma tradição, estabelecendo uma língua indígena na esfera pública e sinalizando a emergência de um ‘novo ator político’” (Guerrero, 1995, p. 2). Em segundo lugar, tal ressignificação teve o efeito de contrapor o imaginário dominante de que os povos indígenas “se revoltaram” contra os hacendados (latifundiários), no contexto local, sem abordar necessariamente os problemas econômicos e políticos estruturais nacionais. Em terceiro lugar, confrontou-se também com a ideia ainda hoje presente de que ser indígena estava apenas relacionado com uma identidade ligada à paisagem rural. Embora seja verdade que a população rural era e continua a ser amplamente autoidentificada como indígena, ocupar o espaço urbano (como residentes e nas manifestações) era uma questão de mostrar como uma identidade é interativa e relacional.

O “mandato de 16 pontos”, também é chamado o “mandato para a vida”, pode ser dividido em três grupos de exigências, que inter-relacionam os chamados direitos da diferença e direitos universais. No documento, tais exigências não parecem divididas, o que significa que não existe uma hierarquia necessária de exigências. A divisão aqui serve para analisar o documento de forma sistemática. O primeiro grupo poderia ser identificado como as exigências que abordavam o problema do reconhecimento das necessidades específicas dos povos indígenas, que visavam governar a si próprios e aos seus territórios com autonomia. Esse grupo de reivindicações teria, sobretudo, impacto na vida das comunidades indígenas. Concretamente, significava que os povos indígenas gostariam de poder decidir o que fazer com suas terras, educar sua população na sua língua e com metodologias alinhadas com seus sistemas de conhecimento, e ter financiamento público para suas próprias instituições políticas e administrativas. A Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) apareceu como a instituição legítima para representar, negociar e liderar acordos com o Estado equatoriano. Os movimentos reivindicavam também orçamento para as nacionalidades indígenas e orçamento para a educação bilíngue, e propunha que a Conaie fosse responsável por tais verbas, bem como pelo controle, pela proteção e pelo desenvolvimento dos sítios arqueológicos. Ademais, os comerciantes e artesãos vinculados à Conaie se beneficiariam de uma política de comércio livre. Essas exigências são um exemplo da politização das questões étnicas, uma vez que as populações indígenas se beneficiariam (ou pelo menos sofreriam menos) com o reconhecimento da sua existência como povos diferentes, com identidades complexas e dinâmicas que não se enquadravam apenas na “comunidade imaginada” da sociedade equatoriana.

O segundo grupo poderia ser identificado como exigências que diziam respeito aos povos indígenas, mas que teriam um impacto em toda a sociedade equatoriana. Os direitos da “diferença” ganhariam uma relevância que iria além do reconhecimento dos povos indígenas como diferentes da sociedade branca mestiça. Com efeito, seu objetivo era conseguir uma transformação mais sistemática das estruturas estatais. Assim, o movimento indígena exigiu: a) a reforma do primeiro artigo da Constituição Nacional, para declarar o Equador um Estado plurinacional; b) a entrega, solução e legalização em formato de terras livres e territórios para as nacionalidades indígenas; c) a regulamentação e financiamento da prática da medicina indígena; d) a retirada de decretos que criavam instituições governamentais paralelas a nível provincial e municipal, dirigidas por partidos únicos e utilizadas como empresas eleitorais que “traficam com a consciência das nossas comunidades indígenas”; e e) a realização e conclusão de obras prioritárias de infraestrutura básica das comunidades indígenas. Embora a última reivindicação respondesse às necessidades concretas das comunidades indígenas em matéria de infraestrutura básica, a posicionamos aqui no segundo grupo por duas razões: primeiro, a reivindicação implicitamente posicionava a Conaie como intermediária entre as comunidades indígenas e o Estado; e, segundo, porque aborda as necessidades materiais das populações indígenas como uma questão de redistribuição de recursos. Em outras palavras, o reconhecimento da diferença aqui significa não a diferenciação em relação ao resto da sociedade equatoriana, mas a aproximação com outros setores sociais que não carecem dos direitos que se materializam pela infraestrutura básica. Por meio dessas propostas, os movimentos indígenas promoveram a politização das reivindicações étnicas, desafiando mesmo a já conhecida política de reconhecimento dentro do quadro neoliberal. Nesse sentido, propuseram uma nova forma de cidadania, ancorada em direitos concretos, que afetaria a própria constituição do significado homogeneizado e monolítico da identidade nacional e do Estado-nação.

O terceiro grupo estava relacionado com exigências universais que alargavam os direitos sociais e econômicos a todos os equatorianos, reafirmando que as raízes da opressão e do domínio de diferentes setores da sociedade equatoriana precisavam ser abordadas de forma abrangente. É verdade que a colonialidade do poder4 4 Expressão kichwa. Yachay , substantivo [yačay] que significa sabedoria, inteligência, juízo, raciocínio ( Ministerio de Educación Ecuador, 2009 , p. 157). Tinkuy , substantivo derivado do verbo tinkina [tiŋgina], que significa apegar, unir, juntar. Também usado com o significado de briga ritual ( Ministerio de Educación Ecuador, 2009 , p. 196). ( Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 227-278. ) afetou os povos indígenas de forma particular; contudo a experiência de pobreza e exploração não foi particular das comunidades indígenas, uma vez que afrodescendentes, camponeses, trabalhadores e outros grupos sociais subalternizados também sofreram com o corporativismo e a corrupção das elites. Assim, os movimentos indígenas exigiam: a) a solução dos problemas da água, considerando a distribuição de água para irrigação, para consumo e a concepção de políticas de não contaminação; b) a retirada da obrigação de pagamento de propriedades rústicas;5 5 Colonialidade do poder, como explica Aníbal Quijano (2005) , se refere ao processo de racialização de inúmeras populações com o objetivo de explorar seu trabalho. Tal processo é constitutivo do capitalismo, sendo a raça um dos eixos da matriz capitalista. Esse processo começa com a colonização das Américas no século XV, mas permanece em períodos pós-coloniais, uma vez que é constitutivo também da Modernidade. Colonialidade e Modernidade são, ambos, partes da formação capitalista dos Estados-nações. c) o perdão de dívidas com agências de desenvolvimento e bancos; d) o congelamento dos preços dos produtos básicos industrializados, pelo período mínimo de dois anos, e a fixação de preços justos para os produtos camponeses da economia de subsistência, através da autonomia de comercialização; e d) o respeito dos direitos das crianças e a rejeição da proposta do governo de convocar eleições para a população infantil. Essas exigências são a prova de que as lutas das comunidades indígenas não abordavam apenas a importância simbólica de ter sua diferença reconhecida, mas também a importância de observar as condições materiais necessárias para garantir a dignidade da vida de toda população equatoriana.

Nesse sentido, a luta pelos direitos sociais e econômicos não desapareceu da agenda, nem as reivindicações étnicas e identitárias prevaleceram sobre as reivindicações consideradas de classe, mas na realidade foram criadas em conjunto como parte da mesma proposta. Vários estudos afirmam que a exigência de direitos como povos indígenas não significava necessariamente o abandono das exigências históricas relativas à propriedade da terra, à reforma agrária e a outros direitos econômicos. Como pudemos ver, as exigências relativas ao não pagamento de impostos sobre a terra rural e ao congelamento dos preços dos alimentos básicos estavam lado a lado com as exigências orçamentais para a execução de programas de educação bilíngue e com as exigências para a emenda da Constituição Nacional para tornar o país um Estado plurinacional. De fato, León Galarza (2009)LEÓN GALARZA, N. Ecuador – la cara oculta de la crisis: ideología, identidades políticas y protesta en el fin del siglo. Buenos Aires: Clacso, 2009. sustenta que a agenda da diferença – que incluiria exigências de multiculturalidade e plurinacionalidade – não estava em contradição com as exigências universalistas relativas à redistribuição e ao pertencimento a uma “comunidade imaginada”, a uma nação, que incluía exigências de equidade para todos os pobres, negros e indígenas ou brancos mestiços equatorianos.

Essa expansão dos sentidos de cidadania, participação, democracia, direito à diferença que o “mandato para a vida” evocava, pode ser interpretado também como o resultado de uma postura político-epistêmica. Tal postura enfrenta o que Silvia Rivera Cusicanqui (2018)CUSICANQUI, S. Un mundo ch’ixi es possible: ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018. chamou de “crise epistêmica e de valores” da “geografia física e mental do nosso continente Abya Ayala” (p. 93, tradução nossa). Efetivamente, é preciso lembrar que, ao longo da dominação moderno-colonial, os valores liberais se converteram em uma linguagem hegemônica. Essa linguagem serviu de alicerce para a construção do Estado-nação e de uma ideia abstrata de identidade nacional, às custas de epistemicídios, ecocídios e genocídios de corpos indígenas e afrodiaspóricos. No passado como no presente, em nossos processos de colonialismo interno e internalizado, os valores do liberalismo e do neoliberalismo funcionam como “palavras mágicas” que encobrem o que deveriam revelar e, muitas vezes, “têm o efeito de fascinar e, muitas vezes, podem aplacar nossos protestos” ( Cusicanqui, 2018CUSICANQUI, S. Un mundo ch’ixi es possible: ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018. , p. 95, tradução nossa).

O que está em jogo no yachay tinkuy é, portanto, não apenas a invenção de uma nova gramática de ação política popular. Também está em jogo a definição de uma nova semântica das palavras e dos imaginários que elas evocam. Exatamente por isso, ainda que a agenda do “mandato para a vida” pareça contraditória desde uma perspectiva eurocêntrica, interpretamos esse alargamento dos direitos sociais e econômicos para todos os equatorianos como resultado da reinscrição das memórias e epistemes indígenas nos espaços políticos em disputa. Em consonância com Cusicanqui (2018CUSICANQUI, S. Un mundo ch’ixi es possible: ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018. , p. 97, tradução nossa), entendemos que as memórias e epistemes indígenas funcionam como “ferramentas metafóricas”. Essas ferramentas são capazes de suscitar projetos alternativos de vida que confrontam os ideais progressistas de economia e desenvolvimento. Com efeito, as epistemes indígenas conformam estratégias semânticas para burlar as “palavras mágicas” fundantes das democracias liberais, ou, melhor dizendo, para ressignificá-las. Em síntese, justamente porque criam uma nova linguagem para “reconstruir de baixo, formas de convivência social” encarnam modos outros de fazer e pensar uma sociedade onde caibam todas e todos ( Cusicanqui, 2018CUSICANQUI, S. Un mundo ch’ixi es possible: ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018. , p. 101, tradução nossa).

Não por acaso, o caráter plural da agenda proposta no “mandato para a vida” gerou o sentimento de que o movimento indígena era um novo ator. Os relatos sobre as revoltas que começaram no ano de 1990 e se seguiram ao longo da década descrevem a surpresa dos equatorianos quando as populações indígenas ocuparam as cidades e exigiram negociações com o Estado. Defendemos que tal surpresa se devia não só à presença física dos povos indígenas nas ruas, mas também ao encontro e confronto das suas ideias com as conceptualizações da sociedade branco-mestiça. Portanto o entrelaçamento de várias exigências, que tanto abordavam problemas concretos da vida quotidiana como apresentavam ideias utópicas para a reestruturação do Estado-nação, provocou estranheza na opinião pública. As suas reivindicações não podiam ser atribuídas apenas a reivindicações de classe, que normalmente eram resolvidas na esfera dos contratos privados entre proprietários de terras e trabalhadores. Além disso, não podia ser atribuída apenas como exigência de cidadania, no sentido liberal, uma vez que não propunham a independência do Estado equatoriano nem eram apenas para a inclusão da sua diferença no projeto estatal. Apresentaram direitos universais e particulares, todos juntos, com plurinacionalidade na linha da frente da sua proposta alternativa para o Estado.

No entanto, o fato de a sociedade branca-mestiça ter ficado surpreendida com sua ação coletiva é suficiente para considerar o movimento indígena um novo ator social? De fato, será suficiente atribuir suas pautas e protagonismo político ao fato de supostamente não serem mais camponeses indígenas? A lógica por trás de tal argumento é convincente: as populações indígenas, cada vez mais presentes como residentes urbanos nos centros das cidades, se tornariam um setor social cosmopolita e deixariam para trás a sua ruralidade e seu “modo de vida” camponês. Devido a isso, sua indigeneidade seria transformada e o contexto de discriminação no meio urbano exigiria uma mudança no sentido da defesa da sua identidade diante do processo de aculturação e miscigenação. Assim, a população indígena emergiria como um novo ator social, com uma nova agenda centrada em “questões de identidade”. A etnicidade, e não a classe, seria o principal motor da insurreição social e da atividade política. Contudo, como a simples análise do “mandato para a vida” mostra, a complexidade da sua ação coletiva, com uma agenda plural, indica outra lógica de politização das reivindicações populares.

Nesse sentido, aquela análise do movimento indígena como um novo ator é mais reveladora da mentalidade racializadora e colonial dominante sobre as populações indígenas do que sobre elas. Embora os fatores mencionados – urbanização crescente das populações indígenas, reconceitualização da indigeneidade, participação política intensa – estivessem presentes desde o início da década de 1990, ignorar a complexidade da conjuntura segue um modo de pensar evolutivo, binário e teleológico. Até muito recentemente, no meio acadêmico, os direitos eram analisados como um processo que avançava em “ondas” ( Vazak, 1977VAZAK, K. A 30-year struggle: the sustained efforts to give force of law to the Universal Declaration of Human Rights. The Unesco Courier, [s. l.], v. 30, n. 11, p. 28-29, 1977. ). Em resumo, primeiro uma população atinge seus direitos civis e políticos, seguida de direitos econômicos e sociais e, por fim, alcança os considerados direitos das minorias ou identitários. Assim, uma vez que uma população tenha direitos civis, o passo seguinte é lutar para “ganhar” direitos políticos e assim por diante. Seguindo esse esquema, o curso “natural” das mobilizações dos povos indígenas seria exigir a educação formal (em língua espanhola) para serem considerados cidadãos, depois exigir seus direitos eleitorais, depois lutar por reformas agrárias para melhorar os direitos e a condição social dos seus trabalhadores e, finalmente, exigir o reconhecimento das suas culturas. Como vimos, os MICs desafiaram esse esquema.

Além disso, para considerar algo novo, é necessário um processo de comparação com outra coisa considerada antiga. Neste caso, a Conaie é vista como um novo ator numa lógica de comparação com seus predecessores, ou seja, a Federação dos Índios do Equador (FEI). Porque a Conaie trouxe à esfera pública questões étnicas com um vocabulário de direitos das minorias, enquanto a FEI não dispunha de tal vocabulário na sua conjuntura de luta, o último é considerado como não sendo um movimento étnico. Assim, ambos os movimentos, Conaie e FEI, são comparados dentro do mesmo quadro conceptual, numa perspectiva teleológica. Finalmente, espelhando um quadro analítico que opõe redistribuição e reconhecimento, a análise do movimento indígena como sendo apenas centrado nos direitos de identidade reproduz uma perspectiva binária, que não pode imaginar a redistribuição e o reconhecimento entrelaçados. Consequentemente, segundo essa visão, os movimentos indígenas camponeses do início dos anos 1990 não poderiam ser movimentos de reconhecimento da autonomia e soberania dos povos indígenas e, ao mesmo tempo, um movimento de luta contínua contra a exploração.

Com efeito, podemos dizer que os MICs não apenas embaralham a arena política hegemônica como também o quadro analítico a partir do qual ela tem sido compreendida. Por isso mesmo é preciso ampliar a chave interpretativa dos sentidos e das rupturas produzidos pelos levantes populares aqui retratados e sua pauta de reivindicações. Nesse sentido, seguimos a trilha de relevantes estudos sobre o caráter educativo dos movimentos campesinos, indígenas e afrodiaspóricos do Brasil ( Gomes, 2017GOMES, N. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017. ; Munduruku, 2012MUNDURUKU, D. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990). São Paulo: Paulinas, 2012. ). Ou seja, entendemos que, por meio de seu protagonismo e de sua agenda expandida de direitos, os MICs têm reeducado a sociedade equatoriana. Corroboram para fomentar uma compreensão crítica do passado e do presente coloniais, chamam atenção para a diversidade cultural e étnica do país. Tais ações exigem um avanço em políticas de justiça social intrinsecamente articuladas aos direitos das diferenças. Além disso, os MICs também suscitam o reconhecimento da agencialidade histórica e epistêmica das comunidades indígenas camponesas.

Ademais, a memória dos anciãos e a relação espiritual com os antepassados são um elemento fundamental da harmonização da vida contida na ideia de Sumak Kawsay . Harmonizar a vida significa criar ou restabelecer condições de sobrevivência e de convívio entre todos os seres coexistentes. Nesse sentido, na Filosofia Kayambi, olhar para frente também é olhar para trás. Considerando este quadro analítico, a greve nacional de 2019 será analisada à luz das temporalidades e materialidades que a constituem. Isto é, a greve nacional é vista como uma extraordinária estratégia de ação coletiva com ensinamentos do passado, com uma rotina no presente e com uma intenção de um futuro alternativo.

MINGAS DA RESISTÊNCIA: A CONSTRUÇÃO COTIDIANA DA GREVE NACIONAL DE 2019

A greve nacional em 2019 teve início em 2 de outubro no setor de transportes. Em 3 de outubro, as organizações indígenas aderiram à greve e esta durou até 14 de outubro, quando o governo finalmente decidiu sentar-se a uma mesa de negociações. Como em outras revoltas, o povo foi às ruas e permaneceu em bloqueios nas principais vias no interior do país. Enquanto isso, outros grevistas marcharam até Quito e fizeram manifestações no centro da cidade. Os principais meios de comunicação social se posicionaram contra os grevistas, difundindo a narrativa de que estavam causando enormes prejuízos econômicos ao país. A repressão foi intensa, onze pessoas foram assassinadas pelas forças de segurança (polícia e exército) e várias centenas ficaram feridas. A mesa de negociações foi transmitida ao vivo pela televisão, por canais de internet e plataformas de comunicação social, para que as pessoas pudessem observar se seus líderes seriam fiéis ao objetivo principal da greve e não trairiam a vontade popular. O governo teve que recuar, e os grevistas conseguiram derrogar o Decreto Estatal 883, que retiraria os subsídios estatais à gasolina e ao diesel.

Em Cayambe, a greve começou na manhã do dia 3 de outubro. Cayambe é um cantão da província de Pichincha, no Norte dos Andes equatorianos. Nesse cantão, habitam cerca de 190 mil indígenas, em 180 comunidades indígenas rurais e na cidade de Cayambe. Os territórios indígenas têm autonomia territorial e compõem uma complexa rede de governança que é liderada (não exclusivamente) pela Confederação do Povo Kayambi (CPK). Nesta seção, nos ateremos primordialmente aos fatos ocorridos no território do CPK, como uma alternativa às análises urbanocêntricas já desenvolvidas sobre a greve nacional de 2019.

Retomando nossa história: naquele dia, a CPK realizou uma assembleia na qual as comunidades do território concordaram em aderir à greve do setor de transportes. Na sequência dessa decisão, outras organizações indígenas de segundo grau6 6 Propriedade rústica: o prédio rústico é um termo do direito equatoriano e se refere aos prédios que se localizam fora das zonas urbanas ou suburbanas e se destinam ao uso agrícola, mineiro, pesqueiro, florestal ou de preservação ecológica. , a Ecuador Runacunapac Riccharimuri (Confederação de Povos da Nacionalidade Kicwha do Equador – Ecuarunari) e a Conaie, começaram também a mobilizar outros povos para participar de bloqueios em várias das principais estradas nas regiões andina e amazônica. Em Cayambe, os grevistas resistiram em mais de trinta locais diferentes. A partir de 7 de outubro, grevistas de Cayambe marcharam a pé até Quito, reunindo-se com povos indígenas de todo o Equador, intensificando a pressão sobre Lenin Moreno. Lenin Moreno viajou para Guayaquil e transferiu a sede do governo para essa cidade na costa. Em Quito, os grevistas tiveram o apoio do povo, tendo os bairros urbanos também aderido à greve. Os residentes de Quito manifestaram solidariedade no acampamento central dos grevistas, com a doação de alimentos, cobertores e a criação de uma brigada de primeiros socorros para atender as pessoas feridas até o fim da greve.

Partindo do princípio de que a resistência é um ato construído em uma rotina diária e se dá quando as pessoas têm a intenção de mostrar seu desacordo com as regras hegemônicas ( Scott, 1985SCOTT, J. C. Weapons of the weak: everyday forms of peasant resistance. London: Yale University Press, 1985. ), o que se segue é um relato resumido da rotina que construiu a greve nacional em 2019. A rotina de resistência aqui descrita focaliza as práticas de ação direta que ocorreram em Cayambe e Quito, relatadas por grevistas de Cayambe que ficaram nesse cantão ou que marcharam e permaneceram em Quito.

A interpretação da revolta, aqui, não pretende apresentá-la como um evento final, ainda que extraordinário. A revolta é considerada como um evento que tem continuidade com a resistência comum da vida quotidiana e da elaboração de alternativas de vida. De fato, há também uma rotina nesse acontecimento: este é extraordinário, crítico e conjuntural, mas com materialidade e temporalidade também ordinárias. Por exemplo, a espera de notícias dos comuneros 7 7 No Equador, as comunidades indígenas camponesas se organizam, no geral, em uma estrutura de diferentes escalas. No nível local, há as consideradas organizações de base, como as comunas e associações, que são as primeiras unidades de organização das famílias. Depois, há as chamadas “organizações de segundo grau”, que agrega as organizações de base em torno de um tema ou pertencimento territorial, como os comitês de páramo, juntas de água, união de comunidades. Há ainda as Confederações e Federações de Povos, que é o sujeito jurídico que engloba todas as comunas, associações e organizações de segundo grau, de acordo com uma base étnica ou de pertencimento territorial. No nível regional, na região Andina, há a Ecuarunari, anteriormente mencionada, que agrega os povos. E, nacionalmente, há diferentes organizações indígenas, com a Conaie sendo a que tem maior expressão e aderência. Apesar de estar estruturado em diferentes entidades e escalas, isso não significa que as organizações de base são menos importantes, ou que a Conaie e a Ecuarunari têm a última palavra em termos de políticas indígenas. Essa estrutura reflete um formato de tomada de decisão e ação política capilarizado e descentralizado, nas quais as organizações locais, regionais e nacionais são interdependentes. que estavam em Quito parecia demorar uma eternidade, como os grevistas explicam. Além disso, era necessário alimentar cotidianamente as pessoas que estavam nas estradas, fazendo os bloqueios. Estes e outros exemplos ilustram que a participação num evento extraordinário de resistência precisa, mais do que de queixas, de vontade política, de uma instituição organizadora e de ações cotidianas que a sustentem.

Condições de vida antes da greve e a práxis de subsistência

Ao chegar, em 2018, para fazer trabalho de campo em Cayambe, uma das autoras participou de várias assembleias comunitárias em que os comuneros apresentaram suas ideias e experiências sobre suas condições de vida. Hoje em dia é bastante conhecido que a política indígena no Equador, especificamente na região andina, é constituída por uma forma capilarizada e descentralizada de política comunitária. Contudo, nessas assembleias, observamos uma caraterística não tão evidente na literatura sobre política comunitária: mais do que um processo de decisão coletiva, significava também uma prática rotineira de pensar em suas vidas, com discussões que vão desde a produção de alimentos à política econômica nacional, tais como o impacto das medidas de ajuste estrutural tomadas pelo governo. Essa práxis de subsistência é também constitutiva da política comunitária, e o olhar para esse processo de pensar-fazer de alternativas de vida merece mais atenção.

No começo de 2019, o governo de Lenin Moreno tinha anunciado que o país estava atravessando uma crise econômica, causada por um déficit fiscal crescente. Como o Equador é um país dolarizado, não é possível equilibrar problemas fiscais com intervenções de política monetária. Assim, as políticas fiscais e a despesa pública são a principal fonte de estabilização da chamada economia nacional. Diante do alegado déficit fiscal que ascendia a quatro bilhões de dólares no final de 2018, Lenin Moreno decidiu tomar um empréstimo do Fundo Monetário Internacional (FMI), com a condição de aplicar políticas de ajustamento estrutural.

Em Cayambe, a notícia sobre o acordo governamental com o FMI foi um tema considerado nas assembleias do CPK desde março de 2019, como conta Agustín Cachipuendo, o presidente da confederação naquele momento. Juntamente com outras discussões sobre a economia local, tais como os conflitos que os pequenos agricultores têm com as empresas produtoras de flores acerca dos royalties , por exemplo, a interferência do FMI no país também configurava nas agendas de debates das assembleias. Os grevistas relatam que todo mundo sentia que o governo estava indo longe demais com suas medidas econômicas e que algo iria acontecer. Quando o governo executivo decidiu unilateralmente retirar os subsídios aos combustíveis fósseis, os rumores sobre a greve se tornaram uma realidade. Embora as pessoas ouvissem falar da greve por meio de diferentes canais (a rádio local, o grupo de Facebook de suas respectivas comunidades, o boca a boca dos comuneros que estavam na assembleia do povo Kayambi), havia um consenso de que a greve aconteceria pelo simples fato de que “apenas sabiam”. “ Estávamos apenas à espera que a nossa cabeça, o povo Kayambi [em referência à confederação] , chamasse a revolta ”, afirma Jorge8 8 Termo local usado para se referir às pessoas que habitam comunas, nome jurídico das comunidades. . Em outras palavras, as pessoas já pensavam e falavam sobre a injustiça que se aproximava e, consequentemente, sobre a greve; tomar medidas foi uma questão de tempo.

Para além de pensar sobre este assunto em espaços comuns de discussão pública, também no interior dos lares se tratava do assunto nas conversas durante as refeições. Enquanto se sentavam à mesa e comentavam as formas de transporte da sua produção para a feira do próximo fim de semana, José e Rosa partilhavam sua preocupação com o possível aumento da gasolina e do diesel, e também que o governo executivo estava a agir às expensas da vontade do povo. Ambos estavam conscientes de que o governo tomou o empréstimo com o FMI e, tal como nos anos anteriores, privilegiou o perdão dos bancos, gerando um processo inflacionário que o povo teria de suportar. Pensar nos seus problemas econômicos imediatos, nas questões econômicas nacionais e nas ações que deveriam tomar para resolver esses problemas fazia parte de um processo normal de vida, tal como comer juntos. Ainda que não caiba no escopo deste artigo um exame mais detalhado das múltiplas dimensões que envolvem a conexão entre a luta pela vida e a produção existencial e cotidiana da vida, é importante chamar atenção para a potência política e pedagógica desses entrelaçamentos. Para além dos debates sobre a politização da comida e do comer ( Menasche et al., 2020MENASCHE, R. et al. O lugar da cultura no debate sobre segurança alimentar e nutricional: um olhar a partir de Moçambique. Vivência: Revista de Antropologia, Natal, v. 1, n. 54, p 192-202, maio 2020. ), esses entrelaçamentos apontam para o que estamos entendendo inicialmente como uma pedagogia da comensalidade e da vida cotidiana . Isto é, entendemos o comer como um processo auto(hetero)educativo familiar que está intrincado com as mobilizações coletivas e que funciona como os fios de uma teia que conecta e alimenta uma rede de luta mais ampla. Essa nos parece uma perspectiva potente de análise, mas que ainda precisa ser aprofundada.

Embora as notícias sobre a próxima greve tenham sido amplamente divulgadas, outra caraterística importante mencionada pelos grevistas para iniciar os bloqueios foi a ação unilateral do governo: “ não fomos levados em consideração ”, “ ele agiu sem nos consultar ”, “ merecemos respeito porque somos povos e nacionalidades, por isso ele precisava nos consultar ”, relataram eles. Junto com a reivindicação relacionada à economia havia uma exigência de reconhecimento: de que os povos e nacionalidades têm capacidade política e jurídica para interferir nas decisões estatais e o reconhecimento dos povos indígenas em sua cidadania como equatorianos. Como o Equador é um Estado plurinacional, os povos indígenas e nacionalidades têm o direito de exigir a consulta prévia, informada e consentida de decisões que interfiram nos seus territórios. Assim, os comuneros partilharam não só o sentimento sobre o impacto econômico do ato governamental, mas também o sentimento de discriminação por serem marginalizados sobre o assunto.

A insatisfação que tal discriminação e marginalização trouxeram aos povos indígenas tem uma componente histórica. A memória de serem discriminados e marginalizados desde os períodos coloniais está presente no seu imaginário e é mesmo mencionada como caraterística que constitui a identidade indígena. Ser indígena numa sociedade moderna/colonial9 9 Com exceção de conhecidas lideranças políticas, os nomes usados aqui são fictícios porque nomear as pessoas explicitamente pode lhes causar dano, considerando a atual criminalização dos movimentos sociais no Equador. significou viver numa posição subalterna diante dos brancos/mestiços. Nesse sentido, todos os aspetos que poderiam ser associados ao ser “índio”,10 10 Moderno/colonial aqui é uma referencia ao conceito de modernidade/colonialidade desenvolvido pelos autores e autoras da perspectiva decolonial, e não uma referência apenas ao período de colonização do Equador. Nesse sentido, sociedade moderna/colonial se refere à construção racial da sociedade equatoriana contemporânea, uma racialização que é profundamente enraizada no passado colonial, com suas práticas, epistemologias e instituições. Para mais referências, consultar a obra de Aníbal Quijano. tais como falar as línguas nativas, usar roupas tradicionais e, especialmente, trabalhar a terra e viver em zonas rurais, tiveram representações e repercussões negativas na vida dos povos indígenas. No entanto, esses povos têm também lutado para desmantelar a objetificação simbólica e a opressão e exploração material que se segue àquela representação negativa. Esta luta, como mencionado anteriormente, começou desde os tempos coloniais e tem continuado ao longo dos séculos XX e XXI. Ser recordado do que significa ser indígena, no sentido negativo de pertencer a um grupo marginalizado, desencadeia também a memória das lutas do passado. Por exemplo, na sequência das declarações de que o governo agiu sem consultar o povo, os grevistas afirmaram que costumavam ser tratados como “índios”, mas há muito tempo já não o permitem. Desde as revoltas dos últimos séculos, seus antepassados lutaram para mudar essa condição e agora conquistaram o respeito que todos os cidadãos merecem.

Mesmo não sendo o foco deste artigo, o tema sensível da discriminação demanda reflexões adicionais. A outremização11 11 Índio é uma palavra historicamente usada para se referir a uma pessoa indígena. Como conceito colonial, é carregada de vários significados derrogatórios: iletrado (na educação espanhola), pessoa tradicional, que lavra a terra em áreas rurais, é o servente de um senhor de terras (tanto privadas quanto estatais) etc. Ser reconhecido como indígena, e não como índio, foi e ainda é uma luta para os povos indígenas. dos povos indígenas pela dominação colonial tem sido amplamente analisada sob a chave da “discriminação étnica”. Entretanto ressaltamos que essa discriminação apresenta evidentes contornos de racismo. O racismo é intrínseco às experiências dos povos indígenas não apenas porque eles foram tratados como coisas e suas culturas desqualificadas como bárbaras ( Paredes, 2018PAREDES, B. (ed.). O mundo indígena na América Latina: olhares e perspectivas. São Paulo: Edusp, 2018. ), mas também porque, em diversos períodos da história colonial no continente, essa população esteve, lado a lado com a população africana, submetida a regimes de trabalho escravo (Schwarcz; Santos, 2019). Contudo, ainda que se reconheça que “os Ameríndios foram os primeiros a serem escravizados, os trabalhos que mostram as consequências (e a continuação) dessa escravidão ainda recebem pouca atenção” ( Milanez et al., 2019MILANEZ, F. et al. Existência e diferença: o racismo contra os ovos indígenas. Revista de Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 2161-2181, 2019. , p. 2166). Essa “pouca atenção” dedicada à escravidão indígena muitas vezes tem como efeito a desconsideração do racismo como elemento constituidor do imaginário hegemônico sobre essa população, especialmente sobre o lugar que ela ocupa ou deveria ocupar nas sociedades imaginadas dos Estados-nação. Nossa ponderação busca evitar essa omissão – algo recorrente nos estudos que analisam as violências e violações contra os povos indígenas da América Latina. Também visamos elucidar que o racismo estruturante das relações de poder moderno-colonial ( Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 227-278. ) está fortemente presente (ainda que não dito) nas discriminações sentidas e retratadas nos testemunhos aqui reportados.

Assim, quando a memória dos anos 1990 emergir nas narrativas, além de ser importante fonte de inspiração para a luta do presente, ela também atua como ferramenta de visibilização positiva das contribuições dos povos indígenas para a construção da nação. Ademais, essa memória colabora para o combate ao racismo epistêmico e para a promoção de justiça cognitiva. Logo, a memória aos anos 1990 é mencionada tanto em alusão ao período em que o FMI interferiu no país como em associação aos “pais e avós” ( padres y abuelos ) que construíram as lutas do passado. Embora tal associação possa ser considerada como referência a gerações anteriores de várias décadas, os grevistas recordam principalmente os “levantamentos de junho” e os “levantamentos dos anos 1990”. Tal referência é seguida de declarações que também indicam outra motivação para lutar contra o Decreto 883: a necessidade de honrar as lutas anteriores e impedir novos retrocessos. Quando questionado sobre seus motivos para lutar agora, Mateus, um jovem comunicador, refletiu: “c omo nós não o faríamos? Não há necessidade de alguém nos chamar para a luta, nossos avós fizeram-no quando acharam necessário, nós também o fizemos ”. A memória do passado é ainda mais complexa na voz de Juan: “ uma verdadeira reforma agrária nunca aconteceu neste país, por isso precisamos continuar a lutar para alcançar os objetivos sempre presentes da nossa emancipação ”. Aqui, mais uma vez, a consciência de classe emerge enredada com a reivindicação étnica, juntamente com a recordação das dificuldades do passado que se desdobra no presente.

As condições de vida antes da greve vinham se deteriorando. No entanto, o ato governamental unilateral que iria aumentar os custos de vida dos mais pobres alimentou a sensação geral de insatisfação com a crise econômica. De fato, a memória do que significava viver nos anos 1990, quando um regime neoliberal foi implementado no país, e a memória das lutas dos antepassados canalizaram a insatisfação para a greve.

Jatarishun: o dia a dia da revolta indígena camponesa de 2019

A greve de nove dias requereu muito trabalho, energia, tempo, material e organização da parte dos grevistas. Enquanto alguns dos principais meios de comunicação social retratavam a greve como movimento de cooptação de esquerdistas, financiado por Nicolás Maduro, os grevistas mobilizavam suas redes para manter os bloqueios e as manifestações de forma autônoma. Os relatos de como a greve afetou a economia nacional e a vida quotidiana dos não grevistas estão bem documentados nas notícias: em última instância, quanto maior for o impacto nos negócios das elites, mais rapidamente o governo concorda em negociar com os grevistas. Mas quais são os efeitos da greve na vida dos próprios grevistas? Como eles mobilizaram suas redes para lidar com tais efeitos? Consideramos que a observação do quotidiano da greve contribui para explicitar o que está em jogo para os manifestantes quando estes vão para as ruas, bem como para dar lições de como as resistências e a alternativas estão sendo criadas nesta parte Sul do mundo.

Os repertórios de contestação mobilizados pelas comunidades indígenas camponesas durante a greve foram os mesmos das revoltas anteriores. Tilly (1995, p. 42, tradução nossa) afirma que o repertório

ajuda a descrever o que acontece ao identificar um conjunto limitado de rotinas que são aprendidas, partilhadas e atuadas através de um processo de escolha relativamente deliberado. Os repertórios são criações culturais aprendidas, mas não descendem da filosofia abstrata ou tomam forma como resultado de propaganda política; emergem da luta. […] as pessoas num determinado lugar e tempo sabem como realizar um número limitado de rotinas alternativas de ação coletiva, adaptando-se cada uma delas às circunstâncias imediatas e às reações dos antagonistas, autoridades, aliados, observadores, objetos da sua ação, e outras pessoas de alguma forma envolvidas na luta.

No caso das comunidades indígenas camponesas, as táticas de ação direta implementadas consistiram na realização de bloqueios em várias estradas nacionais, provinciais e comunitárias, cortando o transporte entre cidade e campo; organização de manifestações nos centros das cidades e participação em mesas redondas com o governo, seja com seus membros legislativos ou executivos. Tais táticas exigiram que as pessoas reunissem fundos, força de trabalho e tempo para realizá-las. Os grevistas afirmam que tiveram de mobilizar tais recursos de forma rápida e quase inesperadamente, uma vez que se dirigiram aos bloqueios e às marchas espontaneamente e sem prévio planejamento. Luis explica que marchou até Quito no dia 7 de outubro apenas com a roupa do corpo, sem provisões de comida ou água e sem saber onde iria passar a noite. No entanto os habitantes dos bairros periféricos de Quito lhes forneceram comida e água e ajudaram na organização de um acampamento antes que os manifestantes do interior do país chegassem ao centro da cidade. Nesse sentido, a solidariedade do “povo” de Quito com as comunidades indígenas camponesas foi estabelecida desde o início da greve nesses atos mundanos de alimentação e abrigo. Na extraordinariedade da greve, os participantes e apoiantes mobilizaram práticas ordinárias da vida quotidiana. É nesse sentido que afirmamos que o repertório de contestação não mudou em relação às revoltas anteriores: uma vez iniciada a greve, as pessoas não só utilizaram as táticas já conhecidas de ação direta. Elas também implementaram práticas ordinárias que serviriam como base material para sustentar a greve.

Em Cayambe, os bloqueios eram feitos com árvores cortadas, pedras, pneus (que seriam queimados à noite) e, especialmente, pessoas. Comuneros da comunidade de Pijal relataram que mobilizaram toda a comunidade – cerca de mil pessoas foram para os bloqueios próximos ao seu território ou marcharam a pé até Quito. Nem todas as comunidades mobilizaram seus membros, deixando as pessoas escolherem se iriam ou não aos bloqueios, mas o exemplo de Pijal dá uma dimensão do alcance da mobilização da greve. Os participantes nos bloqueios tinham papéis sociais e econômicos diferentes e precisavam adaptar suas condições de vida para cumprir suas obrigações diárias. Além de criar os bloqueios, era necessário organizar grupos rotativos de vigilância, distribuir alimentos e cumprir com as obrigações normais, tais como cuidar da família, cuidar do seu trabalho e se deslocar para a realização dessas tarefas. Os trabalhadores das plantações de flores foram um caso extremo: faziam turnos nas noites e madrugadas nos bloqueios e iam trabalhar de manhã nas plantações de flores para garantir que não seriam despedidos. Dentro dos lares, as negociações entre os membros da família ocorriam de modo que uma pessoa ia para o bloqueio enquanto a outra ficava em casa cuidando dos mais velhos. No entanto não ir aos bloqueios não significava não participar na greve: os que ficavam nos lares se reuniam nas casas comunais para cozinhar juntos e enviar água e provisões alimentares para os bloqueios. De fato, havia vários casos em que toda a família iria aos bloqueios, incluindo mulheres e crianças. Os produtores autônomos tiveram de decidir como lidar com sua produção diária e com a participação na greve: alguns tiveram de abandonar seus campos durante alguns dias ou, no caso dos produtores e produtoras de leite, como a Valeria, tiveram de acordar ainda mais cedo, por volta das 3 da manhã, para trabalhar. No entanto, devido aos bloqueios, tiveram de transportar a produção de leite para os centros de processamento a pé, percorrendo quilômetros para entregar o produto. Participar na greve e atender a outros aspectos da vida cotidiana representava um esforço de coordenação, colaboração e solidariedade que afetava não só a rotina das pessoas, mas também seus meios de subsistência. Nesse sentido, a greve não só afetou a chamada economia nacional ou os negócios das elites. A manutenção dos empregos, a realização de trabalhos de cuidado, a manutenção dos pequenos negócios e a produção para subsistência estavam também em jogo para os grevistas. Contudo o impacto do ato governamental teria efeito a longo prazo nos seus custos de vida, e os grevistas consideravam que era preferível suportar as perdas a curto prazo da participação na greve.

Na marcha a Quito, as pessoas esperavam que as manifestações durassem apenas um dia e não se prepararam para ficar mais que uma semana na cidade. Por esta razão, a solidariedade entre os habitantes de Quito e os grevistas foi uma caraterística substantiva dessa revolta. Milhares de pessoas vindas de outras partes do país se reuniram em universidades privadas, tais como as Universidades Salesiana, Católica, Andina Simón Bolívar e na Casa da Cultura de Quito. Esses lugares, e especialmente a Casa da Cultura, foram considerados “zonas de paz”, onde brigadas de saúde de jovens estudantes de medicina e outras carreiras de saúde recebiam feridos dos protestos. Efetivamente, a Casa se tornou também o principal abrigo para os grevistas, onde recebiam comida, medicamentos, água, roupa, colchões e cobertores dos habitantes da cidade. Sem esse apoio, seria materialmente difícil para eles manterem suas manifestações dia após dia em Quito. A coordenação e organização de tal logística dependiam de um “saber como” que as comunidades indígenas camponesas já possuíam não só de revoltas anteriores, como também da sua vida cotidiana. As mingas 12 12 “Outremização” é um termo recorrente na historiografia da escravidão e nos estudos críticos sobre o fenômeno do racismo e seus efeitos na experiência dos povos colonizados – particularmente dos povos africanos sequestrados. O termo diz respeito à construção discursiva colonial do outro como diferença inferior, desumanizada. A invenção do “negro” e do “índio” como outro colonial inferior está intrinsecamente relacionado à invenção do branco europeu como Outro colonizador (imperial), superior. comunitárias para obras são comuns na vida das comunidades indígenas camponesas e requerem o mesmo tipo de logística. Nas cerimônias do Inti Raymi (festival do sol), por exemplo, os comuneros organizam atividades durante vários dias, nas quais colaboram e coordenam recursos, trabalho e tempo para alimentar e entreter centenas de pessoas. Numa escala menor, a vida social no meio rural consiste em encontros de vizinhos e familiares para a organização de tais festejos ou cerimônias menores de aniversário, batismo, casamentos e funerais. Assim, saber como agir na greve já era conhecido pela maioria dos grevistas.

Embora os movimentos indígenas camponeses aplicassem táticas já conhecidas de ação direta, o repertório de contenção foi ampliado com inovações caraterísticas da conjuntura. Duas inovações principais tornam essa revolta diferente das anteriores: a utilização da comunicação direta por meio das redes sociais e a unificação do movimento em torno de apenas uma exigência: a derrogação do Decreto 883. A comunicação direta com grevistas em Quito pela plataforma Facebook e das mensagens no aplicativo WhatsApp, bem como a transmissão direta das suas atividades nos mesmos canais de comunicação, produziram um movimento mais dinâmico que poderia se articular de forma autônoma. A esse fenômeno, Mullo López et al. (2021, p. 1) denominaram “ação conectiva”, que diz respeito a uma ação dos movimentos sociais nas redes virtuais que “descoloniza a opinião dominante dos meios hegemônicos e gera uma solidariedade discursiva que reforça a ação coletiva”. Por exemplo, a difusão de imagens e vídeos ao vivo da repressão policial em contas privadas, bem como em perfis de meios de comunicação alternativos, foi crucial para reunir o apoio popular ao movimento. Habitantes indígenas e não indígenas de Quito foram para as ruas nos chamados “panelaços” motivados por esses materiais, porque viam as comunidades indígenas camponesas serem massacradas. Certa aliança entre mestiços/brancos com comunidades indígenas camponesas surgiu espontaneamente. Por causa disso, os líderes indígenas puderam representá-los nas negociações com o governo. Assim, falaram não só em nome de seus povos e nacionalidades especificamente, mas também em nome do povo equatoriano em geral.

De fato, tal representação também foi possível porque, a certa altura durante a greve, foi decidido em assembleias na Casa da Cultura que a mobilização tinha apenas um objetivo: reverter uma medida econômica. A exigência de derrogar o Decreto 883 prevaleceu sobre as reivindicações de “fora Lenin”, após um processo de reflexão sobre as consequências da pressão para derrubar Lenin Moreno: “ tiramos um presidente e o vice-presidente permanece, ou outro político fica com o poder, e implementam as mesmas medidas econômicas ”, explicou Mariana; “ não, não, entendemos que as coisas só chegariam ao normal com o fim do decreto, não com a retirada do presidente. Todos eles são marionetes nas mãos do FMI ”. Nesse sentido, as inovações são paradoxalmente complementares: por um lado, houve ainda mais capilarização e participação popular na greve, independentemente da agitação e organização dos líderes, emergindo da simultaneidade da comunicação por meio dos meios de comunicação social; por outro, da práxis da ação direta, o movimento decidiu se unir em torno de uma reivindicação. Nesse sentido, apesar da pluralização de sujeitos políticos com interesses políticos divergentes, houve unificação em torno de uma reivindicação econômica.

Pluralidade e unidade, neste caso, não parecem contraditórias: os povos indígenas mostraram durante a greve nacional em 2019 que é possível a convergência de dois aspectos da resistência, ou seja, que pode ser descentralizada e capilarizada, ao mesmo tempo em que é unificada. Em estudos agrários críticos, a resistência tem sido tratada de acordo com dois paradigmas diferentes: o da economia moral e o do conflito de classes. No primeiro caso, após a primeira publicação de James Scott (1976)SCOTT, J. C. The moral economy of the peasant: rebellion and subsistence in Southeast Asia.: Yale University Press, 1976. – “A economia moral do campesinato – rebelião e subsistência” – os camponeses se oporiam e resistiriam a regras hegemônicas, motivados por um sentimento de insatisfação e injustiça contra processos que alterariam suas vidas. A resistência aqui consistiria em atos diários com a intenção de se oporem a regras hegemônicas, que iriam desde atos materiais e simbólicos, tais como difamação, fuxicos, destruição de máquinas, boicotes individuais silenciosos a proprietários ou empreiteiros etc. Apesar de Scott (1985)SCOTT, J. C. Weapons of the weak: everyday forms of peasant resistance. London: Yale University Press, 1985. ter complexificado ainda mais a sua análise mais tarde em “Armas dos fracos – formas diárias de resistência campesina” para incluir a luta de classes como fonte de motivação para resistir, a principal mensagem que fica é a da vida cotidiana da resistência camponesa. Assim, o fato de os camponeses em várias instâncias em todo o mundo não estarem reunidos em partidos políticos ou outras instituições que serviriam de orientação ou de organização e liderança não deveria implicar que não estivessem a resistir às transformações agrárias.

No segundo paradigma, seguindo abordagens marxista-leninistas, os camponeses resistiriam às mudanças agrárias motivadas pelas lutas de classe, especialmente tendo em conta o desenvolvimento do capitalismo, em vários casos enredando a emergência de novas classes sociais às custas da exploração dos camponeses. Aqui a resistência é considerada como consequência dos conflitos de classe e exigiria uma consciência de classe e organização para ter efeito bem-sucedido na realidade. Nesse sentido, o processo considerado “natural” do campesinato seria seu desaparecimento, uma vez que o desenvolvimento do capitalismo seria uma consequência inevitável da evolução histórica – seja sob forma de capitalismo liberal ou capitalismo de estado.

A resistência das comunidades indígenas camponesas no Sul Global contra as instituições transnacionais neoliberais constitui um desafio a ambas as perspectivas, uma vez que elas não atuam apenas de uma ou de outra forma. É mais adequado pensá-las como movimentos que mobilizam táticas sincréticas, muitas vezes forjando novas estratégias de luta que escapam à compreensão dos modelos analíticos mencionados. Seria mais correto dizer que esses movimentos populares quase sempre oferecem elementos potentes para uma renovação teórico-metodológica crítica desses modelos.

Os povos indígenas construíram sua resistência ao longo de dois eixos de ação política: o primeiro foi desenhado sobre a arquitetura já existente de organização e coordenação das comunidades indígenas. Na sua análise das revoltas anteriores, em 2006, Colloredo-Mansfeld (2009COLLOREDO-MANSFELD, R. Fighting like a community: Andean civil society in an era of Indian uprisings. Chicago: University of Chicago Press, 2009. , p. 179, tradução nossa) assinalou esse primeiro eixo afirmando que “na realidade das revoltas, o know-how organizacional e a consciência política estão amplamente distribuídos”. O segundo eixo consistiu na rotina de resistência descrita, que também se baseou em práticas já conhecidas da vida cotidiana, com a incorporação de algumas inovações. De fato, outro nível de politização merece uma análise mais aprofundada, sendo apenas brevemente mencionado aqui: a politização ao nível da casa (ou a politização do doméstico). Dessa forma, consideramos importante reconhecer o valor das atividades realizadas neste espaço para a continuação dos processos de vida durante a greve.

A resistência se constituiu tanto da rotina como da organização , e mais além . Não dependia apenas de liderança, mas também não era sem rosto, assim como não foram apenas atos individuais de rebeldia. Foi intencional, coordenada e capilar. Assim, consideramos que ambos desempenharam um papel importante: o poder duradouro da greve dependia tanto de atos diários com a intenção de se oporem a regras hegemônicas, como também da sua organização interna. No entanto, mais do que apenas opor-se a regras hegemônicas, os MICS propuseram também uma alternativa econômica ao país.

O parlamento popular e a proposição de alternativa econômica para o país

No final da noite de 13 de outubro, líderes de diferentes organizações indígenas camponesas (Conaie, Ecuarunari, Confederações dos Povos e o Movimento Camponês de Cotopaxi) se reuniram em Quito para finalmente negociar com os representantes do governo o fim da greve. Lenin Moreno disse que estaria na reunião, mas compareceu durante alguns minutos apenas para assinar a carta de acordo, afirmando que retiraria o Decreto 883. Em Cayambe, os grevistas que estavam no turno da noite nos bloqueios assistiram à negociação na tela dos seus celulares.

Reunidos ao redor de celulares, toda a atenção se voltava para o que estava sendo discutido na mesa redonda. Ansiedade e cansaço podiam ser sentidos nos olhos das pessoas. Como em outras noites, o vento frio os incomodava, especialmente aqueles com as mãos expostas enquanto mostravam os celulares ao público. Em Quito, as pessoas nas zonas de paz estavam exaustas e discutiam a desistência da greve. Nos dias 9 e 10 de outubro, a repressão foi excruciante, com ataques da polícia e do exército até na Casa da Cultura. Vídeos nos quais as brigadas de primeiros socorros imploraram para a polícia parar, uma vez que estavam apenas a ajudar pessoas feridas, circularam nos meios de comunicação social e chocaram os que acompanhavam o desenrolar da greve. Apesar de estarem cansados com a rotina de greve, os grevistas decidiram que acompanhariam a resistência por meio de outras táticas; talvez deixando Quito e reforçando os bloqueios no campo, por exemplo. Dentro das universidades e da Casa da Cultura, as pessoas assistiam ao encontro em diferentes canais de comunicação, esperando que a greve terminasse em breve. De olho na negociação, os comuneros também esperavam que sua demanda fosse satisfeita. Olhar para o que seus representantes estavam a fazer não era apenas uma questão de acompanhar o que iria acontecer à greve nas horas seguintes, era também uma questão de observar se seus líderes os trairiam.

A mesa de negociação contou com representantes das Nações Unidas no Equador e da Conferência Episcopal como apoiadores e observadores do processo. Vários homens adultos e uma mulher de organizações indígenas camponesas estiveram na negociação com burocratas estatais, também principalmente homens. Às 21h45, o representante da ONU no Equador anunciou que o governo aceitou a derrogação do Decreto 883, mas as negociações entre representantes estatais e líderes indígenas iriam continuar naquela noite. A greve tinha terminado, mas ainda havia assuntos de justiça a se discutir. Mais de mil pessoas ficaram feridas durante a greve, recebendo pouca ou nenhuma atenção de saúde do Estado. Onze pessoas foram assassinadas durante os protestos, e o governo mascarou sua responsabilidade com narrativas de que foram mortes acidentais. Vários líderes foram processados por aquilo que o governo chamava de “atos de terrorismo”. Tal como durante a greve, os comuneros tiveram de oferecer alternativas para resolver estes problemas, encontrando soluções no âmbito da política comunitária.

Uma das alternativas era a proposta de políticas de “justiça transicional”, no âmbito da justiça indígena. Como os povos e nacionalidades têm jurisdição sobre seus próprios territórios, a aplicação da justiça indígena foi alargada aos casos relacionados com a greve. Durante a greve, a justiça indígena fez reféns oficiais da polícia, e após a greve reconheceu em assembleias pessoas feridas e assassinadas como “heróis da greve”. Assim, uma vez que o Estado não agiu para compensar as famílias das pessoas assassinadas ou dos feridos durante a greve, as comunidades assumiram a responsabilidade pela política de reparação. Nas assembleias, para além de reconhecer publicamente o papel dos participantes na greve, os comuneros recolheram contribuições monetárias de cada comunidade e as distribuíram entre os que necessitavam de tratamento médico. Além disso, os participantes da assembleia tiveram oportunidade de falar sobre a greve, partilhando seus testemunhos e histórias, gerando um momento catártico de cura mental coletiva, bem como reforçando as memórias dessa revolta. A justiça indígena trabalhou para revelar a verdade, criando memória e proporcionando reparação como alternativa à injustiça estatal.

Ademais, após a greve, organizações indígenas convidaram outras organizações sociais, um conjunto de representantes de movimentos sociais que participaram na greve, a formar um Parlamento dos Povos, Coletivos e Organizações Sociais do Equador (referido aqui também como Parlamento Popular). Essa alternativa para a Assembleia Nacional tinha o objetivo de imaginar um novo futuro para o país. Refletindo a insatisfação popular com as instituições liberais, esse Parlamento foi constituído por pessoas voluntárias que queriam contribuir para a elaboração de propostas alternativas para o Equador. Muitas vezes, durante conversas antes e depois da greve, as pessoas afirmavam que os congressistas recebiam muito salário para nada fazerem. O mesmo em relação ao presidente e a outros funcionários do Estado, bem como a ex-presidentes. Nesse sentido, as instituições estatais estavam desacreditadas na opinião pública. O Parlamento Popular preencheria a lacuna da representação de tais instituições. Uma pluralidade de agentes sociais participou nesse Parlamento, trabalhando para criar consensos, canalizando convergências e negociando divergências entre diferentes projetos políticos.

Semelhante à postura propositiva dos anos 1990, os MICs apresentaram ao secretário da Presidência um documento intitulado “Proposta ao país”, que propunha um “modelo econômico plurinacional orientado para Sumak Kawsay (Bem Viver)” (tradução nossa). Tal modelo proporcionaria as “condições sociais, institucionais e produtivas para gerar o bem-estar de todos em condições de justiça social, equidade, redistribuição e respeito pelos direitos da natureza, direitos coletivos e direitos humanos”. Desse modo, para além de ser contra as medidas econômicas que o governo tinha imposto ao povo para atender às condicionalidades do FMI, os MICs propuseram também uma alternativa para alterar o modelo econômico. Assim, uma visão plurinacional da economia implicava compreender o sistema econômico na sua complexidade, com outras formas econômicas a desempenhar também um papel importante: reciprocidade e complementaridade em coexistência com o mercado. De fato, tal visão considera a relacionalidade como princípio que guia a sustentabilidade da vida. Assim, é necessária uma transição da visão capitalista, orientada para o crescimento econômico, para outra forma de relacionalidade, na qual a sociedade, a natureza e a produção estão em relação e devem trabalhar para mitigar os efeitos das alterações climáticas e das perdas de biodiversidade. Mais uma vez, suas propostas foram para além da chamada questão étnica, entrelaçaram o que poderia ser considerado uma agenda progressiva com a cosmovisão indígena.

Para além de enunciarem novos princípios para um modelo econômico alternativo, propuseram mudanças concretas no sistema econômico nacional, com propostas de políticas públicas. Primeiro, opuseram-se à privatização das empresas que prestam serviços públicos, bem como à flexibilização do trabalho. Em segundo lugar, abordaram o papel das economias comunitárias e camponesas como fundamental para reativar a economia nacional, gerando emprego. Em terceiro lugar, propuseram uma transformação integral das finanças públicas, com a criação de um sistema financeiro plurinacional. Ademais, abordaram a importância da universalização da seguridade social, especialmente para os trabalhadores rurais. Finalmente, lançaram luz sobre possíveis formas de sair do extrativismo, com mudanças na matriz energética nacional. As políticas fiscais, monetárias, tributárias, de crédito, setoriais e sociais foram elaboradas como base dessa proposta. Foi um documento complexo que permitiu diagnosticar e prescrever uma crise econômica que precisava ser enfrentada com várias transformações em diversos setores econômicos, políticos e sociais. Mais uma vez, os MICs relacionaram a redistribuição ao reconhecimento, mostrando a interseccionalidade entre identidade e política de classe.

Meses após a greve nacional, a pandemia de Covid-19 atingiu severamente o Equador. Apesar disso, um ano mais tarde, os MICs apoiaram um candidato do partido Patchakutik 13 13 Do kichwa minka. Substantivo [ minka , miŋga], trabalho comunal (Ministerio de Educación Ecuador, 2008, p. 99). No contexto andino, as mingas são os mutirões de trabalho comunitário para realização de obras públicas e privadas, bem como atividades agrícolas como semeadura e colheita. nas eleições presidenciais. Ambas as situações alteraram o cenário para a ação política dos povos indígenas. Em resposta tanto à pandemia como à eleição de um candidato de direita, o Parlamento dos Povos publicou outro documento, “Minga por la vida”, que expandia a alternativa econômica para o país e abordava os desafios de recomposição da sociedade pós-pandêmica e exorta o novo governo a não implementar uma agenda neoliberal no país. Tanto a pandemia como as eleições não são analisadas neste artigo, mas devem ser consideradas para compreender melhor a ação conjuntural das comunidades indígenas.

Propomos aqui uma interpretação decolonial desses projetos alternativos que têm sido forjados nas resistências indígenas e que abarcam um ideal de bem viver para toda a sociedade equatoriana. Quijano (2014)QUIJANO, A. “Raza”, “Etnia” y “Nación” em Mariátegui: cuestiones abiertas. In: QUIJANO, A. Cuestiones y horiontes. Buenos Aires: Clacso, 2014. p. 758-775. lembra que, na América Latina, nunca houve a fundação de uma república com a participação dos dominados. Isso porque, segundo o autor, a identificação das elites mestiças com os interesses dos brancos (europeus e estadunidenses) impossibilitou um projeto próprio de nação que incluísse os povos indígenas e africanos na constituição de uma identidade continental livre do fardo colonial. Ao contrário, a construção do Estado-nação representou a continuidade da colonialidade do poder sob novas bases institucionais. Como resultado, houve a configuração de uma situação paradoxal na América Latina, que combina Estados independentes com sociedades coloniais.

Não obstante, é também em Quijano que encontramos o entendimento de que essa violência fundacional não foi capaz de eclipsar de forma definitiva a potência criadora de “reoriginação do mundo” intrínseca aos povos colonizados. É graças a essa potência criadora, aliás, que os povos indígenas e afrodiaspóricos têm conseguido resistir ao solapamento de seus territórios de vida sem sucumbir aos projetos progressistas e desenvolvimentistas do capitalismo moderno-colonial. Para Quijano, os movimentos de resistência dos povos colonizados representam o “retorno do futuro”, isto é, um protagonismo reoriginador que, longe de constituir o utopismo idealista de um futuro que está por vir, conformam um presente histórico realmente existente que já está aí:

emerge outro horizonte de sentido histórico que já está aqui, que já está começando; porque não é só o discurso, não são só assembleias, estão organizando suas comunidades, […] estão organizando outra forma de autoridade política no mundo que terá de competir e entrar em conflito com o Estado ( Quijano, 2009QUIJANO, A. Outro horizonte de sentido histórico. América Latina en Movimiento, Quito, n. 441, 2009. Disponível em: https://www.alainet.org/es/articulo/141203. Acesso em: 22 mar. 2022.
https://www.alainet.org/es/articulo/1412...
, p. 2).

Em consonância com Quijano, Segato analisa esse protagonismo como “ressurgimento contemporâneo” dos sujeitos obliterados (indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais). Um movimento que conjuga “formas de vida arcaicas, que se revitalizam, e projetos históricos do presente, que nelas se enraízam e que delas bebem. Linhas históricas e memórias seccionadas são restauradas, revividas e ganham continuidade” (Segato, 2021, p. 75). Entendemos que os projetos de bem viver das comunidades indígenas camponesas equatorianas constituem exemplos potentes de “reoriginação do mundo”, de “retorno do futuro” e de “ressurgimento contemporâneo”. Nesse sentido, esses projetos evocam a ideia de “transmodernidade” que segundo Dussel (2016)DUSSEL, E. Transmodernidade e interculturalidade: interpretação a partir da filosofia da libertação. Revista Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 31, n. 1, p. 51-73, 2016. Dossiê: Decolonialidade e Perspectiva Negra. designa práticas político-epistêmicas investidas de pluriversalidade como alternativas que resistem ao projeto civilizatório monocultural. Esses termos, que aqui nos permitem ampliar os sentidos transgressivos das lutas e das pautas dos povos indígenas, consubstanciam a ideia de giro decolonial como estratégia de:

recuperação das pistas abandonadas rumo a uma história diferente, um trabalho nas brechas e fraturas da realidade social existente, dos restos de um naufrágio geral de povos que mal sobreviveram ao massacre material e simbólico continuo ao longo de quinhentos anos de colonialidade, de esquerda e de direita. […] O giro decolonial fala dessa esperança e desse caminho nas fendas do que sobreviveu sob o domínio injusto de colonizadores ultramarinos e governos republicanos ( Segato, 2021SEGATO, R. Crítica da colonialidade em oito ensaios: uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021. , p. 73).

Com efeito, presentificar os projetos de nação que as comunidades indígenas camponesas do Equador e da América Latina como um todo têm imaginado e cocriado coletivamente nos dias atuais é algo tomado, aqui, como recurso linguístico. O uso de tal recurso objetiva enfrentar o racismo epistêmico (as colonialidades de poder/ser/saber) presente nos imaginários hegemônicos e que segue desacreditando a agencialidade histórica e política desses povos. Assim, presentificar nos permite afirmar os projetos de bem viver como utopias possíveis, realmente existentes, que já estão acontecendo. São, nesse sentido, projetos de vida que resistem aos neoextrativismos da lógica econômica progressista e desenvolvimentista; conformam um caminho civilizatório baseado em relações de cuidado e reciprocidade entre culturas-naturezas que, por isso mesmo, é capaz de fomentar comunidades mais que humanas. Enfim, quando presentificamos, conferimos visibilidade positiva a esses projetos de vida. Ademais, reafirmamos que tais projetos têm viabilidade social, política e econômica, uma vez que já acontecem na realidade das comunidades indígenas camponesas. E finalmente, reafirmamos que eles geram justiça social, territorial, ecológica e epistêmica para todos os humanos e, também, para os não humanos (os rios, as florestas, os animais, os encantados).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ouvir atentamente as vozes dos comuneros que participaram da greve nacional de 2019 foi o ponto de partida deste artigo. Afirmaram, em várias ocasiões, a importância de revoltas anteriores para motivar sua ação política. No empreendimento analítico que desenvolvemos aqui, recordar o que aconteceu nas revoltas dos anos 1990 proporcionou vias para compreender como os povos indígenas teceram articuladamente reivindicações étnicas e de classe, ampliando os espaços políticos de participação popular e propondo uma acepção expandida de cidadania. De fato, sua ação política tornou explícito o encontro e confronto de ideias do seu tempo, que era pensar e agir sobre o imaginário neoliberal.

Autores como Becker (2008)BECKER, M. 2008. Indians and leftists in the making of Ecuador’s modern Indigenous Movements. London: Duke University Press, 2008. , Becker et al. (2009)BECKER, M. et al. Historia agraria y social de Cayambe. Quito: Abya-Yala, 2009 e Inuca Lechón (2017)INUCA LECHÓN, J. Genealogía de Alli Kawsay – Sumak Kawsay (Vida Buena – Vida Hermosa) de Las Organizaciones Kichwas del Ecuador desde mediados siglo XX. Latin American and Caribbean Ethnic Studies, [s. l.], v. 12, n. 2, p. 155-176, 2017. já afirmavam que as questões étnicas estavam presentes nas exigências dos povos indígenas do Equador no passado, quando atuavam e exigiam direitos no âmbito do que é considerado lutas de classe. O que é novo nas revoltas dos anos 1990 é que as suas vozes foram suficientemente audíveis para perturbar o status quo . Os ouvidos surdos da sociedade branca/mestiça e das instituições do Estado-nação ficaram demasiado perturbados e surpreendidos para ignorá-los. Nesse sentido, as mobilizações dos MICs surpreenderam, porque a sociedade embranquecida não tinha os instrumentos epistêmicos para compreender as exigências dos povos indígenas de então. Um longo processo de encontro e confronto de ideias continuou desde os anos 1990, com as cosmovisões indígenas sendo incorporadas nos documentos constitucionais em 1998, quando o país foi considerado uma nação intercultural, e em 2008, quando a constituição inaugurou o Equador como um país plurinacional. Neste artigo, defendemos a continuidade desse processo, mostrando como a greve nacional de 2019 e as mobilizações dos anos 1990 estão concretamente interligadas na práxis das comunidades indígenas camponesas. Além disso, buscamos demonstrar que as lutas dos MICs tinham muitas nuances e não eram centradas apenas em questões étnicas e, portanto, não eram cooptáveis pelos governos que dão brechas de inclusão no sistema.

Nesse sentido, as revoltas dos anos 1990 representaram uma continuidade com as lutas das comunidades indígenas do passado, denominadas na literatura como lutas camponesas. Recuperamos também a ligação entre os povos indígenas e os camponeses, e os denominamos como comunidades indígenas camponesas para indicar essa continuidade, mais do que a ruptura do movimento indígena com as suas “raízes camponesas”. A ideia aqui não é essencializar os povos indígenas, mas indicar sua pluralidade. Vários autores já afirmaram que os povos indígenas se constituíram no começo do século XX como um “novo” ou o “mais importante” ator político (Guerrero 1995; Lucero, 2008LUCERO, J. A. Struggles of Voice: the politics of indigenous representations in the Andes. Pittsburg: University of Pittsburg Press, 2008. ). Contudo compreendemos que a memória histórica desempenha um papel importante na autoidentificação dos atores sociais como sujeitos políticos. Atuando como alteridades históricas, em vez de identidades políticas, os sujeitos das revoltas de 1990 foram um “prelúdio para uma presença constante, que durante a década dos anos noventa e mais além teria múltiplos desdobramentos, marcados pelos segmentos heterogêneos que a compõem” ( Cervone, 2009CERVONE, E. Long live Atahualpa: indigenous politics, justice and democracy in the Northern Andes. London: Duke University Press. 2009. , p. 152).

De fato, prestar atenção ao que aconteceu na rotina da greve também forneceu pistas sobre as formas de resistência que as comunidades indígenas camponesas desempenham hoje em dia. Descrever não só as ligações a longo prazo com revoltas anteriores, mas, também, o que aconteceu antes, durante e depois da greve significou não só adotar uma perspectiva metodológica, mas uma postura epistemológica: a de encontrar sujeitos políticos na sua práxis de subsistência. Tal práxis emerge não só na vida cotidiana nem apenas nas cabeças dos líderes dos MICs, mas depende de uma estrutura complexa que canaliza a participação popular, articulando-a e coordenando-a. Nesse sentido, repensar os instrumentos conceituais para compreender os movimentos sociais e a resistência no Sul Global pode ser enriquecido no encontro de outras perspectivas – não apenas de classe ou identidade, não apenas autonomista baseada na vida cotidiana, nem dependente apenas da organização e coordenação. Pode ser tudo isso e mais além. No entanto, a resistência reflete alterações de sujeitos que atuam na história, tecendo conjunturas, memória e cotidianidade nas suas vidas políticas. As comunidades indígenas camponesas são, portanto, sujeitos do seu tempo.

Por fim, é importante destacar que, embora façamos ligações entre a greve nacional de 2019 e as revoltas de 1990, isso não significa que os anos da primeira década do século XXI sejam anulados, nem pelas autoras nem pelos MICs. Os anos 2010 foram uma década que já recebeu atenção de vários autores que tendem a ver a relevância dos MICs em função dos seus considerados fracassos. Ao contrário, sugerimos que é necessário olhar com mais atenção para o movimento dessa época. Por exemplo, consideramos relevante entender como os conceitos de plurinacionalidade, interculturalidade e Sumak Kawsay foram discutidos na Assembleia Constituinte e como evoluíram nos anos seguintes, olhando para o yachak tinkuy dessa década e suas complexidades. Com efeito, sugerimos ser necessária mais investigação histórica sobre a forma como a participação dos MICs se deu no governo do presidente Rafael Correa e como se relacionaram com outros setores da sociedade equatoriana. Finalmente, convocamos outros pesquisadores a considerar os argumentos aqui apresentados à luz de outros projetos e teorias políticas alternativas, especialmente a dos autonomistas e anarquistas, para ampliar o debate e complexificar a análise das estruturas de agência das comunidades indígenas e camponesas, bem como aprender com elas outras formas de fazer política.

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  • 1
    Esse estudo foi possível graças à colaboração das e dos interlocutores e da bolsa de estudos do Instituto de Altos Estudos Internacionais e de Desenvolvimento”
  • 2
    O huasipungo ou wasi pungu (do kichwa wasi – casa e pungu – porta) consistia em um sistema servil, em que as pessoas trabalhavam para um fazendeiro em troca do direito de lavrar e viver em um pequeno pedaço de terra em vez de receber um salário.
  • 3
    As discussões sobre Sumak Kawsay e o termo equivalente no contexto boliviano, Suma Qamaña, começaram a ter visibilidade no Equador e na Bolívia a partir de meados dos anos 2000. Atualmente, as expressões passaram as fronteiras nacionais e são referencia em debates múltiplos em outros países, com literatura publicada em kichwa, aymara, espanhol, português, inglês, alemão, francês. A origem e as possíveis traduções da expressão são fonte de debate e, portanto, não há consenso sobre uma tradução correta. Atualmente, há diferentes genealogias publicadas sobre a expressão. Hidalgo-Capitán et al. (2017)HIDALGO-CAPITÁN, A. et al. Genealogy of Latin American good living (buen vivir): the (Triune) good living and its diverse intellectual wellsprings. In: CARBONIER, G. (ed.). Alternative pathways to sustainable development: lessons from Latin America. Leiden: Brill, 2017. v. 9, p. 23-50. defendem que o Sumak Kawsay é um fenômeno social amazônico, promovido por indígenas do povo kichwa de Pastaza. David Cortez (2010)CORTEZ, D. Genealogía del “buen vivir” en la nueva constitución ecuatoriana. In: FORNET-BETANCOURT, R. Gutes Leben als humanisiertes Leben: Vorstellungen vom guten Leben in den Kulturen und ihre Bedeutung für Politik und Gesellschaft heute. Studien zur Befreiung und Interkulturalität, Berlin, n. 30, p. 227-248, 2010. Disponível em: https://homepage.univie.ac.at/heike.wagner/SUMAK%20KAWSAY%20EN%20ECUADOR.%20DAVID%20CORTEZ.pdf
    https://homepage.univie.ac.at/heike.wagn...
    se refere ao Sumak Kawsay como uma expressão andino-amazônica. Já José Inuca Lechón (2017)INUCA LECHÓN, J. Genealogía de Alli Kawsay – Sumak Kawsay (Vida Buena – Vida Hermosa) de Las Organizaciones Kichwas del Ecuador desde mediados siglo XX. Latin American and Caribbean Ethnic Studies, [s. l.], v. 12, n. 2, p. 155-176, 2017. e Kauffman et al. (2014)KAUFFMAN, C. et al. Scaling up buen vivir: globalizing local environmental governance from Ecuador. Global Environmental Politics, Cambridge, v. 14, n. 1, p. 40-58, 2014. identificam raízes andinas da expressão, usada tanto por povos kichwa de Pichincha e de Tungurawa, respectivamente. Sarah Radcliffe (2015)RADCLIFFE, S. Dilemmas of difference: indigenous women and the limits of postcolonial development policy. Durham: Duke University Press, 2015. relata que suas interlocutoras na província de Chimborazo também afirmaram que conheciam a expressão Sumak Kawsay antes da aprovação da nova constituição do Equador. Aqui adotamos a tradução buen vivir oferecida pelo Parlamento dos Povos, Coletivos e Organizações Sociais do Equador em seu documento “Proposta ao país”, analisado com mais detalhe na última sessão desse artigo; e a tradução “bem viver”, comumente usada em português.
  • 4
    Expressão kichwa. Yachay , substantivo [yačay] que significa sabedoria, inteligência, juízo, raciocínio ( Ministerio de Educación Ecuador, 2009MINISTERIO DE EDUCACIÓN ECUADOR. Kichwa Yachakukkunapa Shimiyuk Kamu: Kichwa-Castellano. Quito: Ministerio de Educación Ecuador, 2009. , p. 157). Tinkuy , substantivo derivado do verbo tinkina [tiŋgina], que significa apegar, unir, juntar. Também usado com o significado de briga ritual ( Ministerio de Educación Ecuador, 2009MINISTERIO DE EDUCACIÓN ECUADOR. Kichwa Yachakukkunapa Shimiyuk Kamu: Kichwa-Castellano. Quito: Ministerio de Educación Ecuador, 2009. , p. 196).
  • 5
    Colonialidade do poder, como explica Aníbal Quijano (2005)QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 227-278. , se refere ao processo de racialização de inúmeras populações com o objetivo de explorar seu trabalho. Tal processo é constitutivo do capitalismo, sendo a raça um dos eixos da matriz capitalista. Esse processo começa com a colonização das Américas no século XV, mas permanece em períodos pós-coloniais, uma vez que é constitutivo também da Modernidade. Colonialidade e Modernidade são, ambos, partes da formação capitalista dos Estados-nações.
  • 6
    Propriedade rústica: o prédio rústico é um termo do direito equatoriano e se refere aos prédios que se localizam fora das zonas urbanas ou suburbanas e se destinam ao uso agrícola, mineiro, pesqueiro, florestal ou de preservação ecológica.
  • 7
    No Equador, as comunidades indígenas camponesas se organizam, no geral, em uma estrutura de diferentes escalas. No nível local, há as consideradas organizações de base, como as comunas e associações, que são as primeiras unidades de organização das famílias. Depois, há as chamadas “organizações de segundo grau”, que agrega as organizações de base em torno de um tema ou pertencimento territorial, como os comitês de páramo, juntas de água, união de comunidades. Há ainda as Confederações e Federações de Povos, que é o sujeito jurídico que engloba todas as comunas, associações e organizações de segundo grau, de acordo com uma base étnica ou de pertencimento territorial. No nível regional, na região Andina, há a Ecuarunari, anteriormente mencionada, que agrega os povos. E, nacionalmente, há diferentes organizações indígenas, com a Conaie sendo a que tem maior expressão e aderência. Apesar de estar estruturado em diferentes entidades e escalas, isso não significa que as organizações de base são menos importantes, ou que a Conaie e a Ecuarunari têm a última palavra em termos de políticas indígenas. Essa estrutura reflete um formato de tomada de decisão e ação política capilarizado e descentralizado, nas quais as organizações locais, regionais e nacionais são interdependentes.
  • 8
    Termo local usado para se referir às pessoas que habitam comunas, nome jurídico das comunidades.
  • 9
    Com exceção de conhecidas lideranças políticas, os nomes usados aqui são fictícios porque nomear as pessoas explicitamente pode lhes causar dano, considerando a atual criminalização dos movimentos sociais no Equador.
  • 10
    Moderno/colonial aqui é uma referencia ao conceito de modernidade/colonialidade desenvolvido pelos autores e autoras da perspectiva decolonial, e não uma referência apenas ao período de colonização do Equador. Nesse sentido, sociedade moderna/colonial se refere à construção racial da sociedade equatoriana contemporânea, uma racialização que é profundamente enraizada no passado colonial, com suas práticas, epistemologias e instituições. Para mais referências, consultar a obra de Aníbal Quijano.
  • 11
    Índio é uma palavra historicamente usada para se referir a uma pessoa indígena. Como conceito colonial, é carregada de vários significados derrogatórios: iletrado (na educação espanhola), pessoa tradicional, que lavra a terra em áreas rurais, é o servente de um senhor de terras (tanto privadas quanto estatais) etc. Ser reconhecido como indígena, e não como índio, foi e ainda é uma luta para os povos indígenas.
  • 12
    “Outremização” é um termo recorrente na historiografia da escravidão e nos estudos críticos sobre o fenômeno do racismo e seus efeitos na experiência dos povos colonizados – particularmente dos povos africanos sequestrados. O termo diz respeito à construção discursiva colonial do outro como diferença inferior, desumanizada. A invenção do “negro” e do “índio” como outro colonial inferior está intrinsecamente relacionado à invenção do branco europeu como Outro colonizador (imperial), superior.
  • 13
    Do kichwa minka. Substantivo [ minka , miŋga], trabalho comunal (Ministerio de Educación Ecuador, 2008, p. 99). No contexto andino, as mingas são os mutirões de trabalho comunitário para realização de obras públicas e privadas, bem como atividades agrícolas como semeadura e colheita.
  • 14
    O Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik é um movimento político que representa os interesses do movimento indígena liderado pela Conaie. Atualmente, é a pessoa jurídica que disputa as eleições no Equador, representando a agenda política partidária dos movimentos indígenas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2022
  • Aceito
    21 Mar 2022
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