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URBANIDADES COMPLEXAS: considerações sobre o envelhecimento das cidades

COMPLEX URBANITIES: considerations on the aging of cities

URBANITES COMPLEXES: considérations sur le vieillissement des villes

Resumos

O texto constitui uma reflexão sobre o envelhecimento urbano e os desafios trazidos ao urbanismo e às ciências sociais. Numa assumida preferência pela interdisciplinaridade, o texto resgata alguns contributos teóricos (como os de G. Simmel, J. Jacobs, R. Smithson e Sh. Zukin) que são tratados com referência a diversos projetos urbanos (de Brasília a Pruitt-Igoe até a Torre Capsular de Nagakin). São também mobilizadas linguagens e disputas múltiplas, com destaque para as visões modernas da disputa clássica entre anti-intervencionistas e restauracionistas. O autor atribui centralidade à questão da demolição do edificado e questiona os seus efeitos para uma desejável preservação da cultura e da história das cidades. Ao terminar, mostra sua esperança no trabalho conjunto de urbanistas e cientistas sociais.

Palavras-Chave:
Envelhecimento Urbano; Edifícios Decadentes; Ruína Urbana; Demolição; Autenticidades Urbanas


The text presents a reflection on urban aging and the challenges brought to both urbanism and the social sciences. In an assumed preference for interdisciplinarity, the text rescues some theoretical contributions (such as those of G. Simmel, J. Jacobs, R. Smithson, and Sh. Zukin) that are treated as reference to various urban projects (from Brasília to Pruitt-Igoe to the Nagakin Capsule Tower). Multiple languages and disputes are also brought to the discussion, with an emphasis upon the current views of the classic anti-interventionists and restorationists dispute. The author attributes centrality to the issue of demolition of buildings and questions its effects for a desirable preservation of the culture and the history of cities. Finally, he reveals his hope in the joint work of urban planners and social scientists.

Keywords:
Urban Aging; Decaying Buildings; Urban Ruin; Demolition; Urban Authenticities


Le texte présente une réflexion sur le vieillissement urbain et les défis posés à l’urbanisme et aux sciences sociales. Dans une prédilection assumée pour l’interdisciplinarité, le texte récupère quelques contributions théoriques (par exemple celles de G. Simmel, J. Jacobs, R. Smithson et Sh. Zukin) qui sont prises comme des réferences pour divers projets urbains (de Brasília à Pruitt-Igoe à la Nagakin Capsule Tower). De multiples langages et contestations sont également mobilisés, mettant en évidence des vues modernes de la dispute classique entre anti-interventionnistes et restaurateurs. L’auteur attribue une centralité au thème de la démolition des bâtiments et s’interroge sur ses effets pour une préservation souhaitable de la culture et de l’histoire des villes. Enfin, il révèle son espoir dans le travail conjoint des urbanistes et des spécialistes des sciences sociales.

Mots-Clés:
Vieillissement Urbain; Bâtiments en Décomposition; Ruine Urbaine; Demolition; Authenticités Urbaines


INTRODUÇÃO

De repente, por algum motivo, pensei em Brasília cujos prédios começam a mostrar sinais de envelhecimento. A cidade foi inaugurada em 1960 e a sua construção resultou de um exercício multidisciplinar de harmonização entre o urbanista Lúcio Costa, o arquiteto Óscar Niemeyer e o paisagista Roberto Burle Marx. Foi um perfeito exercício de articulação entre áreas de especialidade não muito distantes entre si e quase íntimas. A implantação urbana da cidade em espaço aberto, constituindo à época uma verdadeira experiência construtiva original, condicionou a dimensão dispersa do desenho urbano conduzida com manifesto otimismo, talento e audácia incontornáveis, capaz de gerar, segundo Adrián Gorelik, uma “longuíssima sedimentação” da identidade relacional e cidadã dos sujeitos com os edifícios e os lugares (Gorelik, 2005GORELIK, A. Das vanguardas a Brasília. Cultura urbana e arquitectura na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.).

Esta referência a Brasília serve como epígrafe a esta reflexão sobre a desejável aproximação de perspetivas disciplinares como a arquitetura e as ciências sociais e, entre estas, a sociologia em particular. Essa discussão será feita questionando a função dos edifícios antigos, devolutos ou sujeitos à demolição em contextos urbanos contemporâneos. Tal questionamento está em larga medida relacionado ao fato de estes edifícios, ainda que funcionalmente ativos, continuarem a desafiar múltiplas possibilidades estéticas e projetos urbanísticos, desde a sua manutenção à reconversão e, no limite, à demolição.

As origens de tal questão recuam até ao célebre debate entre, de um lado, o anti-intervencionismo de John Ruskin (1819-1900) e, de outro, o restauracionismo de Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc (1814-1879), em torno da salvaguarda e reabilitação dos edifícios públicos e monumentais (Choay, 2006CHOAY, F. A alegoria do património. Lisboa: Edições 70, 2006., 2011CHOAY, F. O património em questão. Antologia para um combate. São Paulo: Fino Traço, 2011.; Meneguello, 2008MENEGUELLO, C. Da Ruína ao Edifício. Neogótico, reinterpretação e preservação do passado na Inglaterra vitoriana. São Paulo: Annablume, 2008.). Tão intenso debate seria profundamente ignorado pela ação de renovação da fisionomia de Paris (1853-1870), dirigida pelo barão Haussmann que, além de arrasar diversos bairros populares, demoliu também numerosas edificações religiosas da capital francesa pós-revolução (Hazan, 2002HAZAN, E. The Invention of Paris: a history in footsteps. Londres: Verso, 2002.) e abriu caminho para a estratégia de espetacularização da cidade (Boyer, 1992BOYER, M. C. Cities for Sale: Merchandising at South Street Seaport. In: Sorkin, M. (org.) Variations on a Theme Park: The New American City and the End of Public Space. Nova York: Hill and Wang, 1992. p. 181-203.).

Não sendo nova a polêmica, o que mais se alterou nela com o decorrer do tempo foram, em meu entender, os termos em que passou a ser pronunciada. Começou por ser alargada a outras reflexões, em resultado da embrionária discussão acerca da presença da nova categoria de espaço público urbano. A partir das décadas de 1930 e 1940 do século passado, com sequência no movimento modernista e depois na era pós-moderna, a noção de espaço público urbano arrastou consigo um debate sobre o significado dos edifícios antigos das cidades e a estratégia a adotar perante a sua integração no conjunto da cidade e não mais como construção isolada.

A reorientação da abordagem do parque edificado trouxe a terreno novas perspetivas estéticas e urbanísticas. Destacados historiadores, filósofos e artistas mobilizariam a discussão sobre o modo como o edifício da era romântica perderia centralidade nas disputas pós-modernas à medida que o eixo da atuação se deslocou para o âmbito da gestão urbanística da cidade nos planos de renovação dos conjuntos urbanos e seus centros históricos (Choay, 2006CHOAY, F. A alegoria do património. Lisboa: Edições 70, 2006.). Com a centralidade das novas problemáticas, foram os arquitetos, urbanistas e paisagistas que assumiram a centralidade na discussão e tornou-se mais limitada a intervenção de historiadores e políticos (Romero, 2001ROMERO, J. L. Latinoamérica: las ciudades y las ideas. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2001.; Lassance, Saboia, Pescatori; Capille, 2021LASSANCE, G.; SABOIA, L.; PESCATORI, C.; CAPILLE, C. Cidade pós-compacta: estratégias de projeto a partir de Brasília. Rio de Janeiro: Rio Books, 2021.).

A partir da politização da reflexão sobre o espaço urbano e os termos da sua produção social, trazidos para a ribalta com o Maio de 1968 e a importante trilogia de textos de Henri Lefebvre (1968LEFEBVRE. H. Le droit à la ville. Paris: Anthropos, 1968., 1970LEFEBVRE. H. La révolution urbaine. Paris: Gallimard, 1970., 1974LEFEBVRE. H. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 1974.), a relação dos edifícios com a cidade ganhou expressão inusitada, quer se tratasse da sua edificação ou da sua eventual reforma ou eliminação. O trabalho de Lefebvre originou calorosos debates sobre o espaço público e o sentido social da urbanidade e da memória contida na presença dos edifícios antigos, em que participariam políticos e decisores/gestores, além dos debates acadêmicos entre cientistas sociais e jornalistas de orientações diversas.

O ARGUMENTO

As linguagens em que se expressa hoje a reflexão sobre o futuro dos edifícios decadentes como, aliás, o sentido da cidade no seu todo, sofreu, então, uma notória bifurcação. Nesse sentido, organizo este texto como um conjunto de tópicos relativamente autônomos. O primeiro é tão só uma referência à absoluta vantagem da interdisciplinaridade que deve superar o entendimento e o encontro das especialidades que fundaram Brasília, e ir ao encontro de outras aproximações disciplinares não tão óbvias como as das ciências sociais de várias estirpes com outros domínios técnicos, ambientais ou estéticos.

Em um artigo recente, fiz um apelo por “outras visões” relativas à interpretação da cidade e do ambiente urbano (Fortuna, 2012FORTUNA, C. In praise of other views. The world of cities and the social sciences. Iberoamericana, XII, 45, p.137-153, 2012.). O meu argumento continua assente em dois planos: por um lado, a necessidade de olhar para a cultura e a tradição históricas da cidade para melhor entender suas mudanças ao longo do tempo e, por outro lado, o reconhecimento de como as cidades se transformam a cada instante.

Aprender a trabalhar em conjunto com outros e com visões diversas sobre o mesmo objeto é a base de qualquer trabalho interdisciplinar. Para ser eficiente, contudo, a interdisciplinaridade não pode descartar os princípios, as teorias e os métodos de cada disciplina. Em outras palavras, as disciplinas continuam essenciais para delinear um problema e tentar projetar uma possível resposta. É por isso que são fundamentais para fazer as perguntas iniciais. Quando se trata de tentar dar respostas e agir em consonância, cada disciplina precisa reconhecer os seus limites e incorporar contribuições provenientes de áreas adjacentes do pensamento. Essa é a audácia contida no projeto original de Brasília.

Outra maneira de lidar com a pluralidade disciplinar é a promoção contínua das premissas originais da área de partida. Tomemos o exemplo da sociologia urbana. De um modo geral, tal disciplina permanece largamente dependente de considerações canônicas feitas no final do século XIX, derivadas das experiências das grandes metrópoles industriais do mundo ocidental (Manchester, Londres, Paris e Berlim, ou Chicago, Nova Iorque e mesmo Los Angeles). Hoje, a disciplina enfrenta a necessidade de se renovar para evitar analisar a cidade contemporânea à luz das visões convencionais que herdou. Por exemplo, ainda não dispomos de conceitos ou de teorias adequadas ao entendimento das cidades de pequeno e médio porte – que representam mais de 2/3 da população mundial – que não seja uma subespécie da macro teoria das grandes metrópoles. Da mesma forma, os sociólogos urbanos estão em grande parte impreparados para compreender plenamente a cidade pós-colonial que pontuam nos contextos não ocidentais da África, Ásia e mesmo da América Latina. A interdisciplinaridade exige uma recriação sempre presente dos modos básicos de investigação e da capacidade de ultrapassar limites disciplinares (Amin; Graham, 1997AMIN, A.; GRAHAM, S. The ordinary city. Transactions of the Institute of British Geographers, Londres, v. 22, n. 4, p. 411-429, 1997.; Bell; Jayne, 2006BELL, D.; JAYNE, M. (org.). Small cities. Urban experience beyond the metropolis. Oxford;Nova York: Routledge, 2006.; Mendieta, 2001MENDIETA, E. Invisible cities: a phenomenology of globalization from below. City, [s. l.], v. 5, n. 1, p. 7-26, 2001.).

Acredito que tanto na prática como no método de ensino a arquitetura e o urbanismo partilham uma situação semelhante à enunciada para a sociologia urbana quanto à conveniência do alargamento das suas perspetivas dominantes de análise. Mas é meu convencimento que estas disciplinas têm dado sobejas provas de abertura ao diálogo com outras narrativas, oriundas das artes, das engenharias, das ciências ambientais, sociais e humanas. Como sugeriram recentemente Paola Bernstein Jacques e Margareth da Silva Pereira (Jacques; Pereira, 2018JACQUES, P.; Pereira, M. (org.). Nebulosas do pensamento urbanístico. Salvador: Edufba, 2018.), o pensamento urbanístico tem se configurado como uma “nebulosa” de saberes e de tempos, em que se entrecruzam e refazem as paisagens urbanas dos suis e dos nortes globais que, assim, fornecem novos campos de experiência prática e teórica.

Um segundo tópico que apresento diz respeito ao lugar dos edifícios antigos no tecido urbano e o modo como reclamam leituras sobre a relação das cidades com a história. Voltando a Brasília, esta cidade é frequentemente vista como uma cidade sem história. No entanto, a história desta cidade toma muitas vezes a expressão de uma história urbana nacional e é, ao lado de outras poucas metrópoles do Brasil, tomada como arquétipo da organização e funcionamento das urbanidades do país.

Algumas vezes vemos a história como dispositivo de auxílio do entendimento do tempo presente e da projeção de futuros dos ambientes urbanos. Nesse sentido, os edifícios antigos são tão cruciais para compreender o atual ambiente urbano local, como servem de recurso mnemônico para pensar como deverão ser as cidades que hão de vir. Jane Jacobs confessaria que “as cidades precisam tanto dos velhos edifícios que é praticamente impossível que as ruas e os bairros possam crescer sem eles” (Jacobs [1962]JACOBS, J. The death and life of great American cities. 1ᵃ edição [1962]. Londres: Pimlico, 2000. 2000, p. 200), o que seria replicado pelo arquiteto Ramesch K. Biswas, conhecido estudioso da relação da arquitetura do século XX com a memória dos lugares, quando afirma “uma cidade sem edifícios antigos é como um homem sem memória” (Biswas, 2000BISWAS, R. K. Kuala Lumpur. Bigger, faster, better. In: Biswas, R. K (org.) Metropolis Now! Urban Cultures in Global Cities. Nova York: Springer-Verlag, 2000. p. 126-139., p. 131).

A outra forma de ver a cidade em sua relação com a história concretiza-se no registro de pessoas, eventos e lugares de valor particular em si mesmos. Tal procedimento implica numa história local lida ou tratada pelas trajetórias e agências dessas mesmas pessoas e eventos. Nesse sentido, a evolução histórica e o passado das cidades são experimentados e requerem observação e tratamento específicos que faça recurso de metodologias de recolha pela escuta dos relatos sociais que estão para além da preocupação arquitetônica e urbanística (Les Back, 2007LES BACK. The art of listening. Londres: Bloomsbury, 2007.).

As velozes mudanças e reconstruções de cidades como Nova Iorque, por exemplo, reclamam o registo dessa experimentação do tempo que passa sobre a memória pessoal do desenho urbano.

Qualquer pessoa nascida em Nova Iorque há uns quarenta anos não encontra nada, absolutamente nada, da Nova Iorque que terá conhecido antes. Se, acaso, vier a deparar-se com algum desses edifícios antigos que escaparam à demolição terá muita sorte. De qualquer maneira, as marcas e os objetos que assinalam a cidade do seu tempo, enquanto cidade, já terão desaparecido (Burns; Sanders; Ades, 1999Burns, R.; SANDERS, J.; ADES L. New York. An illustrated history. Nova York: Knopf, 1999., p. 71).

O vaticínio faz ressoar o entendimento que Gilles Deleuze faz do amor, em que a pessoa amada surge perante o amante como uma pluralidade de signos impenetráveis e misteriosos e, por isso mesmo, convertíveis em desafiadores objetos de desejo (Machado, 2009MACHADO, R. Deleuze:a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009., p. 196). Mas faz ressoar também relatos literários de interpretes da cidade, desde Fernando Pessoa sobre Lisboa, João do Rio sobre o Rio de Janeiro, Franz Hessel sobre Berlim ou Carlos Monsiváis sobre a Cidade do México e tantos outros valiosos registos e impressões do passado urbano das cidades (Fortuna, 2020FORTUNA, C. Cidades e Urbanidades. Florianópolis, Editora Insular, 2020.; Frehse, 2011FREHSE, F. Ô da rua! O transeunte e o advento da modernidade em São Paulo. São Paulo: Edusp, 2011.). É deste calibre, ainda, a poesia de Julián del Casal que equipara a relação humana com o ambiente urbano a “El Amor Impuro de las Ciudades”. Talvez só a literatura ou a distância estética da fotografia possam alimentar a tomada de consciência do passado urbano, o que concede a essas expressões artísticas o estatuto interdisciplinar de instâncias mediadoras do cenário urbano (Frisby, 2001FRISBY, D. Cityscapes of Modernity: Critical explorations. Cambridge: Polity Press, 2001., p. 119) e do “amor”, ainda que “impuro”, que lhe devotam os seus residentes e intérpretes.

O AMOR IMPURO DAS CIDADES

O relato da transformação da cidade no tempo pode reclamar tanto uma reflexão que atualiza o entendimento de Simmel sobre o arruinamento do edificado que gera locais que “perderam a vida” mas continuam a ser “palcos de uma vida” (Simmel, [1911] 2019), como pode também provocar uma reflexão sobre as alterações das interações e vivências das ruas, praças e bairros. Na história do pensamento sobre o urbanismo moderno, Jane Jacobs é certamente a figura mais destacada da denúncia dos efeitos sobre o tecido social da cidade causados pela decadência e a demolição de velhos edifícios. Em Vida e morte das grandes cidades americanas…, a jornalista manifesta a sua oposição militante ao plano de intervenção de Robert Moses para a zona baixa de Manhattan com significativas mudanças no ambiente social da Hudson Street e, mais amplamente, da carismática Greenwich Village.

Tal mudança, como intuía Jacobs, implicaria irremediavelmente, a destruição dos tecidos socioculturais e edificações para que novos contextos sociotécnicos pudessem emergir. A subtração urbana de componentes individuais da cidade implicaria todo o conjunto urbano da baixa de Manhattan entendida como a assemblage em que as partes só se compreendem a partir da totalidade (McFarlane, 2011MCFARLANE, C. The city as assemblage. Dwelling and urban space. Environment and Planning D: Society and Space, Los Angeles, v. 4, n. 29, p. 649-671, 2011.), o que, aos olhos de Jacobs, devia ser evitado a todo o custo. Nada justificava a eliminação dos edifícios, mesmo que apresentassem possíveis sinais de obsolescência, degradação e duvidosa qualidade estética. Para Jacobs e outros comentadores, não é apenas a materialidade do edificado que está em causa (Edensor, 2016EDENSOR, T. Incipient Ruination and the Precarity of Buildings: Materiality, Non-human and Human Agents, and Repair. In: Bille, M.; Sorensen, T. (org.). Assembling Archaelogy, Atmosphere and the Performance of Buildings Spaces. Londres: Routledge, 2016. p. 366-382.), mas, sobretudo, os modos de estar, de produzir e de apropriar os valores e as práticas socioculturais dos lugares e dos bairros, ou seja, aquilo que podemos designar por urbanidades (Fortuna, 2020FORTUNA, C. Cidades e Urbanidades. Florianópolis, Editora Insular, 2020.).

O essencial do amor de Jacobs ao seu bairro decorre do balé urbano que se ensaia dia e noite e que julga ser o nervo do cotidiano das zonas ameaçadas pela reforma anunciada por Moses. Esta arte não é senão a ação performativa própria de um “bairro vibrante”, de ruas, lojas e moradias onde interagem pessoas de classes sociais diversas, construindo com a sua presença a segurança de todos (Jacobs, 2000JACOBS, J. The death and life of great American cities. 1ᵃ edição [1962]. Londres: Pimlico, 2000., p. 61). Do mesmo modo que Wim Wenders coloca a coreógrafa Pina Bausch a gritar “Dança! Dança! Senão estamos perdidos!” (Pina…, 2011PINA – A film for Pina Bausch by Wim Wenders. 1’35”. zaerkus. YouTube. 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vn3Lw3BNb-w. Acesso em: 7 jun. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=vn3Lw3BN...
) para significar que só o fluir contínuo da vida coletiva confere existência à vida social dos sujeitos, também, a descrição etnográfica que Jacobs oferece da Hudson Street (Jacobs, 2000JACOBS, J. The death and life of great American cities. 1ᵃ edição [1962]. Londres: Pimlico, 2000., p. 61-65) constitui um fortíssimo quadro de resistência de uma cultura popular ameaçada pela apregoada falência dos edifícios em torno dos quais se desenrola o referido balé.

Jane Jacobs reconhece que a manutenção dos edifícios antigos respeita apenas aos que apresentem condições de possível reconversão ou assegurem a continuidade da sua regular função social e cultural. Para ela, que rejeita a ideia de destruir primeiro para construir depois, a preservação de edifícios antigos não significava conservá-los a qualquer custo, como se fossem estruturas inertes, semelhante ao que admitia serem os museus. O apoio militante de Jacobs às políticas de reabilitação dos velhos bairros e dos seus edifícios emblemáticos sustenta-se em princípios de preservação da identidade histórica do entorno e, como se diria hoje, numa aguerrida luta pela salvaguarda do direito ao lugar.

Em numerosas passagens do seu grande livro, Jane Jacobs parece resgatar o sentido distópico do passado da ruína que, ao mesmo tempo em que vê os lugares desativados como sinistras alegorias da falência sistêmica, incentiva a sua leitura como pontes de um passado vivido para um presente e um futuro repleto de potenciais rearranjos sociais a instituir. A crítica mais contundente dirigida a Jacobs é a que o novaiorquino Marshall Berman aponta quando a acusa de um romantismo sem limites que assume um improvado consenso sociopolítico de bairro e despreza as tensões e conflitos que atravessam os tecidos urbanos das cidades modernas (Berman, 1982BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido se dissolve no ar. Lisboa: Edições 70, 1982.). O autor vê no relato de Jacobs um testemunho pessoal e provinciano – o crítico Richard Williams admite mesmo tratar-se de uma deliberada teatralização (Williams, 2004WILLIAMS, R. The anxious city. English urbanism in the late twentieth century. Londres; Nova York: Routledge, 2004. p. 228-241.) – que a impele para tão idílica narrativa e ignora as profundas tensões sociais e étnicas pelas quais Nova Iorque passaria na década de 1960. Para Berman, a vida urbana retratada por Jacobs fica a dever-se ao fato de “não haver negros no seu quarteirão” (Berman, 1982BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido se dissolve no ar. Lisboa: Edições 70, 1982., p. 349), o que torna a Village tão bucólica ao ponto de poder escapar à desestruturação irremediável que a onda modernizadora de 1960 acabou por atingir o seu tão amado Bronx.

O “MODERNIZANTE” PRUITT-IGOE: Fim do Balé… começo de quê?

A questão da modernização urbana da década de 1960, incluindo a questão dos projetos da habitação multiétnica, assumiu, como é sabido, proporções dramáticas em algumas iniciativas de habitação social. Talvez o projeto Pruitt-Igoe, datado de 1956 (St. Louis, Missouri – EUA), seja o caso mais ilustrativo da construção de clusters residenciais ruinosos e de má qualidade, localizados nas periferias das grandes cidades. Permito-me assim referir este projeto como exemplo das atrocidades socioambientais e de planejamento cuja solução apontava para um desfecho daqueles que Jane Jacobs definitivamente rejeitaria.

Pruitt-Igoe foi um plano de habitação social composto por 33 torres de 11 andares cada, projetado pelo célebre arquiteto Minoru Yamasaki – também projetista do novaiorquino World Trade Center – que acabaria sendo demolido passada apenas uma década e meia após a construção. Como testemunha Reinier de Graaf (2017)de GRAAF, R. Four Walls and a Roof. The complex nature of a simple profession. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 2017., a área tinha sido projetada com base num mal-entendido do real sentido do encontro multiétnico. O projeto utilizou para sua designação a suposta proximidade de Wendell O. Pruitt – um piloto aviador negro – e de William Igoe – um congressista branco –, duas personalidades de St. Louis, procurando sinalizar a pretendida mistura étnica e racial. O certo, porém, é que os dois homens jamais se teriam encontrado pelo que se tratava apenas de um valor simbólico e formal sem qualquer expressão prática. Por ironia, o mesmo tipo de desencontro aconteceu com o projeto residencial, mergulhado desde sempre numa imaginada cultura de proximidade e encontro que se revela plena de distância étnico-cultural vivenciada dos residentes de Pruitt-Igoe. De acordo com as leis americanas da segregação adotadas, os residentes negros deveriam morar em Pruitt, enquanto os residentes brancos deveriam residir em Igoe. Contudo, o Supremo Tribunal Americano, a partir da jurisprudência trazida pelo caso Brown v. Board of Education of Topeka de 1954, declararia a segregação racial ilegal, sendo que aquilo que se referia de início apenas à educação alastrou a outros domínios do social, pelo que quando concluído em 1956, o projeto Pruitt-Igoe foi tornado uma das primeiras experiências de um bairro racialmente misto de toda a América (de Graaf, 2017de GRAAF, R. Four Walls and a Roof. The complex nature of a simple profession. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 2017., p. 407).

Ao lado desta fratura sociopolítica, o projeto fracassou também devido a anacronismos técnicos com efeitos nas relações de vizinhança, como seja o fato de os elevadores pararem apenas a cada três andares. Forçados a caminhar entre essas paragens dos elevadores, os moradores tinham que percorrer espaços desregulados e enfrentar desafios e ameaças de jovens marginais em que, presumidamente, desejariam encontrar ambientes pacíficos de regular convivialidade entre vizinhos. Os residentes chamavam “manoplas” a estas passagens onde tinham que enfrentar alguma insegurança e intimidação ao dirigir-se aos seus apartamentos. Gradualmente, instalou-se no bairro e no interior dos edifícios a paisagem da droga e da criminalidade que ganhariam destaque nacional nas páginas da mídia americana de fevereiro de 1969, justamente quando os moradores iniciaram uma greve às rendas que duraria uns nove meses. Esse foi o início do descrédito do projeto e das suas condições de habitabilidade que haveria de se ampliar à medida que cresceu a crítica política dirigida por liberais aos projetos de habitação social estatal, tidos como inaceitável cedência à influência comunista e às “forças livres do mercado”. Em consequência, as forças opositoras a Pruitt-Igoe tornaram-se cada vez mais influentes e em 15 de julho de 1972 iniciou-se a demolição de todo o complexo. Charles Jencks, conhecido filósofo e historiador da arquitetura, denunciou categoricamente o modo como Pruitt-Igoe simboliza o cemitério da arquitetura modernista (Jencks, 1977JENCKS, C. The language of post-modern archiecture. Londres: Rizolli, 1977., p. 9), o que corresponde a uma das várias tentativas de responsabilizar Pruitt-Igoe pela desordem e falta de autoridade da arquitetura da época (Cairns;Jacobs, 2014CAIRNS S.; JACOBS, M. J. Buildings must die. A preverse view of architecture. Cambridge (Mass.): MIT Press, 2014.).

O lugar onde antes se erigiu aquele grande projeto de habitação social pública é hoje um estranho descampado – um “vazio dentro do próprio vazio” (de Graaf, 2017de GRAAF, R. Four Walls and a Roof. The complex nature of a simple profession. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 2017., p. 411) – sem qualquer sinal ou marca mnemônica da decrépita construção. Pruitt-Igoe coloca a violência da sua arquitetura a par do processo da sua desconstrução que parece corresponder direta e tragicamente à conflitualidade socioétnica nunca sanada da vida do lugar. Assim, aos decrépitos edifícios modernistas esperou-os a morte inglória da demolição e do esquecimento. Convertido em inóspito matagal, o lugar que uma vez pretendeu promover o encontro interétnico não representa mais do que a batalha perdida da habitação social, senão mesmo de toda a cidade americana (de Graaf, 2017de GRAAF, R. Four Walls and a Roof. The complex nature of a simple profession. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 2017., p. 410), e do esquecimento dos lugares de difícil memória (Adams; Hornstein, 2015ADAMS, A.; HORNSTEIN, S. Can architecture remember? Demolition after violence. Environment Space Place, Minneapolis, v. 7, n. 1, p. 47-67, 2015.).

A SEGUNDA VIDA DAS COISAS

Aldo Rossi sustenta em suas considerações sobre a arquitetura e a forma urbana da cidade (Rossi, 1977ROSSI, A. A arquitetura da cidade. Lisboa: Edições Cosmos, 1977.) que a memória dos lugares não reside nos edifícios, mas no espaço existente entre eles e no seu genius loci. Jane Jacobs entende, também, como vimos, que é o fluir social da rua que alimenta as práticas e as memórias coletivas do urbano e não hesitou em defender a manutenção dos edifícios como parte integrante do palimpsesto que é a cidade.

Num ensaio que dedica aos museus, Theodor Adorno se refere ao entendimento de Marcel Proust que os objetos colocados nos museus não morrem e antes despertam para uma segunda vida (Adorno, [1953] 1998ADORNO, T. Museu Valéry Proust. In: Adorno, T. Prismas: Crítica cultural e sociedade. 1ᵃ edição [1953]. São Paulo: Editora Ática, 1998. p. 173-185.). Por analogia, também, os edifícios velhos das cidades podem experimentar a sua segunda vida, em vez de serem colocados à margem, descartados e excluídos do planeamento urbano. Sua morte, desde que seja digna, resiste à demolição, mostrando que a degenerescência e o fim das coisas apresentam contornos culturais e simbólicos diferenciados (Arenas, 2011ARENAS, L. Fantasmas de la vida moderna. Ampliaciones y quiebras del sujeto en la ciudad contemporánea. Madrid: Editorial Trotta, 2011.; Silva, 2006SILVA, A. Imaginários urbanos. Bogotá: Arango Ediciones, 2006.).

Por isso, as cidades são diferentes umas das outras e também diferentes de si próprias. Têm uma história plural acumulada dentro de si (García Canclini, 1998GARCÍa CANCLINI, N. Las quatro ciudades de México. In García Canclini, N. et al. (org.). Cultura y Comunicación en la Ciudad de México. Modernidad y multiculturalidad: La ciudad de México a fin de siglo. Miguel Hidalgo: Editorial Grijalbo, 1998. p. 19-39.), o que se pode expressar no edificado de várias gerações a remeter para fisionomias, usos e ritmos evolutivos distintos. Esta pluralidade histórica das cidades e dos seus edifícios é parte integrante da atual indulgência perante o passado e os patrimônios materiais, mesmo quando estes são mergulhados numa sensibilidade neogótica e nos estilos grotescos da retromania e da extravagância estética (Bauman, 2017BAUMAN, Z. Retrotopia. São Paulo: Zahar, 2017.; Grunenberg, 2011GRUNENBERG, C. Unsolved Mysteries. Gothic tales from Frankenstein to the hair eating doll. In: Grunenberg, C. Gothic. Cambridge: MIT Press, 2011. p. 159-213.).

Os edifícios não são para Jacobs entidades isoladas e mesmo aqueles que representam modalidades arquitetónicas particulares fazem parte do ambiente que integram. Esse é o caso das ruínas urbanas que Simmel considerou assinalarem presenças ausentes de culturas passadas. Elas ensinam a conviver com a decrepitude, a falência e o colapso das coisas em redor. É por isso que os velhos edifícios arruinados são convertidos em patrimônios urbanos, com uma aura própria que não é nunca apropriada totalmente, tal como sucede com o objeto fetiche (facticia, no sentido equivalente à produção humana), cujo significado, como adverte Giorgio Agamben, se encontra irremediavelmente além de si próprio para permanecer nos domínios da política e dos valores culturais (Agamben, 2007AGAMBEN, G. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: UFMG, 2007., p. 62).

A ruína diz respeito ao edifício que não está destituído de uma determinada função, mas que foi antes a sua condição anterior que sofreu uma considerável perda de valor. Para Simmel, o retorno à natureza é um elemento crucial desse arruinamento (Simmel, 2019SIMMEL, G. A ruína. Organização e apresentação de Carlos Fortuna. Tradução de António Sousa Ribeiro. 1ᵃ ed. [1911]. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2019.). Não no sentido de a ruína se tornar agora alojamento de inusitadas situações urbanas, mas, de tão inerte, se deixar naturalizar, ou seja, recobrir pela vegetação e passar a confundir-se com o ambiente natural.

O edifício arruinado se diferencia do tornado obsoleto na medida em que, muito provavelmente, terá de enfrentar o juízo implacável da demolição, assim como o seu valor ficar a depender da experiência sociocultural que ali foi sendo acumulada no decurso do tempo. Como bem assinalam alguns comentadores, as rachas e fissuras, as decapagens das paredes, as primeiras quebras no telhado são as “feridas causadas pelo tempo”, tão apreciados pelos amantes da ruína (Cairns; Jacobs, 2014CAIRNS S.; JACOBS, M. J. Buildings must die. A preverse view of architecture. Cambridge (Mass.): MIT Press, 2014., p. 169). Para John Ruskin, essas marcas constituem o que o autor designa por ”baixo pitoresco”, que não confere valor à ruína em si, mas assinala apenas a “desordem” que as marcas do tempo instilam (Ruskin, 1857RUSKIN, J. Modern painters. Part V: Of mountain beauty. Nova York: Wiley & Halsted, 1857., p. 9, apud Cairns;Jacobs, 2014CAIRNS S.; JACOBS, M. J. Buildings must die. A preverse view of architecture. Cambridge (Mass.): MIT Press, 2014.). Outrora, por detrás desta falência do edificado, escondiam-se a privação, a pobreza e a fome, que agora ficam à vista de todos, pelo que os sinais da decadência urbana são valorizados, mesmo que a sua representação resida além do próprio arruinado, como adverte Agamben (2007)AGAMBEN, G. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: UFMG, 2007..

ESTRELATO ARQUITETÔNICO E RUÍNAS INVERTIDAS

Só os edifícios resultantes do estrelato arquitetônico com as suas construções icônicas podem ser trabalhados como entidades isoladas. Como regra, os edifícios icônicos emergem como estruturas separadas do contexto espacial circundante e obedecem a outros princípios da criação para promover uma imagem de modernidade e sucesso contrária à ideia de declínio urbano. Muitas cidades adotam a estratégia do “complexo de edifícios” (Sudjic, 2016SUDJIC, D. The language of cities. Milton Keynes: Penguin Books, 2016.), como modalidade de exuberância e promoção internacional. São verdadeiras metáforas da arquitetura e, em regra, a sua forma atípica constitui uma narrativa da diferença e da criatividade urbana, que emprestam significado político e estético à cidade como um todo.

Projetado para celebrar ocasiões políticas ou eventos de prestígio, como sejam a Capital Europeia da Cultura ou as Olimpíadas, essas construções singulares são tomadas como tendo sido construídas para sempre. Além disso, devido à sua função representacional e simbólica, raramente seguem a tradicional relação pré-modernista que subordinou a forma urbana ao contexto espacial. Desconectados do espaço urbano circundante, esses edifícios surgem desvinculados do restante material urbano (ruas, sistemas de transporte, calçadas, passagens subterrâneas, fontes, jardins, museus etc.) e buscam uma linguagem construtiva e estética própria. Assim, as construções icônicas podem ser interpretadas como substitutos funcionais da materialidade contextual do espaço para, em seu lugar, criarem uma paisagem singular, vital para a competitividade neoliberal em que estão envolvidas as sociedades e as cidades contemporâneas (Boyer, 1992BOYER, M. C. Cities for Sale: Merchandising at South Street Seaport. In: Sorkin, M. (org.) Variations on a Theme Park: The New American City and the End of Public Space. Nova York: Hill and Wang, 1992. p. 181-203.; Glaeser, 2011GLAESER, E. Triumph of the city. Oxford: Macmillan, 2011.; Livesey, 2004LIVESEY, G. Passages: explorations of the contemporary city. Calgary: University of Calgary Press, 2004.).

Além desses marcadores únicos da cidade, o excecionalismo de alguns arquitetos de renome internacional surge também atribuído a outros projetos, como escritórios de empresas financeiras globais, centros de conferência, conjuntos culturais e galerias de arte, óperas e assim por diante (Short, 2004SHORT, J. Global metropolitan: globalizing cities in a capitalist world. Londres: Routledge, 2004., p. 72). Desde sua origem americana de finais do século XIX, a verticalidade e os arranha-céus também são um sinal dentro do desdobramento dessa arquitetura simbólica, pouco considerada pela generalidade das ciências sociais e a sociologia urbana em particular (Graham, 2018GRAHAM, S. Vertical. The city from satellites to bunkers. Londres: Verso, 2018.). Assim como as monumentais catedrais e os palácios medievais da Europa Ocidental mostravam a riqueza e o poder da religião e das elites, hoje, os arranha-céus, com a sua nova retórica, são dispositivos emblemáticos da capacidade arquitetônica apta a espelhar o poder das finanças globais enquanto representação da força motriz do capitalismo e do vigor da cidade e mesmo da nação (Boyer, 2018BOYER, M. C. The City of Collective Memory. Its historical imagery and architectural entertainments. Cambridge: MIT Press, 2018.; Sudjic, 2016SUDJIC, D. The language of cities. Milton Keynes: Penguin Books, 2016.).

O fato, no entanto, permanece que os edifícios não são artefatos semelhantes a outros bens descartáveis. À medida que caem fora do seu tempo, os edifícios permanecem tenazmente presentes no local e não podem ser esquecidos como qualquer outro objeto obsoleto ou fora de moda (Scalan, 2005SCALAN, J. On garbage. Londres: Reaktion, 2005., p 111). Sabemos como muitas construções modernas “não são construídos com a longevidade em mente” (Cairns; Jacobs, 2014CAIRNS S.; JACOBS, M. J. Buildings must die. A preverse view of architecture. Cambridge (Mass.): MIT Press, 2014., p. 111), o que tem uma longa tradição, como mostra Friedrich Engels, que assegura que várias residências operárias da Manchester industrial – Ancoats – eram construídas para durar apenas uns 40 anos (Engels, 1968ENGELS, F. The condition of the working class in England. [1845]. Stanford: Stanford University Press, 1968., p. 69-71).

Muitas dessas inconsistências construtivas foram rotuladas com precisão como verdadeiros “desastres de planejamento” (Hall, 1980HALL, P. Great planning disasters. Berkeley: University of California Press, 1980.). Vale mencionar aqui as tentativas de superar a dicotomia preservação-demolição e escapar da lógica da “obsolescência programada” dos edifícios de baixa e média classe. Estou a referir-me a algumas experiências bastante delicadas de superar as habitações precárias das cidades-sombra, como as favelas e barrios que pontuam as periferias da grande maioria das metrópoles do Sul global.

O investimento imobiliário especulativo mais recente em direção ao ambiente construído nessas regiões atrai capital internacional privado, frequentemente em aliança com investimento público, para construir cidades inteiramente novas. Este constitui um potente argumento político para os governos municipais que não pretendem reabilitar as antigas zonas das cidades e menos ainda para as carenciadas favelas. Os exemplos incluem as experiências africanas da Cidade da Luz de Appolonia (Gana), Kilamba (Angola), Eko Atlântico (Nigéria), ou Cidade do Novo Cairo (Egito). Estas “cidades duplas”, como Martin Murray as designa, são forjadas e assumidas como completas, mesmo que mantenham, aqui e ali, os sinais próprios dos lugares sórdidos, sem conteúdo social, história ou memória urbana. São cidades que pretendem vir a ser “urbanas” num futuro incerto e funcionam como anacrônico “excesso global em meio da negligência e da privação urbanas” (Murray, 2015MURRAY, M. J. City doubles: re-urbanism in Africa. In: Miraftab, F.; Wilson, D.; Salo, K. (org.). Cities and inequalities in a global neoliberal world. Nova Iorque: Routledge, 2015. p. 92-109., p. 93).

Podemos estar aqui perante alguns exemplos contemporâneos dos “desastres urbanos planejados” a que se referia Peter Hall, infligidos ao meio ambiente e à sociedade urbana. De fato, as “cidades duplas” fazem lembrar os “futuros obsoletos” e as “ruínas invertidas” que, por antecipação, Robert Smithson entende ser a trajetória enunciada de muitos edifícios e equipamentos urbanos: “os edifícios não ficam em ruína depois da sua construção, mas são erguidos como ruína antes de serem construídos. Esta mise-en-scène anti-romântica sugere uma ideia desacreditada de tempo e de muitas outras coisas ‘fora de tempo’” (Smithson, 1967SMITHSON, R. A tour of the monuments of Passaic, New Jersey. Artforum, Nova York, v. 1, n. 4, p. 52-57, 1967., p. 54. Grifos no original).

Esse urbanismo “entrópico”, isto é, anacrônico, que Smithson atribui à paisagem sórdida de todo o edificado surgido “ao lado da história dos grandes acontecimentos” incongruente e cínico é exatamente o que sustenta a crítica dirigida aos construtores das cidades, inclusive arquitetos, por agravar as descontinuidades socioculturais preexistentes nas periferias da cidade (Lippolis, 2016LIPPOLIS, L. Viagem aos confins da cidade. Lisboa: Antígona, 2016., p. 101) ou da capacidade para gerar sintaxes inesperadas dos lugares revelada por aterros, escavações, estradas e parques (Peixoto, 2010PEIXOTO, N. Paisagens críticas. Robert Smithson: Arte, Ciência e Indústria. São Paulo: Educ, 2010., p. 93).

Uma linha possível de reflexão e ação é trazida pelo recente Contruir e Habitar de Richard Sennett (Sennett, 2018SENNETT, R. Construir e habitar: ética para uma cidade aberta. Rio de Janeiro: Record, 2018.), em que o sociólogo e urbanista advoga a indispensável articulação da estrutura física da cidade (a ville) com a sua dinâmica sociopolítica e cultural (a cité). Sennett baseia a construção da ville na dimensão técnica dos espaços e infraestruturas da cidade e envolve nela arquitetos e outros “fazedores de cidades” (urbanistas, engenheiros, planejadores e assim por diante), que agem seletivamente sem equacionar a sua harmonia global com os modos da sua apropriação e uso pela comunidade residente. A cité, por seu lado, trata a vida urbana, os direitos sociais e os usos sociais do espaço como sua ação e dispositivo político da busca de coesão histórica e cultural.

O que está em questão para Sennett é a necessidade de articular entre si essas duas dimensões para alcançar uma cidade “aberta” e democrática. Ao longo da revisão que faz de várias visões conflituantes do moderno pensamento urbano, o desconforto crítico de Sennett aponta para a responsabilidade dos arquitetos e urbanistas, sempre que eles privilegiam a ville e ignoram completamente a cité. Por outro lado, a cidade desconectada também pode ser fruto da insistência na dimensão social pública, sem levar em conta os constrangimentos ou as possibilidades decorrentes da materialidade do espaço. Tudo somado, Sennett despreza a marginalização mútua de perspetivas: ou a visão política e social ou a visão arquitetônica e urbanística. Tanto os arquitetos quanto os urbanistas são julgados severamente por Sennett, que os acusa de assumirem demasiados comprometidos com os lobbies internacionais que acabam infligindo danos profundos ao ambiente construído e às modalidades de habitá-lo.

O apelo de Sennett se situa na linha da condenação de todos os Pruitt-Igoes do mundo, ou seja, na definição de uma cidade que não seja forçada a arrasar o que resulta da incúria ou atavismo dos seus planejadores e decisores, sempre que submetidos à lógica do investimento imobiliário sem escrúpulos. Esta visão é adotada por outros analistas do campo sociocultural como Sharon Zukin (Zukin, 2010ZUKIN, S. Naked city. The death and life of authentic urban places. Oxford: Oxford University Press, 2010.) ou Suzanne Hall (Hall, 2012HALL, S. City, street and citizen: the measure of the ordinary. Londres: Routledge, 2012.), todos eles defensores de um universo urbano contrário à desassociação da cidade construída com a atmosfera histórica e socialmente vivida.

A ARTE DA ARQUITETURA E O FUTURISMO URBANO

Na busca de uma possibilidade de continuar esta reflexão sobre a problemática da conservação/demolição dos edifícios antigos das cidades, procuro sair da tendência dominante de tornar a arquitetura um bode expiatório, responsável por tudo o que está errado, feio e desconforme. Nesse sentido refiro brevemente o elogio da “arte da arquitetura” que Georg Simmel produz na abertura de A ruína (Simmel, 2019SIMMEL, G. A ruína. Organização e apresentação de Carlos Fortuna. Tradução de António Sousa Ribeiro. 1ᵃ ed. [1911]. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2019.). O que o pensador germânico chamou de “arte da arquitetura” é a suprema capacidade que os arquitetos têm de imprimir marcas profundas na natureza, algo que outras expressões artísticas (pintura, música, dança…) são incapazes de fazer.

Essa capacidade da arquitetura de desenhar e redesenhar o futuro (físico/estrutural) de nossas cidades pode ser tomada como sinônimo de desprendimento com o passado urbano e maior comprometimento com o futuro urbano. Com efeito, após o desaparecimento das fantasias modernistas, os arquitetos compartilham com os cientistas sociais a capacidade de ajudar a ler prédios e cidades como uma natureza transitória que, tal como as ruínas de Simmel, são continuamente submetidas às vicissitudes provocadas pela passagem do tempo.

Costumo ilustrar a questão com recurso à Torre Capsular de Nagakin que Kisho Kurokawa construiu em Tóquio em 1972. A construção do edifício faz parte dos manuais sobre o metabolismo em arquitetura e é assumida como exemplo do ajustamento da arquitetura às futuras cidades e ao moderno individualismo. A Torre Capsular de Kurokawa inscreve-se numa tendência construtiva que recua até às experiências do arquiteto palestino Moshe Safdie (complexo residencial Habitat 67) e seguiu de perto os interesses da indústria norte-americana da construção e o seu ideal de habitação móvel (Sorkin, 1991SORKIN, M. Exquisite corpse: writing on buildings. Londres: Verso, 1991.). Funcionava de acordo com os princípios da evolução metabólica, visando a configuração de complexos de apartamentos de dimensões limitadas, supostamente baratos e totalmente sujeitos aos normais ciclos de mudança, em perfeita analogia biológica com o que sucede aos tecidos orgânicos.

Para Kurokawa, esta arquitetura capsular contribui para uma sociedade mais livre, respondendo às necessidades da neomobilidade urbana que acompanha o que tipifica o que Kurokawa considerava ser a desestruturação da sociedade moderna. Assim, a cidade nova – a que chamava metapolis – e a nova experiência construtiva funcionavam como uma espécie de ancoradouro – no sentido usado por Sheller e Urry (2006)SHELLER, M.; Urry, J. The new mobilities paradigm. Environment and Planning A, [s. l.], v. 38, p. 207-226, 2006. – para sujeitos isolados que buscam abrigo temporário nesta “moradia do Homo Movens”.

Na metáfora, entendido como tal, o espaço público deveria ser substituído por uma multiplicidade de espaços capsulares (hotéis, universidades, praças de shoppings, terminais auto e ferroviários). Despareceriam as ruas densas e cheias de gente que, assim, seriam trazidas para o interior das novas cápsulas onde seriam geradas novas interações e sociabilidades.

A descrição estabelece evidente ressonância do projeto de Kurokawa com outras tentativas famosas de redesenhar o futuro urbano de forma verdadeiramente utópica, como seriam o falanstério de Fourier, ou a cidade-jardim de Ebenezer Howard, ou a cidade linear de Arturo Soria, a broadacre city de Frank Lloyd Wright, ou, finalmente, a ville radieuse e o Plan Voisin de Le Corbusier. É meu entendimento que Kurokawa estava reagindo às visões muito negativas da cidade pós-moderna, exatamente como Frank Lloyd Wright reagiu às visões negativas da cidade americana da década de 1930 que foi tratada como “demasiado grande, demasiado ruidosa, demasiado obscura, demasiado suja, demasiado malcheirosa, demasiado comercial, demasiado populosa, demasiado cheia de imigrantes… aguerrida demais, demasiado móvel, veloz em excesso, demasiado artificial” (White; White, 1962WHITE, M.; WHITE, L. The intellectual and the city: from Thomas Jefferson to Frank Lloyd Wright. Cambridge: Mentor Books, 1962., p. 222).

De um modo geral, essas características se aplicam à cidade de Tóquio de Kurokawa, que pretendia que a sua Torre Capsular oferecesse solução para este estado de coisas. Como objeto metabólico, por ironia, mas fiel à metáfora do desenvolvimento celular, o edifício entrou em processo acelerado de envelhecimento “natural”. Foi o que Rem Koolhaas e Hans Ulrich Obrist concluíram em 2014, quando mostraram que o edifício se encontrava em deplorável estado de conservação e a sua vulnerabilidade se intensificava com a obsolescência dos materiais usados na construção (Koolhaas; Obrist, 2011KOOLHAAS, R.; OBRIST, H. U. Project Japan: metabolism talks. Colônia: Taschen, 2011., apudCairns;Jacobs, 2014CAIRNS S.; JACOBS, M. J. Buildings must die. A preverse view of architecture. Cambridge (Mass.): MIT Press, 2014., p. 121). Essa avaliação foi sintetizada acompanha pelos comentários de um jornalista do New York Times:

… os corredores cheiravam a bolor. Alguns residentes tinham colado bolsas de plástico nas molduras das portas para aparar os vazamentos e muitos deles estavam cheios de água cinzenta. A certa altura –continua – um dos residentes mostrou-me… pedaços de concreto tombados do canto de uma das cápsulas (Ouroussof, 2009OUROUSSOF, N. Future vision banished to the past. The New York Times, Nova York, 06 ago. 2009. Disponível em: https://www.nytimes.com/2009/07/07/arts/design/07capsule.html. Acesso em: 1 nov. 2022.
https://www.nytimes.com/2009/07/07/arts/...
, apudCairns; Jacobs, 2014CAIRNS S.; JACOBS, M. J. Buildings must die. A preverse view of architecture. Cambridge (Mass.): MIT Press, 2014., p. 121).

A demolição da Torre de Kurokawa iniciou-se em abril de 2022, depois de ter permanecido em pé por efeito do “mal-estar financeiro” dos moradores que procuraram, sem sucesso, encontrar investidor para demolir e reconstruir o edifício no mesmo local.

CONCLUSÃO: demolir ou o inglório fim das coisas

Ao contrário do que sucede nas sociedades autoritárias em que impera o capricho dos poderosos (Kostov, 1992KOSTOV, S. The city assembled: the elements of urban form through history. Londres: Thames & Hudson, 1992., p. 270), em sociedades democráticas, demolir um prédio leva muito tempo para recolher consenso e decidir. Não são decisões tomadas isoladamente e, muitas vezes, o que parece ser o fim inelutável de uma determinada história de construção material pode, de fato, transformar-se em uma questão de renovação e reabilitação urbana. São várias as experiências por todo o mundo em que em resultado de complexas disputas jurídicas e ações sociais de preservação acabam por suspender ou mesmo inverter o seu destino, como sucede com propostas de tombamento (Goyena, 2010GOYENA, A. Rituais urbanos de despedida: Reflexões sobre procedimentos de demolição e práticas de colecionamento. In: 2º Seminário Internacional. Museografia e Arquitetura de Museus: Identidades e Comunicação, 201., 2010, Rio de Janeiro. Anais […]. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. Disponível em: https://arquimuseus.arq.br/anais-seminario_2010/o-seminario.html. Acesso em: 17 abr. 2022.
https://arquimuseus.arq.br/anais-seminar...
; Hopkins, 2017HOPKINS, O. Lost futures: the disappearing architecture of post-war Britain. Londres: Royal Academy of Arts, 2017.).

A demolição/implosão de muitos edifícios do período do pós-guerra foi justificada em termos puramente estéticos e decorrem do choque que produziam na paisagem urbana. Diversas demolições foram vítimas de rápidas mudanças de estilos arquitetônicos e do apreço social que deixaram de suscitar mais ou menos subitamente. O descrédito e superação de uma determinada ordem estética é uma constante da avaliação humana, e muito provavelmente estamos hoje a gerar modificações nos estilos e preferências estéticas que poderão minar os termos de consensos antigos gerados em torno de edifícios públicos. O mesmo se poderá dizer das técnicas e dos materiais de construção, também eles sujeitos à erosão do tempo, à sua durabilidade e qualidade e à incontornável evolução do mercado de oferta.

Contudo, as mudanças socioculturais que hoje se anunciam em virtude de transformações não planeadas – ambientais, energéticas, tecnológicas e políticas – são de molde a aconselhar ponderação na tomada de decisão sobre o significado estético, a qualidade e a durabilidade dos edifícios.

Demolir ou implodir um edifício pode parecer uma solução única e útil. No entanto, geralmente torna-se uma decisão bastante complexa, envolvendo vários atores sociais. Tomemos o Edifício Jardim, mais conhecido por “Prédio Coutinho” – um caso específico de demolição ocorrida na cidade de Viana do Castelo, no norte de Portugal – que mais do que levar muito tempo para concretizar a decisão judicial de demolição – prevista inicialmente para o ano de 2000 e efetivada apenas em junho de 2022-1 1 Disponível em: https://www.sabado.pt/video/detalhe/predio-coutinho-em-viana-do-castelo-e-demolido-veja-as-imagens. Acesso em: 4 nov. 2022. () – , o edifício continuou até muito recentemente a ser usado como moradia regular dos seus residentes e a suscitar grande variedade de emoções e tomadas de posição política. É visto, como a verdadeira “casa” para alguns, ou é ressentidamente tolerado por outros, enquanto outros ainda (verdadeiros proprietários residentes) lamentam amargamente o esgotamento de suas economias que os impede de aceitar as propostas de indemnização e realojamento.

Tal como a “segunda vida” dos objetos no museu, a demolição pode ser lida em termos de reconstrução e autenticidade dos lugares. Sharon Zukin no seu Naked City é muito clara quando discute o problema sob o ângulo da “autenticidade urbana” e nos coloca perante as suas duas facetas: de um lado, a que designaria por autenticidade 1, enuncia a face “original” da cidade, apreciadas pelas gerações que ali sempre permaneceram, de outro lado, a autenticidade 2 apresenta as mais ou menos profundas alterações da paisagem (Zukin, 2010ZUKIN, S. Naked city. The death and life of authentic urban places. Oxford: Oxford University Press, 2010., p. xi). No debate entre “origens” e “novos começos” da cidade coloca-se a interrogação sobre qual destas autenticidades destacar.

Suspeito que a avaliação só pode ser feita a posteriori em função dos tipos de cidades e da funcionalidade das suas arquiteturas. Os edifícios são verdadeiras marcas materiais, portanto, verdadeiros documentos da história dos lugares. Enquanto marcas da autenticidade 1 da cidade, são edifícios que as sociedades ou as comunidades locais construíram e desejam conservar como testemunhos de si e do seu passado atualizado, tornado presente. Porém, perante a ameaça de capitulação no seio da economia urbana neoliberal, correm o risco de apagamento e eventual substituição por outras, conduzindo à perda da autenticidade 1 (ou “perda da alma”, na linguagem de Zukin) para passarem a responder às imposições de um urbano hipster, que as converte em restaurantes gourmé e hotéis boutique.

Em finais do século XVIII, Denis Diderot afirmou perentório que “é preciso arruinar um palácio para que ele se torne objeto de nosso interesse” (Diderot, [1767]DIDEROT, D. Ruines et Paysages (Salon III). 1ᵃ edição [1767]. Paris: Hermann, 1995. 1995, p. 348). Mais de 200 anos depois, o sociólogo Michel de Certeau elogiou a “beleza do morto” que há de vir (de Certeau, 1993de CERTEAU, M. A cultura no plural. Campinas: Papirus Editora, 1993., p. 55-58), a que se seguiria o destaque dado por Malcolm Miles à “quase alegria” freudiana que o espetáculo da demolição/implosão de edifícios pode suscitar (Miles, 2004MILES, M. Urban Avant-Gardes: art, architecture and change. Londres: Routledge, 2004., p. 107). Mas a demolição é radicalmente diferente da devastação urbana que, no momento em que escrevo estas linhas, surge tragicamente associada ao total arruinamento das cidades ucranianas, perante o criminoso poderio militar russo que tudo arrasa, a crença de sucessivas gerações no valor da soberania territorial dos povos e dos seus patrimônios.

Antes da “guerra da Ucrânia”, conhecíamos apenas dois exemplos extremos da devastação contemporânea dos edificios urbanos: a destruição da cidade síria de Aleppo e a crise que assolou a cidade norte-americana de Detroit. Aleppo, dizimada pela guerra, é hoje cenário de indizível destroço e constrangedora devastação. Detroit é panorama desolador do arruinamento de inúmeras habitações, fábricas de automóveis, armazéns, estações ferroviárias, centros de exposição e equipamentos culturais.

Se o aleppismo – o chamemos assim – que devastou a cidade síria e exterminou os seus moradores até ao último suspiro, se inscreve num sentimento de incontida e generalizada repulsa, o detroitismo, por sua vez, fica registado como desastre político que acabaria por mostrar como a ruína urbana arrasta consigo um arrebatamento estético que se contrapõe ao que faz a guerra.

Ambos são, no entanto, matéria para fascinantes registos artísticos, fotográficos e fílmicos ou mesmo alimentam, no caso de Detroit, uma original atividade turística feita de roteiros por entre intermináveis marcas da decadência da cidade (Fortuna, 2020FORTUNA, C. Cidades e Urbanidades. Florianópolis, Editora Insular, 2020.).

O ucranianismo urbano – se assim me posso expressar – é a experiência da mais acintosa e bárbara destruição manu militari da urbanidade. É uma verdadeira chamada “do nunca visto” de Theodor Adorno ([1951], 2001, p. 111) que reduz as cidades a pó e com isso nos obriga a questionar sobre o que poderá ser o futuro da sociologia urbana após tão atroz urbicídio e devastação bélica, precisamente o inverso daquilo que foram os fulgurantes contextos sociohistóricos que deram origem à disciplina. Entre a repulsa estética do aleppismo e a paradoxal exultação da ruína e devastação urbana de Detroit, confesso-me adepto do planejamento da decadência que Kevin Lynch sustentou no seu Wasting Away (Lynch, 1990LYNCH, K. Wasting away. São Francisco: Sierra Club Books, 1990.). Trata-se do elogio da reclicagem urbana e do controle do desperdício que atualiza a ideia de Jane Jacobs da necessidade da conservar os edifícios antigos, mas suficientemente flexíveis para o seu reuso. Os guias para decadência sociourbana são tão necessários como as diretrizes para o crescimento das cidades. A alegria que alguns conseguem retirar da demolição dos edificios pode também encontrar-se no seu gentil envelhecimento e declínio. Mas nunca na guerra nem mesmo na turbulência dos funestos Pruitt-Igoes. Elejo para mim, e para o futuro da sociologia urbana, conceder atenção à morte lenta e digna das cidades.

Por isso me declaro disponível para continuar a viver lado a lado com a obsolescência e a decadência das coisas urbanas. Este é o maior desafio para quem vive em países antigos como Portugal. Estamos aprendendo a conviver com prédios e cidades que permanecem no seu lugar ainda que possam estar fora do seu tempo social. Pensar sobre as complexidades reflexivas e as possíveis futuridades urbanas impostas sobre o evoluir das cidades é, sem dúvida, uma das melhores contribuições mais fecundas que se podem esperar do trabalho conjunto de arquitetos, urbanistas e cientistas sociais.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2022
  • Aceito
    21 Out 2022
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