Resumos
O presente trabalho trata da trajetória político-institucional da Fiocruz, a partir da discussão do seu modelo de gestão, entre os anos de 1970 e 2003. Discutimos a organização e política da instituição, tendo como objetivo identificar os conflitos entre os ideais público e privado relativos à fundação, explorando os itinerários que culminaram na edificação de um projeto institucional flexível. Definiu-se como baliza temporal o período de 1970 a 2003, que compreende dois distintos momentos na história da Fiocruz: um primeiro subperíodo de 1970 a 1988, em que responde pelo Direito Privado; e de 1988, ano da promulgação da Constituição Federal Brasileira, até 2003, quando se enquadra no regime de Direito Público, define seu modelo de gestão e estabelece o estatuto oficial vigente até os dias de hoje.
Fundação Oswaldo Cruz; Aspectos políticos; Trajetória; Organização; Administração
This paper deals with the political and institutional trajectory of Fiocruz, based on a discussion of its management model, between 1970 and 2003. We discuss the organization and politics of the institution, aiming to identify the conflicts between the public and private ideals related to the foundation, exploring the itineraries that culminated in the construction of a flexible institutional project. The period from 1970 to 2003 was defined as a time frame, which comprises two distinct moments in the history of Fiocruz: a first sub-period from 1970 to 1988, in which it is responsible for Private Law; and from 1988, the year of the promulgation of the Brazilian Federal Constitution, until 2003, when it became part of the Public Law regime, defined its management model and established the official statute in force to this day.
Oswaldo Cruz Foundation; Political aspects; Trajectory; Organization; Administration
Este trabajo aborda la trayectoria político-institucional de la Fiocruz, a partir de la discusión de su modelo de gestión, entre 1970 y 2003. Discutimos la organización y política de la institución, cuyo objetivo identificar los conflictos entre las ideas públicas y privadas relacionadas con la fundación, explorando los itinerarios que la cultivan. socavar la construcción de un proyecto institucional flexible. Se define como un faro temporal o período de 1970 a 2003, que abarca dos momentos distintos en la historia de la Fiocruz: un primer subperíodo de 1970 a 1988, en las que es responsable el Derecho Privado; y desde 1988, año de promulgación de la Constitución Federal brasileña, hasta 2003, Cuando se incluye el régimen de Derecho Público se define su modelo de gestión y se establece su oficialidad válido hasta el día de hoy.
Fundación Oswaldo Cruz; Aspectos políticos; Trayectoria; Organización; Administración
INTRODUÇÃO
A Fiocruz é uma instituição pública e estatal de ciência e tecnologia em saúde, criada em 25 de maio de 1900 a partir do Instituto Soroterápico Federal, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Em 1908 passou a ser denominada de Instituto Oswaldo Cruz (IOC) em homenagem ao sanitarista Oswaldo Cruz, um de seus fundadores e personagem mais emblemático da história da instituição. A fundação se destaca como a mais importante do setor na América Latina e um dos mais proeminentes patrimônios científicos e tecnológicos da saúde brasileira, voltado para a finalidade de ensino, pesquisa, informação, tecnologia, produção de bens e serviços e apoio estratégico ao Sistema Único de Saúde (SUS), produção de vacinas e farmacológicos e com objetivo de contribuir para a melhoria e qualidade de vida da população (Fiocruz, 2023). Ao longo de sua história a Fiocruz incorporou e criou novos institutos e unidades.
Nesse sentido, o tema da presente pesquisa é analisar a trajetória político-institucional da Fiocruz, a partir da discussão do seu modelo de gestão, entre os anos de 1970 e 2003. Desse modo, nosso objetivo é identificar os conflitos entre os ideais público e privado na entidade, explorando os itinerários que culminaram na edificação do projeto político institucional da Fiocruz.
Definimos como baliza temporal o período de 1970 a 2003, que compreende dois distintos momentos na história da Fiocruz: um primeiro subperíodo de 1970 a 1988, em que responde pelo Direito Privado; e de 1988, ano da promulgação da Constituição Federal Brasileira (CF-88), até 2003, quando se enquadra no regime de Direito Público, define seu modelo de gestão e estabelece o estatuto oficial vigente até os dias de hoje.
O trabalho se justifica na medida em que identificamos uma lacuna historiográfica no que se refere à análise do projeto político-institucional, especialmente no que concerne ao modelo de gestão, que empreendesse um exame crítico das fontes e trouxessem à luz as discussões e embates internos, e com o governo federal relativos às políticas administrativas implementadas. Partimos da premissa de que o projeto político-institucional é um conjunto de propostas de diretrizes que norteiam o funcionamento da instituição, além de lhe conferir identidade demonstrando os rumos a serem seguidos pela entidade, principalmente no diz respeito à sua política.
Neste sentido, o presente trabalho visa contribuir com a produção especializada a partir da tentativa de indicar pistas e propor elementos de análises para questões que ainda se encontram em aberto: Como se deu a construção do modelo de gestão da Fiocruz? Como se desenvolveram as discussões relativas à manutenção do seu status como instituição pública, em contraposição a implementação de uma gestão de modelo privado? E, finalmente, qual tipo de estrutura jurídico-administrativa a Fiocruz adotou?
Para responder às questões, empreenderemos uma análise interna da instituição, valendo-nos de fontes oficiais disponíveis, principalmente o relatório de atividades, os estatutos da Fiocruz de 1976 e 2003, e os documentos relacionados aos congressos internos, mais precisamente do primeiro ao terceiro. Apesar das fontes oficiais constituírem a imagem que a instituição quer transmitir, levaremos a cabo uma investigação que busca além das informações escritas, ler nas entrelinhas e dentro das escolhas sobre o que a instituição quer se tornar, quais preceitos ela rejeita.
Nossa hipótese é de que a natureza jurídica e administrativa da Fiocruz, formam o arcabouço central para analisarmos a sua trajetória político-institucional. Desse modo, defendemos que a Fiocruz buscou desde a sua criação estabelecer um modelo institucional assente em premissas muito próximas das utilizadas pelas empresas privadas.
NASCIMENTO DA FIOCRUZ
Entre os anos de 1964 e 1985 o Brasil vivenciou um duro período marcado pela ditadura empresarial civil-militar, dentre outras características do regime autoritário, destacamos a política voltada para a edificação de projetos de grande envergadura e, de certa forma, essenciais para a sua manutenção e consolidação. O poder executivo com amplos poderes passou a interferir de modo sistemático em todos os setores da economia, nos investimentos públicos em infraestrutura, no funcionamento dos mercados de capital e da força de trabalho (Maciel, 2014).
Em 25 de fevereiro de 1967 institucionalizou o Decreto-lei 200, dispondo sobre a organização da Administração Federal e estabelecendo às diretrizes para a Reforma Administrativa. Em síntese, o Decreto-lei 200 propunha regular e delimitar a estrutura, as atribuições, normas, funcionamento e desenvolvimento da administração pública, separando-a em administração direta e indireta.
Dessa forma, foi estimulado o crescimento das entidades públicas descentralizadas de caráter eminentemente empresarial, como fica evidente no Art. 27 do Decreto-lei 200, que assegura “às empresas públicas e às sociedades de economia mista, condições de funcionamento idênticas às do setor privado” (Brasil, 1967). O projeto de descentralização da administração pública promoveu o crescimento em ritmo acelerado das diferentes modalidades jurídicas dispostas pela administração indireta.
Em 1970 o Ministério da Saúde, lançou um projeto audacioso para a ciência e tecnologia em saúde. Este projeto consistiu na criação de um grande polo em saúde pública brasileira, cujo epicentro do novo empreendimento seria representado pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC). A ideia assentou em aproveitar a possibilidade dada pela ditadura de instituir entidades estatais sob a designação de Fundação de Direito Privado conforme Decreto-Lei 200/1967. As fundações estavam na moda na época, em grande medida porque conferiam ao ente público a capacidade de se orientar por instrumentos legais cabíveis ao direito privado, ou seja, às premissas organizacionais e legais do setor privado (Schwartzman, 2001).
O Ministério da Saúde com apoio e participação do poder executivo, representado pelo General Emílio Garrastazu Médici, originaram na cidade do Rio de Janeiro, aproveitando-se do campus do Instituto Oswaldo Cruz, no bairro de Manguinhos, o maior centro de pesquisa científica e tecnológica em saúde pública da América Latina. O “novo” empreendimento em saúde ganhou o nome de Fundação Instituto Oswaldo Cruz, podendo ser chamado simplesmente de Fiocruz, construído a partir da fusão de renomados institutos em pesquisa científica em saúde no Brasil em uma só identidade jurídica e constitutiva, por meio do Decreto nº 66.624 de 22 de maio de 1970, são eles: o Instituto Oswaldo Cruz, Instituto Fernandes Figueira do Departamento Nacional da Criança, o Instituto Nacional de Endemias Rurais do Departamento Nacional de Endemias Rurais, o Instituto Evandro Chagas da Fundação Serviços de Saúde Pública e o Instituto de Leprologia do Serviço Nacional de Lepra.
Em 13 de agosto de 1970 por meio do Decreto nº 67.049, instituiu-se o estatuto da fundação, que contou com a incorporação de mais duas unidades, o Instituto de Produção de Medicamentos e Produtos Profiláticos (Ipromed), derivado da fusão do Serviço de Produtos Profiláticos até então ligado ao Departamento Nacional de Endemias Rurais e o Departamento de Soros e Vacinas do Instituto Oswaldo Cruz, e o Instituto Presidente Castello Branco, nova denominação dada a Escola Nacional de Saúde Pública criada em 1954.
O estatuto conferiu personalidade jurídica de direito privado, enquadrada no Código Civil brasileiro como Fundação Privada, vinculada ao Ministério da Saúde. Do ponto de vista gerencial, o estatuto previu plena autonomia administrativa, financeira, técnica-científica, didática e disciplinar. Os fins pelos quais o complexo fundacional deveria se reger correspondeu ao tripé pesquisa, ensino e produção. Os trabalhadores estariam submetidos ao regime da legislação trabalhista nas bases da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), com a seguinte ressalva, “respeitada a situação e os direitos dos funcionários pertencentes aos antigos órgãos do Ministério da Saúde integrados à Fundação” (Brasil, 1970). Isto quer dizer que os trabalhadores que integram o novo empreendimento, cuja origem legal estava assente no regime de estatuário (servidor público), permaneceriam nestas condições.
Embora os trabalhadores tivessem esta possibilidade de escolha, a situação se tornou mais complexa do que se imaginava, como apontam os relatos de pesquisadores da instituição, ao mencionar que os salários para estatutários estavam aquém dos salários de celetistas e ainda mais abaixo dos salários de outras instituições públicas (Brito, 1991). O descaso proposital da ditadura com o trabalhador público era patente, buscava-se inserir de maneira integral a lógica das relações de trabalho do sistema privado.
Para além disso, ficou normatizado que o ingresso de novos trabalhadores na fundação não passaria pela obrigatoriedade do concurso público. Outra medida acerca das relações de trabalho concerne na possibilidade de contratar trabalhadores por curto período, trabalhadores temporários, regidos pelo regime de Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). A natureza jurídica dada a Fiocruz revelou a personificação de um ente público sob uma norma jurídica inteiramente nova, tendo em vista que o modelo de Fundação para entidades públicas foi uma novidade no arcabouço jurídico brasileiro neste período.
Concluídos os ordenamentos formais e legais da Fiocruz, iniciou-se um longo caminho rumo a construção de uma identidade para a fundação. Durante este percurso regido pela ditadura, a Fiocruz enfrentou momentos de perseguição, repressão, autoritarismo, crises internas, projetos de modernização, esvaziamento institucional, desprestígio político, que em boa medida, contribuíram para promover uma lógica de precarização e flexibilização do serviço público estatal, abrindo caminho para conflitos entre o público e o privado em sua formação identitária.
O recrudescimento da repressão da ditadura ocorreu a partir da chegada a Presidência da República do General Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), juntamente com a posse de Rocha Lagoa a frente do Ministério da Saúde (1969-1972). Médici decretou em 01 de abril de 1970 o Ato Institucional nº 5, suspendendo garantias constitucionais, ao mesmo tempo em que atribuía poderes extraordinários ao Presidente da República. Aproveitando-se do estado de exceção que se instalará no país, Rocha Lagoa a frente do Ministério da Saúde puniu os pesquisadores de Manguinhos no fatídico episódio conhecido como o “Massacre de Manguinhos”. Este acontecimento correspondeu a cassação de dez pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, que perderem os seus direitos políticos e foram aposentados compulsoriamente pela ditadura (Lent, 1978).
A perseguição contribui para que boa parte do quadro de dirigentes e atores políticos envolvidos com a história e com a identidade de Manguinhos fossem retirados de cena. Estas medidas ocasionaram uma grande perda de consenso político nas lideranças do instituto, que foram ocupadas por pesquisadores e personagens escolhidos pelos militares externos a Fiocruz (Ponte, 2007).
O corte na trajetória da fundação ocorreu após a posse do General Ernesto Geisel em 3 de agosto de 1974. Em 12 de novembro do mesmo ano através do Decreto nº 74.878, alterou o estatuto de 1970 da Fiocruz, permitindo a obtenção da renda proveniente da comercialização de produtos fabricados pela instituição, extinguindo a obrigatoriedade de destinar os recursos para o Fundo Nacional de Saúde. No dia seguinte foi expedido o Decreto nº 74.891, rebatizando a instituição para Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Consequentemente, no ano seguinte durante a abertura da V Conferência Nacional de Saúde realizada em Brasília, no Distrito Federal, no dia 05 de agosto de 1975, Geisel discursou chamando a atenção da importância da saúde para o seu governo, indicando que investirá no setor, em especial na modernização da infraestrutura técnico-científica em saúde pública em conformidade com o Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Isto só foi possível segundo Ponte (2007), pelo fato do governo ocultar de todas as maneiras a epidemia de Meningite, motivo pelo qual Vinicius da Fonseca percebendo as competências internas e a oportunidade de produzir a vacina meningocócica AC, negociou a compra e a transferência de tecnologia. Nas palavras do militar “a recuperação da Fundação Oswaldo Cruz, instituição de prestígio internacional, representa, ao mesmo tempo, pré-condição e consequência deste programa” (Brasil, 1975, p. 22).
A principal medida consistiu na nomeação de Vinicius da Fonseca para o cargo de Presidente da fundação. Indicado pelo ministro da Saúde, Paulo de Almeida Machado e designado por Geisel, Fonseca era um economista com papel de destaque na articulação econômica do país, foi um dos fundadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 1965 e por indicação do Ministro do Planejamento, Reis Veloso (Hamilton; Azevedo, 2001), ocupou a coordenação da área social ligada à habitação, saneamento, saúde e previdência social.
O respaldo político de Vinícius da Fonseca no Ministério da Saúde, na Secretaria de Planejamento e no executivo federal, tornou possível engendrar políticas reformistas na fundação com apoio político e financeiro do governo. Em sua concepção, a reestruturação da Fiocruz teria que ser feita a partir de uma reformulação legal-institucional e reenquadrá-la na nova configuração gerencial. Desse modo, no início de 1976, Fonseca apresentou seu projeto contendo um novo estatuto para a instituição ao Ministro da Saúde, aprovado legalmente em 23 de abril de 1976 através do Decreto nº 77.481.
O novo estatuto manteve as finalidades de ensino, pesquisa e produção como a base da fundação. Porém, ampliou seu escopo ao atribuir a responsabilidade de participação na formulação, coordenação e execução do plano básico de pesquisa para a saúde e apoio nas atividades de planejamento da saúde pública (Fiocruz, 1976). Chama atenção no novo estatuto o claro direcionamento para o setor privado, a liberdade em realizar parcerias no campo da prestação de serviços, acordos contratuais e participação em empresas privadas. O estatuto previa ainda a possibilidade de aplicar recursos próprios em entidades públicas e privadas (Fiocruz, 1976).
A gestão de Vinícius da Fonseca buscou alinhar a funcionalidade interna priorizando a produção em detrimento da pesquisa básica. Isto porque, de acordo com as presunções tecnocratas-desenvolvimentistas de Vinícius da Fonseca, a pesquisa não garantiria autonomia financeira. Para ele o que asseguraria autonomia seria focar em determinados tipos de produtos fabricados pela fundação, pois só assim seria possível “desmamar das tetas do governo” (Hamilton; Azevedo, 2001, p. 260).
O projeto de Recuperação de Manguinhos organizou a administração de uma maneira em geral, forjou uma burocracia interna, centralizando as ações na administração central vinculada à presidência da fundação. Do ponto de vista das relações trabalhistas, a preocupação consistiu em formar um quadro de trabalhadores de acordo com os enunciados do estatuto e do Plano de Reorientação Programática da fundação, ou seja, regidos pelo regime de CLT. Porém, a direção da Fiocruz encontrou dificuldades para forjar seu objetivo, por conta do elevado número de trabalhadores em regime estatutário. Além disso, os trabalhadores que se encontravam em regime de CLT, poucos aderiram ao sistema do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), criado em 1966 pela ditadura civil-militar, com o objetivo de acabar com a “estabilidade” do trabalho da iniciativa privada, motivo que lhes rendia o direito de estabilização compulsória ao fim de dez anos de trabalho.
Assim sendo, o legado da gestão de Vinícius da Fonseca assenta na reformulação administrativa, estrutural e funcional da Fiocruz. Porém, deixa uma herança, de certa forma, muito bem planificada no campo empresarial, na medida em que promoveu um arcabouço institucional voltado para a flexibilização estrutural da fundação. Vinícius da Fonseca contribuiu na formação de aspectos formais e no delineamento de diretrizes orientadas para as práticas empresariais, enfraquecendo ou mesmo diluindo as bases do serviço público de natureza público-estatal.
O sucessor de Vinícius da Fonseca na presidência da Fiocruz foi o seu vice-presidente de recursos humanos, o professor e pesquisador de Manguinhos, Guilardo Martins Alves. A nova gestão permaneceu no poder entre os anos de 1979 e 1985, de certa forma, mantendo e reforçando as premissas da gestão anterior.
DEMOCRATIZAÇÃO NA FIOCRUZ: processo de reconstrução institucional
Em 1985 com o fim da ditadura, assumiu a presidência da Fiocruz o sanitarista Sérgio Arouca, servidor de carreira da instituição, lotado na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), que mais tarde passará a ser chamada Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca em sua homenagem. A gestão de Sérgio Arouca 1985-88 inaugurou um processo de participação democrática promovendo formas de debates e deliberações de maneira democrática, até então inexistentes em Manguinhos, modernizou e estruturou as unidades, apontou as diretrizes básicas para um projeto institucional pós-redemocratização. Arouca conseguiu dinamizar e recuperar a posição de relevância da Fiocruz no cenário nacional, em menos de quatro anos à frente da fundação, ensejou políticas estruturais profundas que estão presentes até os nossos dias.
A reforma sanitária oriunda de anos de luta pelo movimento da reforma sanitária ocorreu na contramão da conjuntura internacional, enquanto os países de capitalismo avançado do ocidente encaminhavam para o degaste do modelo de Estado de bem-estar social e implementação de medidas de austeridade e expropriações sociais em escala acelerada a partir dos anos de 1970, no Brasil as conquistas sociais eram institucionalizadas na carta magna e pela primeira vez na história a população teria seu direito garantido na legislação à saúde pública, gratuita, universal e sob dever do Estado (Escorel, 1998; Paim, 2008). Os desafios de pôr em prática os princípios da reforma sanitária e fazer valer a lei foram imediatamente confrontados pelas classes dominantes.
O contexto marcado por intensas mudanças na estrutura política e social mundial a partir de políticas neoliberais, nascidas a seguir a crise do capital iniciada na década de 1960 e do acirramento das lutas de classe nos países do centro capitalista de Estado de Bem-Estar-Social. Assim, ocorreu uma série de reformulações capitalistas em todas as esferas da sociedade, forjando um novo consenso. A luta de classes revelou a dominação burguesa no âmbito do Estado em novos patamares, assumindo cada vez mais espaço de poder político e sobre os recursos do Estado. Não caberia mais um Estado com políticas sociais abrangentes, sendo necessário readequar a forma de dominação burguesa do Estado (Fontes, 2010).
A fundação não dispunha de mecanismos institucionais democráticos responsáveis por discutir e planejar o seu futuro institucional. Em 1988 inaugurou a principal plataforma democrática vigente até os dias de hoje na fundação, o Congresso Interno, tendo por finalidade implantar uma gestão democrática participativa, sendo um instrumento necessário na construção de um projeto institucional estruturado e de amplo debate democrático com a participação de todos os integrantes da Fiocruz. Tornou-se a instância máxima de deliberação e discussão interna, presente até os nossos dias. Para compor a estrutura do Congresso Interno criou-se o Conselho Deliberativo, com a presença da Presidência, diretores de unidades e por representantes dos servidores. As unidades escolhem seus delegados de acordo com seu tamanho, podendo uma unidade possuir mais delegados que outra, de tal modo que estes seriam os responsáveis por representá-los e votar nas demandas em pauta (Fiocruz, 1988).
Por todos estes fatores, os desafios deixados pelo fim da ditadura foram muitos e de grande complexidade. A Fiocruz adentrava a segunda metade da década de 1980 com mais dúvidas do que certezas de seu futuro. Era preciso reformular e construir sentido para a fundação e muitas perguntas precisavam ser resolvidas: Como promover coesão e identidade institucional para múltiplas e diversas unidades? Ser pública estatal ou fundação pública de direito privado? Quais caminhos percorrer até a confecção do novo Estatuto? Qual projeto institucional deverá traçar as diretrizes básicas da fundação para o futuro?
Evidente que a gestão de Sérgio Arouca não daria conta de responder tais questões em tão pouco tempo. Porém, sem dúvida, a partir do Congresso Interno, a fundação passou a contar com uma plataforma democrática de discussão dos problemas internos e das questões da sociedade em geral, onde puderam ser apresentados e discutidos os problemas, e aprovadas as melhores alternativas para a fundação.
O final da década de 1980 e início dos anos de 1990 marcaram uma nova fase na história da Fiocruz, movidos pelo sentimento de libertação da repressão ditatorial e pela missão de reconstrução da entidade, os trabalhadores enfrentaram a difícil tarefa de em conjunto elaborar um novo estatuto, nomeadamente forjou-se um processo de reestruturação geral da política interna.
No entanto, o processo de democracia participava da Fiocruz se deu em meio a significativas transformações no país, especialmente no campo da saúde e da estrutura administrativa-legal de entidades públicas. A Constituição Federal Brasileira de 1988 (CF-88) institucionalizou o sistema público de saúde no Brasil denominado de Sistema Único de Saúde (SUS), passando a ser regulamentado pelas Leis nº 8080, de 1990 e nº 8142, de 1990, determinando ações e serviços públicos de saúde através de uma rede regionalizada, de atendimento integral, hierarquizada, descentralizada e prevendo a participação da comunidade. A CF-88 garantiu direitos inéditos no país na área da saúde, com destaque para o princípio da universalidade e por reconhecer a saúde como um direito social, dever do Estado, com acesso universal e igualitário, de modo que o Estado passa a ser o responsável por sua regulamentação, fiscalização e controle, permitindo a execução dos serviços em saúde por meio de instituições públicas, terceiros, pessoa física ou jurídica de direito privado.
Por seu turno, a constituição apontou uma série de mudanças na organização da administração pública. Em síntese, proclama a obrigatoriedade do concurso público para investidura de cargo ou emprego público (Art. 37, II), a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas (Art. 39). Portanto, alterou as regras até então vigentes na Fiocruz de não obrigatoriedade do concurso público para cargos públicos, além de determinar um regime jurídico único para a administração pública direta e indireta. Não obstante, a principal transformação refere-se a modificação na estrutura jurídica das fundações públicas de direito privado em fundações públicas de direito público.
Do ponto de vista das transformações no mundo do trabalho, mantiveram-se estreitamente relacionadas com as do aparelho de Estado. No mercado de trabalho a tendência prevaleceu por contratos precários, sem garantias de futuro, às vezes sem quaisquer garantias trabalhistas, como por exemplo, os contratos de trabalho terceirizados, subcontratações, contratos temporários, bolsas, contratos por projeto, dentre outros formatos que impossibilitam o trabalhador de se organizar coletivamente e acima de tudo planejar seu futuro (Druck; Borges, 2006). Conforme aponta Ricardo Antunes (2009), é neste quadro de precarização estrutural do trabalho que o grande capital vem de forma cada vez mais rigorosa, exigindo dos governos nacionais o desmonte da legislação social que protege a classe trabalhadora. Uma das principais estratégias do capital nas relações de trabalho consistiu na terceirização, que passou a ser utilizada de modo intenso e indiscriminada no serviço público. Nesta perspectiva, a CF-88 rompeu com o modelo jurídico que alicerçava a Fiocruz, retirando-a do direito privado para compor as entidades do direito público. A legislação apontou que a Fiocruz não poderia atuar fora do alcance da administração estatal e gozar do direito privado. Dessa forma, a instituição responderá por Fundação Pública de Direito Público, nos moldes do regime de autarquia. Assim, integrará a administração indireta do Estado, mas com qualificações que, de certa forma, podem ser compreendidas como integrante da própria administração direta, por conta do caráter de autarquia. Estas alterações passaram a vigorar desde 1988, e foram confirmadas no Estatuto da Fiocruz no ano de 2003.
Na qualidade de autarquia fundacional, seus atos e contratos devem obrigatoriamente atender ao Regime Jurídico Administrativo. Portanto, regulados por lei específica, por exemplo, a Lei 8. 666, que foi revogada pela lei 14.133/2021, rege sobre a licitação pública para contratos com terceiros, aquisição de insumos, bens e alienação de bens, realização de obras, e dispensa e inexigibilidade de licitação. Por fim, o Ministério da Saúde e do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro são os responsáveis pelo controle da Fiocruz em ambas as espécies jurídicas. Porém, como fundação autárquica, o Tribunal de Contas da União (TCU) poderá exercer papel de fiscalizador, por exemplo, em casos de auditoria de projetos e processos administrativos. Desse modo, a Fiocruz pública de direito privado, detinha de um controle no sentido de fiscalizar a execução adequada de seu serviço com finalidade social. Por outro lado, a Fiocruz de direito público, terá na administração direta do Estado o controle por suas ações, sem a necessidade ministerial de fiscalização e de controle.
Diante de tal cenário, realizou-se o I Congresso Interno em 1988 intitulado “Ciência e Saúde: A Fiocruz do Futuro”. O debate girou em torno das novas diretrizes para a saúde pública, a consolidação da democracia e os aspectos jurídicos traçados pela constituição. O que se buscava na Fiocruz era afirmar o congresso como instrumento democrático e de referência para a construção de um projeto institucional.
Aprovou-se em assembleia geral dos participantes do congresso o novo estatuto e uma proposta de desenvolvimento institucional para a fundação. Embora, tenham sido aprovados estas diretrizes em acordo interno, o estatuto necessitava obrigatoriamente da sanção do Ministério da Saúde, o que não ocorreu. Como veremos, somente em 2003 será aprovado o seu estatuto oficial. Assim, tanto o estatuto como o projeto de desenvolvimento institucional foram sucessivamente discutidos e alterados a cada congresso interno.
Os participantes do I Congresso Interno deliberam que a CF-88 atuou de forma restritiva no campo do orçamento e das normas jurídicas, consideradas como retrógradas por seu caráter burocrático, responsável por retirar a autonomia administrativa e financeira da fundação. Uma das saídas propostas para o problema financeiro consistiu em aumentar a dotação orçamentária através da “criação de novos mecanismos administrativos para absorver e gerir recursos de iniciativa privada e agências governamentais, propugnando pela extensão da Lei nº 7505, de 02.07.88, às chamadas atividades de pesquisa” (Fiocruz, 1988, p. 6).
Um segundo obstáculo identificado pelos membros do Congresso Interno diz respeito ao terreno das contratações de mão de obra. Isto porque em 11 de dezembro de 1990 foi expedida a Lei nº 8.112, dispondo sobre o Regime Jurídico Único para os servidores públicos federais. Determinou a retomada do regime estatutário para a órbita do Estado, uma vez suprimida pela ditadura, o Art. 37 da Constituição Federal que trata da administração pública, passou a incorporar o Art. 19, escrito por meio do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, estabelecendo que todo o trabalhador integrante de instituições públicas há pelo menos cinco anos continuados até a data da promulgação da Constituição de 1988, será considerado estável no serviço público, ou seja, passará do regime de celetista para o regime estatutário.
A flexibilização trabalhista introduzida na fundação deu lugar ao regime estatutário, impedindo a Fiocruz de contratar trabalhadores sem que houvesse concurso público autorizado pelo governo federal. Em contrapartida o governo federal não se mostrava interessado em abrir concurso para a fundação, tampouco para o funcionalismo público, uma vez que o país era governado pelo “caçador de marajás”. Era assim que o Presidente da República, Fernando Collor de Melo (1990-1992) se autodenominava em campanha explicita contra os servidores e as instituições públicas. O clima de incertezas se aprofundou no ano de 1992, quando ocorreu o processo de impeachment de Collor até sua cassação por crime de corrupção em dezembro de 1992.
A impossibilidade de adquirir mão de obra somada ao abandono do poder público, ocasionou problemas na formação do quadro de trabalhadores da Fiocruz. Impedida de contratar pessoal pela não abertura de concursos, os primeiros anos registraram uma queda no quadro de trabalhadores, que será minimizado em 1992 pela incorporação de servidores de outras instituições públicas por meio de transferências para a Fiocruz (Fiocruz, 1993).
Na gestão da Presidência de Carlos Morel (1992-1997) foram abertas novas possibilidades para ampliação do quadro de mão de obra na instituição através da terceirização do trabalho e incorporação de pessoal por meio de contratos precários, bem como contratos por bolsas. A passagem abaixo ilustra a posição estratégica da Fiocruz no período dirigido por Carlos Morel:
A política atual da Fiocruz para a utilização de pessoal contempla uma adequação entre a via de moderada ampliação do quadro permanente e a via da terceirização seletiva, especialmente para as áreas de produção e serviços. Uma terceira via, a dos empregados temporários, é facilmente previsível neste contexto e confessadamente, tem sido em parte suprida pelo crescimento dos estagiários. Mas é bem sabido que a questão do temporário aguarda um amparo legal só obtido com a revisão simultânea do regime jurídico único e da CLT (Fiocruz, 1995a, p. 59).
A falta de autonomia administrativa e financeira atribuída a Fiocruz após a CF-88, começou a dar sinais de exaustão. A fundação que ainda buscava se adaptar nos primeiros anos às novas exigências do poder público, passou a tomar um posicionamento de enfrentamento ao que considerava ser “amarras” burocráticas da legislação pública. A busca por novos artifícios nas relações de trabalho e a abertura para a composição do quadro de mão de obra por meio de contratos terceirizados e precários foi uma das ações de caráter flexível que a gestão de Carlos Morel e a Fiocruz começaram a engendrar. Estas medidas estavam em conformidade com as discussões e diretrizes traçadas pelo II Congresso Interno iniciado em 1993.
O II Congresso Interno ocorreu entre 1993 e setembro de 1996. A primeira etapa recebeu o nome de “Ciência e Saúde: Compromisso Social da Fiocruz”, cujo relatório final foi apresentado em janeiro de 1994. O pano de fundo das discussões do II Congresso Interno assentou em como incorporar e manter a fundação em níveis de competitividade e atividade diante das novas exigências do mundo globalizado que passou a exigir que as instituições se modernizem e interajam com novos mercados.
O público participante do congresso concordou em sua maioria com a adoção de práticas gerenciais modernas e capazes de flexibilizar a atuação burocrática da fundação imposta pela legislação. Na percepção dos participantes a transformação da Fiocruz em fundação de direito público configurou o maior obstáculo para seu enquadramento nas novas exigências do mundo globalizado. O congresso não chegou a solucionar o problema da falta de autonomia, todavia, determinou como política institucional a busca por um novo modelo de gestão capaz de flexibilizar os entraves jurídicos em vigência.
Portanto, os anos pós-redemocratização (1985-1994), de certa forma representaram um estágio de incertezas institucionais diante da falta de alternativas jurídicas de orientação flexível. A instabilidade política do país e a ausência de projetos para a administração pública, conduziram a Fiocruz a dois congressos internos, mas sem condições de traçar grandes mudanças institucionais. Esta realidade será alterada a partir da chegada de Fernando Henrique Cardoso à presidência do Brasil em 1995. A reforma do Estado engendrada por FHC propiciou ambiente fértil para as discussões internas na Fiocruz, caminhos e alternativas de base flexível ganharam um vultoso espaço nas arenas de disputa. É neste contexto que ocorrerá a rodada final do II Congresso Interno, iniciada em 1995 e finalizada na plenária extraordinária em 1996.
A BUSCA PELA FLEXIBILIZAÇÃO
Em 1995 Fernando Henrique Cardoso nomeou o economista da Fundação Getúlio Vargas, Luiz Carlos Bresser Pereira (Brito, 2016) para assumir o Ministério Extraordinário da Administração Federal e da Reforma do Estado (Mare). Em 21 de setembro do mesmo ano, o Mare editou o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) (Brasil, 1995), documento responsável por nortear o projeto de reforma do Estado e estabelecer às diretrizes para a reforma na administração pública.
Em julho do mesmo ano a direção da Fiocruz sob presidência de Carlos Morel, publica o texto “Compromisso Público e Reforma do Estado: Modelo Institucional da Fiocruz”, no II Congresso Interno, servindo de Documento de Referência para as discussões da plenária final ocorrida em agosto do mesmo ano. Ainda em agosto de 1995 é publicado o documento “A Reforma do Estado e a Fiocruz”, como relatório final da plenária do II Congresso Interno. Estes textos ao lado do relatório final da Plenária Extraordinária do II Congresso Interno de setembro de 1996 intitulada “Autonomia, Flexibilidade e Qualidade”, formam o arcabouço documental do II Congresso Interno e as principais fontes para analisarmos a articulação entre Fiocruz e a reforma do Estado de FHC.
Em Compromisso Público e Reforma do Estado: Modelo Institucional da Fiocruz a direção da Fiocruz apresentou alternativas para a natureza jurídica da fundação, debatendo os caminhos para a flexibilidade institucional e a confecção do novo estatuto. Nesse sentido, logo na introdução, resgatou-se a trajetória institucional de Manguinhos, denunciando o processo de ruptura do crescimento e da modernização proveniente da perda de sua flexibilidade e autonomia. Defendeu-se o argumento de que durante a década de 1930, a instituição havia sofrido o seu primeiro constrangimento institucional, fazendo referência a centralização do setor público dado pelo governo de Getúlio Vargas. Contudo, a reforma administrativa operada pelo ditadura civil-militar e a criação do complexo fundacional que deu origem a Fundação Oswaldo Cruz, representou a retomada da flexibilidade e autonomia, características fundamentais para o seu crescimento, que ora encontram-se restringidas pela Constituição de 1988 (Fiocruz, 1995b).
As saídas encontradas pela Fiocruz para o problema da rigidez foram variadas e complexas: em primeiro lugar, a melhor alternativa e menos viável politicamente, assentava em alterar a personalidade jurídica de direito público para privado, medida possível apenas por meio de mudança constitucional. Este caminho chegou a ser reivindicado junto ao governo federal de maneira formal, mas sem sucesso. Isso ocorreu após o término da primeira rodada do II Congresso Interno em 1993, quando a Fiocruz propôs ao governo federal a possibilidade de “viabilizar a aprovação de medida legal que altere a natureza jurídica da Fundação Oswaldo Cruz”, nos seguintes termos “as fundações públicas destinadas às atividades de Ciência e Tecnologia gozarão de autonomia administrativa e financeira. Lei Federal disporá sobre sua natureza jurídica e sobre o direito de opção pela permanência no Regime Jurídico Único dos atuais servidores” (Fiocruz, 1995b, p. 4).
A segunda hipótese corresponderia a adoção de novos e reformados modelos administrativos que se traduzissem em práticas flexíveis e autônomas. Porém, novamente a Fiocruz esbarrava nas possibilidades legais promovidas pelo poder público, entrave que seria sanado durante o governo neoliberal de FHC (Tavares, 2020). Nesse sentido, por meio da reforma do Estado, o governo abriu não só novas frentes de gestão para as instituições públicas, assim como iniciou um processo de reforma na Constituição Federal. Além disso, o contexto da reforma do Estado propiciou um ambiente ideológico favorável para a construção de novos modelos jurídicos-administrativos (Reis, 2019), o que em boa medida permitiu certa liberdade para a Fiocruz negociar seus próprios projetos com o Ministério Extraordinário da Reforma do Aparelho do Estado. (Parte do parágrafo foi suprimido)
Os pontos ressaltados como vantajosos para a Fiocruz no processo em curso de transformação antidemocrática da Constituição são: 1) Constituição de carreiras estáveis somente para atividades consideras típicas do Estado, entre as quais não se incluem as áreas de ciência e tecnologia e serviços de saúde; 2) Reformulação da estabilidade do funcionário público; 3) Flexibilização dos processos licitatórios; 4) Flexibilização do funcionamento de Fundações e Autarquias com recuperação de graus diferenciados de autonomia administrativa-financeira (Fiocruz, 1995b, p. 4).
Nessa direção, a plenária extraordinária do II Congresso Interno em 1995 deliberou a preocupação da Fiocruz em manter seu interesse de reestruturar o aparato jurídico institucional, aprovando como medida central “apoiar propostas de Reforma Constitucional e de legislação ordinária que confiram maior autonomia e flexibilidade gerencial e administrativa às autarquias e Fundações Públicas” (Fiocruz, 1995c, p. 9). Desse modo, deliberou em plenária, a missão de “delegar ao Conselho Deliberativo da Fiocruz o início imediato de articulações com o Executivo, Legislativo e a sociedade para o acompanhamento do processo da Reforma do Estado” (Fiocruz, 1995c, p. 9).
Os projetos sugeridos pelo Mare para a Fiocruz foram: Autarquias Especiais e Organizações Sociais. E, mais tarde, em 1997 abriu-se a alternativa de transformação em Agência Executiva, que será analisada a partir do III Congresso Interno em 1998.
O projeto de autarquias especiais não chegou a se efetivar no plano governamental, apenas representou a fase inicial de discussões sobre quais os possíveis projetos de flexibilização das entidades ligadas a administração direta do Estado. No entanto, o que se pretendia com esta proposta assentou em propiciar maior autonomia administrativa e financeira para as fundações públicas de direito público, por meio do contrato de gestão entre o poder público e a instituição. Dessa forma, o contrato de gestão implicaria na permanência da fundação no quadro da administração direta do Estado, porém, com liberdade para atuação, sendo de responsabilidade da União o controle das metas e objetivos da fundação. Houve boa aceitação na Fiocruz para esta proposta, pois conservava a natureza de entidade pública e estatal e conferia maior autonomia administrativa e financeira. Porém, como já mencionado, este projeto não avançou.
A segunda alternativa analisada diz respeito ao projeto de Organizações Sociais. Esta proposta está relacionada com os projetos pontuais da reforma do Estado escrito através do Caderno 2 do MARE.1 Antes de examinarmos como se deu a mediação entre a Fiocruz e o modelo de Organizações Sociais, precisamos compreender o que se trata esta invenção do MARE, que apesar de ter sido extinta ao fim da reforma do Estado, repercutiu de forma intensa na fundação.
O projeto de Organização Social se insere no setor “não exclusivo” no quadro da divisão setorial do aparelho do Estado, definido pelo MARE como sendo “o setor onde o Estado atua simultaneamente com outras organizações públicas não-estatais e privadas”. Desse modo, as instituições que compõem este setor não dispõem do poder de Estado, “mas este se faz presente porque os serviços envolvem direitos humanos fundamentais, como os da educação e da saúde, ou porque possuem economias externas relevantes, na medida que produzem ganhos que não podem ser apropriados por esses serviços pela via do mercado” (Brasil, 1995, p. 42).
Os serviços “não exclusivos” do Estado são chamados vulgarmente de “público não-estatal”. Em síntese, o setor público não-estatal se desenvolve por meio do programa de “publicização”, transformando as fundações públicas de direito público em organizações sociais de direito privado e sem fins lucrativos. Dessa maneira, as instituições que lograrem se qualificar enquanto Organização Social terão que extinguir sua atual natureza jurídica e se retirar da administração pública (Brasil, 1996).
A partir do momento que a entidade pública obtém a qualificação como OS por meio da publicização, o novo ente passa a ocupar o ordenamento jurídico das Associações Civis Sem Fins Lucrativos, de direito privado e pertencente ao Código Civil brasileiro. Uma vez fora da administração pública, a instituição enquadrada em Organização Social estará atrelada ao poder público somente através do contrato de gestão, instrumento que dará legalidade para este processo, celebrado a partir de um acordo entre o poder executivo e a entidade de direito privado então criada que estabelece metas de desempenho e práticas de controle.
O Estado “continuará a financiar a instituição, a própria organização social”, aumentando assim a “eficiência e qualidade dos serviços, atendendo melhor o cidadão-cliente a um custo menor” (Brasil, 1995, p. 47). Para Bresser-Pereira, as Organizações Sociais representam uma “verdadeira revolução na gestão da prestação de serviços na área social”, o “cidadão-cliente” terá enfim a oportunidade de adquirir um serviço eficiente e de qualidade. A revolução ocorrerá a partir da introdução sem ressalvas das “características de gestão cada vez mais próximas das praticadas no setor privado, o que deverá representar, entre outras vantagens: a contratação de pessoal nas condições de mercado; a adoção de normas próprias para compras e contratos; e ampla flexibilidade na execução do seu orçamento” (Brasil, 1996, p. 14).
Desse modo, as Organizações Sociais são definidas pelo MARE como:
Um modelo de organização pública não-estatal destinado a absorver atividades publicizáveis mediante qualificação específica. Trata-se de uma forma de propriedade pública não-estatal, constituída pelas associações civis sem fins lucrativos, que não são propriedade de nenhum indivíduo ou grupo e estão orientadas diretamente para o atendimento do interesse público. As OS são um modelo de parceria entre o Estado e a sociedade. O Estado continuará a fomentar as atividades publicizadas e exercerá sobre elas um controle estratégico: demandará resultados necessários ao atingimento dos objetivos das políticas públicas. O contrato de gestão é o instrumento que regulará as ações das OS (Brasil, 1996, p. 13).
Além de conferir personalidade jurídica de direito privado e de se isentar das normas da administração pública, as Organizações Sociais gozam de liberdade para contratar e despedir mão-de-obra, além de lançar seu próprio plano de cargos e salários. Dessa forma, põe fim ao Direito Público, às normas da administração pública e ao Regime Jurídico Único, alterando o regime estatutário e a seguridade no emprego por contratos de trabalhos na esteira do setor privado. Por fim, chama atenção, a possibilidade de contratar trabalhadores temporários sem plano de carreira e por acordos que não se inserem no regime da CLT, ou seja, sem vínculo empregatício, como por exemplo, contratos de bolsa e por trabalho autônomo (Pochmann, 2007).
Diante desse quadro, o Documento de Referência apresentado no II Congresso Interno da Fiocruz, analisa com cuidado as possiblidades e dificuldades do modelo de Organização Social. Elencam como principais desafios a falta de diretrizes para a questão de pessoal, como proceder com os contratos de estatutários em vigência, as aposentadorias, a equiparação de salários com a entrada de novos trabalhadores, todas questões não resolvidas pelo projeto de Organização Social. Para além das questões trabalhistas, a preocupação da fundação se volta para a criação de um novo modelo jurídico para as entidades públicas de natureza semelhante à sua, mas sem que haja adequação de todas ao mesmo modelo, prejudicando a relação institucional entre ambas. Mencionam também os riscos, “em tese”, dos princípios da universalidade e gratuidade; a fragilidade no papel técnico normativo em todas as áreas de atuação da Fiocruz; a tendência à monetarização dos objetivos institucionais; a modificação substantivamente da atual estrutura decisória da Fiocruz com a alteração do Congresso Interno, dos membros do conselho e dos órgãos de direção; e o risco de negociar diretamente com o Ministério da Saúde o conteúdo do Estatuto interno e não com a comunidade da fundação (Fiocruz, 1995b, p. 11).
O terceiro e último modelo apresentado pela reforma do Estado está articulado com o projeto de Agência Executiva, escrito pelo Caderno nº 9 do MARE, publicado em 03 de outubro de 1997. O projeto prevê a qualificação de autarquias e fundações públicas em agências executivas. O debate em torno dessa alternativa se desenrola durante a realização das duas etapas que abrangem o III Congresso Interno; a primeira em 1998 e a segunda no ano de 2000.
De acordo com o MARE, Agência Executiva “é uma qualificação a ser concedida, por decreto presidencial específico, a autarquias e fundações públicas, responsáveis por atividades e serviços exclusivos do Estado” (Brasil, 1998, p. 7). Nessa perspectiva, o projeto não cria uma nova figura jurídica e segundo o MARE, também “não promove qualquer alteração nas relações de trabalho dos servidores das instituições que venham a ser qualificadas” (Ibidem). Para tanto, a transformação em agência executiva se dá por meio de candidatura, tendo obrigatoriamente que cumprir com os requisitos de: 1) um plano estratégico de reestruturação e desenvolvimento institucional em andamento; e 2) um Contrato de Gestão, firmado com o Ministério supervisor (Ibidem). Em síntese, deve-se apresentar um plano que atenda às práticas de gestão da empresa privada, traduzidas para o setor público pela administração gerencial, mantida por um Contrato de Gestão entre o Ministério da Saúde e a Fiocruz.
Portanto, são apresentados pelo MARE as três possíveis alternativas para a alteração no modelo jurídico-administrativo da Fiocruz. Como vimos a opção por Autarquia Especial não avançou, restando a possibilidade de aderir ao projeto de Organização Social e Agência Executiva. Em princípio a Fiocruz defendeu como melhor saída o modelo de Organização Social, tendo em vista o alto grau de flexibilidade oferecido. Para tanto, esta opção colocava em risco as cláusulas pétreas da instituição assentes no caráter público e estatal, tendo em vista a natureza privada das Organizações Sociais.
A plenária de 1998 concordou que a opção pelo modelo de Agência Executiva seria vantajosa porque não alteraria sua natureza pública e estatal, representando, assim, um ponto de partida para “retomar o processo de transformação do modelo burocrático para uma administração gerencial orientada para resultados, ao mesmo tempo em que se busca a adequação de modelos formais a uma realidade complexa” (Fiocruz, 1998, p. 10). A justificativa mais uma vez assentou em romper com a rigidez jurídico-administrativa materializada pelo “crescente grau de constrangimentos gerenciais que o modelo burocrático de controle de processos vem impondo às instituições públicas”, tendo em vista que a “Fiocruz já desfrutou, por seu estatuto fundacional, de alto grau de autonomia” (Fiocruz, 1998, p. 11).
Em virtude disso, ainda na primeira fase do III Congresso, os participantes do encontro consideraram que a melhor saída para seu modelo jurídico-administrativo residiria num misto entre Agência Executiva e Organização Social. Dessa forma, a Fiocruz se qualificaria como Agência Executiva e associaria ao seu modelo uma Organização Social, permitindo a manutenção da sua natureza pública e estatal, mas gozando das vantagens oferecidas pela flexibilização de uma instituição privada. Para tanto, a própria Fiocruz reconhece que a implementação desta escolha não será tarefa fácil, haja vista a ausência de qualquer similaridade na gestão pública com esse modelo. A dificuldade se confirma, uma vez que por mais “perfeito” que fosse o modelo misto no olhar da instituição, ele não alcançou êxito no governo federal.
Não obstante, a proposta de Agência Executiva é levada adiante pela fundação, no ano de 2000 foi produzido o documento Análise Estratégica e Avaliação Institucional da Fundação Oswaldo Cruz para a Qualificação como Agência Executiva. Este texto faz parte da segunda rodada do III Congresso Interno, compreendendo o objetivo da instituição em se tornar agência executiva e consequentemente encaminhando ao Ministério Extraordinário da Reforma do Aparelho do Estado seu pedido de qualificação (Fiocruz, 2000).
Chama atenção a boa aceitabilidade dessa alternativa na comunidade de Manguinhos, acreditando ser o melhor caminho para a construção do modelo de gestão da fundação. Já vimos que os documentos oficiais do III Congresso Interno indicam o projeto de Agência Executiva como o melhor caminho. Nessa direção, o Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz (ASFOC-SN), durante a realização do III Congresso, publica em agosto do ano de 2000, o texto “Agência Fiocruz: uma adesão propositiva e progressista à Reforma do Estado” (ASFOC-SN, 2016). A análise do documento revela a cooptação do sindicato aos ditames da reforma do Estado do ponto de vista do desmonte dos direitos da classe trabalhadora do serviço público.
Em primeiro lugar, o texto aponta a visão do sindicato em qualificar como propositiva e progressista a ideia de Agência Executiva para a Fiocruz, ressaltando que tal projeto teria grandes chances de resolver aquilo que o sindicato elenca como quatro pontos problemáticos para a instituição: 1) prioridade atual está nos processos relativos às áreas e não aos resultados alcançados por elas; 2) Por conta disso, é preciso buscar a flexibilidade na gestão, seja na área de compras de produtos, serviços ou na delicada gestão de recursos humanos, com seus mecanismos de responsabilização, premiação, punição, demissão e admissão de pessoal; 3) Para superar estes desafios, propuseram a introdução do mecanismo do Contrato de Gestão, que a partir de metas claras passaria a criar parâmetros de eficiência tanto institucionais como em relação aos recursos humanos; 4) Manter, numa administração gerencial que substitua a burocratizada, cláusulas que dão a tônica ao papel social da Fiocruz: seu conteúdo público e estatal, a administração participativa e o controle social (ASFOC-SN, 2016).
A ASFOC registrou seu apoio a Emenda Constitucional 19,2 elaborada pelo governo FHC, que em linhas gerais, desmonta o Artigo 37 da Constituição Federal,3 flexibilizando de maneira arbitrária e anticonstitucional a administração pública. Para o sindicato a medida desobrigará a adoção do regime jurídico único, permitindo a negociação coletiva na fundação, a criação interna de plano de cargos e salários, o fim da estabilidade no emprego público, o fim do concurso público para provimento de cargo, a contratação de trabalhadores por regime celetistas, por bolsa, por tempo determinado, por contrato de RPA (Recibo de Pagamento Autônomo, ou seja, trabalhador autônomo), abrindo espaço para a terceirização desenfreada do serviço público. Tudo isto é visto como forma de aumentar a eficiência e flexibilizar a gestão pública, demonstrando seu apoio a emenda constitucional que se encontrava em processo de votação e aprovação do Congresso Nacional (ASFOC-SN, 2016).
Entretanto, a articulação entre Fiocruz e reforma do Estado não avançou no que concerne aos modelos jurídico-administrativo. Um dos motivos para o fracasso desses projetos pode ser percebido através das incertezas do verdadeiro alcance da reforma do Estado e pela ausência de regras bem definidas pelo MARE para a operação de tais projetos. A alternativa de agência executiva também não prosperou, apesar de ter prolongado seu debate em relação as demais opções, o projeto foi abandonado antes mesmo do início do IV Congresso Interno da Fiocruz, realizado em 2002.
Por outro lado, os anos da reforma de Bresser-Pereira são valiosos no sentido da construção de um verdadeiro ambiente voltado para a reconfiguração do serviço público, abrindo caminho para a flexibilização como a única via possível para os problemas da gestão pública. A flexibilização espelhada no modelo de gestão privado ou mesmo do direito privado tornou-se hegemônica no setor público brasileiro, e a reforma do Estado, em boa medida, promoveu a abertura de novas possibilidades privatistas e um espaço fértil de debate voltado para romper com a rigidez no serviço público assente na CF-88.
Neste sentido, do ponto de vista interno, a Fiocruz produziu três alternativas para serem apreciadas pelo governo acerca do seu modelo jurídico-administrativo. O primeiro consistiu em retomar sua natureza jurídica de Direito Privado, e como vimos anteriormente, esta hipótese dependeria de mudanças na Constituição Federal, fato que não ocorreu. A segunda alternativa vislumbrada concerne na criação e apresentação ao governo federal de um novo modelo denominado de Organização Pública de Apoio Estratégico, funcionamento como Autarquia Especial, Fundação Pública ou Agência Autônoma, “que lhe conceda maior autonomia e flexibilidade administrativa e gerencial (Fiocruz, 1995c, p. 9).
Em síntese esse modelo expõe o desejo da Fiocruz em retomar a natureza jurídica de direito privado, reconquistar a autonomia e flexibilidade administrativa e financeira por meio das liberdades do direito privado como espelho da empresa privada. Porém, sem excluir os privilégios concedidos por estar atrelada ao Estado, como isenção tributária e fiscal, recebimento de recursos financeiros. Procurou, portanto, celebrar por meio do contrato de gestão com a União, mecanismo responsável pelo controle e acompanhamento do poder público com a instituição e obter a liberdade de efetuar compras e contratos por procedimentos próprios, ou seja, por regras criadas pela fundação e não ligadas a administração pública. Por fim, buscou em sua proposta contratar mão de obra pelo regime de celetista, sem concurso público, e para os que são estatutários a possibilidade de escolher em permanecer no Regime Jurídico Único ou alterar seu regime para celetista (Fiocruz, 1995b, p. 16).
Ocorreria na verdade a retomada do antigo aparato jurídico da Fiocruz de direito privado, apenas atualizando com os novos métodos de flexibilização, como exemplo o contrato de gestão. Além disso, fica evidente a escolha da Fiocruz em protagonizar esse processo, sem precisar contar com intermediários para reestruturar seu modelo jurídico-administrativo. De acordo com a instituição o novo modelo “teria toda a flexibilidade necessária para uma gerência moderna, capaz, eficiente, com baixos custos, e competitividade, oferecendo à sociedade serviços de alta qualidade, dignos da excelência da Fiocruz, sua história e tradição” (Fiocruz, 1995b, p. 16). Para tanto, a proposta de “Organização Pública de Apoio Estratégico” dependeria de mudanças na constituição federal e nas regras da administração pública, algo que não aconteceu.
A terceira e última hipótese levantada pela Fiocruz consistiu em manter a instituição nos termos da Constituição Federal de 1988 e incorporar ao seu arcabouço jurídico-administrativo a criação de uma Fundação de Apoio privado. A modalidade de Fundação de Apoio é anterior a reforma do Estado de FHC, nasce em 20 de dezembro de 1994 a partir da Lei 8.958, que dispõe sobre as relações entre as instituições federais de ensino superior e de pesquisa científica e tecnológica e as fundações de apoio (Brasil, 1994). Ao contrário do projeto de Organização Social e Autarquia Especial, as instituições públicas não teriam que alterar sua natureza jurídica e as regras da administração pública, apenas passam a contar com a possibilidade de criar ou adquirir uma outra entidade de matriz privada para atuar em conjunto na gestão administrativa e financeira.
A finalidade da fundação de apoio é prestar apoio a projetos de pesquisa, ensino e extensão e de desenvolvimento institucional, científico e tecnológico para as instituições públicas. Para a existência da Fundação de Apoio na Fiocruz, faz-se necessário a obtenção de registro e credenciamento junto ao Ministério da Educação e do Ministério da Ciência e Tecnologia. Concedida a licença, a instituição privada possuirá prazo de dois anos, com possibilidade de renovação pelo mesmo período, assim sucessivamente. A nomenclatura jurídica “Fundação” adquire duas vertentes; de um lado as fundações criadas e/ou mantidas pelo poder público, vinculada à administração pública indireta, com personalidade de direito público ou privado, como exemplo da Fiocruz – fundação pública de direito privado no período ditatorial e fundação pública de direito público após a Constituição de 1988.
Em 1998 deliberou a partir do III Congresso Interno como uma questão fulcral para ser tratada pela instituição e que deve nortear as ações futuras a possibilidade de criar uma fundação de apoio para a Fiocruz. O documento apontou como justificativa “a sua eficácia enquanto mecanismo de flexibilização, captação de recursos e à expectativa de que se constituam em instrumentos de minoração do aviltamento salarial, as fundações de apoio exercem grande atrativo” (Fiocruz, 1998, p. 11).
Ainda no encontro de 1998, o relatório destacou que as ações e objetivos que estão voltados para a fundação de apoio são de caráter provisório, tendo em vista que o foco central está na mudança institucional na natureza jurídica da própria Fiocruz. Assim, incentivam os gestores das unidades e de áreas a pensarem formas flexíveis de gestão, colocam como prioridade para o próximo encontro o processo de regulamentação a ser homologado pelo Conselho Deliberativo da instituição de uma única Fundação de Apoio para Fiocruz.
O modelo de Fundação de Apoio desde o início foi bem aceito pela Fiocruz, e devido à falta de força política no seio da reforma do Estado, as alternativas da instituição foram gradativamente sendo suprimidas. Este fato levou a Fiocruz a buscar a qualificação de Agência Executiva, mas contando com uma nova alternativa para não correr o risco de retardar ainda mais o seu projeto gerencial. Dessa forma, em 1997 a Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP-Fiocruz), uma das mais proeminentes unidades da fundação, deu origem à fundação de apoio privado Ensptec. No mesmo ano ela foi rebatizada como Fensptec,4 com a responsabilidade de atuar na administração e execução dos projetos da escola, seu Estatuto foi aprovado em 02 de dezembro de 1997, e passou a funcionar em 1998.
A Fensptec era conhecida informalmente pelo nome de Fiotec.5 A Fiotec como já vinha sendo executada de forma embrionária pela ENSP, ganha status de salvação “provisória” para o projeto de flexibilização jurídico-administrativo da Fiocruz. Nessa direção, a rodada final do III Congresso Interno em 2000 se encarregará de dar respostas finais para este problema. Assim, logo na apresentação da plenária final, o presidente Elói de Souza Garcia anuncia com orgulho que “trata-se de um evento importante no ano do nosso centenário, pois nele decidiremos o tipo de gestão inovadora que queremos” (Fiocruz, 2000b).
As prioridades definidas para serem deliberadas na plenária final do III Congresso Interno assentou em aprovar a nova estrutura de gestão e atualizar o modelo organizacional e político da Fiocruz. Sendo assim, afirmaram o interesse em qualificar-se como Agência Executiva e como solução para este imbróglio, o congresso decidiu por uma presença mais vigorosa da fundação no Ministério da Saúde e no governo federal visando a sua aprovação. A principal deliberação ficou a cargo da aprovação de uma única fundação de apoio para atender a toda instituição (Fiocruz, 2000b).
Consequentemente, a Fensptec tornou-se a Fundação de Apoio privado da Fiocruz, respondendo pelo nome informal de Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde – Fiotec, que somente a partir da aprovação de seu estatuto em 2002 poderá utilizar de maneira formal o nome Fiotec. Por conseguinte, a alternativa principal da Fiocruz de se qualificar como Agência Executiva não avançou no governo federal. Assim sendo, definiu-se o projeto político institucional como um modelo híbrido por meio da junção da entidade como Fundação Pública de Direito Público e uma Fundação de Apoio privado a ela vinculada.
A Fiotec que nasceu em 1998, foi criada por 13 fundadores, são eles: Teófilo Monteiro; Mauro Marzochi; Elói Garcia; Maria do Carmo Leal; Paulo Buss; Carlos Sanchez; Maria Infante; Szachna Cynamon; Adauto de Araújo; Jorge Bermudez; Adolfo Chorny; Pedro Barbosa. A justificativa apresentada pela Fiocruz para a aprovação da Fiotec como fundação de apoio consistiu em defini-la como uma medida provisória, uma saída possível para flexibilizar a estrutura jurídica-administrativa da instituição. Para a liderança da Fiocruz o objetivo residia em reestruturar o seu próprio arcabouço institucional e não criar um novo ente (Fiocruz, 2000b). Porém, a história nos mostra que a Fiotec não se tornou apenas numa entidade transitória, mas, uma importante peça para o projeto gerencialista da Fiocruz. Isto se comprova ao completar 25 anos de vida no ano de 2023, gozando de ampla estrutura física e estrutural com prédio próprio e com reconhecida participação em todos os projetos da Fiocruz (Fiocruz, 2000b).
Finalmente, após definido o modelo de gestão, a comunidade da Fiocruz aprovou em 10 de junho 2003, durante o primeiro ano do governo do Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, o seu estatuto e regimento interno. Nele estão expressas as premissas e diretrizes básicas da fundação, reafirmando os dispositivos da Constituição Federal de 1988 assentes no Direito Público e no regime jurídico único. O regime estatutário tornou-se válido para os servidores em atuação e para os novos aprovados em concurso (Fiocruz, 2003). No entanto, desde o desmonte do Estado perpetrado por FHC, a Fiocruz passou a contar com a possibilidade de contratar trabalhadores terceirizados, temporários, bolsistas e autônomos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sustentamos nesse trabalho a hipótese de que que a natureza jurídica e administrativa da Fiocruz, formam o arcabouço central para analisarmos a sua trajetória político-institucional. O conflito entre o público e o privado manteve-se presente durante todo o recorte histórico analisado, e foi possível perceber que a Fiocruz buscou construir um modelo de gestão flexível, tensionando com os projetos da reforma do estado possibilidades para além da privatização da instituição. As propostas da Fiocruz buscaram manter sua finalidade pública, ao contrário do que propunha os projetos do Mare. Ao mesmo tempo, trilhava-se caminhos para reconquistar flexibilidades de gestão e de pessoal perdidas com a nova constituição federal.
A criação da Fiotec pode ser vista como a saída encontrada pela Fiocruz para os seus problemas políticos e gerenciais frente ao contexto de privatizações na esfera pública. Entendemos que o projeto político-institucional da Fiocruz ainda se encontra incompleto, porque o principal objetivo da entidade consiste em alterar sua natureza jurídica, que acabou sendo definida em estatuto aprovado pela União em 2003, como Fundação Pública de Direito Público.
REFERÊNCIAS
-
ASFOC-SN. Plenária Extraordinária do Terceiro Congresso Interno. A Posição da ASFOC. Rio e Janeiro, Fiocruz, 23 e 24 de agosto de 2000. Disponível em http://www.asfoc.fiocruz.br/OldSite/publi/jornal/2000-ago/jornal.htm Acesso em: 05 ago. 2016.
» http://www.asfoc.fiocruz.br/OldSite/publi/jornal/2000-ago/jornal.htm - BRASIL. Decreto-Lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 24 fev. 1967. Seção 1.
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- BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Agências Executivas. Cadernos da Reforma do Estado, Brasília, DF, nº 9, 1998.
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1
O MARE após a publicação do Plano Diretor, produziu 17 cadernos, também conhecido como Cadernos do MARE, são eles: 1) A reforma do Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle; 2) Organizações Sociais; 3) Exposição no Senado sobre a reforma da administração pública; 4) Programa da qualidade e participação na administração pública; 5) Plano de reestruturação e melhoria da gestão do MARE; 6) A reforma do aparelho do Estado e as mudanças constitucionais; 7) A reforma administrativa na imprensa; 8) O Conselho de reforma do Estado; 9) Agências Executivas; 10) Questões sobre a reforma administrativa; 11) Uma nova política de recursos Humanos; 12) Programa de reestruturação e qualidade dos ministérios; 13) Reforma administrativa do sistema de saúde; 14) Regime Jurídico Único consolidado (Lei nº 8.112, de 11/12/90); 15) Os avanços da reforma na administração pública (1996-1998); 16) Programa de modernização do poder executivo federal; 17) Serviço integrado de atendimento ao cidadão.
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2
Promulgada em 04 de junho de 1998, a emenda modifica o regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal. Podemos citar como exemplo a extinção do Regime Jurídico Único, da estabilidade do servidor público, da aposentadoria integral, e isonomia salarial. Promoveu também a descentralização do serviço público e introduziu o contrato de gestão.
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3
Art. 37 da Constituição Federal de 1988, capítulo VII “Da Administração Pública”, seção I “Disposições Gerais”. O artigo faz referência ao funcionamento da administração pública, estabelecendo como por exemplo: os princípios do funcionalismo público, critérios de investidura aos cargos públicos por meio de concurso e política salarial para os servidores públicos.
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4
Fundação de Ensino, Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Cooperação à Escola Nacional de Saúde Pública (Fensptec).
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5
Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde.
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Editor Chefe:
Renato Francisquini Teixeira
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
23 Ago 2023 -
Aceito
20 Fev 2025
