Open-access EPISTEMOLOGIA MODERNA E DIVISÃO INTERNACIONAL DO CONHECIMENTO: para a descolonização da Teoria Crítica

MODERN EPISTEMOLOGY AND THE INTERNATIONAL DIVISION OF KNOWLEDGE: towards the decolonization of Critical Theory

EPISTEMOLOGÍA MODERNA Y DIVISIÓN INTERNACIONAL DEL CONOCIMIENTO: HACIA LA DESCOLONIZACIÓN DE LA TEORÍA CRÍTICA

Resumos

O artigo propõe uma interlocução propícia ao projeto de descolonização da Teoria Crítica. Especificamente, trata do problema do lugar da Ciência na divisão social do trabalho, considerando sua internacionalidade e a colonialidade do saber, que se concatena a aspectos epistemológicos e teóricos da produção científica. Para tal, parte da formulação de Max Horkheimer para a Teoria Crítica, articulando a essa as discussões de Aníbal Quijano, Fernanda Beigel, Syed Farid Alatas e Raewyn Connell sobre a produção de conhecimento na periferia mundial. O texto aborda, ainda, alguns obstáculos a esse projeto, mediante o cotejo entre premissas centrais do campo e formulações de Boaventura de Sousa Santos e Walter Mignolo. Ao final, faz um balanço dos desafios existentes para os avanços necessários.

PALAVRAS-CHAVE
Teoria Crítica; Escola de Frankfurt; Giro Decolonial; Colonialidade; Divisão internacional do conhecimento


The article proposes an interlocution in support of the project of decolonizing Critical Theory. Specifically, it addresses the role of science within the social division of labor – considering its international dimension and the coloniality of knowledge – which intertwines with the epistemological and theoretical aspects of scientific production. To this end, it starts with Max Horkheimer’s formulation of Critical Theory and engages with discussions by Aníbal Quijano, Fernanda Beigel, Syed Farid Alatas and Raewyn Connell on knowledge production in the global periphery. Additionally, the text examines certain obstacles to this project by comparing key premises in the field with the ideas of Boaventura de Sousa Santos and Walter Mignolo. Finally, it reviews the existing challenges to necessary advancements.

KEYWORDS
Critical Theory; Frankfurt School; Decolonial Turn; Coloniality; International Division of Knowledge


El artículo propone una interlocución propicia al proyecto de descolonización de la Teoría Crítica. Específicamente, aborda el problema del lugar de la ciencia en la división social del trabajo –considerando su internacionalidad y la colonialidad del saber–, que se concatena con aspectos epistemológicos y teóricos de la producción científica. Para ello, parte de la formulación de Max Horkheimer para la Teoría Crítica, articulando a ella las discusiones de Aníbal Quijano, Fernanda Beigel, Syed Farid Alatas y Raewyn Connell sobre la producción de conocimiento en la periferia mundial. El texto aborda, además, algunos obstáculos a este proyecto, mediante la comparación entre premisas centrales del campo y formulaciones de Boaventura de Sousa Santos y Walter Mignolo. Al final, hace un balance de los desafíos existentes para los avances necesarios.

PALABRAS CLAVE
Teoría Crítica; Escuela de Frankfurt; Giro Decolonial; Colonialidad; División internacional del conocimiento


O presente artigo se insere sob uma pretensão teórica abrangente, que almeja a construção de pontes de interlocução entre a Teoria Crítica de matriz frankfurtiana e o que aqui denomina-se, de modo amplo, de estudos periféricos.1 Especificamente, trata de possíveis convergências quanto à crítica dos mecanismos socioinstitucionais e fundamentos epistemológicos que dão forma à produção científica moderna, tendo em vista, sobretudo, seu lugar na divisão social do trabalho sob o capitalismo mundial e os aspectos geopolíticos que o atravessam.

A argumentação se vincula à agenda investigativa para a “descolonização da Teoria Crítica”, que tem sido edificada a muitas mãos na última década. Se Amy Allen (2016) se destacou ao sistematizar esse programa enquanto uma crítica do progresso, na teoria social, há ainda outras dimensões da Crítica que merecem atenção desse projeto, o qual pretende não apenas melhor qualificar a operacionalização da Teoria Crítica para tratar de sociedades periféricas, mas também repensar o próprio diagnóstico das sociedades centrais e depurar seus fundamentos conceituais e analíticos.

São três objetivos que norteiam a argumentação: a) demonstrar a plausibilidade e relevância da interlocução vislumbrada; b) apontar, de forma preliminar, algumas possibilidades de articulação teórica para esse intuito; c) refletir alguns atritos de natureza teórico-epistemológica que se apresentam a esse projeto. Em suma, não se busca legar conclusões definitivas sobre o tema, mas esboçar pistas para seu encaminhamento, identificando também as contradições que se colocam.

Com isso em vista, o artigo inicia com uma recuperação das rupturas propostas pela Teoria Crítica em relação à chamada teoria tradicional, tendo como referência principal o texto programático de Max Horkheimer (1991). Em seguida, a fim de indicar os avanços ainda necessários, traz contribuições quanto a problemática do eurocentrismo teórico e da divisão internacional do trabalho científico; nesse ponto, são mobilizados autores de diferentes matizes, a fim de ilustrar a amplitude e diversidade dos estudos e argumentos que podem agregar ao propósito indicado: Aníbal Quijano, Fernanda Beigel, Syed Farid Alatas, Raewyn Connell, destacam-se nessa argumentação.

Por fim, antes de trazer uma síntese final das reflexões, faz um balanço de alguns atritos a serem superados na interlocução vislumbrada, considerando principalmente os contrastes notados nas obras de Boaventura de Sousa Santos e Walter Mignolo em relação à Teoria Crítica.

Como se nota, a argumentação mobiliza autores que desenvolvem suas pesquisas sob contextos sociais e epistêmicos diversos, e formulam suas proposições com intencionalidades distintas. A articulação dessa heterogeneidade visa reforçar a vasta abrangência de matrizes teóricas que podem contribuir com o projeto em tela, assim como indicar alguns encaminhamentos potencialmente contraditórios em relação a esse.

DA TEORIA TRADICIONAL À TEORIA CRÍTICA

Proposta nos anos de 1930 por Max Horkheimer e outros membros do Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, a Teoria Crítica foi uma nova maneira de conceber a Ciência e a sociedade a partir do diagnóstico social e perspectivas transformadoras anteriormente apresentados por Karl Marx. Motivados por uma proposta de materialismo interdisciplinar, vinculando estudos da Psicanálise à Economia Política, os teóricos de Frankfurt articulavam uma gama ampla e eclética de autores, como Nietzsche, Freud e Weber.

Foi a partir de Marx, sobretudo, que articularam os princípios epistemológicos centrais da proposta, tais como: a orientação para a emancipação, que rompe com o ideário de neutralidade ao admitir o projeto de uma sociedade livre como princípio da compreensão das relações sociais vigentes e o comportamento crítico em relação ao conhecimento produzido sob determinadas condições estruturais postas pelo capitalismo. Esses princípios conduziriam a um desvelamento das potencialidades imanentes de emancipação nas estruturas e relações sociais analisadas, bem como seus obstáculos correspondentes (cf. Nobre, 2008).

Seguindo uma abordagem que remonta a Hegel e Marx, o texto programático de Horkheimer para o campo, de 1937, se inicia com a apresentação do que seria o trabalho teórico nas Ciências de seu tempo. Assim, recuperando autores diversos, como Descartes e Husserl, apresenta a noção vigente de teoria como “uma sinopse de proposições de um campo especializado, ligadas de tal modo entre si que se poderiam deduzir de algumas dessas teorias todas as demais”, ou ainda como o “saber acumulado de tal forma que permita ser este utilizado na caracterização dos fatos tão minuciosamente quanto possível” (Horkheimer, 1991, p. 117). Segue-se que o procedimento dedutivo deveria ser estendido à totalidade das Ciências, inclusive sociais. Grosso modo, é isso que o autor intitula concepção tradicional de teoria, cujo expoente mais notável de seu tempo era o “positivismo lógico” do Círculo de Viena.

Segundo essa perspectiva, as Ciências deveriam ser dotadas de uma uniformidade procedimental: a construção de sentenças teóricas seria fundamentada em sentenças observacionais, e também verificáveis pela observação. Embora rejeite o racionalismo, o Positivismo Lógico se vale de contribuições importantes de Descartes: primeiro, a perspectiva da separação radical entre ser e pensar, derivada de seu dualismo psicofísico, de modo que a construção do conhecimento seja independente da corporeidade mundana do sujeito epistêmico; segundo, a tendência de “matematização” das Ciências, isto é, a conversão das regularidades gerais em termos lógico-matemáticos inequívocos (cf. Schlick, 1975; Carnap, 1975).

Em contraponto, a crítica formulada por Horkheimer à teoria tradicional atravessa uma série de dimensões, algumas das quais se encontram sintetizadas no excerto a seguir:

O cientista e sua ciência estão atrelados ao aparelho social, suas realizações constituem um momento da autopreservação e da reprodução contínua do existente, independentemente do que imaginam a respeito disso. Eles têm apenas que se enquadrar ao seu ‘conceito’, ou seja, fazer teoria no sentido descrito acima. Dentro da divisão social do trabalho, o cientista tem que conceber e classificar os fatos em ordens conceituais e dispô-los de tal forma que ele mesmo e todos os que devem utilizá-los possam dominar os fatos o mais amplamente possível. (...) A representação tradicional de teoria é abstraída do funcionamento da ciência, tal como este ocorre a um nível dado da divisão do trabalho. (Horkheimer, 1991, p. 122-123).

Tomando o excerto como referência, um primeiro ponto dessa crítica se encontra no supramencionado modelo cartesiano de separação entre “ser” e “pensar”, que supõe uma cisão necessária no sujeito cognoscente: sua experiência corporificada no mundo não carrega (nem deve carregar) determinações sobre sua produção intelectual. Ademais, essa diferenciação se encontra aparentada de outra fundamental ao pensamento cartesiano, a saber, entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Diferentemente, o pensamento crítico é aquele que supera a oposição entre “consciência dos objetivos, espontaneidade e racionalidade”, de um lado, e “relações do processo de trabalho, básicas para a sociedade”, de outro (Horkheimer, 1991, p. 132).

Assim, uma teoria que se proponha crítica do capitalismo e da própria atividade científica, de modo a impulsionar “a transformação do todo social”, deve superar a distinção cartesiana, em uma aproximação à dialética de matriz hegeliana: representações binárias como matéria e intelecto, corpo e alma, ser e pensar, sujeito e objeto são tomadas como contraditoriamente imbricadas, carregando determinações recíprocas e dinâmicas em uma espiral do conhecer crescentemente voltada à totalidade. Disso se tem outro ponto: para Horkheimer, é fundamental que a Ciência seja pensada em concatenação à totalidade social, sob a qual ele se insere em uma divisão social do trabalho. Ainda que o conceito de teoria surja com aparente independência, esse é inseparável dos progressos técnicos da sociedade burguesa, de modo que a “autonomia da teoria” é compreendida como ideológica.

Um terceiro aspecto se refere à ideia de dominação dos fatos. Nesta expressão estão contidas duas noções caras à epistemologia tradicional, e que são contrapostas pela Teoria Crítica: primeiro, a própria concepção de “fato” como objeto por excelência das Ciências – termo em geral rejeitado por uma epistemologia dialética por abstrair o dinamismo contraditório do real, tomando-o como dado estático e idêntico a si. Segundo, a noção (a um só tempo analítica e prática) de dominação, que afinal desvela o fim último do desenvolvimento técnico-científico sob a crescente racionalização: a dominação da natureza (e do homem) em função de objetivos e processos sociais enraizados fora da Ciência mesma, nos quais, mais uma vez, se revela o lugar da Ciência na divisão social do trabalho.

O quarto ponto é menos explícito no excerto, mas também fulcral à Teoria Crítica: embora suponha uma uniformidade epistemológica entre as Ciências, a concepção tradicional valoriza a fragmentação dos objetos mediante a especialização das disciplinas, as quais, por sua vez, cumprem papéis diferentes sob a divisão do trabalho. A defesa da interdisciplinariedade decorre precisamente dos reducionismos identificados nessa fragmentação, que impedem a devida compreensão das mediações entre segmentos tomados isoladamente por referenciais teórico-metodológicos de disciplinas distintas. Por exemplo, a crítica da indústria cultural (cf. Adorno e Horkheimer, 1985) articula problemas e objetos que, na visão tradicional, estariam segmentados entre a Psicanálise, a Sociologia, a Crítica Cultural, a Economia Política e a Ciência Política, quando é nas mediações dinâmicas entre os elementos inconscientes e conscientes da subjetividade, a estrutura comunicacional moderna (em seus aspectos técnicos e estéticos), as demandas do modo de produção capitalista e as novas configurações dos Estados democráticos que estaria a problemática tratada.

Em suma, Horkheimer (1991) demonstra que a aparência univocamente racional da atividade científica estaria envolvida, antes, por uma irracionalidade própria do modo burguês de economia, que não é orientado conscientemente para um objetivo geral racional apesar da racionalidade expressa na perspicácia dos indivíduos que concorrem entre si. Diante disso, procurou estabelecer uma forma de teorização que realizasse uma crítica racional da razão submetida a tais imperativos, estendendo, com isso, a crítica marxiana à economia política para a epistemologia moderna.

Se, no texto de 1937, Horkheimer focaliza sua discussão sobre a epistemologia moderna, é na Dialética do Esclarecimento, de 1947, que se encontra seu diagnóstico de época, agora em coautoria com Theodor Adorno; diagnóstico, certamente, afetado pelos eventos barbarizantes daqueles dez anos. Embora não caiba aqui aprofundá-lo, é importante destacar a centralidade da dominação da natureza como fio condutor do desenvolvimento da racionalidade moderna. Esta, cada vez mais reduzida à sua dimensão instrumental (por mediação da técnica, da Ciência e, nos últimos séculos, da indústria e da burocracia), culminaria em seu exato oposto, a saber, a irracionalidade da barbárie moderna. Uma barbárie não lastreada pela falta de esclarecimento, mas, antes, pelo próprio desenvolvimento deste.

PARA ALÉM DA TEORIA CRÍTICA

A Dialética do Esclarecimento, retomando um dos argumentos centrais do texto seminal de Horkheimer, reitera o desvelamento do lugar ocupado pela atividade científica na divisão social do trabalho. Afirmam seus autores que, sob a totalidade posta, a Ciência “tem por função estocar fatos e conexões funcionais desses fatos nas maiores quantidades possíveis”, possibilitando “às diversas indústrias descobrirem prontamente a mercadoria intelectual desejada na especificação desejada” (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 199). Todavia, não se apresenta na obra, nem nos outros renomados trabalhos da Teoria Crítica, um debate sobre as mediações entre esse papel de reprodutor social da Ciência e o caráter mundializante do capitalismo, já discutido desde Marx (cf. Mello, 2000).

Além disso, conforme argumentam diversos autores, de dentro e fora do campo (Said, 2011; Dussel, 1993; Santos, 2003, Allen, 2016), as explicações da Teoria Crítica para o desenvolvimento da modernidade postulam certo hermetismo Ocidental: o encontro colonial, as vitórias bélicas sobre o “mundo muçulmano” e as relações estabelecidas com os Outros da “moderna civilização europeia” não parecem decisivos nem para a explicação do “progresso” técnico e material, nem para a constituição da subjetividade moderna, nem para o aprofundamento da dominação da natureza, nem para a contínua reprodução da ideologia do progresso.2 Faltou, ademais, aos teóricos de Frankfurt enriquecer a crítica da função da Ciência sob a divisão do trabalho com discussões acerca das implicações, em termos de dominação e opressão, da ascendência da teoria tradicional (seus métodos, premissas, institucionalidade, papel social, etc.) sobre a produção de conhecimento nas sociedades periféricas. É este último aspecto que se aprofunda.

Na América Latina, Orlando Fals Borda foi um dos primeiros intelectuais a propor a ideia de que a autodeterminação das sociedades periféricas exige a libertação intelectual das imposições teórico-conceituais postas pela “teoria tradicional” formulada nas sociedades centrais. Justificando que a libertação sociopolítica do imperialismo demanda uma ciência nova, argumenta que as problemáticas e interesses de “outras latitudes” é que “fixaram até agora as regras do jogo científico, determinando os temas e lhes dando prioridades, acumulando seletivamente os conceitos e desenvolvendo técnicas especiais, também seletivas, para fins particulares” (Borda, 1970, p. 22).

Sem recorrer à argumentação dialética de Adorno e Horkheimer, Fals Borda ratifica a crítica frankfurtiana quanto ao papel desempenhado pelo modo tradicional de investigação científica no seio da totalidade social, também indicando que a superação das relações de dominação e opressão requer uma autocrítica teórica. O autor faz questão de distinguir sua perspectiva de uma postura anticientificista ou antiuniversalista: assumindo que as concepções científicas predominantes expressam a estrutura social que as concebe, propõe um caminho antitético, que vise “pôr fim à imitação cega de modelos e temas incongruentes concebidos em outras partes e para situações diferentes”, de modo a “diminuir o servilismo e o colonialismo intelectual dos que vivem em situação de subdesenvolvimento, sem cair, naturalmente, no defeito da xenofobia” (Borda, 1970, p. 29. Grifos meus).

A rigor, portanto, não se trata de uma “ciência própria”; ao menos não segundo um entendimento sectário do termo. O que está em jogo é a apropriação crítica das contribuições de “outras latitudes”, capaz de expandir categorias, revisitar os modelos e deslocar os temas e preocupações às exigências normativas que brotam das contradições imanentes às sociedades analisadas, assemelhando-se ao que Guerreiro Ramos na mesma época havia denominado de “redução sociológica”, para designar “um método destinado a habilitar o estudioso a praticar a transposição de conhecimentos e de experiências de uma perspectiva para outra” (Ramos, 1996, p. 42). Para além disso, tal “ciência nova”, defendida por Fals Borda, requer a construção de novas categorias, novos modelos, novos métodos e a elucidação de temas e preocupações até então reprimidos, por não condizerem com a função posta à Ciência pelo sistema social vigente.

A crítica do chamado “colonialismo intelectual”, operada por ambos já na década de 1960, pode, sem dúvidas, encontrar paralelos em trabalhos coetâneos, ainda que com outros termos (cf., Ianni, 1971; Fernandes, 1975). Para além da América do Sul, não é demais lembrar que Albert Memmi publicou a primeira edição do Retrato do Colonizado Precedido de Retrato do Colonizador em 1947, Frantz Fanon trouxe seu Pele Negra, Máscaras Brancas em 1952, e Aimé Césaire apresentou o Discurso sobre o Colonialismo em 1955.

Foi a partir desse debate, à época, bastante vinculado ao marxismo, que se edificaram os primeiros pilares do chamado Giro Decolonial, que passaria a ser proposto a partir da década de 1990 pelo Grupo Modernidade/Colonialidade, formado em princípio por intelectuais latino-americanos. Para além do mencionado acúmulo teórico do subcontinente, os primeiros membros do grupo, entre os quais se encontram Quijano, Enrique Dussel, Walter Mignolo, Athuro Escobar, Edgardo Lander e Fernando Coronil, tiveram como inspiração manifesta o “Grupo Sul-Asiático de Estudos Subalternos”, que desde a década de 1970 vinha gestando o debate pós-colonial. De forma sintética, Escobar (2004, p. 217) elencou cinco operações fundamentais que distinguiriam o quadro da modernidade/colonialidade em relação às “teorias estabelecidas”:

1) localizar as origens da modernidade na conquista da América e no controle do Atlântico desde 1492, ao invés dos marcos mais comumente aceitos, como o Iluminismo ou o final do século XVIII; 2) considerar o colonialismo, o pós-colonialismo e o imperialismo como constitutivos da modernidade; 3) adotar uma perspectiva mundial na explicação da modernidade, no lugar de uma visão da modernidade como fenômeno intra-europeu; 4) identificar a dominação dos outros, exteriores ao núcleo europeu, como dimensão necessária da modernidade; 5) conceber o eurocentrismo como a forma de conhecimento da modernidade/colonialidade – uma representação e modo de conhecimento hegemônico que reivindicam para si uma universalidade ‘derivada da posição da Europa como centro’ (Escobar, 2004, p. 217).

Esses cinco pontos podem ser reelaborados em três vias de formulação científico-filosófica. No que tange à orientação teórico-epistemológica, trata-se de elevar as considerações dialéticas sobre a dominação moderna à dinâmica mundial do poder social. Na segunda via, que se pode denominar histórico-analítica, trata-se de revisitar a narrativa predominante da modernidade, apresentando o encontro colonial e as decorrentes formas de dominação da alteridade não-europeia como passos necessários e fundamentais à emergência da “moderna civilização ocidental”. Finalmente, a terceira via se refere à normatividade, a saber, de superação do “universalismo europeu”, enquanto mediação para a superação das relações de dominação e opressão que perduram na continuidade daqueles processos sociais.

Por conseguinte, esse projeto traz ao seu centro o problema da reprodução de determinados fundamentos da ascendência europeia, posteriormente, também norte-americana, sobre a periferia mundial, mesmo após o encerramento formal do colonialismo. Como sugere o nome do grupo, o conceito de colonialidade é fundamental ao debate sobre as reconfigurações das relações mundiais de poder, enfatizando suas implicações sobre o âmbito da produção do conhecimento e das subjetividades. O termo, hoje amplamente mobilizado nas Ciências Sociais, foi introduzido por Quijano (1991) e Wallerstein (1992) na década de 1990.

Literalmente, “colonialidade” é a qualidade, condição ou estado daquilo que é colonial. A colonialidade se funda, portanto, na formação mundial de um sistema hierarquizado de Estados, cuja ascensão vertiginosa a partir do século XV acaba por abranger quase todos os povos e nações do Planeta. Apontam Quijano e Wallerstein (1992) que, ao longo dos séculos em que essa hierarquia de poder foi formalmente estabelecida sob o abrigo do Direito Internacional, formou-se e desenvolveu-se, paralelamente, uma hierarquização sociocultural e étnica, na qual a linha que separava os “europeus” dos “não europeus” correspondia a um elemento determinante. Em face disso, o conceito de colonialidade sustenta a tese de que as descolonizações oficiais não lograram a superação daquelas hierarquias. Dito de outro modo: a crítica da colonialidade expressa a subsistência, ainda que reconfigurada, das relações mundiais de poder edificadas desde a expansão ultramarina, em função da profundidade alcançada pelas instituições e visões de mundo impostas a partir do colonialismo.

Para desenvolver as mediações analíticas de sua crítica do padrão mundial de poder então instituído, e subsistente pela colonialidade, Quijano (2001) elenca quatro “meios de existência social”, como categorias universais de mediação: o trabalho, o sexo, a autoridade coletiva e a subjetividade, considerando seus respectivos recursos e produtos. Em diversos trabalhos, o autor analisa disputas em torno desses meios em diferentes espaço-temporalidades, indicando como o padrão mundial de poder desenvolvido a partir de 1492 foi, gradualmente, impondo: o capitalismo como articulador do controle do trabalho e exploração da natureza; a família burguesa como controle das relações sexuais e reprodutivas; o Estado moderno, monopolizador da violência legítima que se exerce sobre uma comunidade nacional, como modelo excelente (e moralmente superior) de autoridade coletiva; e a hegemonia do eurocentrismo e da racialização sobre a produção do conhecimento, formação do imaginário, definição dos horizontes de expectativas, significação de experiências e produção de sentido.

Essa imposição não é apenas discutível em si mesma, como se se tratasse apenas de reforçar um discurso disposto a resgatar as “verdadeiras raízes”, “autóctones”, das ex-colônias. O problema da colonialidade se refere ao modo pelo qual a articulação heterogênea desses âmbitos, em escala mundial, opera de modo a efetivar e legitimar a perpetuação das hierarquias mundiais de poder, reproduzindo a negação sistemática à autodeterminação e autodesenvolvimento de sujeitos subalternizados.

Assim, por exemplo, a não consolidação do modelo nacional-estatal de autoridade pública em sociedades periféricas é mobilizada como argumento em favor do “direito à intervenção, sob alegação de violação aos Direitos Humanos (cf. Wallerstein, 2007), não raro, um engodo para legitimar atividades predatórias, e mesmo de práticas permanentes de “acumulação primitiva” de capital (cf. Federici, 2017).

Analogamente, a reinvenção de estruturas e relações de trabalhos calcadas na expropriação se articula ao capitalismo mundial de modo a reproduzir uma divisão internacional do trabalho anteriormente forjada, a qual garante, a um só tempo, lucros exorbitantes às classes dominantes da periferia e mercadorias a baixos preços para o centro. A subsistência da classificação racial, por sua vez, aparece como conveniente artifício de naturalização ideológica, culminando na lucrativa subvalorização de formas de vida não europeias, de sujeitos não brancos e não ocidentalizados, e na reprodução contemporânea da violência racista. Ademais, o modelo patriarcal de família segue reproduzindo não apenas as diversas formas de discriminação de gênero, mas também o papel tradicionalmente designado às mulheres na reprodução social, papel estruturalmente necessário à manutenção das atuais relações capitalistas e eurocêntricas de dominação e opressão.

Fica claro, portanto, que Quijano e Wallerstein mobilizam a colonialidade para expressar uma problemática multifacetada, daí algumas expressões que miram determinadas especificidades, como “colonialidade do poder”, “colonialidade do gênero” e “colonialidade do saber”. Aqui interessa, sobretudo, esta última faceta, bastante explorada pelos diversos vieses da crítica da subalternização mundial. Quanto a isso, Quijano (1991, p. 16) afirma que:

o paradigma europeu de conhecimento racional não somente foi elaborado em um contexto de poder, mas também como parte de uma estrutura de poder que implicava na dominação colonial europeia sobre o resto do mundo. Esse paradigma expressou, em um sentido demonstrável, a colonialidade dessa estrutura de poder.

O conceito de colonialidade do saber, portanto, expressa as imbricações entre o padrão mundial de poder vigente e as formas legítimas de conhecimento e intervenção sobre o mundo. Denuncia, com isso, o pretenso universalismo da experiência social europeia que subjaz à generalização de categorias, métodos analíticos e expectativas normativas mobilizadas no tratamento de sociedades periféricas. Desvela, ainda, o processo de naturalização da forma hegemônica de relação social, organização institucional e constituição da subjetividade nas sociedades centrais, que se apresentam como constitutivas da natureza universal do ser humano. Em suma, trata-se de um conceito que extrapola a problemática dos espaços de produção formal do conhecimento, abrangendo também a ascendência da ideologia eurocêntrica sobre a formação do “senso comum”, ou seja, o âmbito das interpretações cotidianas e assistemáticas da realidade, que incide de forma decisiva sobre a autopercepção dos sujeitos, suas relações imediatas e seus horizontes de expectativas.

A ênfase deste artigo, todavia, repousa especificamente sobre a colonialidade na produção do conhecimento especificamente científico. Nesse particular, estudos sobre a reprodução contemporânea da imbricação entre poder e saber desenvolvida no processo colonial expressam outras conceituações em outros trabalhos. É o caso, por exemplo, de Syed Hussein Alatas (2000) e Syed Farid Alatas (2003), que preferem discutir a questão em termos de imperialismo acadêmico, conceito que conduz os autores a um diagnóstico de dependência acadêmica no âmbito da divisão internacional do conhecimento.

Embora a expressão “imperialismo acadêmico” possa ser entendida como alusiva à prática de acadêmicos, que desenvolveram pesquisas para a causa colonial ou imperial, a utilização do termo por Hussein Alatas (2000, p. 24) se refere à “dominação de um povo por outro em seu mundo de pensamento”. Seguindo seu argumento, a configuração do imperialismo acadêmico teria sido, inicialmente, constituída pelo estabelecimento e controle metropolitanos de escolas, universidades e editoras nas colônias. A reprodução atual dessa ascendência imperial sobre o saber, entretanto, atravessaria outras mediações: não mais pelo controle direto do sistema político, mas por um controle indireto, em que o caráter e os fluxos do conhecimento permanecem privilegiando narrativas e interesses das sociedades centrais. Utilizando os termos do autor: o antigo imperialismo acadêmico é reproduzido através de uma condição de dependência acadêmica, em que os chamados “poderes contemporâneos nas Ciências Sociais” exercem controle decisivo sobre o conhecimento produzido nas sociedades periféricas (considerando temas, métodos, cânones, teorias). Esses “poderes” (Estados Unidos, França e Grã-Bretanha) são definidos por Farid Alatas (2003, p. 602) em quatro aspectos:

[Os poderes contemporâneos nas Ciências Sociais] são definidos enquanto países que: (1) geram grandes resultados de pesquisa em Ciências Sociais na forma de artigos científicos em periódicos revisados por pares, livros e trabalhos de pesquisa; (2) possuem alcance global das ideias e informações contidas nesses trabalhos; (3) possuem a capacidade de influenciar as Ciências Sociais dos outros países, devido ao consumo das obras originárias desses poderes; e (4) concentram muito reconhecimento, respeito e prestígio tanto no próprio país quanto no exterior.

Autores como Fals Borda e Octávio Ianni (1971) já haviam indicado que a concentração dos “poderes acadêmicos”, em alguns poucos países Ocidentais, implica uma condição na qual o desenvolvimento das Ciências Sociais na periferia é definido pela agenda temática e paradigmas teóricos orientados pela experiência social do centro (e seus interesses de cada época). Especificando melhor essa problemática, Farid Alatas (2003, p. 603) demonstra que essa dependência ocorre quando comunidades de pesquisa localizadas nos centros de poder “se expandem de acordo com certos critérios de desenvolvimento e progresso, enquanto outras comunidades (...) apenas podem fazê-lo enquanto reflexo daquela expansão, alcançando resultados mistos (positivos e negativos) de desenvolvimento de acordo com os mesmos critérios”.

A dicotomia centro-periferia se revela, mais uma vez, importante: o centro, nesse caso, é o ponto do qual se irradia a influência, visto que a ideologia eurocêntrica segue sustentando a perspectiva de superioridade histórica da “civilização Ocidental”. O exercício dessa relação de dependência, diz Farid Alatas (2003), é bastante complexo, sendo verificáveis no conteúdo das ideias, em seus meios de propagação, nas técnicas educacionais, no teor das políticas de incentivo à pesquisa e docência, na migração altamente qualificada e nos investimentos públicos em educação, ciência e tecnologia.

Observando um breve inventário em que os autores caracterizam os fatores de manifestação da dependência acadêmica, bem como o conjunto de estudos do campo, é possível identificar dois âmbitos discerníveis que estruturam e fundamentam a problemática descrita, trazendo implicações decisivas sobre a geopolítica do conhecimento: a dimensão socioinstitucional da questão, relativa às condições sociais da produção do conhecimento, a organização formal dos institutos de pesquisa, as normas procedimentais dos departamentos, os critérios de produtividade, em suma, a organização institucional da academia no mundo; e a dimensão teórico-epistemológica, alusiva aos critérios de validação, categorias, modelos metodológicos, temas preponderantes, etc., em suma, a questão propriamente de conteúdo do trabalho científico. Assim, a tentativa de oferecer uma contribuição ao processo de superação dialética do caráter colonial da “teoria tradicional”, bem como de seu ranço subjacente à Teoria Crítica, deve passar pelos dois âmbitos e considerar as mediações entre esses.

Particularmente, no que tange à dinâmica institucional da divisão internacional do trabalho científico, há uma série de estudos recentes que vêm buscando estabelecer uma crítica fundamentada às relações de poder transnacional que a subjazem. No contexto latino-americano, por exemplo, Fernanda Beigel (2013, p. 111) tem se destacado nesse debate, por estar rejeitando a tese dualista de que “a dependência acadêmica implica em heteronomia completa em um lado e autonomia completa em outro”. Dedica-se tanto a destrinchar a circulação de ideias no interior do contexto intelectual latino-americano quanto discutir a inserção dessas comunidades acadêmicas periféricas no contexto mundial.

Respaldada por dados quantitativos, Beigel (2013) explica que, durante o século XX, acadêmicos das Ciências Naturais e Exatas na América Latina conseguiram desenvolver estratégias de internacionalização, enquanto as Humanidades permaneceram com índices tímidos de publicações em escala mundial, o que resultou na baixa presença e impacto internacional do pensamento social formulado na região. Assim, esse campo segue reproduzindo a estrutura desigual tradicional, forjada no contexto colonial, implicando na diferença abissal de produção em relação às sociedades centrais da economia mundial e, portanto, na manutenção dessas sociedades como ponto fulcral da produção de teoria social com condições de difusão suficiente para o estabelecimento de narrativas, modelos teóricos e categorias.

Entre os fatores explicativos para essa diferença, para além das questões históricas mais longevas, Beigel (2013) destaca o papel dos regimes militares na região entre as décadas de 1960 e 1980. Esse período foi marcado pela desinstitucionalização dos departamentos e faculdades de Ciências Sociais, na maioria dos países, agravado pelo exílio forçado dos principais intelectuais. Há, ademais, fatores internos ao desenvolvimento do campo acadêmico que a autora mobiliza em seu diagnóstico: embora as décadas recentes tenham registrado maior disposição de latino-americanos a publicarem em colaboração internacional, a preferência por fazê-lo em revistas editadas fora da região têm provocado uma fragilização dos circuitos internos na periferia e pouco conseguem constituir pontes entre os diferentes circuitos periféricos.

Beigel (2016) chama atenção para o conflito “publicar globalmente e perecer localmente versus perecer globalmente e publicar localmente”, que promove uma tensão em grande medida provocada pelo baixo volume global de produção indexada em Ciências Sociais no Sul. Questões como essa constituiriam um “novo caráter da dependência intelectual”, em que a problemática atinge novos níveis de complexidade (cf. Beigel, 2016).

Trata-se, em suma, do problema da divisão internacional do conhecimento, ou mais especificamente, do trabalho científico. Sintetizando com as palavras de Raewyn Connell (2016, p. 27), que se inspira na obra do filósofo beninês Paulin Hountondji, ela se refere a uma distribuição funcional da Ciência que “posiciona o momento da teoria na metrópole, enquanto a periferia global exporta dados e importa ciências aplicadas”: desse modo, “metodologia, formação conceitual, processamento de dados e debate intelectual aconteceram principalmente nas universidades, nos museus, nos jardins botânicos e nos institutos de pesquisa dessa região [metropolitana] do mundo” (Connell, 2012, p. 10). A estruturação institucional descrita constitui o substrato objetivo dessa especialização e expressa uma colonialidade do saber ainda vigente, tomando parte importante no “padrão mundial de poder” instituído.

Farid Alatas (2003, p. 607-608) especifica, de modo mais sistemático, esse diagnóstico ao identificar três recortes expressivos dessa forma de divisão do trabalho, que servem ainda como indicadores úteis para levantamento de dados: a) uma divisão entre trabalho intelectual teórico e empírico em que, como também endossa Connell, os centros de poder agregam de modo equilibrado ambos os tipos, enquanto o “terceiro mundo” se concentra em “aplicações”; b) uma divisão entre estudos dos outros países e estudos do próprio país, de modo que as comunidades científicas dos países periféricos apresentam maior volume de estudos sobre o próprio país, enquanto as comunidades centrais revelam novamente uma distribuição mais equilibrada; c) uma divisão entre estudos comparativos e estudos de caso único, sendo que no centro se verificam um volume maior do primeiro tipo, enquanto na periferia do segundo.

Em face desse conjunto de discussões, bastante reveladoras do estado da arte da geopolítica do conhecimento, Connell (2016) conduz seu estudo para as implicações conteudísticas das condições de produção descritas. Uma das mediações para tal é que tal configuração fomenta e perpetua, nos trabalhos realizados a partir de comunidades científicas periféricas, uma “orientação para fontes externas de autoridade intelectual” (Connell, 2016, p. 28), ao que denomina extraversão, seguindo Hountondji. Esta se manifestaria em práticas como a migração para obtenção de formação metropolitana, priorização de publicação nos periódicos das sociedades centrais e atuação de pesquisadores da periferia como coletores de dados locais para pesquisas realizadas na metrópole.

A consequência, para Connell (2012, p. 10, grifos da autora), é que os arcabouços teóricos dominantes que acabam por se consolidar e que conseguem validar mundialmente sua pretensão universalista são aqueles que reificam a experiência social do norte global e que não raro são construídos com “conceitos e métodos para analisar uma sociedade desprovida de determinações externas”...

Esmiuçando suas considerações, Connell (2007, p. 44-48) analisa as obras de James Coleman, Anthony Giddens e Pierre Bourdieu para identificar quatro traços típicos das “teorias gerais do Norte”, que acusam o recorrente eurocentrismo subjacente: a reivindicação da universalidade, segundo a qual esses trabalhos conteriam conceitos, métodos e modelos de validade universalizável, enquanto os da periferia teriam validade estrita aos contextos de produção; a leitura a partir do centro, que reduz o diálogo temático e teórico aos trabalhos anteriores produzidos nos contextos centrais e referidos a esse; as atitudes de exclusão embutida nas práticas comuns de mencionar casos e exemplos do mundo não-metropolitano, mas sem levar a sério as ideias ali produzidas; e o chamado grande apagamento, que se aproxima daquilo que Boaventura de Sousa Santos (2006) designa como produção da inexistência ou desperdício de experiência, ou seja, a restrição à experiência social do norte global como referencial empírico que lastreia os modelos teóricos.

Com esses estudos, então, pode-se visualizar o quanto as dimensões institucional e teórico-epistemológica do problema estão imbricadas: uma divisão internacional do trabalho científico, forjada sobre a colonialidade e refletida na dinâmica institucional das universidades do centro e da periferia, carrega implicações determinantes sobre os temas selecionados e as orientações teórico-epistemológicas que os subjazem. Em suma, a estrutura organizacional predominante do conhecimento em escala global opera para reproduzir o vigente padrão mundial de poder na medida em que propicia as condições para solidificar os fundamentos ideológicos e cognitivos que o legitimam. Mais uma vez, se está às voltas com um argumento caro à Horkheimer e Adorno: a epistemologia científica tradicional, sua concepção de teoria e sua eficácia em termos de dominação (da natureza e da alteridade) devem ser compreendidas sob uma perspectiva da totalidade que desvele seu papel na divisão social do trabalho e na reprodução do existente. Porém, com os estudos aqui articulados, pode-se elevar aquelas considerações à divisão internacional do trabalho (inclusive científico) e à reprodução não só local do capitalismo, mas enquanto padrão de poder necessariamente mundializante.

DE VOLTA À TEORIA CRÍTICA?

Assim, a seção anterior aponta para o imperativo elevar a crítica da teoria tradicional ao âmbito supranacional, identificando sua distribuição desigual e combinada, sua função reprodutora das hierarquias mundiais de poder e os mecanismos ideológicos de silenciamento ou justificação da história violenta de sua imposição. Para tal tarefa, há material de teórico e analítico de alta qualidade produzido pelos estudos decoloniais e pós-coloniais, mesmo os que se distanciam do projeto dialético da Teoria Crítica. Esta nunca se caracterizou pela mera recusa de alcances logrados por estudos fundados sobre outras matrizes teóricas que, genericamente, se alcunhou como “tradicionais”, embora o epíteto dificilmente seja aplicável aos Estudos Subalternos ou ao Giro Decolonial, e não há razões para fazê-lo agora

Contudo, ainda que este breve artigo almeje menos concluir a tarefa do que justificar sua necessidade, é necessário discutir alguns atritos teóricos que podem emergir desse diálogo. Particularmente, as abordagens de Walter Mignolo e Boaventura de Sousa Santos se revelam bastante suscetíveis a esses ruídos.

Com cada qual em sua rede de interlocuções, certos momentos dos trabalhos de Mignolo e Santos constroem uma radicalização da crítica à epistemologia moderna, propondo como saída o reconhecimento e a valorização de “outras epistemologias”, termo que parece se referir a outras tradições de saber e de fundamentação da verdade, distintas das chamadas ciências modernas, e sua equalização em termos de estatuto epistemológico, ao menos em princípio. A este procedimento, Mignolo (2008) denomina “inter-epistemologia” e Santos (2006) “ecologia de saberes”. Ambos reconhecem que não se trata de conhecimentos totalmente alheios à modernidade, mas da visibilização e construção, por meio de práticas de “tradução intercultural” (Santos, 2006, p. 122-135), de epistemologias fronteiriças, que se encontram a um só tempo nas margens do pensamento moderno e na zona de contato com epistemologias desvinculadas da tradição dita Ocidental.

Trata-se, em suma, de pensar matrizes teóricas e horizontes políticos a partir de um diálogo desprovido daquilo que Mignolo denomina “privilégio epistêmico”.3 Sem adentrar nos detalhes desses projetos, vale ilustrar com as palavras dos próprios autores, a começar por Mignolo (2017, p. 6):

A geopolítica e a corpo-política (entendidas como a configuração biográfica de gênero, religião, classe, etnia e língua) da configuração de conhecimento e dos desejos epistêmicos foram ocultadas, e a ênfase foi colocada na mente em relação ao Deus e em relação à razão. Assim foi configurada a enunciação da epistemologia ocidental, e assim era a estrutura da enunciação que sustentava a matriz colonial. Por isso, o pensamento e a ação descoloniais focam na enunciação, se engajando na desobediência epistêmica e se desvinculando da matriz colonial para possibilitar opções descoloniais – uma visão da vida e da sociedade que requer sujeitos descoloniais, conhecimentos descoloniais e instituições descoloniais.

Fragmentos como esse trazem um possível ponto irredutível de divergência em relação à Teoria Crítica: enquanto esta propõe a subsunção das possibilidades libertadoras da razão moderna, enquanto realiza a crítica das limitações postas por essa mesma razão (reduzida à instrumentalização), a ênfase de Mignolo recai exclusivamente sobre a dimensão dominadora do pensamento moderno. Não por acaso, conforme Ballestrin (2013) relata em seu estudo, o autor considera que o Grupo Sul-Asiático de Estudos Subalternos não foi longe o suficiente na ruptura com “autores eurocêntricos”. Essa tendência de ênfase demasiada no locus de enunciação, que ironicamente remonta a certas leituras de Heidegger e Foucault, acaba aparecendo (de modo menos radical) em trabalhos da maioria dos autores do Giro Decolonial.

Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 33-36), que curiosamente também é visto por Mignolo como vinculado, em demasia, aos pressupostos do pensamento Ocidental, acaba incorrendo em perspectiva similar. No desenvolvimento de sua útil concepção de sociologia das ausências, radicaliza a proposta em termos de ecologia de saberes. Não se trata mais de uma “sociologia”, mas de um projeto abertamente sociopolítico, que visa subverter as relações vigentes entre “ciência” e “senso comum” de modo mais abrangente.

Como ecologia de saberes, o pensamento pós-abissal tem por premissa a ideia da diversidade epistemológica do mundo, o reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico. Isto implica renunciar a qualquer epistemologia geral. Em todo o mundo, não só existem diversas formas de conhecimento da matéria, sociedade, vida e espírito, como também muitos e diversos conceitos sobre o que conta como conhecimento e os critérios que podem validá-lo. No período de transição que se inicia, em que ainda resistem as versões abissais de totalidade e unidade, provavelmente precisamos, para seguir em frente, de uma epistemologia geral residual ou negativa: uma epistemologia geral da impossibilidade de uma epistemologia geral (Santos, 2010, p. 55-56).

Para além de um uso discutível do termo “epistemologia”, na última sentença, o excerto aponta algumas contradições do pensamento do autor. Primeiramente, embora insista que sua crítica se dirige à “epistemologia moderna”, mencionando inclusive as condições dominantes de validação, suas principais obras não deixam de se inserir nesse “paradigma”, como gosta de dizer; a forma textual, os princípios lógicos elementares, a estruturação do argumento, a fundamentação, enfim, muito daquilo que serve à validação de teses na “epistemologia moderna” se encontram nas obras de Sousa Santos (assim como nas de Mignolo). O que por si só revela a prudência de não se incorrer em uma rejeição principista de tudo, que remeta ao conhecimento produzido no espaço geográfico que se denomina Europa. Subsumir as existentes especificidades contributivas deste às potencialidades emancipatórias não é o mesmo que endossar o eurocentrismo ou corroborar a divisão internacional do conhecimento. Além disso, ainda que se conceba que, na última frase, o termo “epistemologia” seja um mau sinônimo de “teoria”, já que em outros textos o autor fala sobre uma “teoria geral da impossibilidade de uma teoria geral” (Santos, 2006, p. 129), não se pode dizer que seus trabalhos sejam desprovidos de caracteres de “teorias gerais”.

Conforme aponta Josué Pereira da Silva (2018, p. 104), na obra de Santos:

as formulações teóricas e suas análises da sociedade capitalista, moderna ou pós-moderna, têm todas as características de uma teoria geral, seja no diagnóstico de época, seja na mobilização do que denomina razão cosmopolita para criticar a razão indolente e formular o trabalho de tradução.

Cabe discorrer sobre algumas implicações últimas desse tipo de abordagem, e que contrastam à teorização crítica, conforme a tradição dialética de Frankfurt. Uma primeira seria conceber fundamentação (teórica e/ou empírica), criteriosidade filosófica e coesão argumentativa como dispensáveis no argumento teórico, pois a linha epistemológica que separava o conhecimento “científico” do “senso comum” se torna completamente borrada. Dito de outro modo: em vez de investigar as contribuições analíticas e os elementos emancipatórios inscritos na crítica pré-teórica, observando seus potenciais libertadores, obstáculos correspondentes e limitações imanentes, essa tendência pode resultar na identificação entre a crítica pré-teórica e a teórica.

Pode-se, com isso, fundamentar um anti-intelectualismo que não condiz com a teorização crítica que se descreve anteriormente: esta não abandona de saída o conhecimento ideológico e limitado da “teoria tradicional” (capitalista, ocidentalista, eurocêntrica, etc.), mas visa superá-la pela exploração de suas contradições. Ademais, desde suas origens, a Teoria Crítica dirige atenção às lutas sociais das classes e grupos subalternizados, concebendo sua crítica pré-teórica como momento sine qua non da superação da sociedade vigente, com o qual a crítica teórica não pode prescindir de dialogar. Não obstante, os reconhece como dois momentos distintos da mudança social, conforme destaca também Herbert Marcuse (2006).

Merece destaque, ainda, o fato de Horkheimer (1991, p. 130-133), em seu programa, introduzir o comportamento crítico como contraponto à dominação social da qual a teoria tradicional toma parte, antes de especificar a Teoria Crítica enquanto elaboração teórica daquele comportamento; deixa entrever que o comportamento crítico pré-teórico não é visto como desprezível pela Teoria Crítica no processo emancipatório, mas sim como um momento (em sentido hegeliano) distinto desse processo. E não há razão para descartar, a priori, a força e relevância da presença desse comportamento crítico capaz de emergir de diversas visões de mundo e tradições de pensamento, ainda que, a rigor, isso exija tomar uma noção de “comportamento crítico” mais flexível do que aquela proposta por Horkheimer.

Assim, não há motivos para a Teoria Crítica assumir as abordagens (em princípio) não científicas sobre o mundo como desprovidas de racionalidade, tampouco tomar saberes tradicionais de diversas matrizes como descartáveis à crítica social. Tampouco se trata de considerar que o processo costumeiramente denominado epistemicídio, a violenta supressão colonial das formas “não Ocidentais” de conhecimento, seja de algum modo justificável. O que se argumenta é que, da perspectiva da Teoria Crítica, há uma especificidade da epistemologia moderna manifesta, por exemplo, em seu contraditório recurso à racionalidade e em seus contraditórios horizontes sociopolíticos.

São contraditórios, precisamente, por possuírem uma dimensão emancipatória inerente, a partir da qual essa racionalidade pode se fazer autocrítica, em uma ruptura epistemológica imanente, que conserve o conteúdo emancipatório do momento anterior. Obras notáveis da Teoria Crítica ilustram essa possibilidade, bem como os obstáculos estruturais a essa, mas seu silenciamento ideológico quanto à colonialidade do poder e o caráter mundial da dominação capitalista mostra como mesmo a autocrítica também é refém de ideologias vigentes no espaço-tempo de sua produção.

Contudo, ao não conceberem uma diferenciação entre crítica teórica e pré-teórica, enquanto momentos distintos (ainda que mediados), e ao confundirem termos como “teoria”, “cosmologia” e “epistemologia”, os argumentos de Mignolo e Sousa Santos flutuam sem discriminação entre dois níveis conceitualmente distintos da explicação social: a dimensão teórica e temática das descrições sociais e a fundamentação epistemológica da “ciência moderna”. Por conseguinte, a identificação do reducionismo eurocêntrico no primeiro plano, discutindo, com correção, suas determinações “coloniais” conduz imediatamente à denúncia radical da “epistemologia Ocidental” (como se esta fosse unívoca), no segundo plano.

O resultado é, por vezes, um tratamento de todo modelo crítico desenvolvido sob referenciais do “norte global” como comprometido com “a epistemologia colonizadora do padrão mundial de poder”; portanto, uma concepção de que a única saída se encontra na valorização dos saberes idiossincráticos do Sul e a equiparação do estatuto científico entre todos os saberes possíveis.

Uma segunda implicação é aquilo que Beigel (2016) identifica, nesse tipo de posição, enquanto perspectiva nativista, uma obsessão por conhecimentos puramente originais e autônomos, livres de quaisquer influências do patrimônio cognitivo moderno desenvolvido em território europeu. Paradoxalmente, essa postura de alguns intelectuais periféricos incorreria na “imagem e semelhança” do mito construído pelos centros acadêmicos tradicionais, a saber, a narrativa autocentrada sobre a própria condição intelectual. Criticando, de modo geral, os trabalhos que essencializam o binarismo Norte-Sul e se centram em “propiciar às vozes do Sul um espaço nos canais nos quais se consagram a ‘Teoria do Norte’”, dentro dos quais também inclui Connell, Beigel (2016, p. 9) entende como fundamental “questionar as bases mesmas desse reconhecimento acadêmico ‘universal’ e encontrar os caminhos para pôr em ação um diálogo transnacional não hegemônico, que existe pelo menos desde 1960, fora das revistas mainstream, mas em redes e instituições periféricas”.

Ainda que seu trabalho não coloque tanto em discussão o potencial emancipatório relativo ao conteúdo das formulações (tendo em vista seus diagnósticos de época e horizontes normativos), sua proposta se aproxima, em alguma medida, com um tipo de crítica à geopolítica do conhecimento agregadora à Teoria Crítica, e traz ponderações valiosas quanto aos riscos sectários e essencialistas em que algumas abordagens podem incorrer.

Finalmente, o terceiro ponto discutível, sobremaneira presente nos trabalhos de Mignolo (2008), se refere à perspectiva normativa de “identidade em política”, por meio da qual se enfatiza a diferença e rejeita a igualdade; esta seria vista como resíduo do quadro epistemológico europeu que deve ser combatido. Literalmente, exprime Mignolo (2008, p. 300) que:

O pensamento descolonial é a estrada para a pluri-versalidade como um projeto universal. O Estado pluri-nacional que os indígenas e os afros reivindicam fica nos Andes, é uma manifestação particular do maior horizonte de pluri-versalidade e o colapso de qualquer universal abstrato apresentado como bom para a humanidade inteira, sua própria similaridade. Isto significa que a defesa da similaridade humana sobre as diferenças humanas é sempre uma reivindicação feita pela posição privilegiada da política de identidade no poder (Mignolo, 2008, p. 300).

Mignolo (2008) compreende que a estrutura sociopolítica imperial se legitimou, ao longo de séculos, sobre formas de classificação social, nas quais os subalternizados foram marcados com identidades essencialistas, de modo a naturalizar seu lugar em uma hierarquia de escala mundial. Essa mesma estrutura, concomitantemente, teria constituído um discurso ideológico sobre a própria superioridade racial e moral, destacando entre seus feitos o alcance de um ideário universalista da razão humana, do qual deriva a igualdade essencial de todos os homens. Até aqui, o autor trilha caminho similar ao da maioria dos críticos da colonialidade, visando expor e denunciar a contradição entre a ideologia da “moderna civilização Ocidental” e os meios objetivos (racializantes, violentos, discriminatórios, exploratórios etc.) pelos quais esta manteve sua hegemonia. Entretanto, esta consideração o leva a um passo muito discutível: ao invés de sustentar o princípio fundamental da igualdade humana universal, enquanto imperativo fundamental e imanente, apresentando a incapacidade estrutural do padrão mundial de poder em realizá-lo, Mignolo (2008) considera esta alternativa um reforço do “privilégio epistêmico europeu” e abraça o diferencialismo como fim em si mesmo.

A Teoria Crítica, por sua vez, recusa a concepção diferencialista que subjaz a seu argumento, e não deixa de apostar na universalidade da razão humana enquanto pressuposto, tampouco no correspondente imperativo da universalização do autodesenvolvimento e da autodeterminação (cf. Young, 1981). O desafio de uma Teoria Crítica contemporânea é encontrar esse delicado equilíbrio, enquanto se abre a uma ampliação que responda, satisfatoriamente, aos problemas e limites que a desafiam.

É importante ter em vista, de todo modo, que as perspectivas teóricas do campo decolonial, das epistemologias do Sul e de outras linhagens dos aqui chamados genericamente de estudos periféricos, são diversas, heterogêneas e contraditórias; inclusive, no interior de cada um desses campos. Assim, por exemplo, os trabalhos de Aníbal Quijano que se aproximam mais das Teorias da Dependência e da Análise do Sistema-Mundo colidem nitidamente com o diferencialismo; mobilizam, inclusive, certa perspectiva de totalidade social, por ele denominada de “totalidade heterogênea”, em oposição às versões mais unilaterais e mecanicistas do materialismo histórico (cf. Quijano, 2001; Bueno, 2022). Outrossim, em seus estudos mais normativos, Enrique Dussel (1980; 2000) não dá pistas de aderir a uma perspectiva diferencialista de emancipação social, inclusive, pela subjacência de um cristianismo crítico em seus trabalhos. Enfim, é quase desnecessário dizer que abordagens mais marxistas, como as de Wallerstein e Samir Amin, passam ao largo, seja da “política de identidade ou da “identidade em política”.

Considerando essa heterogeneidade contraditória, algumas formulações que Quijano e Dussel legaram na década de 1990, bem como o já descrito projeto de Amy Allen, a Teoria Crítica pode caminhar no sentido de aprofundar a superação dialética da teoria tradicional, ampliando o desvelamento de suas contradições e extrapolando seus limites (teóricos e temáticos), porém subsumindo sua face emancipatória, a saber, seus potenciais imanentes para conquistas em termos de ampliação das possibilidades objetivas de autodeterminação e autodesenvolvimento. Um caminho trilhado nesses termos não minimiza a possibilidade de um conhecimento científico voltado para a emancipação, nem rejeita de saída a Universidade, enquanto lugar de enunciação da crítica; muito menos corrobora a ideia de que a libertação estrutural das condições presentes de opressão e dominação só é possível com uma visão relativista das Ciências, concebendo-as como “mais um saber” ao lado de todas as outras visões de mundo ou críticas pré-teóricas inscritas nas lutas sociais.

Trata-se, antes, de pensar em termos de crítica da colonialidade do poder, em que sejam explorados os limites e contradições da Teoria Crítica para o tratamento da colonialidade, de modo a melhor abrigar tanto o aspecto geopolítico do conhecimento na divisão social do trabalho quanto a recusa às tendências de operacionalização (analítica, normativa e política) não mediada de conceitos supostamente universais, mas erigidos a partir de experiências sociais distintas (ainda que concatenadas na totalidade).

EM BUSCA DE UMA SÍNTESE

O artigo não buscou legar uma resolução definitiva para o problema epistemológico que se coloca à Teoria Crítica. De modo muito mais modesto, visou argumentar quanto a necessidade e plausibilidade de interlocução com os estudos periféricos no que se refere a dois aspectos principais da crítica da Ciência moderna: a) a dimensão socioinstitucional, referente à vinculação entre o funcionamento efetivo do trabalho científico e a divisão social do trabalho sob o capitalismo (agora pensado em termos de padrão mundial de poder); b) a dimensão teórico-epistemológica, necessariamente concatenada à anterior, de modo que o lugar específico do trabalho científico naquela totalidade social, ainda que tomada como heterogênea e dinâmica (cf. Quijano, 2001), carrega implicações de monta sobre os critérios de validação do conhecimento, os substratos conceituais hegemônicos e o arco disponível de temas e problemas a serem tratados nos espaços institucionalizados do conhecimento.

Ademais, também se ensaiou algumas possibilidades de caminhos para a realização dessa tarefa, evocando um diálogo com a crítica do progresso de Amy Allen, a teorização do Giro Decolonial em diálogo com a Teoria do Sistema-Mundo, a crítica da dependência acadêmica formulada por Syed Hussein Alatas, Syed Farid Alatas e Fernanda Beigel, e a discussão quanto à divisão internacional do trabalho científico proposta por Raewyn Connell.

Todavia, como se viu, não se trata de um desafio fácil de ser enfrentado, havendo alguns dilemas à vista. Se a Teoria Crítica se define, prioritariamente, pela construção de um diagnóstico de época normativamente orientado, no qual se possa identificar contradições com potencial de condução à emancipação social, então há diversas formulações nesse campo de estudos periféricos que podem agregar ao projeto. Nesse diálogo, tanto sua dimensão diagnóstica pode ser depurada com a elevação da totalidade à sua dimensão geopolítica (tendo em vista suas implicações em termo de dominação e opressão, mas também de ideologia, teoria e epistemologia), quanto sua dimensão normativa pode ser expandida e revista (ampliando o significado de emancipação, ou mesmo repensando univocidade desse termo). Contudo, se se considera a dialética como elemento fundamental e definidor do campo da Teoria Crítica, com suas concepções, ainda que disputadas, de imanência, movimento, negação, totalidade e contradição, esse diálogo requer cuidados adicionais para ser coerentemente frutífero, ainda que não deixe de ser possível (como argumenta-se aqui, e como Allen também demonstra). Nesse caso, aqueles atritos indicados na seção anterior se fazem, de fato irredutíveis, limitando o alcance da ruptura epistemológica que esse projeto propõe, mas propiciando uma aderência mais clara e bem definida ao campo.

Em suma, essa reflexão se revela como momento fundamental para sustentar a atualidade da Teoria Crítica no capitalismo periférico. Porém, se a crítica da teoria tradicional alcançou uma síntese bem estabilizada com a Escola de Frankfurt, a crítica periférica da Teoria Crítica ainda não logrou resultado análogo; para tal, cabe evitar tanto a prisão autorreferencial em uma “teoria tradicional da crítica” (cf. De Caux, 2021) quanto a paralisação no momento antitético. Não é tarefa fácil, e não deve ser encarada como agenda de pesquisa individual, mas como movimento teórico abrangente que, já há alguns anos tem mobilizado estudiosos da Teoria Crítica na periferia, inclusive, no Brasil (cf. Ribeiro, 2018; Repa, 2020; Aragon, 2020; Borba e Benzaquen, 2020). É a estes esforços que se pretende somar.

  • 1
    A expressão é utilizada em sentido amplo, designando o vasto e muito diverso campo de estudos críticos aos resíduos do colonialismo ou à “colonialidade do poder” (Quijano, 1991), desenvolvidos com referência à periferização do “Sul Global” (Connell, 2012). Envolve o Pós-Colonialismo, o Giro Decolonial, as Epistemologias do Sul e abordagens contíguas.
  • 2
    Quanto a isso, Said (2011, p. 426) afirma que a Teoria Crítica, “apesar de seus vislumbres fundamentais das relações entre a dominação, a sociedade moderna e as possibilidades de redenção por intermédio da arte enquanto crítica, silencia de maneira assombrosa no que diz respeito à teoria racista, à resistência anti-imperialista e à práxis oposicionista no império”.
  • 3
    Nos trabalhos de Mignolo e Santos, o termo “epistemologia” é demasiado flexível, e seu radical aparece em contextos bastante distintos entre si. Por conseguinte, expressões como “privilégio epistêmico”, que aparecem em Mignolo sem maiores explicações, acabam por possuir frágil peso conceitual.

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  • Editor Chefe:
    Renato Francisquini Teixeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2024
  • Aceito
    23 Jan 2025
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