Resumos
Este artigo apresenta um enquadramento epistemológico e teórico-metodológico na interface entre a Sociologia da Saúde e a Sociologia das Emoções. Busca-se construir um argumento sobre o lugar da dimensão afetiva no processo saúde-doença e, concomitantemente, uma proposta teórico-metodológica para o estudo dos afetos e emoções nessa área de pesquisa social. Argumenta-se que o estudo dos afetos é relevante para problemas característicos da pesquisa em saúde, nomeadamente, o impacto de marcadores sociais como classe, gênero, raça no processo saúde-doença, as particularidades das interações entre profissionais de saúde, pacientes e seus entes queridos, e a relação entre emoção e trabalho de cuidado em saúde. Por fim, conclui-se que a Sociologia da Saúde pode ser renovada e enriquecida do ponto de vista teórico-metodológico por um diálogo continuado com as teorias sociais dos afetos e das emoções.
PALAVRAS-CHAVE
Afetos; Emoções; Teoria Social; Saúde e doença; Corpo
This article presents an epistemological and theoretical-methodological framework at the interface between Sociology of Health and Sociology of Emotions. I present an argument for the place of the affective dimension in health and illnesses processes and, concomitantly, a theoretical-methodological proposal for the study of affects and emotions in this particular area of social research. I argued that the study of affect is relevant to problems characteristic of health research, namely, the impact of social markers such as class, gender, race on the health and illness, the particularities of interactions between healthcare professionals, patients, and their loved ones, and the relationship between emotion and healthcare work. Finally, I conclude that Sociology of Health can be renewed and enriched in its theoretical-methodological frameworks by a continued dialogue with the social theories of affects and emotions.
KEYWORDS
Affects; Emotions; Social Theory; Health and Illness; Body
Este artículo presenta un marco epistemológico y teórico-metodológico en la interfaz entre la Sociología de la Salud y la Sociología de las Emociones. Busca construir un argumento sobre el lugar de la dimensión afectiva en el proceso salud-enfermedad y, al mismo tiempo, una propuesta teórico-metodológica para el estudio de los afectos y las emociones en esta área de investigación social. Se argumenta que el estudio de los afectos es relevante para problemas característicos de la investigación en salud, a saber, el impacto de marcadores sociales como clase, género y raza en el proceso salud-enfermedad, las particularidades de las interacciones entre profesionales de la salud, pacientes y sus seres queridos, y la relación entre emoción y trabajo asistencial. Finalmente, se concluye que la Sociología de la Salud puede renovarse y enriquecerse desde el punto de vista teórico-metodológico mediante un diálogo permanente con las teorías sociales de los afectos y las emociones.
PALABRAS CLAVE
Afectos; Emociones; Teoría social; Salud y enfermedad; Cuerpo
INTRODUÇÃO
Abordar as emoções em uma pesquisa sociológica significa se colocar diante de um campo multidisciplinar de estudos, no qual a Psicologia, a Biologia, as Neurociências, a Sociologia e a Antropologia debatem, convergem e divergem. A diferença entre os termos “afeto” e “emoção”, cada qual com sua tradição de pensamento, já indica a riqueza do campo. Além da miríade de perspectivas disciplinares, há de se reconhecer a diversidade interna da sociologia das emoções, uma tradição que encontra raízes nos “fundadores” da sociologia (Shilling, 2002) e, enquanto especialidade, já dura mais de quatro décadas (Bericat, 2016).
No encontro dessas vertentes de estudos sociológicos e multidisciplinares com a sociologia da saúde, verifica-se campo igualmente prolífico (Francis, 2006). Koury (2014) averigua que o tema “corpo e saúde” foi o segundo mais abordado em trabalhos apresentados nos Grupos de Trabalho de sociologia e antropologia das emoções em doze congressos nos anos de 2001 a 2012. Assim, argumenta a favor de “um maior esforço na promoção de discussões teórico-metodológicas” (Koury, 2014, p. 858) visando consolidar o estudo sociológico e antropológico das emoções.
Pensando do ponto de vista da sociologia da saúde, indicam-se quatro temas1 que podem ser enriquecidos pelo diálogo com a sociologia e antropologia das emoções: a existência de modelos explicativos e de intervenção distintos do biomédico para os processos saúde-doença; a estruturação de desigualdades em saúde de acordo com condições socioeconômicas e relações de poder; as relações de indivíduos e grupos sociais com instituições de saúde, sejam privadas ou públicas, locais ou globais; a experiência da doença, da morte e do morrer.
O presente artigo propõe um enquadramento teórico-metodológico para o estudo dos afetos no processo saúde-doença, visando um diálogo entre a sociologia da saúde e a sociologia e antropologia das emoções. Não se almeja definir fronteiras cerradas de um ou outro subcampo, mas identificar problemas sociológicos comuns que permeiam o já rico diálogo entre essas distintas vertentes. Também não se procura reconstruir detalhadamente a variedade de abordagens existentes para realizar um balanço da literatura. Antes, parte-se de referências chave no campo da sociologia e antropologia da saúde e das emoções para delinear questões epistemológicas e teórico-metodológicas que são de grande relevância para as Ciências Sociais, bem como para o diálogo entre essas duas grandes áreas.
O artigo se estrutura da seguinte maneira: na primeira seção, enquadra-se o diálogo proposto e se apresentam os problemas teóricos centrais do artigo; na seção seguinte, discute-se a relação entre afetos e dimensão simbólica; na seção posterior são discutidas as relações entre afetos, ordem social e estrutura; por fim, conclui-se o texto apresentando a proposta teórico-metodológica do artigo e discutindo alguns de seus desdobramentos.
LUGAR DAS EMOÇÕES NA SAÚDE-DOENÇA E NA VIDA SOCIAL
As conexões entre o processo saúde-doença e as emoções já são tópico de discussão em certas áreas da medicina, especialmente a psicologia, e na esfera pública ao largo. Os saberes “psi” (Rose, 1996), como a psicologia e a psicanálise, e movimentos sociais em saúde como o movimento hospice (Menezes, 2004) e o movimento sanitarista que, no Brasil, avançou a ideia de uma política pública de saúde centrada na família e na comunidade (Bonet, 1999), compartilham um terreno comum em suas críticas aos limites do modelo biomédico de saúde. Na sociologia da saúde, especialmente a de vertente estadunidense (Francis, 2006), o tema também já é objeto de pesquisa há pelo menos duas décadas. Logo, tanto movimentos sociais quanto áreas diversas do saber científico trouxeram novos elementos para a constelação do que se considera como “problemas de saúde”, consolidando-se institucionalmente em âmbito global e local. Não obstante, ainda parece haver um longo caminho a percorrer no estudo das conexões entre saúde, doença e emoções.
Pode-se sistematizar tais críticas ao modelo biomédico tradicional no qual, supõe-se a saúde e a doença seriam funções exclusivas do funcionamento biológico do corpo em duas vertentes. De um lado, tem-se a “medicina psicologicamente informada” que surge nas décadas de 1960 e 1970 (Seale, 1998, p. 95) e que irá informar modelos de assistência como os cuidados paliativos (Autor, ano), bem como a medicina em sentido amplo. Do outro, encontram-se áreas de conhecimento como saúde pública, saúde coletiva, medicina comunitária e medicina da família, bem como pautas de movimentos sociais como a reivindicação dos direitos reprodutivos das mulheres e a luta por segurança, financiamento de pesquisa científica e serviços de saúde para portadores de AIDS (Brown et al., 2011, p. 118).Na primeira, a unidimensionalidade do modelo biomédico é desafiada do ponto de vista de um outro modelo de subjetividade, no qual valores como “autonomia, identidade, liberdade, escolha, realização pessoal” (Rose, 1996, p. 1) são elencados como essenciais para a condição humana e, portanto, de suma importância para a sociedade. Tais valores, por sua vez, estão radicados em uma imagem do sujeito, enquanto indivíduo “ativo e autônomo”, dotado de uma interioridade rica, complexa e cuja interpretação é difícil, mas não totalmente impossível (Rose, 1996, p. 17).
Na vida interna do indivíduo psicológico, as emoções têm lugar central, pois são expressões de suas vontades e de sua natureza mais profunda. Na segunda vertente, a variável explicativa e o ponto de crítica ao modelo biomédico é o social. Em áreas como a saúde coletiva e a epidemiologia, o social é usualmente definido em termos de “determinantes sociais da saúde”, seja em abordagens quantitativas (comuns em pesquisas epidemiológicas) ou qualitativas. Independente da estratégia metodológica, o argumento segue um trajeto semelhante: saúde e doença são expressões de certas condições sociais, geralmente abstraídas em termo de indicadores como gênero, raça, status socioeconômico, status profissional, nível educacional, entre outros.
Neste artigo, não se procura negar a validade dos dois tipos de abordagem. Do contrário, os avanços em sociologia da saúde, saúde pública e epidemiologia permitiram e, ainda permitem, entender aspectos valiosos do nexo sociedade-saúde-doença que, por exemplo, corroboram políticas públicas de saúde voltadas para as populações desfavorecidas. Segue-se no caminho aberto por essa imensa e rica literatura, ao pressupor que condições sociais de vida influem, de maneiras complexas e variadas, nas condições de saúde, doença e morte. Quanto à vertente psicológica, assume-se que os saberes “psi”, vistos primariamente por Rose (1996) como tecnologias de controle, devem ser entendidos como “um fundo rico de recursos teóricos e conceituais” (Giddens, 1992, p. 31), que pode ser mobilizados de diversas formas pelos sujeitos em sociedade.
As duas vertentes propõem formas alternativas de entender o processo saúde-doença como realidade multidimensional, na qual dimensões diversas como as emoções, as relações e as estruturas sociais se entrelaçam. No entanto, enquanto a vertente “psi” localiza tais dimensões no interior do sujeito, a vertente “social” as localiza no exterior. É verdade que muitas abordagens nas áreas acima mencionadas, incluindo a própria sociologia da saúde e a sociologia das emoções, procuram desestabilizar a divisão entre interior e exterior, insistindo na interconexão entre fatores supostamente “externos” ao indivíduo e a saúde (condições sociais), e fatores supostamente “internos” (a psiquê e as emoções). Todavia, faz-se coro com Duarte (1993) que alerta sobre o risco de reducionismos psicológicos ou reducionismos sociais, os quais perdem de vista tanto as propriedades distintas de cada dimensão analisada, quanto suas interrelações concretas.
Parte-se do princípio compartilhado no estudo sociológico e antropológico das emoções, de que há algo social na vida emocional e de que há algo emocional na vida social, como colocou Bericat (2016, p. 6-7, grifos nossos):
As duas dimensões básicas da sociabilidade são a dimensão simbólica ou intercomunicativa e a dimensão energética ou interativa. Logo, a realidade social é sempre cultura, comunicação e consciência, e ao mesmo tempo, estrutura, energia e ação. É por isso que emoções são uma parte constitutiva de todo fenômeno social. Devido a sua natureza expressiva e informacional, emoções são um dos três componentes fundamentais da dimensão intercomunicativa da sociabilidade (cognição, valores e emoções). Mas devido a sua natureza energética e motivacional, emoções também são determinantes da vontade individual, um dos três componentes da dimensão interativa da sociabilidade (energia natural, poder social e vontade individual) (Bericat, 2016, p. 6-7, grifos nossos).
A diferença entre a “dimensão interativa da sociabilidade” e a “dimensão intercomunicativa” organiza as questões abordadas ao longo deste artigo, porém propõe-se um reenquadramento sutil da esquematização de Bericat. De um lado, localiza-se a questão da relação entre afeto e dimensão simbólica, que na teoria dos afetos contemporânea (a ser discutida) organizou-se em termos da dualidade afeto/discurso. De outro lado, há o problema da conexão entre afetos, estrutura e ordem social, na qual a questão das normas de expressão emotiva, bem como a relação entre estas e posições sociais se encontram. Em outras palavras, tem-se uma coordenada simbólica e uma relacional, cada qual com suas ramificações.
AFETO E DIMENSÃO SIMBÓLICA
A teoria produzida sob o marco da “virada afetiva”, apresentada anteriormente, enfatiza a materialidade do corpo e a transmissão “transpessoal” dos afetos, buscando entender o corpo “submerso em um fluxo” no qual se encontra “ao mesmo tempo boiando e sendo carregado” (Stewart, 2007, p. 113). Ao mesmo tempo sentindo no âmago e na atmosfera, como um impulso e um empuxo do corpo, o afeto é caracterizado “por sua abertura e ‘entrenicidade’ [in-between-ness]” (Seigworth; Gregg, 2010, p. 3), reforçando sua representação enquanto fluxo, força ou intensidade. De maneira geral, a virada afetiva propõe uma imagem da vida social como se entremeada por um “brilho”, uma “vibração” ou uma “intensidade” que, embora espalhada na “superfície do corpo” (Massumi, 1995, p. 85), não pode ser a esse reduzido ou nesse contido. A materialidade corpórea é evocada e simultaneamente afastada, dando lugar às “forças do encontro” (Seigworth; Gregg, 2010, p. 3) entre superfícies corporais. Concomitantemente, as dimensões discursiva e simbólica do social são rejeitadas como cristalizações posteriores de um domínio vital pré-social e infradiscursivo.
A desconfiança em relação ao discurso encontra suas raízes em uma crítica a vertentes pós-estruturalistas da teoria social, inspiradas no trabalho de Michel Foucault e Judith Butler, para nomear alguns. Diante de corpos demasiado dóceis e de uma “estratégia paranoica de leitura” da crítica pós-estruturalista, autores como Sedgwick e Frank (1995, p. 496) acusaram a “teoria após Foucault e Greenblatt, após Freud e Lacan, após Lévi-Strauss, após Derrida, após o feminismo” de uma correção de curso exagerada. Em favor do discursivo como resposta ao essencialismo biológico e em favor da linguagem como modo único de entendimento do simbólico, a teoria havia perdido de vista a capacidade transformativa dos corpos e a força da vida antes (mas não além) do discurso. A “virada” teórica substituiria a materialidade passiva e naturalizada das ciências biológicas clássicas e da teoria pós-estruturalista (corpos dóceis) pela materialidade viva e efêmera, conceituada a partir de diálogos com a neurociência, a física quântica e a psicologia do desenvolvimento.
Sendo assim, quando autores da virada afetiva como Massumi e Sedgwick mencionam o trabalho do neurocientista Antonio Damasio ou da psicóloga Silvan Tomkins, esses autores procuram evocar um modelo de biologia como “campo de potencialidade que, crucialmente, precede a sobrescrição do corpo através da subjetividade e da história pessoal” (Papoulias; Callard, 2010, p. 34). Visando afastar-se, tanto do essencialismo biológico quanto da ênfase demasiada em discursos, linguagem e cultura, apostam em capacidades corporais supostamente localizadas em um espaço não reflexivo e não discursivo. A caracterização desse espaço, enquanto lugar dinâmico e pleno de potencial emancipatório, se fundamenta no diálogo com experimentos e hipóteses da neurociência contemporânea.
Todavia, a busca por evidências de um espaço pré-discursivo, pré-social e indefinido, impede que teóricos como Massumi enxerguem aquilo que a própria neurociência propõe: o caráter potencial e emergente da dimensão afetiva – seu potencial de irromper nas situações cotidianas, afetar sem se perceber, mover os sujeitos e informar sua relação com o mundo e com os outros, só pode ser propriamente entendido em conjunto com sua tendência a formar padrões e estruturar tanto o sujeito quanto suas relações (Papoulias; Callard, 2010, p. 48-49).
O conceito de “prática afetiva” de Margaret Wetherell (2012; 2013) abre caminho para considerar os dois lados da dimensão afetiva. Em outras palavras, não é preciso abrir mão da natureza simbólica ou discursiva dos afetos para preservar sua relevância na pesquisa social. Do contrário, a padronização simbólica e estrutural dos afetos permite sua análise e descrição. Wetherell aponta para a afinidade entre a pesquisa dos afetos e noções de prática social, popularizadas na teoria social por autores como Bourdieu e Giddens. O caráter indefinido, mas regulado, cheio de potencialidade, mas estruturado, espontâneo, mas regido por regras, dos afetos é análogo ao caráter das práticas situadas:
Atividades situadas são padrões emergentes de práticas, reconhecidos pelos participantes, mesmo se esses não forem capazes de articular explicitamente os padrões envolvidos, que estão entrelaçados com questões de valor e ordens morais locais. Atividades situadas são flexíveis e contingentes. (Wetherell, 2013, p. 360).
O fluxo das práticas situadas no cotidiano parece se assemelhar, ou mesmo se imbricar, com o fluxo dos afetos. As pessoas são afetadas e afetam2 os outros nas interações, as quais seguem um padrão familiar. Para ilustrar essa imbricação, Wetherell menciona o trabalho da antropóloga Marjorie Goodwin, especializada em análise conversacional e linguística. Goodwin analisou as interações de meninas em playgrounds enquanto estas brincavam, demonstrando como não somente o conteúdo das falas, mas também a coordenação dos gestos, expressões faciais, entonação na voz e os papéis sociais performados se desdobram em um padrão observável. Todos os elementos da situação podem ser abstraídos e analisados isoladamente, todavia, corre-se o risco de perder a especificidade da dimensão afetiva na prática: “O afeto nos dá muito da textura dessas práticas e as torna altamente envolventes e investidas” (Wetherell, 2013, p. 362).
Cada ato, palavra, tom de voz e gesto é mediado pelos papéis e posições sociais dos sujeitos, como a sociologia há muito tempo argumenta, mas também pela textura afetiva que torna a interação envolvente, importante e, em uma só palavra, significativa para os envolvidos. Práticas afetivas são justamente essas formas emergentes de composição nas quais afetos, significados e corpos se padronizam em situações cotidianas.
Octavio Bonet, embora sem usar o conceito de prática afetiva, fornece uma base empírica para tais argumentos em sua etnografia de consultas médicas, além de abrir caminho para a conexão com a pesquisa social em saúde. Em sua etnografia realizada na Argentina e no Brasil, o antropólogo foca sua análise em contextos de medicina da família, os quais trazem certas peculiaridades para a relação entre médico e paciente.3 Bonet descreve as consultas médicas mencionando as falas dos envolvidos, seus gestos, tons de voz e manifestações emotivas explícitas como o choro. A expressão das emoções coloca em movimento uma “mudança do referente”, a partir da qual o objetivo médico de diagnosticar e avaliar problemas de saúde é enredado em uma trama que contém problemas pessoais, episódios da história de vida do paciente e outras necessidades (Bonet, 2006, p. 129). Isso porque a dimensão afetiva, em alguma medida anterior a articulação consciente, tem o efeito de unir “sentimentos confusos” e associar questões que, nos termos estritos da consulta médica, nem sequer seriam postos discursivamente.
No entanto, na medida que a situação se desenrola, os estados afetivos que a princípio irrompem e perturbam a ordem normal da situação “vão ganhando sentido e se articulando em um discurso” (Bonet, 2006, p. 130). Por um lado, a imbricação do corpo-no-mundo, na qual os afetos (estados corporais) têm papel central, significa que o sofrimento do paciente não pode ser reduzido – a não ser analiticamente ou posteriormente – a uma categoria diagnóstica do saber biomédico. Por outro lado, a articulação prática-discursiva dos afetos é o que permite que as demais dimensões do sofrimento alterem a situação de consulta, colocando em evidência questões a princípio não relacionadas ao processo saúde-doença.
Afetos são, portanto, articulados por meio de práticas afetivas que os “recrutam” ou “entrelaçam” com possibilidades corporais (o que o corpo pode fazer em cada situação), rotinas de ação e significados em “figurações sociais e materiais” (Wetherell, 2012, p. 19).
A etnografia das consultas médicas de Bonet e o conceito de prática afetiva de Wetherell permitem conectar o caráter visceral, potencial e “pré-consciente” dos afetos com sua articulação discursiva, sua significação e eventual padronização nas ações dos indivíduos em situação. A intensidade dos afetos é o que confere textura e relevância às práticas, enquanto estas permitem a articulação, não somente no sentido de pôr em discurso, mas de concatenar afetos com ações, histórias de vida, necessidades, possibilidades e significado. No caminho, a potencialidade dos afetos não é perdida, contudo, é organizada em padrões reconhecíveis e observáveis.
AFETO, ESTRUTURA E ORDEM SOCIAL
Uma vez preservado o caráter plural dos afetos, enquanto entes discursivos e corporais, simbólicos e materiais, dinâmicos e padronizados, resta entender como a dimensão afetiva é estruturada socialmente. Assim como o corpo tem seu lugar na manutenção da ordem social (Turner, 2008, p. 77), também é um vetor de transformação e agência (Bendelow; Williams, 1998, p. 10). A ordem social é reproduzida, pelo menos parcialmente, pela padronização dos comportamentos corporais – a hexis de Bourdieu ou as técnicas do corpo de Mauss – que passa pela regulação dos afetos. Ao mesmo tempo, a capacidade de agir e se relacionar em sociedade está predicada nas potencialidades do corpo humano e em suas características próprias.4
Os afetos se padronizam em situações cotidianas através de práticas que os entrelaçam em significados, discursos e rotinas de ação. O choro na consulta médica coloca em movimento uma reordenação dos elementos da interação, trazendo à baila outros elementos que a princípio não estariam incluídos naquele contexto. Porém, a relação médico-paciente e a circulação padronizada dos afetos não podem ser reduzidas a uma situação em particular. Por exemplo, no caso do encontro entre médico e paciente, não é plausível entender o contexto “consulta médica” sem levar em conta a assimetria estruturada entre “médicos” e “pacientes” que, por sua vez, resulta de um longo processo social de construção de um saber expert, institucionalização e estabelecimento de papéis sociais reconhecidos.
Wetherell (2012, p. 79) usa o termo “sequências episódicas normativas” para se referir a essa peculiaridade da circulação dos afetos. Se é verdade que estados afetivos são articulados e padronizados em práticas, também é verdade que essas práticas não ocorrem em um vazio de relações sociais. Há uma ligação entre afetos e estrutura social, entendida tanto do ponto de vista normativo (regras e normas) quanto do ponto de vista de relações estruturadas (assimetrias e desigualdades). Evidentemente, as duas dimensões da estrutura não existem em separado, mas se conectam de várias maneiras. Para captar essa variabilidade e entender o teor estrutural da circulação dos afetos, volta-se para a teoria da subjetividade de Frantz Fanon.
O autor desenha os contornos de uma teoria afetiva da condição do sujeito negro. Visto que se encontra marcada como alvo de afetos negativos (raiva, medo, nojo) e que está suscetível a atos de violência simbólica e física em uma sociedade racista, a pessoa negra desenvolve sua percepção de si e sua experiência corporificada da própria vida em meio a “anomalias afetivas” (Fanon, 2008, p. 27). Fanon argumenta que o sujeito negro está fadado a receber os afetos indesejados das pessoas brancas, isto é, todos os afetos que esses tomam como negativos para si mesmos e projetam para fora. Em concomitância com uma ideologia racista, que define corpos negros ou como objetos de medo e raiva, ou como objetos de fetiches e “taras raciais”, a projeção dos afetos negativos produz sentimentos de “isolamento intolerável”, “desalojamento” e “extirpação” pois, ao mesmo tempo que é receptáculo para a violência do outro, o sujeito negro não encontra lugar para ter seus afetos reconhecidos adequadamente (Fanon, 2008, p. 106).
Essa “metabolização” de afetos negativos tem efeito no corpo e na subjetividade, além de potencialmente macular toda interação entre pessoas negras e brancas. Isso porque os sentimentos da pessoa em posição de desvantagem estrutural podem ser distorcidos, o choro pode ser visto como manipulação ou dissimulação, a raiva pode ser considerada injusta e imerecida, a alegria pode ser percebida como sinal de aceitação e resignação, ou mesmo desconsiderados totalmente. Fanon coloca sucintamente: “Eu acenava para o mundo e o mundo amputava meu entusiasmo” (Fanon, 2008, p. 107).
Em contextos de saúde-doença, encontram-se dinâmicas afetivas análogas na relação médico-paciente, ou na relação dos sujeitos com saberes e instituições biomédicas. Por exemplo, estudos da sociologia e antropologia da dor mostraram que a percepção e validação da dor de pacientes é influenciada por fatores como gênero, raça, etnia e status socioeconômico (Zborowski, 1979; Denny, 2018). Como demonstrou Bendelow (1993), ideias sobre a capacidade de “aguentar a dor” e, portanto, a necessidade de se queixar e buscar ajuda estão ligadas ao gênero, especialmente a uma noção de que o funcionamento reprodutivo e hormonal feminino equipa mulheres com uma capacidade natural de suportar dores.
Veena Das (2003; 2015) olhou para o sofrimento cotidiano de pessoas adoecidas em situação de pobreza, buscando entender como a presença de instituições hospitalares, estatais e organizações internacionais não necessariamente significa assistência. Mesmo com a possibilidade de serem atendidos em uma consulta médica, por exemplo, os sujeitos podem se encontrar diante de um olhar que continua “vigiando, mas sempre deixando de te reconhecer” (Das, 2003, p. 101) ou esbarrar nas dificuldades de comunicar a doença ou mesmo de reconhecer um sentimento de aflição ou perturbação como doença (Das, 2015, p. 29).
Fatores como raça, gênero e status socioeconômico afetam a circulação de afetos em contextos de saúde-doença pelo menos de duas maneiras. Primeiro, porque sujeitos são constituídos socialmente de maneira diferente e desigual. Um corpo categorizado como feminino é socializado, regulado, percebido e experimentado de maneira diferente do que um corpo categorizado como masculino, e o mesmo vale para um corpo branco e negro. Ademais, essas diferentes coordenadas se cruzam em intersecções de raça, classe e gênero. Tal constituição dos corpos não se limita somente às percepções dos indivíduos sobre um certo “tipo” de pessoa ou outro, mas se imiscui na própria experiência de si, como Fanon argumenta ao apontar sentimentos de “extirpação” e “desalojamento”.
Veena Das argumenta que a “experiência concreta da doença” e “noções de normalidade” tomam forma em meio a relações sociais (Das, 2015, p. 39), logo, é possível que uma pessoa idosa vivendo em situação de pobreza extrema entenda uma experiência de dor nas costas, por exemplo, diferentemente do que uma pessoa jovem de classe média, com acesso fácil à serviços de saúde, laboratórios e consultas. Segundo, porque a expressão de sentimentos e afetos em contextos de saúde-doença é regido por certas normas. Aqui, o conceito de “regras de sentimento” desenvolvido por Arlie Russell Hochschild (1983) pode ser útil, além de prover uma ponte entre a questão da ordem/estrutura e a questão afeto e discurso.
Hochschild investigou o comportamento de comissárias de bordo nos Estados Unidos, especialmente nas interações com passageiros em situações problemáticas. De acordo com diretrizes das companhias aéreas, essas trabalhadoras deveriam manter o tempo todo, independente do comportamento de seus clientes, uma atitude positiva, bem-humorada e alegre. Esse “trabalho emocional”, posto que os produtos da atividade eram estados emocionais no trabalhador e no consumidor, convertidos em valor para a empresa (bom serviço e boa reputação), era regido por certas normas ou regras de sentimento que prescreviam formas de comportamento adequadas. Que tipo de emoção deve ser performada, como lidar com as emoções dos clientes, como gerar estados emocionais “adequados” ou “positivos”, todas essas questões formam as regras de sentimento das comissárias de bordo.
A obra de Hochschild serve de base para a argumentação de Catherine Theodosius (2008) em seu estudo sobre o trabalho emocional na enfermagem. Levando adiante o argumento de sua predecessora, Theodosius afirma que tanto a identidade profissional das enfermeiras, em prestar seu serviço de modo abnegado, demonstrar carinho e tato, ouvir as queixas dos pacientes, lidar com suas emoções, entre outros, quanto sua identidade pessoal, isto é, suas percepções de si enquanto pessoas, se modelam de acordo com as interações sociais regradas.
Emoções e suas normas reguladoras desempenham um papel de formação das relações de cuidado profissional, bem como na formação do self das enfermeiras, na medida em que a performance cotidiana da profissão se internaliza e passa a integrar os recessos de sua intimidade. Dito de outro modo, há uma dimensão normativa muito presente na circulação dos afetos, particularmente em relações de cuidado em saúde, que não pode ser ignorada.
Em suma, por mais espontâneos e cheios de potencial que os afetos possam ser, e de fato muitas vezes o são, para compreendê-los em contextos de saúde-doença é necessário considerar seus aspectos estruturados em conjunto com seu potencial transformativo. Uma análise complexa dos afetos pode ser o caminho para a sociologia da saúde investigar os determinantes sociais de saúde-doença em âmbito macro, sem perder de vista a textura cotidiana das experiências de adoecimento. Isso porque variáveis como raça, classe e gênero se concretizam nas interações entre médicos, pacientes, famílias e demais atores sociais, entre outras maneiras, pela via das emoções.
A raiva de um paciente diante de um médico que parece ignorá-lo, a exaustão dos profissionais de saúde que trabalham em sistemas públicos subfinanciados, as experiências de sofrimento que parecem cruzar as fronteiras do biológico e do biomédico, todas essas se encontram na encruzilhada da dimensão afetiva, em que corpos, estruturas e discursos se compõem mutuamente.
CAMINHOS METODOLÓGICOS – SER AFETADO E PRESTAR ATENÇÃO
Nos estudos sociológicos e antropológicos do processo saúde-doença, vulnerabilidades físicas e sociais se imbricam de maneiras complexas e variadas, pondo em movimento não somente tecnologias médicas, recursos, saberes e técnicas, mas também emoções e sensações. Como se pode apreender, compreender, explicar e descrever a circulação dos afetos em contextos marcados pelo processo saúde-doença?
Voltando ao corpo, o conceito de “modo somático de atenção” (Csordas, 2002) dá a primeira pista. Thomas Csordas interessouse pela interpelação entre corpo, prática e percepção, retomando a fenomenologia de Merleau-Ponty e a sociologia praxiológica de Bourdieu para avançar sua própria teoria dos modos corpóreos de apreensão da realidade. Juntando a “indeterminação existencial” da filosofia de Merleau-Ponty com a “indeterminação lógica” da teoria do habitus em Bourdieu, Csordas articula afetos, corpos e significados em um meio intersubjetivo: “Porque o corpo e a consciência são um, intersubjetividade é também uma co-presença; a emoção do outro é imediata porque é apreendida pré-objetivamente, e é familiar na medida em que compartilhamos o mesmo habitus” (Csordas, 2002, p. 257). O habitus mencionado não é unicamente o princípio estruturado e estruturante de reprodução das práticas ordenadas, como definiu Bourdieu, mas é também o resultado do compartilhamento de modos de estar no mundo que não necessariamente podem ser reduzidos a posições em um ou outro campo social. Apreendem-se os estados corporais dos outros, e aí estão incluídos os afetos, através dos modos somáticos de atenção, isto é, de “modos culturalmente elaborados de prestar atenção no e com o corpo em ambientes que incluem a presença incorporada dos outros (Csordas, 2002, p. 244).
Em termos metodológicos, isso significa considerar que o/a pesquisador/a tem sua estrutura perceptiva moldada culturalmente antes mesmo de adentrar qualquer situação de pesquisa. Ao mesmo tempo, os demais, os participantes na interação operam com modos somáticos de atenção próprios, havendo certa sobreposição e certa especificidade na articulação entre modos distintos. Em algumas ocasiões, percebe-se um olhar, uma modulação de voz ou uma mudança de postura corporal que outros não percebem, enquanto em outras, deixa-se de notar indícios corporais-afetivos que outros captaram. É importante a ressalva: falar de modos culturalmente elaborados de atenção não significa reduzir a percepção do/a observador/a à sua posição social. Já é um truísmo sociológico afirmar que a posição social de um indivíduo afeta sua maneira de ver o mundo e os outros. No entanto, já é igualmente comum a afirmação de que há espaço de manobra e que os atores reflexivamente trabalham sobre sua percepção, transformam-se e ao mesmo tempo transformam seu ambiente.
Ian Burkitt localiza os “elementos afetivos” no domínio da “consciência prática”, evocando a noção presente em Bourdieu, Giddens, entre outros sociólogos da praxiologia. O autor argumenta que essa consciência, espaço habitual e pré-reflexivo do cotidiano em sociedade, “é guiada mais pelo sentimento de suas circunstâncias cambiantes”, apontando para a dimensão afetiva como espécie de termômetro para o sujeito em relação ao seu entorno (Burkitt, 2002, p. 154).
Semelhante ao habitus bourdiesiano e à consciência prática giddensiana, a dimensão afetiva é costumeiramente irrefletida, mas potencialmente objetivável. A depender da situação de circulação afetiva da qual faz parte, o sujeito pode ou não tomar seus sentimentos e os dos outros de forma reflexiva, isto é, torná--los em objetos para reflexão e descrição explícita, problematizando-os e nomeando-os. Tal capacidade não é privilégio do/a pesquisador/a, no entanto, este/a utiliza-a de maneira deliberada visando um fim específico, qual seja, a execução de uma descrição densa e complexa da circulação dos afetos no contexto de uma pesquisa.
Para chegar a uma descrição complexa e densa da circulação dos afetos, o observador/a deve estar consciente de sua participação no contexto em que a realidade descrita ganha forma. Em outras palavras, o estado de “ser afetado”, como descrito por Favret-Saada (2005), diz respeito não aos afetos dos outros que são percebidos por quem observa, mas à construção relacional dos estados afetivos concomitantemente à observação. Assim, observar e descrever afetos é um ato de objetivação, não somente dos estados e práticas dos observados, mas também dos observadores. Quaisquer diferenças entre observados e observadores no que tange à descrição e experiência da circulação dos afetos, podem ser entendidas como funções do grau de engajamento e de reflexividade desses sujeitos posicionados distintamente.
Dotado/a de um modo somático de atenção próprio, elaborado a partir de um interesse específico de pesquisa, o/a pesquisador/a se engaja com a circulação afetiva de um ponto de vista específico, caracterizado pelo intento de analisar estados afetivos em termos de relações sociais, captando assim dimensões da experiência dos sujeitos que estes não percebem ou não elaboram conscientemente. Porque tem esse objetivo, o/a observador/a estará mais propenso a tomar reflexivamente seus próprios estados afetivos (a medida em que é afetado), enquanto parte do objeto analisado, isto é, como estados emergentes da circulação de afetos. Logo, trata-se de prestar atenção às vicissitudes da circulação afetiva situada, o que significa reconhecer cada estado afetivo como parte de uma composição mútua, embora nem sempre harmônica ou equânime, da realidade social entre sujeitos afetivamente motivados.
Para corroborar esse ponto, vale retomar os conceitos de “atenção instrumental” e “atenção benéfica” nos cuidados em saúde, propostos por Klaver e Baart (2011). Enquanto a primeira diz respeito a atitude de escuta e coleta de informações com objetivo de classificação, controle e diagnóstico, a segunda se refere a atitude de escuta para considerar o outro em suas particularidades, sem se apressar para categorizá-lo de maneira definitiva. A diferença seria fictícia se não pudesse ser conectada a dois imperativos éticos e a duas operações metodológicas distintas. Em um registro de atenção instrumental, o objetivo é classificar para controlar, isto é, categorizar certos estados corporais de modo a colocá-los sob domínio de um tipo específico de saber expert. Tal operação não seria necessariamente negativa se não implicasse, concomitantemente, em uma operação metodológica de redução. O estado emocional, corporal e social do indivíduo é reduzido, instrumentalmente, a uma de suas facetas para que se adeque a um conjunto de técnicas e saberes pré-definidos. Mais uma vez, tal redução analítica pode operar para o “bem” dos envolvidos. Em um registro de atenção benéfica, a operação de redução analítica é adiada, pois prioriza-se a consideração dos estados corporais, afetivos e sociais em sua multidimensionalidade. Qualquer redução ou simplificação só ocorre se todos os participantes da interação estiverem de acordo acerca de seu potencial benefício.
Não obstante, a operação analítica em sua conexão com o princípio ético, falar de atenção não significa falar de uma percepção puramente cognitiva. Afetos são estados corporais cheios de significado e, como tais, podem ser articulados discursivamente pelos atores – “fiquei irritada”, “isso me deixou triste porque...” – como podem permanecer no nível não verbal e implícito. Em trabalho de campo, em um serviço de assistência domiciliar paliativa de um hospital público do Rio de Janeiro, dedicado a pacientes em cuidados paliativos ou em processo de desospitalização, encontram-se expressões explícitas ou implícitas de afetos em muitas visitas. A diferença entre comunicação verbal e explícita de um lado e sinais não-verbais ou não articulados explicitamente como postura corporal, tom de voz, expressões faciais, deve ser reconhecida. Porém, os dois tipos de “prática afetiva” (Wetherell, 2012) devem ser analisadas como parte de uma mesma circulação dos afetos situada.
Em decorrência da complexidade da questão da comunicabilidade dos afetos – análoga ao dilema da comunicabilidade do sofrimento5 – opta-se pela formulação de Lillrank (2002): o momento de entrevista (ou da etnografia) é uma construção conjunta e intersubjetiva de estados afetivos, nos quais qualquer que seja a “verdade” das emoções presentes é modulada pela circulação. Desse modo, não se trata de buscar o “verdadeiro” estado afetivo dos pacientes, familiares e profissionais, seja a partir ou a despeito do que estes comuniquem explicitamente. Trata-se de estar atento/atenta à circulação de afetos que passa tanto pela comunicação explícita quanto pela implícita. O que torna possível a escrita reflexiva e analítica sobre a circulação de afetos é sua ancoragem (momentânea) em práticas afetivas, sejam essas verbais ou não.
O que a tensão entre comunicação explícita e implícita dos afetos indica é o complexo padrão interacional que se estabelece nos encontros entre profissionais de saúde, familiares e pacientes. Portanto, o que é dito explicitamente não é “menos real” do que permanece implícito. Tratam-se de duas formas de circulação distintas, com mediações, objetivos e resultados diferentes. A comunicação explícita dos afetos está ligada ao processo de feitura de sentido, estabelecimento de objetivos e coordenação prática dos problemas cotidianos, enquanto a comunicação implícita diz respeito às dimensões da afetividade corpórea cuja expressão nem sempre é possível, pela impossibilidade de articular claramente um estado somático ou pela pressão de injunções normativas, que definem quem pode falar sobre o que em qual contexto – ou desejada – pela escolha de não expressar, seja em decorrência de “regras de sentimento” ou por qualquer outro motivo. Mais uma vez, os motivos para manter um estado afetivo implícito ou escondido podem ser conhecidos mediante explicitação direta ou deduzidos pelo contexto interacional. No entanto, o/a pesquisador/a corre o risco de impor seus afetos aos dos outros sujeitos, se escolher o segundo método.
Destarte, a análise conversacional focada em como atividades de diálogo são organizadas, juntamente à observação participante, mostraram-se procedimentos de análise frutíferos. A análise conversacional inspirada pela etnometodologia permitiu identificar sequências padronizadas e, em consequência, silêncios e lacunas. Pela investigação minuciosa das conversas, a dimensão discursiva e intersubjetiva da afetividade pode ser captada, pois, como ensinou a etnometodologia inspirada em Garfinkel, o prático e o moral se entrelaçam enquanto se constituem (Jayyusi, 1991). Juntos e imbricados nas dimensões prática, o que se pode fazer – e moral – o que se deve fazer – estão os afetos. Isso porque a percepção do mundo e a significação desse, bem como a seleção dos elementos que se tomam como relevantes para uma dada situação, são constantemente informadas pelo envolvimento afetivo com esse (Merleau-Ponty, 2012, p. 26).
Parte-se então da implicação mútua da pessoa na posição de observadora e de seus interlocutores na pesquisa empírica. Somada a isso se encontra a natureza peculiar das pesquisas sobre o processo saúde-doença, qual seja, o misto de vulnerabilidades sociais e corpóreas que caracteriza situações de “sofrimento social” (Kleinman et al., 1997). Semelhante ao problema teórico-metodológico das emoções em contextos de saúde-doença, a sociologia e antropologia do sofrimento deve lidar com a difícil tarefa de articular discursivamente os sentimentos de aflição, angústia e dor do outro. Enquanto alguns argumentam que a tentativa de conceitualizar o sofrimento da parte dos cientistas sociais pode intensificar o problema do sofrimento, mesmo que não intencionalmente, outros acreditam que pesquisadores/as têm o dever de reportar, articular e publicizar as vozes dos que sofrem (Wilkinson, 2004, p. 117).
Essa discordância se fundamenta em outra: o sofrimento é uma experiência irredutivelmente íntima, interna e incomunicável no limite, ou uma experiência socialmente construída e, portanto, passível de articulação discursiva? Como argumentado acerca do afeto, não há motivo para considerar essas duas opções como mutuamente excludentes. De fato, a experiência do sofrimento, bem como da alegria, do amor, do carinho e da esperança são sentidas no âmago daqueles que sentem, mas são comunicáveis, compreensíveis e explicáveis, pois, circulam no “espaço entre” os corpos.
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1
Estes são destacados por Collyer e Scambler (2015, p. 5) em seu mapeamento do campo da sociologia da saúde. A lista não pretende ser exaustiva, mas ilustrativa do potencial do enquadramento teórico-metodológico proposto neste artigo.
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2
Tal dualidade é descrita por Merleau-Ponty (1968; 2012) pelo termo “reversibilidade” em sua teoria fenomenológica da corporalidade. O afeto é a dimensão na qual a passividade do corpo, sua capacidade de ser afetado pelo entorno, pode se transformar em atividade, em sua capacidade de afetar os outros e os objetos, pois a capacidade do corpo de agir está predicada em sua abertura prática e perceptual ao mundo (Merleau-Ponty, 2012, p. 425).
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3
Notadamente, como o próprio autor argumenta, a medicina da família parece tomar como central uma distinção entre a prática médica “humanizada” de um lado, e uma prática médica “tradicional” de outro. Enquanto a primeira pressuporia o paciente como indivíduo multidimensional, dotado de uma história de vida e de questões não redutíveis ao biológico, a segunda reduziria o paciente a sua doença, ignorando problemas sociais e emocionais, por exemplo (Bonet, 1999).
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4
Isso não significa que a vida em sociedade só é possível para corpos definidos como “normais”, isto é, sem quaisquer diferenças cognitivas ou físicas de capacidade. Antes, os disability studies mostram como sociedades se constroem com base em noções restritivas de corporalidade que excluem ou invisibilizam certos sujeitos lidos como “deficientes” ou menos capazes, invalidando suas vivências corporais ricas (Von der Weid, 2015).
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5
Ver Frank (2001) e Wilkinson (2001) para perspectivas diferentes sobre a questão.
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Editor Chefe:
Renato Francisquini Teixeira
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
23 Maio 2024 -
Aceito
30 Jan 2025
