Open-access SENTIDOS E SINGULARIDADES DOS NOVOS COLETIVOS DE AÇÃO

SIGNIFICADOS Y SINGULARIDADES DE LOS NUEVOS COLECTIVOS DE ACCIÓN

SENSES AND SINGULARITIES OF THE NEW ACTION COLLECTIVES

Resumos

O artigo examina formas recentes de ativismo cuja designação de coletivos tem sido assimilada pelos estudos acadêmicos, conformando assim um novo campo de pesquisa. Com base em revisões bibliográficas, análises de documentos e pesquisas de campo em vários países, o artigo sintetiza o processo de emergência dessas iniciativas e propõe uma delimitação conceitual que os diferencia de outras formas de mobilização social. A seguir, trata de algumas características inovadoras dos coletivos, com ênfase na superação de clivagens correntes em movimentos sociais anteriores, como entre demandas materiais e imateriais, individualidade e coletividade, vida privada e compromisso público, entre outras. Conclui que os coletivos constituem uma resposta inovadora ao cenário atual do capitalismo, configurando um novo padrão de ativismo e de mobilização social.

Ativismo; Autonomia; Coletivos; Globalização; Movimentos sociais


El artículo examina formas recientes de activismo cuya denominación de colectivos ha sido asimilada por los estudios académicos, configurando así un nuevo campo de investigación. A partir de revisiones bibliográficas, análisis documentales e investigaciones de campo en varios países, el artículo sintetiza el proceso de emergencia de estas iniciativas y propone una delimitación conceptual que las distingue de otras formas de movilización social. A continuación, se abordan algunas características innovadoras de los colectivos, con énfasis en la superación de escisiones comunes a movimientos sociales anteriores, ya sea entre las demandas materiales e inmateriales, la individualidad y la colectividad, la vida privada y el compromiso público, entre otras. Se concluye que los colectivos constituyen una respuesta innovadora en el escenario actual del capitalismo, configurando un nuevo modelo de activismo y movilización social.

Activismo; Autonomía; Colectivo; Globalización; Movimientos sociales


The article examines recent forms of activism whose collective designation has been employed by academic studies, giving rise to a new research field. Based on bibliographic reviews, document analysis and fieldwork in several countries, the article summarizes the emergency process of these initiatives and proposes a conceptual delimitation that differentiates them from social movements. Next, it deals with some innovative traits of the collectives, with emphasis on overcoming common cleavages in previous social movements, such as those between material and immaterial demands, individuality and collectivity, private life and public commitment, among others. The article concludes that collectives constitute an innovative response to the current scenario of capitalism, configuring a new pattern of activism and social mobilization.

Activism; Autonomy; Collectives; Globalization; Social movements


Já faz tempo que sonhamos novos mundos... Quando decidimos abrir a nossa casa, o que queríamos mesmo era abrir a nossa alma, corpo, mente e coração. Queríamos comunicar com a vida, que o que está lá fora, do outro lado dos nossos muros, impacta o que somos, ainda que mantenhamos as portas fechadas. Queríamos experimentar a confiança em nós e nos seres e nos reconectar com aquela parte de nós que ainda se importa, de forma pura, terna, vulnerável e verdadeira.

Apenas entrem e sejam bem-vindes!

O Mundo lá de Casa

Comunidade Urbana, Cozinha Criativa, Meditação

INTRODUÇÃO

Na última década, o termo coletivo se popularizou entre atores sociais engajados em organizações com propósitos muito diversos, sendo também paulatinamente adotado pelos estudos sobre ativismos e formas de mobilização (Perez; Silva Filho, 2017; Melo, 2021; Thibes et al., 2020; Gohn, 2022). Idealizados e instituídos em comum, os coletivos atuam em função de necessidades e aspirações de seus integrantes, ao mesmo tempo em que buscam incidir em questões de interesse público, como direitos humanos e sustentabilidade ambiental. Ao criarem espaços de atuação relativamente autônomos, eles revitalizam valores e práticas de autogestão comunal. E, à medida que se inserem em movimentos de contraposição à ordem vigente, promovem novos ativismos (Gaiger, 2025). Constituem-se como ações de resistência e de construção de respostas alternativas frente ao cenário atual imposto pelo capitalismo global, cuja lógica engendra crises sistêmicas e flagelos sociais, incessantemente (Harvey, 2011; Sassen, 2016; 2022).

Para efeitos de ilustração inicial, um caso emblemático é o Platau, na cidade de Bordeaux, França. Trata-se de uma iniciativa cidadã do bairro Bacalan Claveau, empenhada na valorização dos laços comunitários e comprometida com a instauração de novos padrões de sociabilidade e novos circuitos de economia, com vistas à recuperação ambiental, social e econômica da região.1 Apresenta-se como um coletivo que se propõe à reconexão com o mundo vivo e camponês através de ações como a proteção da fauna silvestre e a conservação da flora circundante do Rio Garona, que cruza a cidade. Suas frentes de atuação procuram reverter os poderosos fatores históricos de degradação e ruína da região, desde a segunda guerra mundial e a ocupação nazista: declínio do polo industrial vicejante décadas atrás, degradação urbana, desvalorização imobiliária, desemprego e marginalidade.

Os coletivos vêm multiplicando-se em inúmeras paragens e convertendo-se em objeto de estudos.2 Esse artigo tem por objetivo examinar algumas características singulares dessas formas de ativismo, inovadoras e promissoras em certos sentidos. Sua base empírica provém de um projeto de pesquisa internacional desenvolvido em doze países, durante quatro anos (2020/2024), por meio de revisão bibliográfica3 sobre essas iniciativas, análise documental, visitas de campo e estudos de caso em seis coletivos da região de Porto Alegre (Brasil). Seu propósito foi identificar, descrever e comparar os coletivos, sobretudo quanto aos fatores de impulsão e de dinamização que os levam a multiplicar-se e a perseverar.

Um conjunto de 120 coletivos compõe o corpus empírico principal da pesquisa.4 Para esse artigo, utilizou-se o material reunido sobre Bélgica, Brasil, Espanha, França, Itália e Japão. Fontes secundárias e novas pesquisas de campo ampliaram posteriormente esse escopo à Alemanha, Argentina, Chile, Equador, Estados Unidos e Portugal. Em alguns desses países, estudos anteriores nossos sobre formas de ação coletiva motivadas pela construção de alternativas já haviam propiciado dados valiosos para a compreensão da emergência, dos propósitos e da dinâmica peculiar dos coletivos.5

Com apoio em vários bancos de informação disponíveis na internet, os dados e estudos encontrados serviram à elaboração de fichas descritivas e ao preenchimento de planilhas de dados e indicadores (tais como ano de início, número e perfil social dos membros, forma jurídica, foco social, ações tangíveis, método decisório e inserção em movimentos) com vistas à caracterização dos coletivos, a procedimentos classificatórios e a análises comparativas.6

Num primeiro momento, o artigo aborda em grandes linhas o processo de emergência dos coletivos. Entre outros aspectos, ver-se-á que eles refletem uma concomitância de práticas sociais que guardam suas especificidades e ao mesmo tempo se interseccionam, por conta de processos que vieram introduzindo um estilo de ativismo ao mesmo tempo focalizado e múltiplo, desde a virada dos anos 2000. À luz dessas considerações, será feita uma abordagem conceitual do termo coletivo, posto que ele tem sido usualmente incorporado pelos estudos a partir da práxis social dos atores, nem sempre com um trabalho posterior de definição para fins analíticos ou de discussão teórica.

A articulação entre diferentes dimensões e planos de ação, própria dos coletivos, será objeto das seções seguintes do artigo. Sem esgotar o assunto, alguns aspectos salientes da dinâmica e da atuação dos coletivos serão examinados, como a integração entre individualidade e coletividade, entre vida privada e compromisso público ou, ainda, a incorporação de demandas materiais e imaterias, classistas e supraclassistas. A conjunção entre a defesa da vida humana e a crítica ao antropocentrismo, bem como entre a crítica ao sistema e a criação de alternativas nos interstícios do sistema, igualmente terá destaque. O texto também buscará demonstrar que a noção de autonomia perpassa e orienta os coletivos em vários sentidos como premissa e aspiração dessas formas de ativismo, o que explica o alto valor que atribuem à criação de espaços próprios de atuação e o seu posicionamento crítico face à institucionalidade política, ao Estado, ou em relação aos grandes movimentos altermundialistas que, em certa medida, os precederam e impulsionaram, especialmente na virada dos anos 2010.

As considerações finais retomarão sinteticamente certas ideias centrais do artigo, no sentido de frisar algumas singularidades dos coletivos e entendê-las como parte de um contexto maior, no qual movimentos de resistência e de proposição de alternativas ja percorreram uma longa trajetória.

OS COLETIVOS E SEU CONTEXTO DE EMERGÊNCIA

Do ponto de vista dos atores sociais envolvidos, o termo coletivo evoca uma característica central a seus olhos, identificadora dessas formas de organização e atuação: o fato de constituírem-se a partir da iniciativa e graças à dedicação contínua de um grupo de indivíduos que se conhecem e interagem pessoalmente, compartilhando a vida cotidiana e levando à frente um projeto comum, de maneira democrática e participativa.7 Quer permaneçam informais ou se registrem como pequenas empresas, associações ou cooperativas (caso mais frequente), os coletivos se orientam por princípios igualitários e inclinam-se a colocar em prática modelos de autogestão. Constituem grupos de pessoas aderentes por vontade própria, não por filiação ou representação de setores ou organizações – em regra, pessoas comprometidas umas com as outras, empenhadas em realizar um propósito idealizado coletivamente.

O que chama a atenção na última década não é tanto a presença de iniciativas nesses moldes, mas sim a sua profusão e sua visibilidade crescente, o que favoreceu o seu reconhecimento mútuo e gerou uma tendência a se irmanarem nas causas que defendem, por meio de conexões flexíveis que resguardam a autonomia de cada iniciativa. Regra geral, elas não almejam crescer ou formar grandes movimentos; almejam irradiar-se por ressonância e por replicações sucessivas, de acordo com as motivações e o livre-arbítrio dos ativistas envolvidos em cada iniciativa particular.

A despeito dessas circunstâncias variáveis e de eventuais idiossincrasias, o que constitui mais um traço marcante dos coletivos, notório nos últimos anos, é o fato de conjugarem um campo de atuação local direta, em que buscam desenvolver alternativas concretas, efetivas e inovadoras, com campos de militância atinentes ao interesse geral, nos quais se travam em nossos dias embates e disputas pela agenda pública. Uma ecovila desenvolve práticas de permacultura ao mesmo tempo em que se posiciona e procura intervir, com estratégias de educação, denúncias e presença em eventos, nas grandes questões dilemáticas do aquecimento climático, do consumismo e da insustentabilidade ambiental. Situações análogas se observam nos coletivos ecofeministas, de produção orgânica ou de comércio justo, como também nas comunidades hackers, nos coletivos de cultura e naqueles de mídia alternativa.

A multiplicação dos coletivos é observável principalmente nos últimos quinze anos. Por vezes, suas raízes datam de mais tempo, havendo iniciativas pioneiras, já autodenominadas de coletivos, desde os anos 1970, com atuação contínua em temas como artes, cultura, comércio local e consumo consciente. Até recentemente, coletivos e organizações similares foram sendo compreendidos e promovidos por meio de abordagens e designações variadas, sem menções específicas ao termo coletivo, fato que os deixou desapercebidos no interior de campos sociopolíticos e acadêmicos afins, tais como a economia comunitária, a economia solidária, a economia colaborativa ou as novas comunalidades. No Brasil, particularmente, os coletivos entraram em cena nos anos 1990, ficando relativamente isolados ou sendo identificados com os movimentos sociais com pautas correlatas. Com frequência, eles foram situados no campo das experiências de economia solidária, cuja expansão e institucionalização estava em seu momento de auge.8 Dois mapeamentos nacionais da economia solidária realizados no Brasil somaram mais de 35 mil empreendimentos solidários, sendo de notar que muitos deles seguiram as pegadas de organizações mais reluzentes décadas atrás (Gaiger et al., 2014). Vários países dispõem de estatísticas, mesmo parciais, evidenciando o peso considerável de cooperativas e outras formas de associação de trabalhadores, consumidores e usuários (Bouchard; Rousselière, 2015), dentre elas iniciativas similares aos coletivos.9 A sua pujança também se verificou nos Estados Unidos, caso em que tanto cooperativas quanto iniciativas de base comunitária convergiram para lograr ganhos de escala e constituir elos iniciais de ecossistemas locais ou regionais (Davis et al., 2014; Gaiger, 2017).

Como dissemos, nos últimos anos o termo coletivo tornou-se usual e aparentemente preferível entre os ativistas, refletindo a disseminação dessas iniciativas e a formação de um certo consenso quanto a estarem promovendo um novo estilo de ação, com vistas a si próprios e à sociedade (Marques; Marx, 2020). Como salienta a literatura (Melo, 2021; Teixeira, 2022; Gaiger, 2020), as causas a que se dedicam os coletivos são diversas, assim como suas iniciativas: cultura e espirituallidade (comunidades místicas), proteção da natureza e não especismos (restaurantes veganos), sustentabilidade social e ambiental (ecovilas), trabalho e serviços (cooperativas autogestionárias), territórios e bens comuns (comitês de bairro), alternativas de informação (comunidades pró-sofware livre), equidade de gênero e defesa de minorias (círculos de mulheres) ou, ainda, instituições políticas (mandatos coletivos), entre outros.

Essa diversidade é típica do contexto das últimas décadas, marcadas pelo surgimento de lutas contra a globalização, processo que se desenrolou sob a égide do neoliberalismo e a seguir, como ficou patente em 2008, no contexto de fracasso desse modelo, de sua crise e suas pesadas consequências. Movimentos altermundialistas de contraposição foram adquirindo escala global, ao mesmo tempo em que, com êxito variável, se buscou valorizar e fazer convergir uma infinidade de pautas, como se viu nas edições do Fórum Social Mundial. Na virada de 2010, não obstante as grandes mobilizações daqueles anos, os movimentos altermundialistas entram gradativamente em um estado de irresolução (Pleyers, 2010), de certa hesitação e impotência diante das consequências regressivas das crises, econômicas e políticas, contra as quais os repertórios de ação conhecidos já não surtiam efeito, a que se somou um declínio de várias organizações alter-globalistas. Assevera com ironia o Comitê Invisível (2018) que as mobilizações passaram a ter como desenlace a entrega das instituições e do poder aos cuidados de outra fração dos mesmos atores políticos antes contestados, impotentes ou igualmente comprometidos com os interesses maiores do capitalismo global.

O que se passa a seguir nos é descrito por Geoffrey Pleyers (2018) como uma passagem ao alterativismo: boa parte dos ativistas ainda persistentes passa a direcionar-se mais à organização e execução por meios próprios de formas de participação e inovação local. Embora sigam presentes em momentos de levantes e grandes manifestações, as ações políticas de escala tenderam a ficar em segundo plano. Tais momentos de marchas e protestos representam agora a ponta do iceberg (Pleyers, 2018), enquanto ganha importância a experiência de formulação e posta em prática de alternativas, entendidas e vividas como uma experimentação, um laboratório, e ao mesmo tempo como uma vivência formativa, na qual o aprendizado e a transformação pessoal do ativista, na direção dos valores e ideais defendidos, passa a ser vital.

O alterativismo corresponderia à geração mais recente de atores engajados na transformação social, sejam eles jovens, mulheres feministas, pessoas envolvidas em questões identitárias, ecologistas ou militantes dos direitos humanos. Sua atuação estrutura-se em redes múltiplas e em engajamentos individuais, mais do que em organizações militantes. A entrada em cena dos coletivos refletiria esse ambiente, no qual a experiência de construir soluções contra ou fora do sistema, com seus reflexos na subjetividade do ativista, vai ganhando centralidade. Mais precisamente, os coletivos se inscrevem numa das vias abertas pelo alterativismo, qual seja a da subjetividade (Pleyers, 2010), com as caraterísticas antes mencionadas e, ademais, com uma preferência por criar e atuar em organizações autônomas, horizontais, e por processos de transformação participativos, de baixo para cima.10 Pode-se falar de uma nova cultura política, para a qual a transformação não se opera revolucionariamente, mas por mutações gradativas decorrentes de ações intersticiais que geram ressonância e multiplicam-se sucessivamente. Acredita-se numa lógica de enxame para difundir propósitos e inovações, de sorte que o trabalho a ser feito, de base, é favorecido em grupos restritos, evitando relações de poder e fazendo do local um terreno essencial de atuação.

Os movimentos sociais não se converteram em coletivos ou foram substituídos por eles. Uns e outros coexistem e se complementam. Os coletivos ecofeministas, por exemplo, estão em regra conectados com as pautas dos movimentos feministas, envolvem-se em suas mobilizações, contam com eles para ter visibilidade ou como suporte humano, material e político (Teixeira, 2022). Os movimentos, por sua vez, materializam suas propostas através das ações de resistência ou de criação alternativa, própria dos coletivos (Richen, 2015; Martins, 2020). Depoimentos colhidos na Espanha apontam que alguns coletivos nasceram da vontade de experimentar novos caminhos por meio de projetos efetivos, demonstrativos e agregadores, pese estarem limitados à sua atuação local, num momento em que as grandes mobilizações de ruas e praças de 2011, com o bordão Não somos mercadorias nas mãos de políticos e banqueiros, não demonstravam força suficiente para garantir ou aprofundar suas conquistas diante de uma institucionalidade política que se recuperava dos abalos sofridos e retomava as rédeas da situação. Os coletivos em questão, dedicados ao teatro, às artes e à gastronomia orgânica e vegetariana, permaneceram estreitamente vinculados às pautas e iniciativas mais gerais relacionadas à cultura, ao ecologismo, ao feminismo e ao cooperativismo solidário.

Os casos recém citados ilustram o tipo de coletivo focalizado na continuação desse artigo, em parte distintos do tipo talvez mais conhecido, qual seja os coletivos políticos (Faria, 2020) que equivalem a núcleos ou células de intervenção na política, a exemplo daqueles que promovem e dão respaldo aos mandatos coletivos em câmaras e assembleias legislativas. A modalidade de atuação tematizada nesse artigo diz respeito às organizações coletivas que se autogovernam e buscam, em alguma medida, dar conta das necessidades e aspirações da vida comum, nos três sentidos da palavra: comum por serem próprias da vida cotidiana (e não de efemérides ou situações extraordinárias), por serem alguma coisa partilhada coletivamente (e não uma causa particular ou externa) e por se tratar do protagonismo da gente comum (e não apenas de militantes ou líderes altruístas). Menos midiáticos e momentosos, esses coletivos atuam no longo prazo, preocupam-se em viabilizar-se e sustentar-se, de modo que sua atuação redunde em alternativas consistentes, capazes de escapar e se contrapor a variadas formas de dominação, expropriação, exploração e opressão.

Sem ficarem alheios aos grandes temas em debate na sociedade, os coletivos de auto-organização da vida comum são possívelmente aqueles que mais se notabilizam pela construção ou preservação de experiências alternativas em espaços reservados de autonomia, seja um território geográfico, seja uma cooperativa ou um empreendimento socioeconômico, seja um círculo itinerante de encontros e atividades, seja ainda uma plataforma virtual. Como destacou Raúl Zibechi em relação ao cenário ativista da virada do século, nesses espaços relativamente autônomos, de liberdade e criatividade, se dá curso à existência, se desenvolve uma produção de sentidos vitais, uma produção da vida material, social e simbólica (Zibechi, 2007). A primazia é dada às questões da vida cotidiana. Por isso, ao contrário dos movimentos sociais dedicados a promover ações pontuais ou sazonais (como campanhas, protestos e negociações salariais), ou de mobilizações de massa episódicas, como levantes e insurreições, esses coletivos se caracterizam por ações contínuas e permanentes.

Novidades particularmente interessantes são perceptíveis nesses coletivos quanto ao fato de que evitam ou superam clivagens e separações entre causas e planos de ação, ao contrário do padrão de ativismo outrora comum nos movimentos sociais. Esse assunto será tratado nas próximas seções, nas quais nossos argumentos serão ilustrados com descrições sumárias de coletivos pesquisados que representam situações emblemáticas.11

ATIVISMOS ALÉM DAS CLASSES SOCIAIS

Considerando em particular a América Latina, Raúl Zibechi (2007) estabelece algumas diferenças entre os movimentos sociais típicos dos anos 1970-80 e as mobilizações posteriores, a partir dos anos 1990. Para ele, houve uma série de transições: de movimentos de categorias profissionais (de classe em sentido estrito, ademais majoritariamente masculinos), a movimentos de periferias urbanas e rurais, protagonizados por mulheres e jovens; de lutas por questões salariais e outras, vinculadas ao mundo do trabalho, a questões da vida cotidiana, ligadas a uma multiplicidade de demandas – em outras palavras, da esfera da produção àquela da reprodução social; de lutas direcionadas ao patronato e ao Estado, a lutas de resistência local e de construção ou defesa de alternativas concretas, de modos de vida de tipo comunitário, de base territorial etc.

Essas evoluções refletem-se nos coletivos. Eles possuem um caráter não estritamente classista, mas interclassista, associável à “nova classe global de desfavorecidos” que, para Saskia Sassen, deveria ser entendida, sobretudo, como uma “nova força social emergente” (Sassen, 2010, p. 152-157). Suas pautas respondem a interesses classistas e supraclassistas, ao conjugarem indivíduos variavelmente posicionados na estrutura de classe, sem desconheceram as necessidades e aspirações oriundas dessas posições. Não obstante, apresentam uma homogeneidade social relativa, de pessoas que vivem do seu trabalho, diante de quem vive estruturalmente do capital. Sintomática disso é sua relação, às vezes direta e essencial, com as lutas por igualdade social, com iniciativas e embates pela preservação dos bens mundiais da humanidade ou com propósitos alternativos, em contraposição diametral à tirania do capital e aos poderes instituídos.

Outrossim, o ativismo dos coletivos abrange demandas materiais (ou econômicas e quaisquer outras ligadas a posições de classe no terreno da produção e da circulação da riqueza) e demandas imateriais. Torna obsoleta a noção de necessidades básicas (vinculadas à vida material), assim como o princípio de uma hierarquia natural entre as causas, reivindicações e lutas. Determinados coletivos incluem uma série de conquistas simbólicas em suas agendas, ou avanços no plano das ideias, apostando então em formação e conscientização, em fusões entre política e arte, em vivências e experimentações que transformem subjetivamente as pessoas.

Quadro 1
– Descrição dos casos empíricos

Nos coletivos observa-se também a superação de uma clivagem entre o saber erudito e o saber popular – uma estratificação convencional da cultura que reflete por excelência e reproduz a estrutura de classes. Eles acionam o conhecimento científico especializado e se valem de curiosidade e interesse pelo aprendizado e pelo uso de saberes locais, nativos, ligados ao senso prático de seus integrantes ou dos setores sociais com os quais interagem. Coletivos que atuam ou originam-se em ambientes universitários não deixam de recuperar e valorizar os conhecimentos populares, por razões políticas e iniciativa dos ativistas, notoriamente inclinados a contribuir com o resgate da cultura popular. A articulação em linha direta com atores populares (trabalhadores urbanos, povos originários, tradicionais, camponeses) mostra-se vital em muitos casos: os coletivos demonstram compromissos com a revitalização e aplicação de métodos e soluções à mão, já conhecidos por aqueles atores e praticados em seus sistemas de vida.

De um modo mais geral, no ambiente alterativista (Pleyers, 2010), movimentos indígenas e camponeses (ou campesíndios), como o Zapatista, servem de inspiração para jovens urbanos com anseios de engajamento social e político. Isto borra as distâncias entre o arcaico e o moderno, entre o suposto primitivo e o autodeclarado civilizado. Conforma-se uma perspectiva cosmopolita não elitista, não por coincidência no momento em que o planeta dá sinais claros de esgotamento e a lógica predatória hegemônica se mostra insustentável. Conhecer, experimentar e adotar racionalidades e sistemas de vida distintos, avalizados por povos e civilizações milenares, ganha novos sentidos.

INTEGRAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA

O propósito de conhecer alternativas reais prende-se ao fato de que os coletivos se dedicam a integrar ações práticas e ações no plano das ideias. Regra geral, eles combinam atividades intelectuais, de discussão e desenvolvimento de enfoques, visões e propostas, com ações diretas em vista da oferta de bens, serviços e melhorias, assim como de vivências que expressem os seus ideais. Por vezes, a produção e difusão material de ideias (livros, exposições etc.), assim como a disponibilização de espaços para encontro, debate e (mútua) tomada de consciência, caracterizam a sua atuação, sem abrir mão do critério de efetividade (ou seja, terem leitores, ouvintes, participantes etc.).

Quadro 2
– Descrição dos casos empíricos

Por isso, a relação entre realidade e utopia, e a passagem de uma à outra, ganham novos contornos. Mais e antes do que criar outro mundo por inteiro, se trata de lograr outra maneira de viver no mundo, o que requer em certa medida uma lógica de afastamento e secessão13 (Comitê Invisível, 2018) e uma aposta de que novas vivências sejam a base das mudanças. Assim, formas novas, inovadores e, contudo, exequíveis de produção, comercialização, gestão e avaliação, são o foco de muitos coletivos. Seria justo dizer que manejam uma nova chave, de utopismo com senso pragmático, ou que se inserem no campo das utopias realistas (Bregman, 2018).

Quadro 3
– Descrição dos casos empíricos

Essa postura conduz igualmente a um questionamento da dicotomia entre o ser humano real e o ser humano ideal. Como salienta Geoffrey Pleyers (2010), o alterativismo se propõe também a lutar contra o adversário interno, que habita a subjetividade e a deixa em estado de contradição com os valores defendidos e buscados pela ação coletiva. O engajamento militante envolve uma relação do ativista consigo mesmo, um compromisso muito pessoal (mas não individualista), para o qual se requer tempo, paciência dos demais e tolerância diante de hesitações, equívocos e mudanças de rumo. A via da subjetividade implica autenticidade e coerência pessoal, reinserindo a ética no centro dos debates, antes e acima das ideologias políticas.

INDIVIDUALIDADE E COLETIVIDADE

Para os membros dos coletivos, em particular os jovens, não há sentido nem necessidade de opor a individualidade à coletividade. A começar pelos princípios de livre adesão e livre saída, os coletivos tendem a valorizar a diversidade de motivações pessoais e, com ela, as preferências de cada participante, ao mesmo tempo que prezam e acreditam no sentido e na força do grupo, do agir coletivo, da ajuda mútua. Em sua organização interna, os coletivos optam por formatos horizontais e participativos, por dinâmicas de formação de consensos, não obstante o tempo e a empatia que requerem. Empenho e concessões pessoais fazem parte do engajamento, mas não sacrifícios que reprimam as individualidades, aqui incluindo-se processos de construção identitária do coletivo que se revelem ou sejam temidos como uniformizantes. Em seu ideário, compromisso e liberdade devem ser compatíveis. A autonomia tem a ver com o pertencimento a uma sensibilidade coletiva e a seu poder de mobilização. Ela corresponde a um anseio das pessoas de “sair do papel de expectadores de suas próprias vidas” (Souza, 2018, p. 9-10), não a um desejo de autossuficiência.

Por isso, as questões da vida privada não se distanciam do compromisso público do ativista. Por vezes, a vida privada é a motivação inicial ou funciona como um fundo de experiências pessoais que caucionam e reforçam o engajamento. Sexualidade, feminismo, anticonsumismo e ecologismo andam juntos, nos dois planos. A vida pessoal, diária, assume dimensões políticas e passa a ser plausível e impulsionador tentar mudar o mundo a partir de si e do cotidiano. A coerência entre ambos é um requisito moral, um vetor de sustentação do ativismo e do processo de reconstrução pessoal, como ilustra o texto de apresentação do coletivo de mulheres O Mundo lá de Casa, postado em epígrafe desse artigo.

Sendo assim, tampouco deve haver contradição entre benefícios para os integrantes dos coletivos e melhorias para a sociedade. As práticas locais dos coletivos estabelecem espaços, serviços e oportunidades que respondem a necessidade e aspirações de seus membros (geração de renda, desenvolvimento profissional, acolhimento etc.), enquanto suas intervenções na sociedade almejam transformações benéficas para uma coletividade ou um público-alvo amplo, por vezes indefinido. Produtos, serviços, espaços e experiências beneficiam os ativistas e, cumulativamente, a sociedade, o que faz bastante sentido quando se concebe a transformação social como resultado de mudanças progressivas.

Quadro 4
– Descrição dos casos empíricos

Quadro 5
– Descrição dos casos empíricos

Colocando a mão na massa para gerar mudanças efetivas, tangíveis, e estabelecendo ao mesmo tempo interconexões mais amplas, trocas de experiências, replicações e adições em iniciativas multicêntricas de maior escala, os coletivos procuram incidir no plano local, nacional e global. Por vezes, eles se qualificam como propulsores de efervescências micropolíticas, sem perder de vista as totalidades em que estão inseridos. Como já dito, dessa forma eles se alinham aos movimentos altermundialistas, ao mesmo tempo que buscam uma irradiação local e concreta, por meio de atividades de sensibilização, parcerias e ações conjuntas.

Ademais, com o propósito de causar eco em coletividades mais amplas, os ativistas tiram proveito do contexto midiático e tecnológico, explorando as possibilidades atuais de hiperconexão. Optam por redes físicas, com base em afinidades e interações pessoais, e atuam também nos espaços virtuais, para fins de irradiação e sensibilização mútua, sem por isso deixarem de tecer críticas ao complexo tecnopolítico da informática (cenário de fundo dos coletivos hackers). Desenvolvem uma militância global, não por almejarem dispor de grandes estruturas de organização e conexão, mas para lograrem ressonância planetária incidindo na subjetividade de indivíduos de diversos públicos, graças a fluxos constantes de comunicação e aos eventos em que se engajam, em um espírito de compartilhamento e de apoio recíproco (Pleyers, 2018).

PRESENTE E FUTURO

Fazer pouco caso da diversidade de experiências e de problemas do presente, em nome de um futuro radioso que estaria logo ali à nossa frente, é uma retórica típica das narrativas e estratégias políticas dos grandes atores em confronto no curso do séc. XX, mas não parece ter eco nos coletivos. O que eles fazem demonstra que não aceitam adiar eternamente as promessas de um mundo melhor: se nada muda no presente, que dirá no futuro. Como vimos, para eles a transformação social é um processo gradativo que se apoia em avanços inovadores desde já, por vezes mediante o resgate de soluções alternativas legadas por experiências do passado. Assim, mais do que afrontar o sistema e propor alternativas in totum em contrário, a tendência observada nos coletivos vai no sentido de se desvincularem do sistema por meio de uma lógica destituinte (Comitê Invisível, 2018), com a qual se autorizam a agir nas margens, à contracorrente, como se fosse possível estar fora do sistema. “Em vez de combater frontalmente o poder e as instituições, a lógica destituinte deseja realizar o que se pretende sem recorrer a eles nem mesmo para destruí-los” (Medeiros, 2020, p. 211).

Quadro 6
– Descrição dos casos empíricos

Isto explica o valor atribuído à criação de espaços autônomos, de liberdade e criatividade. Para Alana de Souza, os coletivos apostam numa política de protótipos “que possa passar do protesto à proposta, da utopia aos experimentos”. Trata-se de substituir a adesão a um projeto pensado e acabado de uma sociedade futura pela chance de experimentar construir no aqui e agora (Souza, 2018). Em outras palavras, os coletivos são vetores de uma política prefigurativa. Ela consiste, em suma, em materializar hoje o que se deseja ter, mais e melhor, amanhã (Monticelli, 2022; Schiller-Merkens, 2022). A prática dos coletivos o demonstra em temas como sustentabilidade, justiça social, equidade, pacifismo e outros. Os coletivos feministas, em particular, agem para criar estruturas de amparo a vítimas de opressões, de modo que vivam em liberdade desde agora (Martins, 2020; Teixeira, 2022). Em outros casos, criar vínculos, sentimentos e significados novos, mesmo em aspectos elementares como a alimentação, é visto como uma chave para mudar o mundo.

A reiterada promessa de um futuro radioso funciona como justificativa dos custos e efeitos perversos causados pela política e a economia reais. Ela tem a ver com o antropocentrismo próprio da cultura moderna: cabe legitimamente ao ser humano apoderar-se da natureza, explorá-la e transformá-la constantemente, garantindo o crescimento e, por conseguinte, o progresso indispensável para que venham dias melhores. Vários coletivos se apartam dessa promessa e assumem uma perspectiva transmoderna, de defesa da vida humana, do bem-estar, e de renúncia a colocar o ser humano no centro e acima do universo. De produtores familiares a jovens urbanos, a transição social e ecológica, trazendo consigo a necessária superação de modelos baseados no crescimento, está no cerne de atuação de muitos coletivos. Fica patente nesses casos que a convicção dos ativistas é que precisamos colocar a Terra no centro, não mais o ser humano; não mais domínio e crescimento, mas despossessão e equilíbrio.

Daí o abandono do dualismo entre o arcaico e o moderno, antes referido. Daí também a valorização da natureza, da comunidade, do frugal e mesmo do isolamento. Precaução em tudo o que interfere no planeta, preservação de recursos e do meio ambiente, convivialidade e confiança, passam a ser valores e objetivos. Criar espaços distantes da sociedade capitalista permite implementar, pôr à prova e confirmar soluções alternativas. Como pano de fundo, pode-se dizer que os coletivos incidem de algum modo no “conflito ontológico” que separa e contrapõe formas históricas de existência não apenas diversas, mas antagônicas e irreconciliáveis sem o reconhecimento e a validação prévia de suas diferenças (De la Cadena, 2015). Sistemas de vida fundamentados no domínio da natureza e sistemas de vida baseados na integração com a natureza estão separados por um abismo epistemológico intransponível para o pensamento ocidental moderno. Nesse sentido, a insistência dos coletivos para voltarmos a uma vida natural - a voltarmos para trás, de certo modo – chama atenção para a armadilha na qual se encontra aprisionada a nossa civilização.

Quadro 7
– Descrição dos casos empíricos

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nem todos os coletivos transpõem as clivagens que acabamos de mencionar, mas sempre há vários exemplos (e menos contraexemplos), autorizando-nos a inferir que se trata de um novo padrão de ativismo nesses aspectos. Para Raúl Zibechi (2006; 2007), esse fato já se prenunciava anos antes, enquanto Geoffrey Pleyers (2010; 2018) considera que ele se tornou marcante no ambiente do alterativismo. Nesse contexto, diz ele, ganham valor o engajamento pessoal, as experiências e a concretização dos ideais defendidos. Os ativistas direcionam-se mais à organização e execução por meios próprios de formas de participação e inovação local, e menos à participação na esfera pública, embora também possam estar conectados e presentes em grandes eventos e mobilizações.

Ademais, os coletivos valorizam mudanças de fórum íntimo na pessoa do ativista, as quais resultam em novas posturas e em um novo estilo de militância. Um significado maior é atribuído à performance das atividades e às vivências propiciadas, à criatividade, às emoções e aos pensamentos que afloram nessas experiências. Corroborando a síntese proposta pelo mesmo autor (Pleyers, 2010), o exame dos coletivos indica que vivenciam o engajamento como uma experimentação (um teste de inovações, um modo de fazer diferente) e como uma experiência alternativa, na qual, por tentativa e erro, há um aprendizado benéfico ao ativista e ao coletivo.

Por seu lado, Raúl Zibechi aponta que a transformação emancipatória almejada pelos movimentos deste século não é esperada da política institucional e do Estado, mas a partir da vida social, das lides diárias, da recusa em reproduzir as relações sociais capitalistas e os modos de vida conexos. Nos espaços reservados que criam, semiautônomos em relação ao capital e ao Estado, eles exercem a liberdade e a criatividade; assim, demonstram as virtudes da sua dispersão e atomização, de sua instabilidade e imprevisibilidade, de sua não institucionalização. Por essa razão, e não por debilidade congênita, suas articulações não são fixas, piramidais, mas tendem a ser pontuais e efêmeras (Zibechi, 2007).

Com a emergência dos coletivos, observa-se a passagem de um modelo de atuação com estruturas amplas e complexas, por vezes centralizadas, a um modelo com organizações locais, vincadas na participação direta e na autogestão. Da mesma forma, observa-se a transição de uma época de lutas por conquistas mediante ações reivindicativas (campanhas, greves, paralisações etc.), àquela de esforços concentrados na continuidade ou na viabilização de atividades que representam alternativas construídas pela auto-organização. Não se trata de situações excludentes, mas de uma progressividade para o segundo padrão, conforme as situações e os propósitos de ação.

O Movimento dos Indignados na Espanha, centro de um ciclo global de protestos em 2011, nos traz um bom exemplo em suas evoluções posteriores. De ações inicialmente de ocupação e acampamentos em praças, por conta do seu poder simbólico e por constituírem espaços de sociabilidade livre e de práticas de gestão democráticas, passou-se à discussão e execução de projetos alternativos nos bairros das cidades. Em vez de apenas reivindicar providências do Estado, o objetivo passou a ser responder às demandas por iniciativa própria dos ativistas. Em Barcelona (Asara; Kallis, 2022), numa etapa intermediária as ocupações foram descentralizadas da Praça Catalunha para os bairros, mas após alguns meses a estratégia mostrou-se ineficaz para gerar fatos novos e manter a coesão do movimento. O empenho dos ativistas transferiu-se para a idealização e realização de alternativas concretas. Jardins comunitários, uso de terrenos vagos em regime de autogestão e cooperativas sociais constituíram as frentes de grupos de trabalho, coerentemente com o propósito de viver e produzir de outro modo, reconfigurando a cidade a partir desses territórios prefigurativos.

Estamos diante de dois mundos, separando os ativistas dos defensores da ordem, não de uma sucessão de etapas ao estilo de uma corrida de bastão. Nessas circunstâncias, a emancipação já não parece ser entendida como um estado de júbilo a ser alcançado em determinado momento, mas como algo em aberto, ligado a formas de viver, sem garantias de continuidade, evolução e acúmulo. Se existe algum projeto, é o próprio caminho; sua forma dependerá da trajetória percorrida, não de algo premeditado. Como adverte Raúl Zibechi (2007, p. 62/245), seria um erro supor que os “habitantes do porão” – ou a “nova classe global dos desfavorecidos” (Sassen, 2010) - tenham surgido em cena para dar prosseguimento às lutas dos movimentos sociais que os antecederam, ou que tenham necessidade de definir previamente um projeto, para agirem então racionalmente, com senso estratégico, e lograrem sua emancipação.

O entendimento do papel de resistência e do potencial alternativo dos coletivos requer uma rejeição da visão linear e mesmo monotônica que prescrevia uma grande mudança histórica, com rumo claro e êxito presumivelmente garantido. No lugar disso, nossa época tem demonstrado que os intentos de mudança podem conduzir a vários mundos possíveis, por vias imprevisíveis e arriscadas, como já assinalava Maurizio Lazzarato (2006). Para o mesmo autor (Lazzarato, 2006), os movimentos sociais no séc. XXI já não aceitam a ideia de que haja apenas um mundo alternativo possível; ademais, a passagem das lutas, do local ao global, não se dará por universalização ou totalização, mas por integrações locais que não demandam um ponto de vista superior (Lazzarato, 2006) ou um centro unificador. Nesse contexto, pós-socialista, o ato de resistência não consiste em produzir novas sínteses, mas sim descontinuidades e novos começos, mesmo díspares.

De fato, as formas de atuação se modificaram, refletindo mudanças no imaginário predominante dos ativistas. É notório que os coletivos se empenham em contribuir com transformações em vários sentidos, mas deixaram de lado a retórica da revolução. Nas suas diversas versões, ela perdeu credibilidade. Mas ainda que fosse o caso, quem nas atuais circunstâncias poderia atacar diretamente e vencer a economia capitalista e os centros globais de poder político? Nem os coletivos, nem os movimentos altermundialistas, nem os próprios governos dispõem de unidade política, capacidade de mobilização e força militar para tanto, sem contar o imprevisível desfecho de tentativas nesse sentido. Porém, o descrédito da via revolucionária não impede que as pautas mobilizatórias dos coletivos e movimentos sejam fulcrais. Elas convergem em suas ações práticas, pelas quais manifestam sua contraposição ao sistema, sua crítica à lógica e à irracionalidade do capitalismo atual, sua defesa dos direitos humanos, da justiça e da democracia.

A debilidade principal dos coletivos é provavelmente a ausência de uma percepção amplamente compartilhada e de algum modo consensuada da situação em que nos encontramos, não obstante haja intentos de conexão e agrupamento a partir das experiências de engajamento, como o Fórum Mundial das Economias Transformadoras. Contudo, é também possível que mesmo essas novas iniciativas de conexão, abertas e participativas, sejam por vezes seletivas ou não granjeiem a adesão da maior parte dos coletivos, ocupados consigo próprios. Real ou aparente, esse isolamento relativo também pode conter virtudes, à medida que a prática da auto-organização propicia lugares de encontro, estimulando um ethos comunal e favorecendo mutações na cultura e nas experiências de vida. A ênfase dada às experiências, nas quais se embricam dimensões e planos de percepção e ação, talvez seja o que induz os coletivos a não reeditarem as clivagens que antes mencionamos.

De resto, uma crise humana profunda em nossa época, resultante de tantas outras, mina a aspiração de muitos indivíduos a serem, ao menos, sujeitos de suas próprias vidas. Os coletivos demonstram que, embora não faltem razões para aturdimento e perplexidade, apatia e conformismo, ou para o aparecimento de expectativas de soluções vindas do alto, há também inconformidade e empenho em construir respostas alternativas viáveis. Ocorre que o descrédito das grandes ideologias modernas de transformação histórica foi seguido pela vacuidade do ponto final de chegada e, assim, pela queda das teleologias correspondentes. Doravante, ao menos para ativistas dos coletivos, as coisas devem valer por si, a despeito de seus eventuais desdobramentos futuros. Pari passu com as metamorfoses deletérias do capitalismo global, o movimento de resistência social iniciado no séc. XIX (Cfr. Polanyi, 2000) mantém-se vivo, insistindo na humanização.

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  • 1
  • 2
    Um dossiê sobre o tema está nesse momento em vias de publicação na Revista Civitas (v. 2025/1).
  • 3
    Nesse artigo, dois autores constantes da bibliografia consultada ficarão em destaque: Geoffrey Pleyers e Raúl Zibechi. Isto, devido à sua produção densa e constante sobre questões focalizadas no texto e, ademais, dada afinidade de suas ideias com os argumentos aqui desenvolvidos.
  • 4
    Por certo, esse corpus não é estatisticamente representativo do universo global dos coletivos, meta que seria inviável no estágio atual de conhecimento e dos meios de pesquisa disponíveis. Contudo, ele reúne um número significativo de casos, ilustrativos de tipos recorrentes, à luz da literatura e das bases de dados consultadas.
  • 5
    O projeto de pesquisa dispôs de financiamento do CNPq e contou com colaboradores no Brasil, Bélgica, Chile, Equador, Japão e Itália. As visitas do coordenador do projeto e a pesquisa primária ocorreram até março de 2024. Detalhes da metodologia foram apresentados em artigo recente (Gaiger, 2025). Resultados da pesquisa e descrições dos coletivos têm sido divulgados no Instagram. Cfr. @luiz_inacio_gaiger.
  • 6
    Uma análise demográfica dos 120 casos, quanto às suas características gerais e quanto aos seus focos de atuação, é assunto de dois artigos, nesse momento em processo de submissão.
  • 7
    Esta afirmação, como as demais, sustenta-se na análise cruzada entre os dados de campo, provenientes de um número expressivo de coletivos, e a bibliografia consultada. Menções nominais aos casos e a fontes bibliográficas serão feitas quando for particularmente oportuno.
  • 8
    Sob vários aspectos, coletivos e empreendimentos de economia solidária se equivalem ou se assemelham. Sobre os primeiros, ver Gaiger et al., 2018).
  • 9
    Desse ângulo, a visão provavelmente mais abrangente, embora não exaustiva, é propiciada pelos registros do website socio.eco.org, da Rede Intercontinental de Promoção da Economia Social e Solidária (RIPESS), no qual foram integrados diversos levantamentos nacionais e regionais.
  • 10
    A outra via, da razão, corresponde aos trabalhos de peritagem e de produção de conhecimentos fundamentados e fidedignos, com os quais as organizações habilitam-se ao monitoramento, debate e disputa em torno das políticas de Estado e das ações do capitalismo global. Ela agrega outro conjunto de atores e organizações, a exemplo da ATTAC (Association for the Taxation of Financial Transactions for the Aid of Citizens). Isto dito, temos vistos coletivos engajados permanentemente no debate público, especialmente aqueles dedicados à cultura e às mídias alternativas.
  • 11
    A limitação de espaço impõe uma descrição seletiva de casos, embora as análises se apoiem em um universo maior. Os casos nominalmente citados correspondem a situações já investigadas anteriormente, ou sobre as quais se encontraram estudos ou, ainda, nas quais houve pesquisa primária de campo, circunstâncias que obviamente não se excluem.
  • 12
    Essa súmula, como as demais, é uma síntese do fichamento descritivo dos casos empíricos antes mencionado, feito a partir de fontes primárias e secundárias. Algumas referências bibliográficas são indicadas sugestivamente.
  • 13
    Discorrendo sobre sua vida de estudante nos anos 1960, o antropólogo Viveiros de Castro faz menção a “uma esquerda para a qual a política não passava pela disputa do poder de Estado, mas pela deserção normativa — por uma prática contracultural que considerávamos como mais radical, mais englobante que uma oposição política, mesmo armada. Tudo isso envolvia uma dimensão ético-estética forte, uma discussão política formulada em termos “culturais” (entrevista à Revista Habitus, grifos nossos). Um exemplo disso nos coletivos atuais é a monodissidência em relação aos padrões monossexuais prevalecentes e sua consequência: o monossexismo.
  • Editor Chefe:
    Renato Francisquini Teixeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2022
  • Aceito
    20 Fev 2025
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