Resumos
Este artigo tem como objetivo discutir as relações existentes entre os principais fenômenos que conformaram e caracterizam mundialmente o capitalismo contemporâneo, quais sejam: o neoliberalismo, a reestruturação produtiva e a financeirização da acumulação de capital - fenômenos que foram se delineando, e retroagindo mutuamente, ao longo de um processo que já tem quase 50 anos. Embora presentes em todos os países, produtos de uma nova fase da mundialização do capital, eles se expressam de forma diferente (em grau, qualidade e consequências) em países centrais e periféricos. Por isso, mais especificamente, o artigo evidencia as suas particularidades nos países de capitalismo dependente, com a constituição, a partir da crise do “Desenvolvimentismo” nesses países (anos 1980), de um novo modo de dependência, no qual se destacam a reconfiguração do Estado e a transferência de excedentes, da periferia para o centro, na forma de novos tipos de rendas financeiras e de renda-conhecimento.
Palavras-chave:
Mundialização do Capital; Financeirização; Neoliberalismo; Capitalismo Dependente; Estado
This article aims to discuss the relationships between the main phenomena that have shaped and characterize contemporary capitalism worldwide, namely: neoliberalism, productive restructuring and the financialization of capital accumulation - phenomena that have been taking shape and mutually retroacting over a process that has lasted almost 50 years. Although present in all countries, products of a new phase of the globalization of capital, they are expressed differently (in degree, quality and consequences) in central and peripheral countries. Therefore, more specifically, the article highlights its particularities in dependent capitalist countries, with the constitution, from the crisis of “Developmentalism” in these countries (1980s), of a new mode of dependence, in which the reconfiguration of the State and the transfer of surpluses from the periphery to the center stand out, in the form of new types of financial income and knowledge income.
Key words:
Globalization of Capital; Financialization; Neoliberalism; Dependent Capitalism; State
Este artículo tiene como objetivo discutir las relaciones entre los principales fenómenos que moldearon y caracterizan al capitalismo contemporáneo a nivel mundial, a saber: el neoliberalismo, la reestructuración productiva y la financiarización de la acumulación de capital, fenómenos que fueron tomando forma y retroactuándose mutuamente, a lo largo de un proceso que ya lleva casi 50 años. Aunque están presentes en todos los países, como productos de una nueva fase de globalización del capital, se expresan de manera diferente (en grado, calidad y consecuencias) en los países centrales y periféricos. Por lo tanto, más específicamente, el artículo destaca sus particularidades en los países con capitalismo dependiente, con la constitución, tras la crisis del “desarrollismo” en estos países (década de 1980), de un nuevo modo de dependencia, en el que destacan la reconfiguración del Estado y la transferencia de excedentes, de la periferia al centro, en forma de nuevos tipos de ingresos financieros e ingresos del conocimiento.
Palabras clave:
Globalización del capital; Financiarización; Neoliberalismo; Capitalismo dependiente; Estado
INTRODUÇÃO
O processo contemporâneo de expansão e difusão das relações capitalistas, abarcando todas as regiões do globo e distintas dimensões das economias e das sociedades, foi originalmente analisado (no início dos anos 1990) a partir do conceito de “globalização” (Fiori, 1997; Tavares, Fiori, 2008) – que ressaltava, geralmente de forma positiva, a internacionalização do capital como força homogeneizadora e “modernizadora” dos diferentes espaços e Estados nacionais. Essa era uma leitura determinista (inevitável), convergente e “civilizadora”, sem sujeitos (Estados e classes sociais) e que previa a superação do subdesenvolvimento dos países periféricos.
Com uma outra perspectiva, o conceito de “mundialização do capital” (Chesnais, 1996) deixa claro, de saída, que o referido processo tem sujeitos: o grande capital transnacional, as instituições ditas multilaterais e os Estados dos principais países imperialistas (localizados no centro do capitalismo), impulsionados pela compulsão de acumular riqueza, conquistar poder e ampliar a dominação. Daí deriva-se a necessidade de moldar os países periféricos e dependentes, no sentido de levá-los a aceitar a nova (des)ordem internacional em construção, articulando-os com o novo regime de acumulação financeirizado – através da suspensão de todas as barreiras (nacionais e internacionais) ao movimento do capital e da implementação de reformas econômicas, políticas e institucionais necessárias à consecução desse objetivo.
Tendo esses elementos como pano de fundo, tem-se que o objetivo geral desse artigo é discutir as relações existentes entre os principais fenômenos que conformam e caracterizam mundialmente o capitalismo contemporâneo, quais sejam: o neoliberalismo, a reestruturação produtiva e a financeirização da acumulação de capital, os quais foram se delineando e retroalimentando mutuamente ao longo de um processo que já tem quase 50 anos.
Embora presentes em todos os países, esses fenômenos – ao mesmo tempo determinantes e produtos de uma nova fase da mundialização do capital – se expressam de forma diferente (em grau, qualidade e consequências) em países centrais e periféricos. Em vista disso, deriva-se o objetivo específico deste artigo: evidenciar as particularidades dos fenômenos em tela nos países de capitalismo dependente, com a constituição, a partir da crise do “Desenvolvimentismo” nos países periféricos (anos 1980), de um novo modo de dependência – expresso na transferência de excedentes, da periferia para o centro, na forma de novos tipos de rendas financeiras e de renda-conhecimento e que exigiu a reconfiguração do Estado (Paulani, 2024; Oliveira; Filgueiras, 2020).
O Brasil, o último país latino-americano a aderir formalmente ao ideário neoliberal, é tomado como exemplo paradigmático desse novo modo de dependência, que caracteriza, desde os anos 1990, a relação entre países centrais e periféricos. Em particular, evidencia-se como essa transição ocorreu a partir da crise do Padrão de Desenvolvimento de Substituição de Importação nos anos 1980 e a constituição de um novo Padrão de Desenvolvimento Capitalista: aqui denominado de Liberal-Periférico (Filgueiras; Gonçalves, 2007).1
Uma vez feitas tais ponderações, cabe informar que o artigo é constituído por duas seções, além dessa Introdução e da Considerações Finais. Na primeira, discute-se os três fenômenos convergentes na constituição do processo de mundialização do capital: o neoliberalismo, a reestruturação produtiva e a financeirização, evidenciando a relação estabelecida entre eles. Na segunda, é descrita e analisada a nova forma de dependência dos países periféricos, em especial o Brasil, decorrente das novas características assumidas pelo capitalismo contemporâneo e seu regime de acumulação financeirizado. Nas Considerações Finais, sintetiza-se as consequências de todo o processo, destacando suas implicações políticas.
MUNDIALIZAÇÃO DO CAPITAL: NEOLIBERALISMO, REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E FINANCEIRIZAÇÃO
A tendência à expansão e difusão do capitalismo é inerente a esse modo de produção, estando presente desde o seu início, quando o processo de acumulação primitiva, durante os séculos XVI e XVII, criou as condições que lhe permitiria constituir, com a Primeira Revolução Industrial, a partir de meados do século XVIII, as suas próprias forças produtivas (Marx, 2013) – que se difundiriam e reproduziriam, na sequência, em outros países da Europa e nos EUA. Posteriormente, na segunda metade do século XIX e início do século XX, a mundialização do capitalismo continuou através do neocolonialismo e do imperialismo (Lenin, 2021).
A mundialização do capital contemporânea – iniciada na década de 1970, a partir da crise do “Fordismo” nos países centrais e do fim do Acordo de Bretton Woods – resulta de três fenômenos, temporalmente distintos, mas convergentes e interligados na constituição de uma nova fase de internacionalização do capital, quais sejam: o neoliberalismo, a reestruturação produtiva e a financeirização, abrangendo, ao mesmo tempo, a economia, a sociedade e a política – dando origem ao que se tem denominado de capitalismo financeirizado (Chesnais, 1998).
Um “novo capitalismo” que, observando-se de um ponto de vista mais geral e abstrato, reafirma, radicalizando, as principais características constitutivas desse modo de produção (Filgueiras, 2000): continua a apoiar-se na exploração do trabalho como fonte da valorização do capital, acirra a competição intercapitalista, acelera o desenvolvimento das forças produtivas, impulsiona o crescimento do volume e do valor da produção por trabalhador, intensifica a concentração e centralização de capitais e superdimensiona a esfera financeira da acumulação, afirmando sua dominância – tudo isso levando ao crescimento da instabilidade, da incerteza e do risco, potencializando a ameaça da crise e seus efeitos destrutivos.2
No entanto, observando-se de um ponto de vista mais concreto, constatam-se novidades importantes na nova dinâmica do capitalismo, que vêm acompanhadas por novas tecnologias revolucionárias, novos produtos e serviços e pela modernização e ressignificação de muitos já existentes (op. cit.):
– Alteraram-se as relações capital/trabalho, com o surgimento de novas formas de exploração e precarização do trabalho, apoiadas em tecnologias da Terceira e Quarta Revoluções Tecnológicas, destacadamente as de informação e comunicação (o trabalho em plataformas e a “uberização”) e na destruição de direitos trabalhistas, como evidenciado pelo trabalho em plataformas digitais e pela “uberização”.
– A concorrência intercapitalista também passou a se apoiar cada vez mais, no domínio do conhecimento e no uso de tecnologias da comunicação e da informação; processo esse que leva à centralização de capitais, ao aumento da produtividade e a busca de novos mercados – induzindo à interpenetração patrimonial de multinacionais e a constituição de blocos econômicos (CEE, NAFTA, MERCOSUL), hoje mais enfraquecidos, como meio de enfrentamento (e proteção) da competição internacional.
– A relação centro/periferia tornou-se mais complexa e instável, com a aceleração do movimento e do livre fluxo de capitais financeiros e o surgimento das denominadas cadeias globais de valor, constituindo-se em uma nova forma de dependência. Essa dinâmica implicou na fragilização do poder dos Estados periféricos, especialmente no que concerne às decisões e implementação de políticas públicas (macroeconômicas, setoriais e sociais), e estabeleceu uma nova hierarquia entre os países da periferia.
– O Estado foi reconfigurado em sua organização interna, no tipo de funções exercidas e na articulação com o processo de acumulação - através de reformas administrativas, privatizações de suas empresas e retirada da esfera produtiva (Druck, 2021). Essa reconfiguração incluiu a subordinação explícita das políticas macroeconômicas ao capital financeiro, viabilizando a permanente apropriação do fundo público por essa fração dominante. Nos países periféricos isso se expressa em uma política de ajuste fiscal permanente, dita de “austeridade”.
– A hegemonia financeira-neoliberal, com o espraiamento de sua lógica implicando na financeirização de todas as atividades e instâncias econômicosociais, foi acompanhada pelo maior poder dos Estados imperialistas e das instituições multilaterais, hoje colocadas em xeque (FMI, BIRD, BID, OMC etc.).
– Do ponto de vista político-social, explicitou-se um processo de desconstrução da democracia liberal, identificado, por alguns autores, como uma crise desse regime (Levitsky; Ziblatt, 2018, 2023; Runciman, 2018) e por outros como a sua própria superação (Casara, 2017; 2018). Tendo por instrumento fundamental as novas tecnologias, materializadas nas plataformas digitais, esse processo, além de permitir uma nova forma de fazer política (Empoli, 2019) e empoderar a extrema direita, possibilitou o surgimento de uma vigilância totalizante (Zuboff, 2021) e a apropriação de dados e informações dos indivíduos sem autorização e sem contrapartida (Cassino; Souza; Silveira, 2021).
– Aliada a isso, a disseminação do uso de smartfones e a criação das redes sociais implicou o surgimento de uma nova forma de fazer negócios e de sociabilidade, mediada pelas plataformas (e seus algorítmicos) e que vem substituindo aceleradamente a sociabilidade física-presencial – processo esse cujas implicações ainda não estão de todo claras (Haidt, 2024; Fisher, 2023).
Neoliberalismo
Produto da crise do liberalismo, explicitada pela crise de 1929 e pelas duas guerras mundiais, o neoliberalismo se firmou como uma reação teórica e política ao Estado “intervencionista” – inimigo do Estado de Bem-Estar Social e do New Deal norte-americano (Anderson, 1995) –, e teve o seu início, no plano intelectual, datado no final dos anos 1930 com o Colóquio Walter Lippmann (Dardot; Laval, 2016) ou no pós-Segunda Guerra com a criação da Sociedade de Mont Pèlerin (Anderson, op. cit.) – ambas ocorrências contando com participação de intelectuais da Europa e dos EUA.
Um fenômeno definido e compreendido a partir de distintos enfoques, não mutuamente excludentes, quais sejam: (i) uma doutrina político-econômica que é a expressão político-ideológica do capital financeiro (Filgueiras, op. cit.) (ii) um ideário programático de reformas e políticas econômicas que levou à constituição de uma nova forma de funcionamento do capitalismo (Harvey, 2014); e (iii) uma nova racionalidade que invade todas as esferas da sociedade capitalista, dirigindo e governando o comportamento dos indivíduos, das empresas, dos governos e demais Instituições (Dardot; Laval, op. cit.).
Para além de suas divergências internas (Ordoliberais X Austríacos), o neoliberalismo, ao contrário do liberalismo clássico, não se apoia, do ponto de vista das ideias, na existência de uma “ordem natural”, que levaria à constituição do laissez-faire. Em sentido contrário, essa concepção é substituída por uma “ordem moral” (Prado, 2009): as sociedades e economias liberais não são produtos espontâneos de leis naturais, elas exigem uma moldura institucional particular, que subordine os processos econômicosociais à concorrência (na qual os preços cumprem papel central). Em suma, a ordem (neo)liberal não emerge naturalmente das forças de mercado e da simples limitação da ação do Estado, ela resulta de uma determinada ordem legal e de novas instituições construídas, amparadas e protegidas por um Estado forte (Dardot, Laval, op. cit.).
No plano econômico, o Consenso de Washington, produto de uma reunião realizada nos EUA em 1989 (Batista, 1995), sistematizou de forma ampla o credo neoliberal e suas recomendações de reformas e política econômica, especialmente para os países periféricos, sendo aqui destacadas apenas as principais: 1) Liberalização Comercial e Financeira (abertura unilateral e rápida dos mercados nacionais, uma vez que se defendia a tese da ineficiência de políticas protecionistas no que tange à alocação dos recursos); 2) Privatização e Desregulação (justificada na crença de maior eficiência do setor privado e tendo por objetivo a redução da dívida pública); 3) Disciplina Fiscal, Gastos Públicos e Reforma Tributária (menor progressividade do imposto de renda e maior contribuição dos impostos indiretos, contra o uso da política tributária como instrumento de política econômicosocial); 4) Investimento Estrangeiro Direto (concebido como complemento à poupança nacional e tendo tratamento no mínimo igual ao do capital nacional, com destaque para as áreas de recursos naturais e de serviços); 5) Propriedade Intelectual (elevado nível de proteção à propriedade industrial e monopólio para as inovações patenteadas) e 6) Regime Cambial e Política Monetária: (políticas de estabilização: âncora externa/dolarização e sobrevalorização da moeda nacional).
Do ponto de vista político, para além do individualismo e do mercado como regulador da economia, a distinção entre democracia (apenas um meio) e liberdade (objetivo supremo a ser alcançado) formulada por Hayek (2010), assim como a defesa da desigualdade como um valor positivo, base da liberdade e da vitalidade da concorrência (Anderson, op. cit.), são essenciais para ajudar a entender atualmente a convergência do neoliberalismo com as forças políticas de estrema direita (no limite, o neofascismo).
Nunca é demais lembrar, o fato político inaugural que conferiu visibilidade ao neoliberalismo como uma corrente político-ideológica distinta, que viria, posteriormente, a se espalhar associada à mundialização do capital, foi o apoio dos austríacos (em especial Friedrich Hayek) e dos monetaristas (destacadamente, Milton Friedman) à Ditadura Militar do general Augusto Pinochet no Chile (1973), que, segundo o primeiro, embora não fosse um regime democrático, garantia e propiciava maior liberdade (para o capital e a propriedade privada) que o governo democrático de Salvador Allende. Na sequência, já na virada da década, vieram os Governos Margaret Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos EUA – usualmente reconhecidos e citados como exemplos de governos neoliberais, com destaque para as guerras que travaram contra os sindicatos.
A relação do neoliberalismo com a reestruturação produtiva e a financeirização se expressa através do processo de desregulação do mercado de trabalho, da extinção de direitos sociais e trabalhistas, da desregulação dos sistemas financeiros (internacionalmente e internamente aos países), e das políticas de abertura comercial-financeira e de privatização.
Reestruturação Produtiva
Este fenômeno, assim como a financeirização, pode ser entendido como uma resposta à crise do regime fordista de acumulação (marcada pelo lento crescimento ou queda da produtividade, envelhecimento do paradigma tecnológico e do padrão de gestão, e acirramento da disputa lucro/salário), que desembocou, nos anos 1970, num processo de estagflação nos países centrais do capitalismo – com redução dos níveis de investimento, diminuição no ritmo das atividades econômicas e do emprego, crise fiscal do Estado e aceleração da inflação. Um processo marcado pela intensificação da competição internacional e a desestruturação da então ordem internacional (com o fim do Acordo de Bretton Woods) e influenciado por dois “choques” de preços do petróleo (1973 e 1979) e pela elevação das taxas de juros nos EUA (1979).
A resposta à crise se deu concomitantemente em duas frentes (o paradigma tecnológico e o processo de trabalho), ambas tendo por objetivo flexibilizar o processo de acumulação com a retirada de restrições e freios impeditivos existentes. Isso foi perseguido através da incorporação de novas tecnologias de base microeletrônica (automação flexível e informatização) e da implementação de novos padrões de gestão/organização do trabalho, com a adoção de práticas oriundas do chamado Modelo Japonês ou Toyotismo (just-in-time, qualidade total, subcontratação e terceirização). Tais circunstâncias e práticas passaram a exigir um maior “envolvimento” do trabalhador, um “novo trabalhador” definido como polivalente e multifuncional (Druck, 1999).
Na verdade, do ponto de vista do padrão de gestão da força de trabalho, há na prática uma combinação de concepção e de métodos do taylorismo, fordismo e toyotismo, que se misturam, com o velho e o novo convivendo na forma de exploração do trabalho, ou com algum deles prevalecendo isoladamente – a depender das características dos produtos, das atividades e dos setores produtivos (Druck, op. cit.).
Esse processo implicou o surgimento de novos tipos de relações de trabalho, intensificando o desemprego estrutural e a precarização do trabalho, processo esse expresso em contratações à margem dos direitos trabalhistas, jornadas de trabalho excessivas, menores salários reais, adoecimentos relacionados ao trabalho etc.). Tudo isso fragmentou a classe trabalhadora e enfraqueceu os sindicatos e, articulado com as reformas e políticas neoliberais, pressionou pela desregulação do mercado de trabalho (as ditas “reformas trabalhistas”).
A relação da reestruturação produtiva com o processo de mundialização-financeirização do capital é evidente e de mão dupla: foi determinante na criação dos meios materiais-tecnológicos para a expansão-internacionalização contemporânea do capitalismo, além de viabilizar a integração mundial dos mercados financeiros. Ao mesmo tempo, difundiu-se com esse processo, tendo por acicate o acirramento da competição, o crescimento da produtividade e a ampliação dos mercados de bens e serviços.
Financeirização
O capital mercantil (comercial e financeiro), assim como as outras formas de capital, existiu desde sempre no capitalismo. No entanto, no capitalismo contemporâneo, o capital financeiro – entendido como “capital portador de juros” (posição na qual o capital monetário assume a forma mercadoria) – instalou-se no centro do processo de acumulação, comandando-o. A sua lógica de curto prazo, volátil e associada à possibilidade de capitalização de rendimentos futuros – base para a constituição e reprodução do que Marx (2017) denominou de “capital fictício” – passou a comandar todos os tipos de relações econômicosociais, constituindo o fenômeno atual da financeirização.
Mas isso foi produto de um processo histórico-institucional, iniciado desde a crise do fordismo e o fim do acordo de Bretton Woods (1971), com a ascensão política do neoliberalismo e a desregulamentação financeira, que derrubou as restrições à livre movimentação internacional do capital financeiro. Desse modo, tal como a reestruturação produtiva, a financeirização também pode ser entendida como uma resposta à crise do capitalismo dos anos 1970, agora definida, num sentido mais geral, como uma crise de sobreacumulação de capital (Paulani, op. cit.).
A desregulamentação financeira também alcançou a forma de organização interna do sistema financeiro em cada país, voltando a reunir os diversos tipos de atividades financeiras, antes separados em distintos tipos de instituições financeiras. Além disso, surgiram os chamados novos investidores institucionais (fundos de investimento e de pensão, seguradoras), assim como diversas inovações financeiras: o instrumento da securitização (a transformação das dívidas privadas e públicas em ativos financeiros) e a criação de todo tipo de derivativos, que permitiu a multiplicação do “capital fictício”. Mais recentemente, após a crise de 2008, o capital financeiro, através de empresas de gestão de ativos e fundos de investimentos, passou a criar e gerir ativos reais (tangíveis) mediante a aquisição das mais variadas formas de propriedade (habitação e infraestrutura), prática denominada de assetização (Langley, 2020; Christophers, 2023).
Esse processo de dominância financeira teve fortes implicações na dinâmica de funcionamento do “novo” capitalismo, que passou por uma nova onda de centralização e internacionalização de capitais, com o superdimensionamento do setor financeiro, a onipresença das instituições financeiras e o crescimento mais acelerado da riqueza financeira do que da riqueza real – implicando o descolamento entre ambas (com a tendência à autonomização da primeira). Isso se refletiu também em menores taxas de crescimento e no agravamento da instabilidade, estagnação e em reiteradas crises desde a década de 1990, primeiro na periferia e, por fim, em 2007-8, no centro do capitalismo.
A financeirização adentrou às empresas não-financeiras de todos os setores, que absorveram a lógica do capital financeiro, emprestando de forma não transparente dinheiro junto (de modo casado) com a venda de suas mercadorias e dando prioridade aos acionistas representados pelos fundos de investimentos – com fortes impactos sobre a precarização do trabalho, a concentração de renda e a desigualdade social. Além disso, estimulou o endividamento e a aplicação financeira da poupança das famílias, influenciando suas decisões de gasto para além dos rendimentos do trabalho.
Nada escapou ao processo de financeirização: capital de risco dirigido ao desenvolvimento e consolidação das big techs (com suas plataformas e redes sociais monetizadas); saúde e previdência social, com os planos de saúde e aposentadoria; as grandes corporações de ensino superior com ações listadas em bolsa; a transformação dos clubes de futebol em empresas, com suas ações também negociadas em bolsas e as suas marcas e os seus jogadores transformados em ativos a serem valorizados; e até a apostas esportivas online, com o smartfone trazendo o cassino para o alcance das mãos dos indivíduos (Uol, 2024; Lacombe, 2024).
Por fim, do ponto de vista macroeconômico, as dívidas públicas dos países tornaram-se objeto fundamental do processo de financeirização, implicando uma permanente apropriação do fundo público pelo capital financeiro - que demanda e impõe uma política de ajuste fiscal permanente, classificada cinicamente como uma política de austeridade (Paulani, op. cit.).
Diante do que se disse, a relação entre a financeirização, a reestruturação produtiva e o neoliberalismo pode ser sintetizada por um objetivo mais geral convergente, qual seja: a busca pela expansão da acumulação capitalista, através da flexibilização de todas as suas esferas e dimensões - flexibilidade espacial, temporal, produtiva, comercial-financeira e do mercado de trabalho. Mais concretamente, a expansão da mundialização financeira, com a integração de todos os mercados, difundiu o credo e as políticas neoliberais, assim como impôs o processo de reestruturação produtiva, com ritmo e profundidade diferenciada, para todos os países.
A MUNDIALIZAÇÃO DO CAPITAL E A NOVA FORMA DE DEPENDÊNCIA
A caracterização mais rigorosa do fenômeno da dependência, dos países periféricos para com os países imperialistas, foi feita pela Teoria Marxista da Dependência (TMD), em especial por Rui Mauro Marini (1991), ao elaborar uma Economia Política da Dependência – que evidencia e explica a forma distinta de funcionamento do capitalismo na periferia, quando comparada com a dos países centrais (Osorio, 2004).
A TMD explica a especificidade do capitalismo dependente a partir da existência de duas trocas desiguais que marcam os países periféricos. A primeira se localiza no comércio internacional, na relação estabelecida entre esses países e os países centrais, na qual os diferenciais de produtividade na fabricação de suas respectivas mercadorias, associado ao domínio monopólico dos mercados pelos segundos, implica uma transferência de valor (excedentes) dos países periféricos para os países centrais.
A segunda, por seu turno, ocorre internamente nos países periféricos, envolvendo a compra e a venda da força de trabalho, na qual o capital a remunera abaixo de seu valor, além de estender a jornada de trabalho e intensificar o processo de trabalho. Nas três situações, impede-se a reprodução normal da força de trabalho, caracterizando um processo de superexploração do trabalhador – que funciona como uma compensação para as perdas internacionais sofridas pelos capitais que operam na periferia, um mecanismo, desde sempre, central na reprodução das burguesias periféricas (associadas ou não ao imperialismo).
Mas essa formulação inicial de Marini é do início da década de 1970, quando a atual mundialização do capital só estava começando, e, portanto, os três fenômenos que a constituíram, analisados anteriormente, não tinham ainda se desenvolvido plenamente, evidenciando as principais características que deles se conhece hoje. Tal circunstância torna a sua atualização imprescindível (Marisa, 2012).
O Brasil, enquanto Estado nacional autônomo, viveu sua primeira forma de dependência (comercial-financeira) no período 1850-1930, quando vigorou o Padrão de Desenvolvimento Primário-Exportador, produtor de bens de consumo e matérias-primas para a exportação, inicialmente apoiado no trabalho escravo e, posteriormente, no trabalho assalariado. Com o motor da dinâmica da economia situado fora do país, a transferência de excedente se fazia através da venda de produtos primários e da compra de produtos industriais, além do pagamento dos empréstimos (juros e amortizações) tomados ao capital inglês.
A segunda forma de dependência do Brasil esteve associada ao Padrão de Desenvolvimento de Substituição de Importações, vigente durante o período 1930-1990. O processo de industrialização ocorrido, em especial a partir dos investimentos diretos estrangeiros atraídos pelas políticas derivadas do Plano de Metas do Governo de Juscelino (1956-1960), ao desenvolver os mercados internos, internalizou o motor imediato da dinâmica da economia e, junto com isso, internalizou também a dependência – que além de comercial-financeira, própria do Padrão de Desenvolvimento anterior, tornou-se também tecnológica, associada aos investimentos e à hegemonia das multinacionais no processo de industrialização – cujo controle e decisões passaram a ser localizados em suas matrizes de origem.
A partir da década de 1990, o processo de financeirização – com a integração dos mercados financeiros dos países periféricos ao mercado financeiro mundial, juntamente com a ascensão das grandes empresas de tecnologia e o papel estratégico cumprido pelas suas mercadorias-conhecimento no novo regime de acumulação financeirizado – redefiniu a relação entre o centro e a periferia do capitalismo, levando à constituição de uma nova forma de dependência – que não nega as formas anteriores, mas as subsumem à nova dependência financeira e do conhecimento (Amaral, op. cit.).
O Padrão de Desenvolvimento Liberal-Periférico, cuja constituição iniciou-se no Governo Collor e consolidou-se nos dois governos Fernando Henrique Cardoso (FHC), significou a acomodação do país à nova forma de dependência derivada do regime de acumulação mundial financeirizado. Mas essa adaptação não foi passiva, ela necessitou da ação decisiva do Estado para a construção da nova ordem neoliberal-financeira; em especial elaborando e executando reformas e políticas condizentes com o credo neoliberal e os interesses do grande capital.
No processo de transição e adaptação à nova ordem internacional, o Plano Real, elaborado e implementado durante o Governo Itamar, cumpriu um papel decisivo; dado que ele não foi apenas um Plano de Estabilização Monetária, ou seja, de combate à inflação. Além de prevê discursivamente e, de fato, vir acompanhado de reformas clássicas do neoliberalismo (abertura comercial-financeira, desregulação financeira e do mercado de trabalho, privatização, reforma da previdência etc.), o referido plano, pelo modo de combate à inflação adotado, viabilizou a transição para o novo Padrão de Desenvolvimento (Liberal-Periférico) e, ao mesmo tempo, articulou a economia brasileira ao capitalismo financeirizado mundialmente (Filgueiras, 2024).
A política de sobrevalorização do real (a moeda) frente ao dólar, a partir de meados de 1994, juntamente com a abertura comercial às importações, viabilizou o controle da inflação, mas provocou reiterados déficits na Balança Comercial e, por extensão, na Conta de Transações Correntes. No entanto, a abertura da Conta de Capitais permitiu que a entrada de capitais financeiros de curtíssimo prazo, induzidas por elevadas taxas juros, compensasse então esses déficits – equilibrando o Balanço de Pagamentos e dando sustentação à “âncora cambial” por um período de mais de quatro anos3 (Filgueiras, 2024). Como reforço a essa política, lançou-se e executou-se um amplo programa de privatização (venda) de empresas estatais aberto à participação de capitais estrangeiros.
Essa estratégia de combate à inflação, ao conectar o mercado financeiro brasileiro (Bolsa de Valores e o mercado de títulos públicos) ao mercado financeiro internacional, promoveu a “financeirização” da dívida pública, tornando-a, desde então, um instrumento fundamental de subordinação do Estado (e de suas políticas públicas) ao capital financeiro – com ameaça permanente de fuga de capitais e a instalação de uma crise cambial. A partir daí, a dívida pública cresceu aceleradamente e se autonomizou, com a sua dinâmica se descolando de eventuais déficits públicos primários do governo, que deixaram de ser a causa fundamental de sua evolução. Adicionalmente, as privatizações financeirizaram serviços públicos essenciais, como energia, telecomunicações, água, assim como as políticas e reformas neoliberais financeirizaram as áreas de previdência social, saúde e educação.
A financeirização da Previdência Social foi impulsionada por três reformas (1998, 2003, 2013), que atingiram tanto o Regime Geral de Previdência Social (direcionado aos trabalhadores do setor privado) quanto o Regime Próprio dos servidores públicos, abrindo espaço para a dita previdência complementar, ou seja, Fundos de Pensão e Aposentadoria privados. A financeirização da saúde, por seu turno, deriva do permanente subfinanciamento público ao Sistema Único de Saúde (SUS), estimulando a difusão de Planos de Saúde privados e, associados a eles, o crescimento da participação dos serviços privados de saúde – com o domínio de grandes grupos financeiros. Já a financeirização da educação se relaciona às políticas de crédito, como o Programa de Financiamento Estudantil (FIES), que junto com o Programa Universidade para Todos (PROUNI), sustenta os grandes grupos privados que atuam no ensino superior.
No âmbito da financeirização do consumo, a criação do crédito consignado (uma das modalidades de crédito mais utilizadas no Brasil) reduziu o risco dos empréstimos bancários praticamente a zero. Na política habitacional, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) passou a ser usado nos financiamentos do Programa Minha Casa Minha Vida, além de se constituir em garantia e objeto de empréstimo por parte das instituições financeiras.
Nesse processo de financeirização do Brasil,4 constituiu-se o Padrão de Desenvolvimento Liberal-Periférico, estruturalmente articulado ao regime de acumulação financeirizado em escala mundial, com importantes alterações em relação ao padrão de desenvolvimento anterior.
O processo de reestruturação produtiva e as políticas e reformas neoliberais levadas a cabo alteraram as relações capital-trabalho, com o surgimento de novas formas de exploração do trabalho mais precárias, extinção de direitos trabalhistas e enfraquecimento dos sindicatos. Esse mesmo processo, associado às privatizações e à financeirização, também alterou as relações intercapitalistas – cujos resultados foram o deslocamento do Estado das atividades produtivas e a perda de importância econômica e política do capital industrial, tendo como contrapartida a ascensão das finanças e a hegemonia do capital financeiro, além do fortalecimento do capital vinculado ao agronegócio.
A inserção internacional do país na divisão internacional do trabalho também sofreu modificação importante, provocada pela abertura comercial-financeira, pela privatização de empresas estatais de serviços públicos e por um processo de desindustrialização precoce da economia brasileira – com os superávits da balança comercial passando a depender cada vez mais das exportações do agronegócio e a dinâmica macroeconômica tornando-se condicionada pela volatilidade do movimento dos capitais financeiros de curto prazo. Essas novas circunstâncias, associada à deterioração da Conta de Renda e Serviços do Balanço de Pagamentos – remessa de lucros, juros e outros tipos de renda, além do pagamento de serviços internacionais –, aumentaram a vulnerabilidade externa do país.
Nesse contexto, o Estado teve suas funções redefinidas amplamente: além de ser retirado de quase todas as atividades produtivas e ter reduzida a sua capacidade de elaborar e executar as políticas públicas (macroeconômicas, sociais e setoriais), a dívida pública passou a ser fonte permanente de uma maior instabilidade macroeconômica – especialmente no que concerne ao crescimento econômico e à inflação. Os sucessivos governos passaram a ser tutelados pelo capital financeiro, que impôs mais recentemente a “autonomia” do Banco Central na formulação e execução da política monetária e se apropriou do orçamento (fundo) público, restringindo fortemente as políticas sociais, a partir de uma política permanente de ajuste fiscal – nos últimos anos definindo tetos institucionais para o aumento do gasto público.
Em suma, o Padrão Liberal-Periférico reestruturou a economia e a sociedade brasileiras, em todas as suas dimensões, inclusive a sua realidade política. As consequências econômicas, sociais e políticas do capitalismo financeirizado também se expressaram nos países periféricos, apesar de suas especificidades. Como em outros lugares do mundo, a democracia liberal passou a ser contestada pela ascensão da extrema direita, impulsionada por um ambiente de aumento da concentração de renda, enorme desigualdade, pobreza, precarização do trabalho, insegurança, instabilidade e fobia dos mais variados tipos. Com o apoio crucial das plataformas digitais e das redes sociais aí estabelecidas, ganhou grande capacidade de mobilização popular e passou a eleger governantes em vários países, do centro e da periferia do capitalismo.
Para além da definição e caracterização anódinas desse fenômeno como sendo um novo populismo, o que se constata de fato é a convergência política cada vez maior entre a burguesia financeirizada neoliberal e essa nova extrema direita de natureza neofascista (Filgueiras, Druck, 2020). Um neofascismo neoliberal e antinacional, defensor explícito do grande capital e promotor de uma “guerra cultural” permanente (Rocha, 2021), apoiada em crenças e valores típicos do “Tradicionalismo” (Teitelbaum, 2020).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos países de capitalismo dependente, o processo de financeirização guarda algumas especificidades em comparação aos países centrais, posto que ele se inicia e se desenvolve em uma estrutura econômicosocial previamente subordinada – reproduzindo e exacerbando situações já existentes, mas também criando novas.
A difusão da financeirização para a periferia do capitalismo marca uma nova fase da dependência. Os seus primórdios se situam nos anos 1980, quando eclodiu a “crise da dívida externa” dos países latino-americanos – decorrente do endividamento desses países na década anterior (caracterizada por uma alta liquidez internacional) e da forte elevação da taxa de juros dos EUA em 1979. Nesse período, em especial na primeira metade da década, as políticas impostas ao Brasil pelo FMI e pelo capital financeiro internacional, como condição para obtenção de novos empréstimos, iniciou, de forma subordinada, a inserção do país na nova ordem financeira ainda em construção.
Essas políticas, em particular a redução dos gastos públicos e a manutenção de altas taxas de juros, provocaram duas grandes recessões no período (1981 e 1983), mas viabilizaram o principal objetivo dos credores: o pagamento dos juros dos empréstimos internacionais – que, entretanto, não contiveram o crescimento da dívida externa. Esse processo, parte integrante da reação dos países imperialistas à crise dos anos 1970 nos centros capitalistas, expandiu a dívida pública e iniciou a sua financeirização – que se consolidaria, por outros meios, nas décadas seguintes.
Assim, é a partir da década de 1990, conforme já visto, que passa a se constituir, de fato, a fase financeirizada da dependência, na qual a dívida pública ocupa um papel central. As transferências de valor assumem cada vez mais a forma financeira (juros, dividendos, rendas-conhecimento etc.) – tornando-se mais importante do que aquelas decorrentes das transações comerciais tradicionais. Portanto, cresce proporcionalmente os fluxos de transferências derivadas da rentabilidade do capital como mercadoria – vários tipos de renda, oriundas dos direitos de propriedade (Paulani, op. cit.) –, quando comparados aos fluxos provenientes do capital em função (lucros).
A disseminação para os países periféricos do uso das mercadorias-conhecimento, criadas e monopolizadas pelas grandes corporações de tecnologia do Vale do Silício, passou a se constituir em fonte cada vez mais importante de transferência de valor para os países centrais (Oliveira; Filgueiras, op. cit.). Além disso, através de suas plataformas digitais, essas corporações passaram a influenciar (em alguns casos de forma decisiva) a dinâmica política de todos os países, principalmente os de capitalismo dependente.
Nessa nova situação, de crescimento dos fluxos de transferência de valor, exacerba-se a superexploração da força de trabalho, tanto através da financeirização das empresas não-financeiras quanto em função do surgimento das plataformas digitais, que não reconhecem vínculos trabalhistas e impõem aos seus trabalhadores jornadas de trabalho extenuantes, prolongadas e intensificadas, além de rendimentos reduzidos.
A necessidade de atrair capitais externos (em geral de curto prazo) para enfrentar desequilíbrios no Balanço de Pagamentos exige taxas de juros permanentemente muito elevadas, o que fragiliza as finanças do Estado e aprofunda a vulnerabilidade externa dos países periféricos. Nesse contexto, e tendo em vista a inconversibilidade de suas moedas, é crucial a manutenção de reservas internacionais em dólar – que também é um ônus para as finanças públicas.
Por essas razões, a política de “austeridade”, de permanente ajuste fiscal, não impede o continuado crescimento da dívida pública – que não deriva de gastos primários excessivos dos governos. Com efeito, a política de obtenção de elevados superávits fiscais primários – ao garantir a apropriação do fundo público pelo capital financeiro – tem como contrapartida o desestímulo aos investimentos produtivos e ao consumo – impactando negativamente no crescimento da economia. Além disso, reduz a capacidade do Estado de fazer políticas sociais essenciais, em um ambiente no qual grassa a pobreza e a desigualdade.
No âmbito da estrutura produtiva, a financeirização do capitalismo dependente se constitui na principal razão do processo de desindustrialização precoce que vem ocorrendo na economia brasileira desde os anos 1980, e que se acelerou a partir da década de 1990 quando as políticas neoliberais se tornaram onipresentes, processo esse também identificado como a de uma tendência à “reprimarização” das economias dependentes.
Em resumo: a nova forma financeirizada da dependência, mais do que todas as anteriores, ao aprofundar a subordinação dos países dependentes ao imperialismo, agride frontalmente a soberania e autonomia desses países – impedindo-os, quase que como uma “lei de ferro”, de definirem o seu presente e traçarem o seu futuro. A dinâmica política brasileira, independentemente da natureza dos diversos governos que se sucederam desde 1990, e apesar de suas muitas nuances, fica presa e limitada a uma espécie de “camisa de força”, que, para muitos, se expressa em uma correlação de forças praticamente irremovível.
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1
“O Modelo Liberal Periférico tem três conjuntos de características marcantes: liberalização, privatização e desregulação; subordinação e vulnerabilidade externa estrutural; e dominância do capital financeiro. O modelo é liberal porque se estrutura a partir da liberalização das relações econômicas internacionais nas esferas comercial, produtiva, tecnológica e monetário-financeira; da implementação de reformas no âmbito do Estado (em especial na área da Previdência Social) e da privatização de empresas estatais, que implicam a reconfiguração da intervenção estatal na economia e na sociedade; e de um processo de desregulação do mercado de trabalho, que reforça a exploração da força de trabalho. O modelo é periférico porque é uma forma específica de realização da doutrina neoliberal e da sua política econômica em um país que ocupa posição subalterna no sistema econômico internacional, ou seja, um país que não tem influência na arena internacional, ao mesmo tempo em que se caracteriza por significativa vulnerabilidade externa estrutural nas suas relações econômicas internacionais. Por fim, o modelo tem o capital financeiro e a lógica financeira como dominantes em sua dinâmica macroeconômica.” (Filgueiras; Gonçalves, 2007, p. 96).
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2
A parir da década de 1990, reiteraram-se sucessivas crises financeiras: México (1995), quase todos os países do leste da Ásia (1997), Rússia (1998), Brasil (1999), Argentina (2001) e a mais grave, a crise geral do capitalismo de 2007/08, difundida a partir dos EUA, e que se desdobrou na Crise Soberana na área do Euro (2010).
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3
A crise cambial de janeiro de 1999, início do segundo governo FHC, encerrou esse Regime de Política Macroeconômica, substituindo-o pelo denominado Tripé Macroeconômico: metas de inflação, superávit fiscal primário e câmbio flutuante.
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4
O livro lançado recentemente (2024), Financeirização: crise, estagnação e desigualdades, organizado por Lavinas et al., contém vários artigos que, entre outras contribuições ao tema, evidenciam as várias faces e dimensões da financeirização no Brasil.
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Editor Chefe:
Renato Francisquini Teixeira
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Out 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
18 Dez 2024 -
Aceito
06 Maio 2025
