INTRODUÇÃO
A ELEIÇÃO DE 2022
As eleições brasileiras de 2018 e 2022 se distinguiram de todas as anteriores ocorridas desde o fim da ditadura em 1985. Como em outros países, o surgimento de uma extrema direita mobilizadora, com caráter de massa, colocou em questão a existência da democracia no país. A disputa entre as forças democráticas de esquerda (em sentido lato) e o campo político neoliberal tornou-se mais complexa: a extrema direita bolsonarista, assumindo explicitamente o neoliberalismo, “engoliu” a direita neoliberal tradicional – dando origem a um novo tipo de polarização política, na qual a clivagem entre democracia e autoritarismo ocupou o centro do debate e da disputa.
Na primeira dessas eleições, em 2018, as forças políticas neoliberais se entregaram de corpo e alma à direção política da extrema direita. Explicitando, no limite, a natureza antidemocrática do neoliberalismo, conforme já se depreendia de considerações trazidas no seu livro clássico “O Caminho da Servidão” (Hayek, 2010HAYEK, Friedrich. O Caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.), e evidenciada na experiência histórica do apoio à ditadura de Pinochet no Chile e na forma como combateu e destruiu as organizações dos trabalhadores na Inglaterra e nos EUA, o caminho tomado pelos neoliberais brasileiros foi o de se juntarem à extrema direita e radicalizarem ainda mais suas posturas.
Na eleição de 2022, a tradicional direita neoliberal se dividiu. Após quatro anos trágicos do governo Bolsonaro, parte desse campo político, de forma ambígua e vacilante, veio a compor, no segundo turno, uma frente ampla contra a extrema direita, após o naufrágio definitivo da chamada “terceira via”. Contudo, a sua parte mais orgânica, operadora do capital financeiro (nacional e internacional) no país, apoiou Bolsonaro – explicitando, mais uma vez, a oposição entre democracia e neoliberalismo.
Nessa última eleição, a vitória de Lula, da esquerda e das demais forças democráticas, foi uma vitória maiúscula. A diferença de apenas 1,8 ponto percentual a favor de Lula, estatisticamente diminuta, não expressa o tamanho e a importância da vitória extraordinária das forças democráticas do país sobre o (neo)fascismo.
As forças democráticas derrotaram Bolsonaro, sua família e suas milícias digitais entranhadas nas redes sociais; derrotaram o Estado brasileiro instrumentalizado despudoradamente pela campanha de Bolsonaro; derrotaram o uso político da religião por parte, sobretudo, das principais igrejas neopentecostais, transformadas em verdadeiros partidos políticos fascistas; derrotaram o vasto setor do capital que tentou forçar seus empregados a votarem em Bolsonaro, com base em ameaças e promessas.
Lula entendeu a “roda da fortuna” (Maquiavel, 2010MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.) e construiu, inicialmente, uma frente de esquerda, para além de seu partido, para, posteriormente, e com muita paciência, estendê-la para outras forças democráticas – abrangendo inclusive forças políticas de direita que haviam estado à frente do golpe de 2016. Mas, claramente, a vitória de Lula representou, sobretudo, a vitória de todas as forças de esquerda e, em particular, de sua tendência principal: o Partido dos Trabalhadores (PT). As forças de esquerda relevantes compreenderam a gravidade do problema e se unificaram na luta frustrada pelo impeachment de Bolsonaro e, posteriormente, no apoio à candidatura de Lula logo no primeiro turno da eleição – constituindo-se na força principal e fundamental da vitória de Lula, vanguarda evidente de sua campanha.
A incapacidade de levar Bolsonaro ao impeachment, apesar de sobrarem motivos, foi mais um indicador do compromisso vacilante da direita tradicional com a democracia. Para muitas lideranças desse campo político, parecia conveniente manter o presidente no poder, a fim de completar o programa de redução do Estado, desnacionalização da economia e retirada de direitos – mesmo com o elevado custo humano, que a resposta criminosa à pandemia deixou patente. A força do bolsonarismo, no entanto, tornou imperioso atrair os setores dissidentes para uma composição com Lula, produzindo a ampla frente de forças que entendeu como prioridade bater a extrema direita e abrir caminho para recompor um ambiente de disputa política menos tóxico.
Não obstante, esses setores só vieram se somar ao processo democrático muito perto do final do primeiro turno e, principalmente, no segundo turno da eleição. Até então, apostaram na chamada terceira via, que foi alimentada intensamente, por seguidos factoides na imprensa, e acabou se materializando em candidaturas com baixa densidade eleitoral. No segundo turno, figuras como Marina Silva e Simone Tebet revelaram clara consciência do risco representado por uma reeleição de Bolsonaro, batendo-se de forma efetiva pela candidatura de Lula – credenciando-se, assim, como parceiras da vitória de 30 de outubro, que precisa assim ser entendida como uma vitória de um campo maior que a esquerda.
No entanto, a importância da constituição da frente ampla vai além das eleições. A esquerda, e mesmo o centro esquerda, apesar de terem sido os sujeitos principais da vitória de Lula, são forças políticas minoritárias no sistema político institucional-formal, estão sub-representadas quando se tem por referência a sua força na sociedade, a sua presença nos movimentos sociais e a sua capacidade de organização e mobilização. Por isso, como nos dois governos anteriores de Lula, a questão da “governabilidade” e do “presidencialismo de coalizão” (Abranches, 2018ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalização: raízes e evolução do modelo político brasileiro. São Paulo: Editora Schwarcz, 2018.) tenderão a ocupar o centro do debate político – pautando os limites institucionais do terceiro governo Lula.
O DOSSIÊ
Tendo em vista a complexa conjuntura, vivenciada pelo Brasil e a América Latina, e o embate crucial travado pelas forças de esquerda e democráticas contra a extrema direita, este Dossiê acolhe artigos com análises e reflexões sobre o processo eleitoral brasileiro, assim como de outros países da região, sob o ângulo dos desafios postos à democracia pelo avanço da extrema direita, nas suas diversas vertentes. Além desta Introdução-Apresentação, são seis (6) artigos de autores de diversas instituições brasileiras e da Argentina (UNIFESP, CEBRAP, UFRGS, UFBA, UNB, UNICAMP, UFU, UNL, USCF, UNC), cujos conteúdos estão estreitamente relacionados e que formam uma perspectiva unitária de análise.
O Dossiê abre com dois artigos que abordam, para além do Brasil, dois países da América Latina. No primeiro, Danilo Enrico Martuscelli e Sávio Machado Cavalcante descrevem e analisam o que chamam de efeitos políticos da terceira ofensiva neoliberal na América Latina, período que corresponde, em geral, à fase inaugurada pelos desdobramentos da crise econômica de 2007-2008 que atingiu governos progressistas na região.
A partir dos casos boliviano e brasileiro, esses autores indicam que os efeitos políticos mais salientes dessa nova ofensiva neoliberal se caracterizam por engendrar golpes de novo tipo, com maior grau de observância de mecanismos legais, e por fomentar a constituição de movimentos de massa reacionários típicos de processos de fascistização.
O segundo artigo, de Hugo Ramos e Sergio Morresi, intitulado “Apuntes sobre el desarrollo de la derecha radical en Argentina: el caso de ‘La Libertad Avanza”, trata especificamente da realidade política da Argentina.
Os autores evidenciam que, “há alguns anos, partidos e organizações na América Latina, ideologicamente posicionados na extrema direita do espectro ideológico, têm obtido sucessos eleitorais. Com destaque para Jair Bolsonaro no Brasil, além das experiências de José Antonio Kast (Chile), Luis Fernando Camacho (Bolívia) e Guido Manini Ríos (Uruguai)”. O artigo faz uma primeira aproximação sobre o crescimento da extrema direita na Argentina, focando “La libertad Avanza” (LLA), partido personalista em franco crescimento tendo em vista às eleições presidenciais de 2023 lideradas, segundo várias pesquisas, por Javier Miley.
Especificamente, faz uma análise histórica para contextualizar e compreender o cenário em que o LLA começou a se desenvolver; caracteriza Javier Milei e analisa as suas ideias e a forma como as apresenta; apresenta uma primeira abordagem sobre a forma como o LLA está se expandindo na geografia argentina, observando a implantação do partido no nível subnacional e tomando como casos as províncias de Chubut, Tucumán e Santa Fe.
O artigo seguinte, de Jorge Almeida, trata de um tema fundamental, mas que raramente é discutido em campanhas eleitorais brasileiras e que, nesse contexto, não é corriqueiramente objeto de estudo, qual seja: como a questão da política externa apareceu na campanha eleitoral presidencial de 2022.
A base do artigo é uma pesquisa empírica primária, feita pelo autor, de análise de conteúdo dos programas oficiais dos dois principais candidatos e de suas performances no horário gratuito de TV, nos debates de TV e na agenda do Jornal Nacional da TV Globo. Adicionalmente, considera os contextos políticos nacional e internacional, além de evidenciar como essa questão se apresentou em campanhas anteriores.
A conclusão do estudo é de que “os candidatos apresentaram linhas gerais de política externa que são coerentes com seus programas de governo e suas concepções político-ideológicas, as quais ficaram, em parte, expressas em seus programas oficiais e, em parte, guardadas pela “ambiguidade estratégica”. Por outro lado, evidencia que o uso da mídia foi guiado por um marketing político-eleitoral imediatista, voltado para a captação do “voto racional-pragmático” e do “voto por valores”. Com isso, o embate priorizou a “pequena política”, deixando o debate abrangente praticamente excluído.
Na sequência, dois artigos discutem a participação das mulheres nas eleições de 2022. O primeiro, de Céli Regina Jardim Pinto, intitulado “Por que elas se elegeram deputadas federais? (eleições de 2018 e 2022)”, analisa o perfil das deputadas federais eleitas pela primeira vez em 2018 e 2022, nos dois extremos do espectro político organizados em torno de PT e PSL-PL.
Recolhendo dados (pessoais e políticos) da vida anterior das deputadas, através de sites oficiais e privados nas redes sociais, a análise concluí que “as novas deputadas da extrema direita em 2018 formaram sua base eleitoral nos movimentos de rua a partir de 2013, enquanto as representantes da esquerda seguiram padrões tradicionais de trajetória política: cargos eletivos de menor importância; militância estudantil ou sindical. Em 2022, as novas deputadas da direita chegam à Câmara com vida partidária anterior, como vereadoras, prefeitas, deputadas estaduais, apontando a existência de carreiras políticas. Na esquerda, há uma mudança significativa: um pequeno número de deputadas teve forte militância nos movimentos feminista, negro e LGBTQIA+”.
O segundo artigo, de autoria de Camila Rocha, Lilian Sendretti e Esther Solano, intitulado “Mulheres de extrema direita: empoderamento feminino e valorização moral da mulher”, é centrado na atuação de mulheres de extrema direita e sua interlocução com mulheres comuns.
As autoras destacam que o campo feminista vem acumulando uma série de conquistas nos últimos anos em diversos países: maior visibilidade e combate de violências sexuais, maior centralidade da ideia de cuidado na academia e em políticas públicas, avanços relacionados à dignidade menstrual, à paridade de gênero em instituições políticas e à legalização do aborto.
O artigo evidencia que em países democráticos em todo o mundo foram eleitas lideranças de extrema direita, bem como difundiram-se movimentos conservadores e reacionários, nos quais assumem centralidade temas relacionados ao gênero. Nesse contexto, ativistas, influenciadoras e mulheres comuns assumiram-se como “feministas conservadoras” ou “femonacionalistas”, apropriando-se de agendas em defesa das mulheres, aproximando-as do eleitorado feminino.
Afirma que “a noção de empoderamento feminino, associada à valorização moral das mulheres a partir de uma estrutura binária de gênero, é crucial para compreender a atuação de mulheres de extrema direita e sua interlocução com mulheres comuns”. Com o apoio de pesquisas realizadas com mulheres que votaram em Jair Bolsonaro, propõe “a hipótese de que a massificação de uma cultura pós-feminista ao longo das décadas de 1990 e 2000, bem como a emergência de fenômenos como o feminismo neoliberal e o feminismo popular propiciaram novas sensibilidades que permitiram que um novo tipo de atuação feminina de extrema direita se tornasse possível”.
O último artigo, “O terceiro governo Lula: limites e perspectivas”, de autoria dos coordenadores desse Dossiê, traz algumas reflexões sobre os primeiros seis meses do novo governo, tendo por contexto a evolução da conjuntura nesse pequeno período.
Em particular, destaca as suas dificuldades institucionais na relação com um parlamento majoritariamente de direita neoliberal e extrema-direita, e com forte conotação fisiológica – que caracteriza o “presidencialismo de coalização” brasileiro e interdita qualquer tipo de mudança estrutural que reduza a desigualdade social.
Por fim, aponta que o enfretamento e a superação dessas dificuldades, mesmo que parcial, não poderão se apoiar apenas na capacidade de negociação de Lula no plano institucional; sem a mobilização popular, que expresse nas ruas o desejo efetivo de mudanças estruturais tal como feito explicitamente na campanha eleitoral, a correlação de forças não se tornará, no fundamental, mais favorável.
REFERÊNCIAS
- HAYEK, Friedrich. O Caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
- ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalização: raízes e evolução do modelo político brasileiro. São Paulo: Editora Schwarcz, 2018.
- MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
12 Jul 2023 -
Aceito
01 Nov 2023