Resumo
O artigo traz algumas reflexões sobre os primeiros seis meses do novo governo, tendo por contexto a evolução da conjuntura nesse pequeno período. Em particular, destaca as suas dificuldades institucionais na relação com um parlamento majoritariamente de direita neoliberal e extrema-direita, e com forte conotação fisiológica – que caracteriza o “presidencialismo de coalização” brasileiro e interdita qualquer tipo de mudança estrutural que reduza a desigualdade social. E aponta que o enfrentamento e a superação dessas dificuldades, mesmo que parcial, não poderão se apoiar apenas na capacidade de negociação de Lula no plano institucional; sem a mobilização popular, que expresse nas ruas o desejo efetivo de mudanças estruturais tal como feito explicitamente na campanha eleitoral, a correlação de forças não se tornará, no fundamental, mais favorável.
Palavras-chave
Eleições 2022; Terceiro governo Lula; Presidencialismo de coalizão; Políticas públicas; Combate à desigualdade
Abstract
The paper presents some reflections on the first six months of the new government, taking into account the evolution of the conjuncture in this short period. In particular, it highlights its institutional difficulties in relation to a parliament that is mostly from the neoliberal right and extreme right, and with a strong physiological connotation – which characterizes Brazilian “coalition presidentialism” and prohibits any type of structural change that reduces social inequality. And he points out that the confrontation and overcoming of these difficulties, even if partial, cannot rely solely on Lula’s negotiation capacity at the institutional level; without popular mobilization, which expresses in the streets the effective desire for structural changes as explicitly done in the electoral campaign, the correlation of forces will not become, fundamentally, more favourable.
Key words
Elections 2022; Third Lula government; Coalition presidentialism; Public policy; Fight against inequality
Résumé
L’article présente quelques réflexions sur les six premiers mois du nouveau gouvernement, en tenant compte de l’évolution de la conjoncture dans cette courte période. Il met notamment en lumière ses difficultés institutionnelles par rapport à un parlement majoritairement issu de la droite et de l’extrême droite néolibérales, et à forte connotation physiologique – qui caractérise le « présidentialisme de coalition » brésilien et interdit tout type de changement structurel qui réduise les inégalités sociales. Et il rappelle que la confrontation et le dépassement de ces difficultés, même partiels, ne peuvent reposer uniquement sur la capacité de négociation de Lula au niveau institutionnel; sans mobilisation populaire, qui exprime dans la rue le désir effectif de changements structurels comme cela s’est fait explicitement dans la campagne électorale, le rapport de forces ne deviendra pas, fondamentalement, plus favorable.
Mots-clés
Élections 2022; Troisième gouvernement Lula; Présidentialisme de coalition; Politique publique; Lutter contre les inégalités
A vitória da esquerda (em sentido lato) na eleição de 2022, impedindo a continuação do governo fascista de Bolsonaro (Boito, 2019BOITO, A. A terra é redonda e o governo Bolsonaro é fascista. In: A terra é redonda, 17/10/2019. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/a-terra-e-redonda-e-o-governo-bolsonaro-e-fascista/. Acesso em: 8 nov. 2023.
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; Mattos, 2020MATTOS, M. B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.), foi maiúscula, apesar da pequena diferença de votos. Derrotou-se o movimento neofascista e suas milícias físicas e digitais, os algoritmos das big tech s, a maioria das igrejas evangélicas, as forças de segurança (públicas e privadas), a parte mais importante do capital financeiro e do agronegócio, o aparelhamento do Estado e de políticas públicas, enfim, o uso de todo tipo de providências para manter o fascismo no governo (Filgueiras; Druck, 2020FILGUEIRAS, L; DRUCK, G. O Brasil nas trevas (2013-2020): do golpe neoliberal ao neofascismo. São Paulo: Boitempo, 2020. Textos 31, 33 e 38.). Portanto, não se pode ter a menor dúvida da importância dessa vitória.
O balanço dos quatro anos trágicos do governo Bolsonaro, que pode ser resumido pelos fatos a seguir, reforçam essa importância: ataques às instituições e aos fundamentos do Estado Democrático de Direito; desemprego em alta, queda da renda e aumento da pobreza e da fome; deterioração das relações internacionais e a transformação do país em pária; negacionismo na gestão da pandemia, que levou a quase 700 mil mortes pelo covid-19; queimadas e desmatamento recorde da floresta amazônica e ataques aos povos originários; sucessivos cortes no orçamento das universidades, ameaças à autonomia docente e intervenção em diversas instituições; disseminação de uma cultura de ódio e violência nas escolas; criminalização, censura e falta de investimento na cultura (Rocha, 2021b) .
Em que pese essa “obra trágica”, e a instrumentalização despudorada das instituições de Estado e o uso de todo tipo de manipulação, fraude e assédio de eleitores, antes e durante o processo eleitoral, a candidatura de Bolsonaro mostrou-se, deve-se reconhecer, fortemente competitiva. Esse desempenho, mesmo que surpreendente, refletiu a força do bolsonarismo na sociedade brasileira e os seus enormes recursos políticos e econômicos.
E foi exatamente por essa compreensão corretamente antecipada, da força e da natureza do inimigo que se estava enfrentando, que a candidatura de Lula construiu uma ampla frente política: necessidade incontornável para derrotar a extrema direita (neo)fascista – expressa explicitamente na escolha do candidato à vice-presidência. Entretanto, a incorporação da direita tradicional neoliberal a essa frente política foi apenas parcial, pois o seu núcleo mais orgânico, representado pelo capital financeiro associado ao imperialismo, apoiou a reeleição de Bolsonaro no primeiro e segundo turnos das eleições – em que pese algumas personalidades importantes do “mercado” terem declarado voto em Lula.
Apesar da derrota de Bolsonaro, a extrema direita, desde 2018, e principalmente agora em 2022, tem se mostrado capaz de transformar o seu poder de mobilização social em forte representação no Congresso Nacional – o que também evidencia a sua forte presença e capilaridade na sociedade, que vai além da liderança de Bolsonaro.
Por outro lado, a esquerda, mesmo somada à centro-esquerda e a setores de “centro” com efetivo compromisso democrático, não conseguiu, mais uma vez, eleger uma bancada parlamentar majoritária – deixando o seu governo fragilizado na sua relação institucional com o parlamento, no limite dependendo de negociações antirrepublicanas, sob pena de não conseguir governabilidade.
Por isso, iniciado o governo Lula, mais uma vez assistimos ao mesmo filme: a esquerda (em sentido lato) elegeu o presidente da República, mas não consegue colocar em prática os aspectos fundamentais do seu programa político, em particular a sua agenda econômica, explicitado claramente por Lula ao longo de todo o processo eleitoral.
Desse modo, mais uma vez, como nos dois governos anteriores de Lula, o “presidencialismo de coalizão” (Abranches, 2018ABRANCHES, S. Presidencialismo de Coalização: raízes e evolução do modelo político brasileiro. São Paulo: Editora Schwarcz, 2018.; 1988), na sua versão brasileira, isto é, sem estar apoiado em programas políticos transparentes, e sim com base em negociações caso a caso tendo por moeda de troca cargos e verbas, será um fator que condicionará fortemente a execução das políticas públicas. Mais do que nos dois governos anteriores de Lula. Por duas razões:
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Depois do Golpe, nos Governos Temer e Bolsonaro, ocorreram algumas mudanças nas regras institucionais que balizam o relacionamento entre o Poder Executivo e Legislativo, que estão inscritas na Constituição e nos Regimentos Internos da Câmara e do Senado (Bittencourt, 2012BITTENCOURT, F. M. R. Relações executivo-legislativo no Presidencialismo de Coalizão: um quadro de referência para estudos de orçamento e controle. In: Núcleo de Pesquisa e Estudos do Senado. Texto para discussão 112, abr. 2012.), em especial no que se refere à definição do orçamento e ao controle da atividade legislativa. Um exemplo importante disso foi a criação de um novo tipo de Emenda Parlamentar (a do Relator), que deu origem ao chamado “Orçamento Secreto”, sob o controle do Presidente da Câmara e do parlamentar indicado para relatar a proposta orçamentária enviada pelo Executivo ao Parlamento.
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A qualidade e a natureza de uma coalizão dependem da composição partidária do Parlamento (no Brasil, a Câmara de Deputados e o Senado), isto é, da força institucional de cada partido (medida pelo número de deputados e senadores que elegeu), bem como de seus respectivos ideários e interesses que representam. Nesse terceiro Governo Lula, a esquerda, mesmo no sentido lato, é muito minoritária nas duas casas legislativas, mais do que nos governos anteriores; por isso, nesse plano institucional, a correlação de forças mais desfavorável às iniciativas do Poder Executivo, tenderá a forçar o governo a fazer mais concessões (a Partidos e parlamentares à direita do espectro político) para ter suas propostas aprovadas – na forma de cargos e emendas parlamentares e/ou reduzindo-moderando o alcance das próprias medidas enviadas para serem apreciadas.
O TERCEIRO GOVERNO LULA: CONJUNTURA INICIAL
Imediatamente após a vitória de Lula, antes mesmo de sua posse e logo depois, as forças democráticas derrotaram, de novo, as sucessivas ações violentas e a tentativa de golpe de Estado do (neo)fascismo: acampamentos na porta de quartéis Brasil afora pregando a intervenção militar, bloqueio de estradas, depredações da cidade de Brasília no dia 12 de dezembro, quando da diplomação de Lula, colocação de bomba nas cercanias do aeroporto no dia 24 do mesmo mês e, por fim, no dia 8 de janeiro, a invasão e depredação das sedes dos três poderes da República na tentativa de dar início a um golpe de Estado.
Nesse contexto, a questão da governabilidade, ainda mais do que nos dois primeiros mandatos, passou a ser central para o futuro governo Lula. Essa constatação não traz nenhuma novidade em relação aos governos anteriores, inclusive os do próprio Lula, que operaram por meio de um “presidencialismo de coalizão” singular, no qual o Executivo garante apoio e aprovação para seus projetos distribuindo verbas, ministérios e nacos de influência nos órgãos estatais federais aos parlamentares (Miguel, 2022MIGUEL, L. F. Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica 2022.). No entanto, nesse início, a conjuntura apresentava então circunstâncias contraditórias e bastante diferentes das existentes nos governos petistas anteriores.
De um lado, havia elementos que, de fato, dificultavam a constituição de um governo “progressista” (mais à esquerda) – a desconstrução-aparelhamento de órgãos fundamentais do Estado feita pelo governo Bolsonaro, a desorganização das finanças públicas, a sempre presente pressão do “mercado” para execução de um ajuste fiscal permanente, a atuação agressiva do bolsonarismo para bloquear permanentemente qualquer iniciativa governamental e a própria sub-representação da esquerda, já mencionada, no Congresso Nacional.
A extrema direita, nas suas vertentes (neo)fascista e ultraneoliberal, já dava mostras de que fustigaria o governo. Trata-se de uma das características da “crise da democracia”, tal como identificada mesmo pela Ciência Política mais conservadora: a ausência de moderação de uma oposição que se dispõe a derrubar o governo a qualquer preço, o desprezo pelas regras tácitas da disputa política, o esforço para manter a tensão sempre em elevadíssimo nível, a fim de produzir o fracasso na gestão estatal. É um jogo diferente daquele que foi jogado nos dois mandatos anteriores de Lula: não mais conter o governo, esvaziar seu ímpeto transformador, obrigá-lo a compromissos com o status quo , mas a tentativa de destruí-lo, de impedi-lo de exercer, de fato, a tarefa para qual foi eleito, isto é, governar.
Apesar de derrotado eleitoralmente, não se pode subestimar o significado e a força do bolsonarismo, pois se trata de um movimento de massa, cujo partido são as redes sociais, as igrejas evangélicas e as forças oficiais de segurança. O bolsonarismo enquanto movimento, expressa-se para muito além do meio digital, estando incrustado na sociedade – como demonstrado, mais uma vez, pelas manifestações golpistas pós-eleitorais e, principalmente, pela invasão, no dia 8 de janeiro, dos prédios dos três poderes da República, em uma tentativa canhestra de dar início a um golpe de Estado. As forças democráticas terão que enfrentá-lo em todos esses campos, pois o bolsonarismo não se extinguirá espontaneamente. Em suma, o movimento (neo)fascista dá mostras que tem uma dinâmica própria, que vai muito além da liderança momentânea de Bolsonaro; tem direção própria, para além do personagem que o nomeia, está articulado internacionalmente com as várias facções da extrema direita (no poder ou não) existentes hoje no mundo, inclusive com financiamento internacional (Rocha, 2021a; Casimiro, 2018CASIMIRO, F. H. C. A nova direita: aparelhos de ação política e ideológica no Brasil contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, 2018.).
Por sua vez, os neoliberais bolsonaristas ou não, tentarão impor a sua agenda argumentando com o seu mantra principal: “sem ajuste fiscal permanente não há como estabilizar a economia e retomar o crescimento”. Para isso, mobilizarão todos seus recursos na mídia corporativa, no parlamento e no judiciário: mais uma vez, será uma disputa renhida pelo controle e apropriação do fundo público (gastos sociais versus juros do capital financeiro), objeto fundamental no processo de concentração/distribuição de renda em qualquer país. A disputa orçamentária é, talvez, a principal expressão da luta de classes em sua dimensão econômica; a escolha das prioridades define a orientação, o sentido e o caráter do governo (de esquerda ou de direita).
Parte da direita neoliberal, que adentrou à frente lulista na prorrogação do segundo tempo do jogo, como seria de se esperar, continuou defendendo abertamente os interesses do capital financeiro, vocalizando e justificando as reações do “mercado” (inconformado com a perspectiva de prioridade dos gastos sociais acima do ajuste fiscal), que sempre se expressa em fortes desvalorizações do real (subida do dólar) e quedas da bolsa. Antes mesmo do novo governo assumir, inconformados com a PEC da transição, que propôs a retirada permanente (ou durante os quatros anos do Governo Lula) dos recursos do novo Bolsa-Família do “teto de gastos”, atuaram ativamente para desidratá-la, conseguindo reduzir o seu alcance para apenas um ano. O objetivo dessa PEC, indispensável para o exercício de uma governabilidade mínima, foi o de abrir espaço no orçamento para outros gastos sociais prioritários e os investimentos públicos.
No início do governo, a tática discursiva dos porta-vozes do “mercado” era de que o governo Lula deveria ser um governo da frente ampla que o elegeu. Mas, na verdade, maliciosamente, identificava um eventual governo de frente ampla como sendo um governo neoliberal: reconhecem retoricamente a desigualdade, a pobreza e a fome existentes no país, mas não estão dispostos a enfrentá-las, pois para eles o orçamento tem que continuar subordinado ao capital financeiro, priorizando o pagamento dos juros da dívida pública. Em suma, o ajuste fiscal permanente deve ser a prioridade do “governo de frente ampla”.
De outro lado, Lula deve a sua vitória, principalmente, à população mais pobre do país (que ganha até dois salários-mínimos), e que se expressou em outros segmentos sociais (mulheres, negros e LGBT) e regionalmente (Nordeste). Sua campanha foi dirigida, fundamentalmente, para responder às necessidades e reivindicações desses segmentos: o combate à fome (com destaque para um novo Bolsa-Família muito mais robusto), o aumento real do salário-mínimo, a recuperação do financiamento da merenda escolar e da farmácia popular, a retomada da política habitacional voltada para as famílias de baixa renda, a volta dos investimentos públicos e a defesa de políticas de proteção dos direitos das “minorias”. Em nenhum momento, embora sistematicamente cobrado pelos representantes e prepostos do “mercado” e da terceira via, se comprometeu com os principais pontos do programa básico do neoliberalismo: uma política econômica ortodoxa, um ajuste fiscal permanente, a manutenção do famigerado “teto de gastos” e da atual forma de gestão da Petrobras e de sua política de preços, privatizações dos bancos públicos e da Petrobras etc.
Dessa vez não teve uma “Carta ao Povo Brasileiro”, nem qualquer compromisso com a agenda neoliberal, apesar de algumas frações das forças neoliberais terem apoiado Lula no segundo turno das eleições. O centro da campanha, em oposição ao neofascismo neoliberal, pode ser resumido da seguinte forma: “defesa da democracia, reconstrução do Estado e de suas instituições, combate às desigualdades”. A prioridade imediata foi viabilizar os recursos necessários para permitir o cumprimento das promessas de campanha mais urgentes, feitas ao país e, principalmente, ao povo pobre. Consenso admitido, até certo ponto, mesmo pelos prepostos e representantes da direita neoliberal - ainda que a contragosto e, na verdade, apenas retoricamente.
Na prática, entretanto, além de terem conseguido reduzir o alcance da PEC da Transição, os segmentos da direita neoliberal que perfilaram com a frente ampla atuaram, com forte apoio da mídia corporativa, para exigir do Governo Lula que assumisse uma regra fiscal para ser implementada a partir de 2024, do tipo “teto de gastos”, tendo no Banco Central “independente” o seu “cavalo de Tróia” ou o seu “bunker”, militando contra a retomada do crescimento, priorizando escandalosamente os interesses do capital financeiro, com a manutenção da maior taxa de juros real do mundo em uma conjuntura na qual a inflação não vinha sendo impulsionada pela demanda e que já apontava para uma desaceleração – confirmada posteriormente, com o IPCA atingindo, em maio, 3,94% no acumulado de 12 meses; próxima, portanto, ao centro da meta de inflação estipulada.
Em síntese, estava-se diante de uma conjuntura bem complexa, com Lula e o seu governo, desde o seu início, caminhando no “fio da navalha”. Do ponto de vista econômico, a conjuntura internacional apresentava sinais contraditórios; de um lado, a elevação da inflação nos países centrais – resultante da pandemia e da guerra na Ucrânia, vinha empurrando as suas taxas de juros para cima, mas, de outro lado, os preços das commodities voltavam a subir, beneficiando as exportações brasileiras. Além disso, diferentemente do início do primeiro governo Lula, o país tinha um elevado montante de reservas internacionais (US$ 326 bilhões), antídoto importante contra a ameaça de crises cambiais.
Internamente, a inflação também estava alta, apesar de sua contenção artificial pelo governo Bolsonaro através da redução dos preços dos combustíveis – decorrente da retirada eleitoreira de tributos estaduais. Contudo, a economia brasileira, depois de um longo período de estagnação, e com grande capacidade ociosa, tem potencialmente possibilidade de iniciar uma recuperação, ainda que lenta, com a retomada do crescimento, empurrado pelo fim da pandemia e pela gastança eleitoreira do governo Bolsonaro. Frente a esse quadro, a economia do país poderá se acelerar em 2023, reforçada pelos gastos sociais do governo Lula e pela reativação dos investimentos públicos, principalmente em obras paralisadas e na construção habitacional (Filgueiras; Druck, 2022FILGUEIRAS, L; DRUCK, G. Lula, a esquerda e a frente ampla democrática. In: Outra Palavras, 23 dez. 2022. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/lula-a-esquerda-e-a-frente-ampla/. Acesso em: 8 nov. 2023.
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). Mas esse futuro possível dependerá fortemente da natureza da nova regra (arcabouço) fiscal e da redução da taxa de juros.
Em suma, os sinais indicavam para a possibilidade de uma reversão cíclica da economia brasileira. Caso isso ocorra, no curto prazo essa será a melhor resposta à histeria fiscal dos neoliberais e também uma das iniciativas mais importantes para enfrentar as previsíveis ações do movimento (neo)fascista: é com crescimento econômico que se controla e se reduz o peso da dívida pública, exorcizando o déficit fiscal sem comprometer as prioridades sociais, fato já demonstrado nos governos anteriores de Lula. É com o crescimento econômico, com o aumento do emprego e da renda, que se pode acabar com a pobreza absoluta e colocar em questão a desigualdade do país. É também com crescimento econômico e políticas de tributação progressiva dos mais ricos que se desfaz a má vontade dos segmentos mais baixos da classe média, inclusive aqueles que votaram em Bolsonaro, mas que não são bolsonaristas. A permanente tensão entre democracia e desigualdade econômico-social, principalmente nos países da periferia do capitalismo, é decisiva para o futuro da primeira; o enfrentamento à desigualdade econômico-social é crucial, do ponto de vista estrutural, para a defesa, ampliação e legitimação da democracia.
Do ponto de vista da conjuntura política internacional, apesar da guerra na Ucrânia, e da instabilidade de países do continente, como o Peru, não parecia haver um quadro hostil ao novo governo. Isso deveu-se a alguns motivos principais: à derrota de Trump, na eleição presidencial de 2020, somou-se a frustração de uma ampla vitória do Partido Republicano para a Câmara e o Senado; as sucessivas vitórias de governos “progressistas” nos últimos anos na América Latina, com a derrota da direita em vários países, apontava para a possibilidade de retomada do esforço de integração da região; a vitória de Lula foi festejada e entendida nos principais países do mundo (do centro e da periferia), inclusive antecedida por manifestações de apoio a sua candidatura por vários líderes políticos e representantes de Estado, como uma vitória da democracia sobre o fascismo; a expectativa que o Brasil, a partir do governo Lula, reassumisse o seu protagonismo mundial, na vanguarda do enfrentamento à destruição do meio ambiente e à deterioração do clima, apontando para a transição de um novo tipo de economia (de baixo carbono), possibilitaria a retomada do financiamento do Fundo Amazônia, além de estimular o aporte de novos recursos.
O TERCEIRO GOVERNO LULA APÓS SEIS MESES
Passados seis meses após a posse, ficou mais do que evidente que o novo governo Lula, constituído por uma ampla frente, será permanentemente tenso e objeto de disputa, em todas as áreas, entre as diferentes forças políticas que o compõem. Para além do embate orçamentário, do ponto de vista setorial – destacadamente saúde, educação, meio ambiente e energia – o enfrentamento entre os interesses públicos e privados (de classes) se explicitam a cada momento tendo por objeto, entre outras, as políticas a serem adotadas para o SUS, para o ensino médio e superior e para o desenvolvimento da Amazônia e os povos originários, além do estatuto e da política de preços da Petrobras.
Até aqui, o combate ao fascismo e a reconstrução do Estado, de fato, tem sido implementado, inclusive com o apoio de frações da direita neoliberal. No entanto, o enfrentamento estrutural da desigualdade de renda e riqueza, assim como nos dois primeiros governos de Lula, continua vetado, não consegue avançar, a não ser marginalmente – apesar de uma vitória inicial (parcial) com a aprovação da PEC da Transição, que garantiu os recursos para o Bolsa-Família e outros gastos sociais em 2023. O permanente “ajuste fiscal”, assumido pelo Governo Lula e agora disfarçadamente intitulado “arcabouço fiscal” (Kliass, 2023; Bastos, 2023BASTOS, P. P. Z. Quatro tetos e um funeral: o novo arcabouço/regra fiscal e o projeto social-liberal do ministro Haddad 2023. Nota do Cecon 23 (13/04/2023), Instituto de Economia, Unicamp, 2023.; Souza, 2023SOUZA, N. A. de. “O arcabouço da Fazenda é teto de gastos com bandas”, afirma Nilson Araújo de Souza. In: Hora do Povo, 3 abr. 2023.), em fase final de aprovação pelo Câmara de Deputados é, a rigor, uma flexibilização do “teto de gastos”, desmoralizado pelo Governo Bolsonaro. Juntamente com o Banco Central “independente”, ele restringirá fortemente as políticas macroeconômicas e sociais do governo Lula. As forças políticas neoliberais e neofascistas se associam com esse objetivo, obrigando o governo a se submeter a sua hegemonia (ideológica e fisiológica) no parlamento e impedindo-o de executar políticas monetária e fiscal condizentes com o seu programa.
Além disso, a “reforma tributária” foi dividida em duas partes. A primeira, já aprovada na Câmara de Deputados e ainda em tramitação no Senado, não toca, no fundamental, na questão da regressividade do sistema tributário brasileiro, pois foi focada, basicamente, na simplificação e racionalização dos impostos sobre o consumo (antiga reivindicação do empresariado) – embora afete também de forma diferenciada as distintas regiões do país (UOL, 2023UOL. Reforma Tributária não corrige desigualdades e sonegação, diz especialista. In: Uol Notícias, 08/07/2023. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/andre-santana/2023/07/08/reforma-tributaria-nao-corrige-desigualdades-e-sonegacao-diz-especialistas.htm Acesso em: 8 nov. 2023.
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). O pequeno efeito redistributivo que dela se espera será, novamente, da classe média para os mais pobres, sem tocar no topo da pirâmide. Já a segunda parte, que tratará da tributação sobre a renda e a riqueza, está prevista de ser enviada ao Congresso 180 dias depois da aprovação definitiva da primeira. Aí então, a resistência em tributar os ricos (distribuição de lucros e dividendos, imposto sobre as grandes fortunas), no limite impedindo-a, se fará sentir com toda a força. É nessa segunda parte que, de fato, se evidenciará a capacidade do terceiro Governo Lula em reduzir, de forma importante, as desigualdades sociais do país.
A contradição entre democracia e desigualdade econômico-social mais uma vez vem à tona: a burguesia brasileira, todas as suas frações, que podem divergir em outros aspectos, não aceita a distribuição de renda e da riqueza, em hipótese alguma (Boito Jr., 2018; Singer, 2018SINGER, A. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.). Qualquer passo nessa direção é bombardeado e deslegitimado por seus prepostos e porta-vozes. Daí o histórico estreitamento da democracia brasileira e, no limite, se necessário, a implementação de golpes de Estado (Miguel, 2022MIGUEL, L. F. Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica 2022.; Boron, 1999).
Essa situação é facilitada pelo fato de a esquerda nunca conseguir eleger a maioria do parlamento, deixando o seu governo à mercê de um “presidencialismo de coalizão” explicitamente clientelista e corrupto, obrigando-o a entabular negociações “antirrepublicanas” que o fragiliza e, no limite, o coloca na rota de um impeachment . E o pior, essa “pequena política” só permite avanços marginais no combate à desigualdade e, mesmo assim, apenas no plano conjuntural, que podem facilmente ser desfeitos em governos posteriores – como ficou evidente, após o golpe contra a Presidente Dilma, durante os governos de Temer e Bolsonaro.
O “presidencialismo de coalizão”, fica cada vez mais claro, é uma arma política poderosíssima contra a esquerda e o avanço do combate à desigualdade. Desse modo, não há outra alternativa à esquerda que não seja a organização e mobilização política, no curto e no longo prazo. Mas a pergunta é: Lula e o PT, para além das negociações com o chamado “Centrão” e diferentemente dos seus governos anteriores, apostarão na mobilização popular, reconhecendo-a como meio de pressão fundamental para viabilizar o seu programa? Ou buscarão a “linha de menor resistência”, entregando ministérios e órgãos do Estado à direita e ao fisiologismo?
A desenvoltura do “Centrão” é tão grande que, antes do governo completar seis meses, em que pesem algumas pastas terem sido entregues ao PSD, ao PP e mesmo ao MDB e a União Brasil, passou a reivindicar a ocupação do Ministério da Saúde, conforme um modus operandi que exige espaços que tenham visibilidade, orçamento robusto e forte lobby dos interesses privados – no caso da saúde, os tubarões dos hospitais particulares e planos de saúde, a quem sempre é lucrativo contentar. Além de, no início do segundo semestre do ano, voltou a sua sanha para os Ministérios dos Esportes e do Desenvolvimento e Assistência Social.
Se não houver enfrentamento, que conteste a legitimidade do neoliberalismo fisiológico chantagista, qual será o preço final para “salvar” o governo? Um preço adicional, claro, uma vez que a democratização da comunicação ou a reforma urbana, já foram rifadas na composição ministerial, assim como o meio ambiente ou os povos indígenas foram fragilizados para aprovar a Medida Provisória da Esplanada.
Mas então, que governo será salvo? Um governo acuado, que cede cada vez mais, que renuncia a tudo pela “governabilidade”, na tentativa de preservar o mínimo do mínimo. Uma renúncia que hipoteca também o futuro do país.
As circunstâncias são desafiadoras. Mas repetir um script que já deu errado dificilmente levará a um resultado positivo. Lula é o presidente da república, legitimado há pouco pelo voto popular. Tem recursos de poder para enfrentar as pretensões do centrão e para mobilizar sua base. Está na hora de virar o disco e ensaiar novas estratégias.
Por isso, mais do que nunca, será imprescindível a pressão popular para defender criticamente e empurrar o governo mais para esquerda, para garantir avanços estruturais efetivos na redução da desigualdade; o que implica ir muito além da PEC da Transição e de muitas ações e medidas importantes que já foram implementadas, mas que são insuficientes, como a política de reajuste do salário-mínimo acima da inflação, um Bolsa-Família mais robusto, a retomada do protagonismo do país no plano internacional, o combate à mineração mafiosa na Amazônia, a interrupção do genocídio contra os Ianomanis, a retomada da política habitacional etc.
O prolongamento da conjuntura favorável, pós-eleitoral, com a gigante vitória de Lula, dependerá da capacidade política da esquerda em mobilizar os setores populares, condição fundamental para, de forma independente, jamais perdendo de vista os seus objetivos de longo prazo, defender os seus interesses inadiáveis e impedir a captura do futuro governo pela direita neoliberal; e, no plano institucional, possibilitar a formação de maiorias necessárias à aprovação de propostas que beneficiem a classe trabalhadora (Folha de São Paulo, 2023FOLHA DE SÃO PAULO. Lula se queixa de dormência dos movimentos sociais durante o seu governo. 26 ago. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2023/08/lula-se-queixa-de-dormencia-dos-movimentos-sociais-durante-o-seu-governo.shtml. Acesso em: 8 nov. 2023.
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).
Deve-se ter a clareza de que a correlação de forças prevalecente em cada momento não é algo dado e imutável, como se fosse uma fotografia. A esquerda é parte importante do jogo que está em permanente movimento, alterando-se o tempo todo. Uma correlação de forças favorável não deve ser motivo para acomodação e relaxamento, assim como uma eventual correlação de forças desfavorável deve ser entendida sempre como uma necessidade de atuar para mudá-la, a favor dos trabalhadores e do povo pobre, e não uma situação na qual deva se adaptar. A história demonstra que, na política, atuar (e governar) dentro dos estreitos limites do possível significa a capitulação ao projeto do adversário e que, ao contrário, buscar o impossível é o caminho para alargar o horizonte do possível.
Lula ganhou a eleição com o voto dos mais pobres. Ganhou com o compromisso de fazer um governo que novamente minorasse suas agruras e ampliasse seu horizonte de possibilidades. Caso o governo falhe nesse compromisso básico, não é apenas a carreira política de Lula que chegará a um fim melancólico ou o PT que sofrerá. Um eventual fracasso do governo Lula, como se observou nos anos que sucederam ao golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016 (Jinkings, 2016; Pinheiro-Machado; Freixo, 2019PINHEIRO-MACHADO, R.; FREIXO, A. (org.). Brasil em transe: bolsonarismo, nova direita e desdemocratização. Rio de Janeiro: Oficina, 2019.), será o combustível necessário para o crescimento da extrema direita, que poderá vir a ter grandes chances de retornar ao poder, com ou sem Bolsonaro. Reafirmará, para vastas camadas da população, que a democracia não funciona, que é um jogo de cartas marcadas a favor dos mais ricos. E quem dirá que estarão erradas?
Por fim, não se deve perder de vista que a luta (e a vitória) contra a extrema direita no Brasil é parte fundamental dessa mesma luta no plano internacional, daí a importância e a enorme responsabilidade da esquerda brasileira e das demais forças democráticas antineoliberais. O governo Lula, e o seu sucesso, carregam esperanças que vão muito além do Brasil, e mesmo da América Latina. Por conta disso, os olhos do mundo estão postos no maior país da América Latina e cabe às forças democráticas e de esquerda manterem a chama da esperança acesa, evitando um novo caminho no rumo ao abismo.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
12 Jul 2023 -
Aceito
04 Out 2023