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A IMIGRAÇÃO SUL-NORTE E A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO NA ERA DO CAPITAL1 1 Agradecemos aos editores da revista CRH e aos pareceristas pela leitura atenta e pelas valiosas sugestões. Agradecemos ainda ao apoio concedido aos autores pelas agências de pesquisa CNPq e Fapemig.

SOUTH-NORTH IMMIGRATION AND THE EXPLOITATION OF LABOUR IN THE AGE OF CAPITAL

L’IMMIGRATION SUD-NORD ET L’EXPLOITATION DU TRAVAIL À L’ÈRE DU CAPITAL

Resumos

O objetivo do artigo é analisar a imigração do trabalho sentido Sul-Norte, destacando suas imbricações com o mercado de trabalho e com as políticas públicas dos países receptores de imigrantes no Norte global com destaque ao período pós-crise de 2008. A análise se faz à luz do materialismo histórico-dialético, a pesquisa é de abordagem exploratória, e a metodologia está fundada na revisão de literatura acerca do trabalho e imigração, análise dos relatórios sobre migração internacional da International Organization for Migration (IOM, 2020, 2021 e 2022), do Department of Economic and Social Affairs of the United Nations (UM/DESA), o World Migration Report (2019) e do International Labour Organization. (ILO, 2021) Os resultados indicam que os países do Norte têm se valido de políticas públicas de gestão da imigração, buscando criar condições para o aprofundamento do controle do trabalho localmente e contribuindo para a precarização global da força de trabalho.

Trabalho imigrante sul-norte; Políticas de imigração; Precarização do trabalho


The aim of the article is to analyze South-North labor immigration, especially in the last two decades of the 21st century, highlighting its imbrications with the functioning of the labor market and with the public policies of immigrant-receiving countries in the global North. The analysis is made in the light of historical-dialectical materialism, the research has an exploratory approach and the methodology is based on a review of the literature pertinent to studies relating to work and immigration, analysis of reports on international migration from the International Organization for Migration (IOM, 2020, 2021 e 2022), the Department of Economic and Social Affairs of the United Nations (UN/DESA), the World Migration Report (2019) and the International Labor Organization. (ILO, 2021) The results indicate that the countries of the North have used public policies to manage immigration, seeking to create the conditions for deepening control of labour locally and contributing to the global precariousness of the workforce.

South-north immigrant labor; Immigration policies; Precariousness of work


L’objectif de cet article est d’analyser l’immigration de travail du Sud vers le Nord, en particulier au cours des deux dernières décennies du XXIe siècle, en soulignant ses liens avec le fonctionnement du marché du travail et avec les politiques publiques des pays qui accueillent les immigrés dans le Nord global. L’analyse est réalisée à la lumière du matérialisme historico-dialectique, la recherche a une approche exploratoire et la méthodologie est basée sur une revue de la littérature des études relatives au travail et à l’immigration, l’analyse des rapports sur les migrations internationales de l’Organisation internationale pour les migrations (OIM, 2020, 2021 e 2022), du Département des affaires économiques et sociales des Nations unies (UN/DESA), du Rapport sur les migrations mondiales (2019) et de l’Organisation internationale du travail. (OIT, 2022) Les résultats indiquent que les pays du Nord ont utilisé des politiques publiques pour gérer l’immigration, en cherchant à créer les conditions d’un contrôle accru de la main-d’œuvre au niveau local et en contribuant à la précarisation globale de la main-d’œuvre.

Main-d’œuvre immigrée sud-nord; Politiques d’immigration; Précarisation de l’emploi


Por mais que nós europeus gostemos de apresentar nosso direito como universal, válido erga omnes, as populações imigrantes estão sujeitas a um direito especial, fruto de uma constituição material e uma constituição formal, mas ambas inferiorizam os cidadãos estrangeiros que estão aqui, coagidos, para trabalhar. Pietro Basso, Imigração na Europa, p. 33.

INTRODUÇÃO

A imigração não é um fenômeno recente, mas histórico e decorrente de contextos sociais, políticos e econômicos. Ela pode ser voluntária, envolvendo escolhas pessoais e estratégias de vida, como conhecer outra cultura, casar-se ou estudar; não obstante, o que parece balizar os processos decisórios concernentes aos processos migratórios são constrangimentos de ordem econômica, aos quais homens e mulheres estão submetidos cotidianamente, isto é, a disponibilidade de trabalho e demais meios de garantia de vida. (Basso, 2013BASSO, P. Imigração na Europa: características e perspectivas. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo. 2013. p. 29-42.; Villen, 2017VILLEN, P. A Face Qualificada-Especializada do Trabalho Imigrante no Brasil: temporalidade e flexibilidade. Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 79, p. 33-50, jan./abr. 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792017000100003. Acesso em: 14 maio 2017.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792017...
; Vendramini, 2018VENDRAMINI, C. R. A categoria migração na perspectiva do materialismo histórico e dialético. Revista Katálysis, Florinópolis, v. 21, n. p. 239-260, 2018. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1982-02592018v21n2p239. Acesso em: 20 jun. 2020.
http://dx.doi.org/10.1590/1982-02592018v...
, Cillo; Perocco, 2019CILLO, R.; PEROCCO, F. Subcontratação e Exploração diferenciada dos Trabalhadores imigrados: o caso de três setores na Itália. In: ANTUNES, R. (org). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 83-99.)

Segundo Villen (2017VILLEN, P. A Face Qualificada-Especializada do Trabalho Imigrante no Brasil: temporalidade e flexibilidade. Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 79, p. 33-50, jan./abr. 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792017000100003. Acesso em: 14 maio 2017.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792017...
, p. 35), a migração envolve um conjunto de elementos de ordem objetiva e subjetiva e, embora não se deva perder de vista as conexões, não é possível compreender os processos migratórios de forma apartada “do mercado mundial e do mercado de trabalho na era da mundialização financeira”. Para a autora, houve um crescimento significativo dos fluxos migratórios, especialmente a partir da crise de 2008, quando da intensificação das formas de exploração da força de trabalho em escala mundial sob os auspícios das políticas neoliberais, envolvendo também a diversificação espacial e geográfica desses fluxos (Sul-Sul, Leste-Oeste, em especial na Europa), porém mantendo-se de forma predominante no sentido Sul-Norte.

Vale dizer que as crises são, conforme Marx (2013)MARX, K. O Capital. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1., inerentes ao capitalismo e expressam suas contradições mais profundas, relativas às relações de exploração do trabalho pelo capital para produção e reprodução do valor. A partir da sociedade sob a égide do capital, o trabalho, que é atividade vital da existência humana e condição fundante do ser social na sua mediação com a Natureza exterior (Mészáros, 2021MÉSZÁROS, I. Para além do Leviatã: crítica do Estado. São Paulo: Boitempo. 2021.), torna-se também trabalho abstrato, alienado e estranhado, produtor de mercadorias para o capital. Para Antunes (2018ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 112, grifo do autor), o trabalho “converte-se em meio de subsistência, tornando-se uma mercadoria especial, a força de trabalho, cuja finalidade precípua é valorizar o capital”, sendo a crise de 2008 a expressão mais recente dos antagonismos estruturais da sociedade do capital em escala global.

Segundo Basso (2013BASSO, P. Imigração na Europa: características e perspectivas. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo. 2013. p. 29-42., p. 30), quatro fatores explicam os processos imigratórios para Europa Ocidental. O primeiro diz respeito às desigualdades de desenvolvimento do mercado mundial que remontam ao “colonialismo histórico [...] que uniu e hierarquizou de maneira impiedosa os diferentes mundos que compunham o mundo, antes que o capitalismo se consolidasse”.2 2 O autor chama a atenção para os continentes latino-americano e africano, onde o colonialismo histórico produziu uma “desacumulação originária” devastadora com a apropriação e expropriação do meio ambiente e da força de trabalho nativa. O segundo fator é concernente à intensificação do capital transnacional, na forma das grandes corporações petrolíferas, maquinários agrícolas e fertilizantes, sementes e medicamentos para plantas e animais, bem como dos bancos de créditos agrícolas na agricultura dos países do Sul global, levando os pequenos produtores independentes ao abandono do campo. O terceiro fator remete aos extratos mais jovens da classe trabalhadora, saudável, instruída e com iniciativa que se dispõe a emigrar para fugir da sina da pobreza e da marginalização em seus países de origem. E o quarto fator está relacionado à demanda por trabalho a baixo custo e com poucos ou sem direitos provenientes do sistema de empresas e famílias europeias das camadas médias. Na base dessa demanda estão, conforme Basso (2013)BASSO, P. Imigração na Europa: características e perspectivas. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo. 2013. p. 29-42., o declínio do Estado Social na Europa e o consequente aumento dos valores dos serviços sociais, antes públicos, agora largamente privatizados, levando mesmo famílias proletárias ao trabalho imigrante.

É nesse contexto que os países do Norte global buscam a gestão dos processos imigratórios, de forma a induzir determinados perfis e qualificações profissionais em função de suas necessidades, estratégias de desenvolvimento econômico e organização do mercado de trabalho, o que leva Basso (2013BASSO, P. Imigração na Europa: características e perspectivas. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo. 2013. p. 29-42., p. 32) a concluir que os acordos elaborados na esfera do Estado pelos governos neoliberais não são “anti-imigração, mas anti-imigrantes”.

Tendo em vista essas considerações, o artigo analisa o trabalho imigrante, considerando os fluxos Sul-Norte sob a hegemonia do capital financeiro-informacional e das políticas neoliberais, especialmente a partir da crise econômica de 2008, quando são acentuados os processos imigratórios Sul-Norte. (Cillo; Perocco, 2019CILLO, R.; PEROCCO, F. Subcontratação e Exploração diferenciada dos Trabalhadores imigrados: o caso de três setores na Itália. In: ANTUNES, R. (org). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 83-99.; Tonelo, 2022)

Argumenta-se que, se a precarização do trabalho, por meio da difusão de trabalhos sem direitos, terceirizados, de curto prazo, em tempo parcial e intermitentes em setores privados e públicos atinge toda a classe trabalhadora, ela impacta de maneira ainda mais perversa o trabalho imigrante em função de sua condição particular de vulnerabilidade. Argumenta-se ainda que a situação vulnerável não é ao acaso, mas está intimamente relacionada à exploração e dominação do capital que busca promover diferenças e hierarquias intraclasse trabalhadora a fim de diferenciar salários e condições de trabalho e, ao mesmo tempo, dificultar formas coletivas de resistências.

A análise se faz à luz do materialismo histórico-dialético, que busca compreender o fenômeno em sua dinâmica histórica e a partir de suas contradições (Kosik, 1976KOSIK, K. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.). A pesquisa é de abordagem exploratória, e a metodologia está fundada na revisão de literatura pertinente aos estudos que relacionam trabalho e imigração, análise de dados estatísticos do Serviço de Estatística da União Europeia (Eurostat, 2020), análise dos relatórios sobre migração internacional da International Organization for Migration (IOM, 2020; 2021; 20223 3 Tradução: Organização Internacional para as Migrações. Organização não-governamental atuante desde 1956 na produção de dados sobre processos migratórios e em ações humanitárias. ) e do Department of Economic and Social Affairs of the United Nations,4 4 Tradução: Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais do Secretariado das Nações Unidas/Organização das Nações Unidas (ONU), atuante desde 1946. o World Migration Report (2019) e do Internacional Labour Organization.5 5 Tradução: Organização Internacional do Trabalho (OIT). (Ilo, 2021)

Os resultados indicam que as políticas públicas de acolhimento desenvolvidas no âmbito político-jurídico dos países do Norte global receptores de imigrantes respondem às necessidades estruturais de produção e reprodução do capital e estão circunscritas aos interesses de mercado e de controle do trabalho em nível local e internacional.

O artigo está organizado em três seções, além da introdução e das considerações finais. Na primeira seção, aborda-se historicamente o movimento do capital em suas estratégias para seccionar e hierarquizar a classe trabalhadora nativa e imigrante no mercado de trabalho, buscando explorar as diferenças a seu favor e dificultar movimentos coletivos de resistência. Na segunda seção, são destacadas as políticas de promoção e seleção do trabalho imigrante dos países do Norte global sob a tutela do Estado Social até a ascensão do neoliberalismo em fins da década de 1970 e da crise econômica de 2008. Na terceira seção, são analisados documentos e dados acerca da imigração Sul-Norte sob as políticas de imigração dos governos no Norte entre 2019 e 2022 que, ora estimulam, ora desencorajam a imigração de trabalhadores do cone Sul, de acordo com interesses mercadológicos e de controle do trabalho. Nas considerações finais são retomados os argumentos centrais do artigo.

ASPECTOS HISTÓRICOS DA IMIGRAÇÃO DO TRABALHO SOB O CAPITAL

Os processos migratórios contemporâneos remontam a um precedente histórico importante para a sua compreensão. Trata-se das expropriações dos meios de sobrevivência dos trabalhadores, que ocorreram – e ainda ocorrem - em diversos níveis e circunstâncias – e que foram categorizadas como “acumulação primitiva” por Marx (2013)MARX, K. O Capital. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1..

Esse fenômeno, por sua vez, relaciona-se de certo modo à formulação da propriedade privada capitalista, a qual remete, entre outros, ao direito sobre a terra e seus bens. Marx (2017a), em artigo na Gazeta Renana, escrito no ano de 1842, observou, a partir de disputas jurídicas que se colocavam entre os que necessitavam de aquecimento e os proprietários rurais, os conflitos em torno do “furto” de lenhas. Naquele momento, chamava a atenção para o declínio do direito consuetudinário dos “despossuídos” e para a acessão do “formalismo contratual do direito jurídico”. Porém, preocupava-se com as “contradições que a nova legislação” (Bensaïd, 2017BENSAÏD, D. Os despossuídos: Karl Marx, os ladrões de madeira e o direito dos pobres. In: MARX, K. Os despossuídos: debate sobre a lei referente ao uso da madeira. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 11-74., p. 22) imporia para a sobrevivência dos mais pobres.

Os direitos de uso comum se referiam, sobretudo à criação de animais (direitos de pastagem, pasto, respiga) e à exploração das florestas (coleta de madeira morta). A partir do Século XVII, os nobres dedicaram-se a restringir esses direitos populares. (Bensaïd, 2017BENSAÏD, D. Os despossuídos: Karl Marx, os ladrões de madeira e o direito dos pobres. In: MARX, K. Os despossuídos: debate sobre a lei referente ao uso da madeira. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 11-74., p. 23)

De acordo com Thompson (1998)THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998., essa transformação jurídica, que acompanha a ampliação das ideias liberais no campo econômico, torna-se o eixo central das ações coletivas baseadas no direito consuetudinário e em uma “economia moral” da multidão na Inglaterra daquele período. Thompson compreende que as atitudes de resistência dos plebeus à economia de mercado se embasavam em valores populares. Entre esses, destaca-se a noção de “economia moral” que buscava impor a sobrevivência como um princípio norteador para as regras de compra e venda de alimentos. (Thompson, 1998, p. 150-202)

Os valores referidos por Thompson advinham de códices e ordenamentos antigos,6 6 Tais como o “Regulamento do Pão” que recuperado pela “turba” em época de escassez e de livre mercado tentava impor um modo de preparo tido como digno e um preço justo ao alimento. recuperados por uma radicalidade política que se opunha a opressão e ao assalariamento, exigidos pelas mudanças nas relações econômicas (Thompson, 1998THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998., p. 267-304). Ao seu turno, o cercamento das terras comunais e o padrão de produção das manufaturas exigiam braços livres de relações estamentais de trabalho e do suporte das áreas comunais de plantio, de pastoreio e outros. (Williams, 1989)

Desse modo, desde o século XVII, uma ampla movimentação de deserdados ocorria por toda Europa. Na Inglaterra, “as leis contra a vagabundagem [centrava-se no] crescente ataque à pessoa corpórea” (Linebaugh, 1983LINEBAUGH, P. Todas as montanhas atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 6, p. 07-46, 1983., p. 19). Segundo o autor,

Sob Henrique VIII, um vagabundo podia ser açoitado, ter as orelhas decepadas e ser enforcado; sob Eduardo VI, ter o peito marcado a ferro com a letra “V” e escravizado por dois anos; Sob Elizabeth I, açoites e banimento para o serviço em galés e a Casa de Correção. [...] do mesmo modo, o Estatuto dos Artífices e a Lei dos Pobres eram grandes esforços legais para impor o trabalho aos pobres (Linebaugh, 1983LINEBAUGH, P. Todas as montanhas atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 6, p. 07-46, 1983., p. 19).

A introdução desses mecanismos visava disciplinar as categorias empobrecidas pela expropriação das condições de sobrevivência para o trabalho ordenado e explorado nas cidades manufatureiras, portuárias e outras. Quando não era possível adestrar tal força de trabalho ou quando se aglomerava um (prematuro, mas turbulento) “exército industrial de reserva” (MARX, 2013MARX, K. O Capital. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1.), as ondas imigratórias para as Treze Colônias ou para outras “plantations” atlânticas se tornavam necessárias (senão, urgentes).

Um estudo dos imigrantes de Chesapeake no século XVII mostra que, assim como os vadios e migrantes do XVII, a maioria era solteira, jovem e masculina. Em geral eles vinham de regiões onde o negócio de tecido estava em depressão ou onde a agricultura modificara-se expulsando os jovens, ou de Londres e das áreas de desmatamento. O mesmo estudo afirma que estes “indentured servants” pertenciam as “camadas médias” da sociedade, mas as evidências a respeito não são convincentes. [...] Ao contrário, eles eram “assalariados sem propriedade e trabalhadores por peça” (de acordo com o estudo do Dr. Buchanan Sharp a respeito de mesma área), cuja experiência anterior a emigração foi a de manifestações contra os cercamentos, os altos preços dos alimentos e a expropriação dos direitos comunais, além da participação na Insurreição do Oeste (Western Rising) e no movimento da [...] Guerra Civil (Linebaugh, 1983LINEBAUGH, P. Todas as montanhas atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 6, p. 07-46, 1983., p. 19).

Linebaugh (1983)LINEBAUGH, P. Todas as montanhas atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 6, p. 07-46, 1983. indica, assim, aspectos da imigração europeia composta por miseráveis e segregados políticos, sobretudo, ingleses, para a América e para as outras colônias. A presença de “indentured servants” – ou trabalhadores que se vinculam à proprietários de terras, empregados/as por um período, sem receber salários – caracteriza o elo entre o trabalho associado (a uma guilda, a uma terra ou a um senhor) e o trabalho livre (para ser negociado com uma mercadoria), em “uma nova forma de cooperação [denominada de] plantation” (Linebaugh, 1983LINEBAUGH, P. Todas as montanhas atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 6, p. 07-46, 1983., p. 29).

A “plantation” foi a propulsora da interligação dialética da força de trabalho explorada no meio rural do Sul colonial e a Revolução Industrial por meio de monoculturas voltadas à exportação de produtos primários e de trabalho semilivre (“indentured servants”) ou escravizado (Hobsbawm, 2014HOBSBAWM, E. J. Da revolução industrial inglesa ao imperialismo. 6. ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2014.). Tal conjuntura demarcou o processo histórico da imigração europeia de servos e segregados por lei de expurgo (Linebaugh, 1983LINEBAUGH, P. Todas as montanhas atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 6, p. 07-46, 1983.), e da imigração africana escravizada (Rediker, 2011REDIKER, M. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo: Cia das Letras, 2011.) ao longo de vários séculos, balizado pela expropriação, pela violência e pela exploração extremada de milhões de trabalhadores e trabalhadoras. No caso da imigração africana, estima-se que cerca de 9.500.000 escravizados tenham sido trazidos para a América do Sul e para o Caribe. O Brasil se beneficiou enormemente da exploração brutal de pessoas forçadas a imigrar de várias regiões do continente africano e imigrados internamente a partir de 1850. A complexidade e a violência de tal diáspora é, certamente, um capítulo à parte (e terrivelmente vergonhoso) do processo de imigração forçada ocorrida entre os séculos XVII e XIX no bojo da acumulação capitalista.

Em relação a primeira metade do século XIX, Engels (2008) demonstra como a classe trabalhadora europeia fora expropriada dos seus meios de vida por meio da exploração do seu trabalho pela burguesia industrial, a qual imprime, no mercado de trabalho, a concorrência hierarquizada pela diferenciação entre nativos e imigrantes, de sexo/gênero, idade e qualificação profissional, sendo que mulheres e crianças trabalhavam o mesmo, senão mais que os homens e recebiam menos, ao mesmo tempo em que era estimulada a imigração irlandesa para desvalorizar ainda mais a mercadoria trabalho.

Os irlandeses, explica o autor, adentravam em setores de trabalho que exigiam menor qualificação, sobretudo as atividades mais árduas e manuais, como serventes de pedreiro e carregadores, o que contribuiu muito para reduzir os salários e aviltar o nível de vida dos trabalhadores/as.

Essa concorrência entre os trabalhadores, no entanto, é o que existe de pior nas atuais condições de vida do proletariado: constitui a arma mais eficiente da burguesia em sua luta contra ele. Daí os esforços do proletariado para suprimir tal concorrência por meio da associação e daí o furor da burguesia contra essas associações e seu grande júbilo a cada derrota que consegue impor-lhes (Engels, 2008, p. 117).

O autor aponta que a concorrência intraclasse trabalhadora auxiliava na criação e manutenção do exército de excedente de trabalhadores, o que possibilitava ampliar e aprofundar a dominação sobre os mesmos, não apenas em seus aspectos físicos, mas também intelectuais e morais, dominação essa, por sua vez, questionada nos momentos de rebeldia e lutas operárias contra o controle do capital.

Vale dizer que esforços na direção de uma resistência organizada não podem ser menosprezados ao longo da história das lutas operárias, com destaque para o movimento cartista e formação da “Democratic Friends of All Nations” em fins de 1844, que congregava refugiados da França, Alemanha e Polônia, e a “I Internacional” em 1864 (Thompson, 1987THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.; Herod, 1997HEROD, A. Labor as agent of globalization and as a global agent. In: COX, K. R. (org.). Spaces of globalization. New York: Guilford, 1997. p. 167-200.). No entanto, os movimentos internacionalistas do trabalho vão perdendo força ao longo das décadas seguintes no bojo da constituição do taylorismo-fordismo e do Estado Social enquanto modo predominante de organização e controle do trabalho sob o capital nos países do Norte. (Chesnais, 2010CHESNAIS, F. A finança capitalista. São Paulo: Alameda, 2010.; Harvey, 2011HARVEY, D. O enigma do capital. São Paulo: Boitempo, 2011.)

DO ESTADO SOCIAL À CRISE NEOLIBERAL-FINANCIERA DE 2008

O Estado Social7 7 O Estado aqui é compreendido como categoria histórico-social, formado a partir das relações sociais de produção, sendo elemento constituinte das lutas de classe e constituindo-se enquanto esfera político-jurídica que regula e garante a reprodução da lógica capitalista-burguesa que, por sua vez, está fundada na exploração do trabalho e na produção de mercadorias para trocas lucrativas no mercado. é uma forma histórica de Estado que resulta das lutas sociais entre trabalho e capital, especialmente no pós-Segunda Guerra Mundial, configurando o chamado padrão de acumulação taylorista-fordista até seu esgotamento e crise a partir da década de 1970 (Chesnais, 2010CHESNAIS, F. A finança capitalista. São Paulo: Alameda, 2010.; Harvey, 2011HARVEY, D. O enigma do capital. São Paulo: Boitempo, 2011.; Mészáros, 2021MÉSZÁROS, I. Para além do Leviatã: crítica do Estado. São Paulo: Boitempo. 2021.). Sob o Estado Social ou Estado de Bem-Estar Social houve – nos países europeus ocidentais, considerando-se as singularidades e particularidades das lutas sociais – a ampliação dos serviços assistenciais públicos como habitação, previdência social, saúde e educação8 8 A Grã-Bretanha foi um dos países europeus que mais se destacou na construção do Estado de Bem-Estar com a aprovação, em 1942, de uma série de providências nas áreas da saúde e escolarização, que foram expandidas para os demais países da Europa. e os sindicatos tornaram-se fortes econômica e politicamente, barganhando direitos, salários e controle sobre o trabalho.

É nesse contexto de lutas e resistências que o capital passa a acessar fontes de trabalho mais baratas e mais dóceis para subsunção do trabalho. A estratégia foi a promoção do trabalho imigrante através do Estado que passou a subvencionar a importação de força de trabalho de ex-colônias e/ou zonas de domínio no Sul global. Harvey (2011)HARVEY, D. O enigma do capital. São Paulo: Boitempo, 2011. destaca as ações do governo francês para atrair força de trabalho imigrante da África do Norte, do governo alemão que buscou o trabalho imigrante turco, dos suecos que alcançaram os iugoslavos e dos britânicos que se valeram dos habitantes de seu antigo império na Índia. Para o autor,

Ao longo de sua história, o capital não foi de maneira nenhuma relutante em explorar, e mesmo promover fragmentações, e os próprios trabalhadores lutam para definir meios de ação coletiva que muitas vezes se defrontam com os limites das identidades étnicas, religiosas, raciais ou de gênero (Harvey, 2011HARVEY, D. O enigma do capital. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 58).

Do ponto de vista da classe trabalhadora, é preciso considerar as dificuldades das organizações de defesa do trabalho na efetivação de ações que estabeleçam laços locais, regionais e mesmo internacionais de solidariedade intraclasse que superem as suas diferenças e promovam a consciência do pertencimento e da solidariedade de classe.

Para Bihr (1998)BIHR, A. Da grande noite à alternativa. São Paulo: Boitempo, 1998., um importante fator de dificuldade em romper com as formas objetivas e subjetivas no plano ideológico de divisão no seio da classe trabalhadora, seja nacional ou internacionalmente, resulta da derrota da vertente revolucionária do movimento sindical e da forma como se deu a edificação dos direitos do trabalho nas sociedades capitalistas do pós II Guerra Mundial, qual seja: circunscrita ao compromisso entre capital e trabalho nos limites do Estado-Nação, no âmbito da acumulação taylorista-fordista, que opôs o trabalho organizado, hierarquizado, branco e masculino aos demais trabalhos.

A década de 1970 traz consigo a crise do padrão fordista de acumulação do capital sob o avanço da reestruturação produtiva, da globalização e do neoliberalismo. Nesse interim, o Estado Social foi assumindo uma feição mais gerencialista e privatista no bojo da chamada Nova Gestão Pública9 9 A Nova Gestão Pública (NGP) começa a ser erigida em fins dos anos 1970 com reordenamento na esfera político-jurídica de regulação social sob a ascensão da “Nova Direita” na Grã-Bretanha, com Margaret Thatcher (1979-1992) e John Major (1992-1997) e, nos Estados Unidos, com Reagan (1981-1989). (Hood, 1995HOOD, C. The “New Public Management” in the 1980s: Variations on a theme. Accounting, Organizations and Society, v. 20, n. 2/3, p. 93-109, 1995. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/0361368293E0001W. Acesso em: 14 maio 2020.
https://www.sciencedirect.com/science/ar...
) e começa a implementar um conjunto de reformas que visam a redução do alcance dos serviços públicos à população, ao mesmo tempo em que impõem a desregulação do mercado de trabalho (Hall; Gunter, 2015HALL, D.; GUNTER, H. M. A nova gestão pública na Inglaterra: a permanente instabilidade da reforma neoliberal. Educação e Sociedade, Campinas, v. 36, n. 132, p. 743-758, jul./set. 2015. Disponível: https://docplayer.com.br/17120091-A-nova-gestao-publica-na-inglaterra-a-permanente-instabilidade-da-reforma-neoliberal.html. Acesso em: 18 jun. 2023.
https://docplayer.com.br/17120091-A-nova...
; Rubery et al., 2019).

Nas décadas seguintes, esse processo destrutivo do trabalho nos países do Norte global ganhou novos contornos, ainda mais drásticos, com a expansão da esfera financeira do capital, que culminou na crise global de 2008. (Harvey, 2018HARVEY, D. A loucura da razão econômica. São Paulo: Boitempo, 2018.)

Para Huws (2020HUWS, U. A formação do cibertariado. Campinas: Editora Unicamp, 2020., p. 189), a crise de 2008 “marca um momento de inflexão do capital internacional” e abre novas oportunidades concernentes à exploração de atividades que ainda estavam à margem da mercantilização como os serviços públicos mantidos pelo Estado Social (educação, saúde ou previdência social), de tal forma que, de não lucrativos, esses serviços passam a ser apropriados pelo capital e negociados para obtenção de lucros, subordinando, portanto, “valores de uso aos valores de troca”.

Tonelo (2021TONELO, I. No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2021., p. 143) argumenta que a crise econômica internacional de 2008 aprofundou ainda mais as formas de dominação dos países centrais do Norte no mundo, que passaram a usar – larga e estrategicamente, sob formas ainda mais precarizadas, num contexto de explosão do desemprego e retrocessos dos direitos sociais e trabalhistas – o trabalho imigrante, valendo-se “de modo consciente também da xenofobia e das novas condições de crise econômica como fatores para rebaixar o valor da força de trabalho e aumentar as taxas de lucro”.

O fenômeno político tonificado por meio de retóricas anti-imigratórias, xenófobas e racistas tem causado a ascensão da extrema-direita nos Estados do Norte (Naddi; Belucci, 2014). Esse fenômeno foi marcado tanto pela eleição de D. Trump (2017-2021) nos Estados Unidos da América, que prometeu construir um muro para conter imigrações na fronteira com o México (Naddi; Belucci, 2014) quanto pela vitória da retirada do Reino Unido da União Europeia [BREXIT]. (Goes, 2017GOES, E. Eleições no Reino Unido: Efeitos Brexit e austeridade produzem surpresa eleitoral. Relações Internacionais, Lisboa, n. 56, 2017. p. 77-92. Disponível em: https://doi.org/10.23906/ri2017.56a05. Acesso em: 9 ago. 2022.
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)

O extremismo de direita não tem se mostrado contrário ao mercado financeiro e nem aos interesses da produção capitalista, porém, tem desapreço pelos direitos (humanos) dos imigrantes internacionais, criando barreiras de entrada, dificultando obtenção de documentação e fazendo reduzir o acesso à educação e ao sistema de saúde e de segurança social tal como oferece aos nacionais (Reis, 2004REIS, R. R. Soberania, direitos humanos e migrações internacionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 19, n. 55, p. 149-163, 2004). Essas barreiras passam pelo crivo das políticas de gestão da imigração dos países do Norte que têm buscado o diferencial da “qualificação profissional” dos trabalhadores imigrantes (Villen, 2017VILLEN, P. A Face Qualificada-Especializada do Trabalho Imigrante no Brasil: temporalidade e flexibilidade. Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 79, p. 33-50, jan./abr. 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792017000100003. Acesso em: 14 maio 2017.
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).

Juntamente com as reformas neoliberais-gerencialistas, o trabalho pós-crise de 2008 é impactado pelo avanço das tecnologias digitais que passam a mediar as relações de trabalho como se não houvesse patrões, numa aparência de não-trabalho, sob a ideologia do empreendedorismo (Previtali; Fagiani, 2020a; Previtali; Fagiani, 2020b). Embora seus efeitos sejam mais nefastos no Sul global dada sua posição subalterna na divisão internacional do trabalho, as novas relações laborais informais, flexíveis, instáveis e intermitentes transversalizam todo o mundo do trabalho e permitem que o capital explore de maneira mais intensa as diferenças de raça/etnia, gênero, qualificação profissional e idade da classe trabalhadora (Antunes, 2018ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2018.; Huws, 2020HUWS, U. A formação do cibertariado. Campinas: Editora Unicamp, 2020.).

Sob a vigência da lei do valor, o capital não pode eliminar o trabalho, pois eliminaria sua própria fonte de valorização, mas pode, não sem resistências, desprovê-lo de todos os direitos legais de proteção e de seguridade social, tornando-o cada vez mais suscetível às instabilidades econômicas e políticas. (Antunes, 2018ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2018.) Ante o processo sistêmico e estrutural de precarização da classe-que-vive-do-trabalho sob o capitalismo da era digital, Antunes (2018ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 72) aponta que “a situação dos imigrantes pode nos ajudar a perceber que ele talvez seja a ponta mais visível do iceberg no que concerne à precarização das condições de trabalho no capitalismo atual”.

A IMIGRAÇÃO SUL-NORTE E AS ESTRATÉGIAS DE CONTROLE DO TRABALHO NA ERA NEOLIBERAL-FINANCEIRA

Em 2019, o número de migrantes internacionais foi de quase 272 milhões em todo o mundo, sendo que quase dois terços correspondiam a trabalhadores, segundo o International Organization for Migration, IOM, 2020. Em termos populacionais, de acordo com o IOM (2020), o total de migrantes em 2019 representou uma porcentagem pequena da população mundial (3,5%), o que significa que a grande maioria das pessoas no mundo (96,5%) estava residindo no país em que nasceu. Porém, quando se observa a evolução da porcentagem de migrantes em relação a população total mundial entre os anos de 1995 e 2019, verifica-se um aumento de 25% nessa porcentagem. Quando são observados os números absolutos, tem-se um aumento de 56% dos migrantes internacionais, ou seja, 98 milhões de pessoas. Ademais, o número e a proporção estimados de migrantes internacionais já superavam, em 2019, algumas projeções feitas para o ano de 2050, que eram da ordem de 2,6% ou 230 milhões (Gráfico 1).

Gráfico 1
– Número mundial e porcentagem em relação à população mundial dos migrantes internacionais entre os anos de 1995 e 2019

Segundo a IOM (2020), em 2019, enquanto a maioria dos migrantes internacionais nascidos na África, Ásia e Europa residia em suas regiões de nascimento, a maioria dos migrantes da América Latina e do Caribe e da América do Norte residia fora de suas regiões de nascimento, sendo que mais da metade de todos os migrantes internacionais (141 milhões) viviam na Europa, com 82 milhões e na América do Norte, com 59 milhões.

Quanto a origem dos migrantes, segundo ainda o relatório, um terço deles era originário de apenas 10 países, sendo que os países que tiveram o maior número de migrantes vivendo no exterior em 2019 foram a Índia com 17,5 milhões, seguida pelo México, com 11,8 milhões e pela China com 10,7 milhões. Esses dados mostram a relação da imigração com a herança colonial e com o intenso processo de exploração originária, cujas raízes estão mantidas e aprofundadas na forma atual que assume a globalização, com violenta expropriação dos recursos naturais e da força de trabalho dos países do cone Sul (Basso, 2013BASSO, P. Imigração na Europa: características e perspectivas. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo. 2013. p. 29-42.).

Destacam-se ainda as formas mais recentes de expropriação de terras no bojo da acumulação por espoliação no Sul global (Harvey, 2003HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Boitempo, 2003.) como as que vêm ocorrendo, por exemplo, no México. No país, tem havido um forte movimento de privatização e mercantilização da água em detrimento de seu valor socioambiental, expulsando comunidades campesinas e forçando a formação de um proletariado sem terras que se vê constrangido a imigrar (Ibarra; Centeno, 2023IBARRA, F.; CENTENO, R. I. “Water Pays for Water”: Sonora, An Affluent of National Privatization. Latin American Perspectives, v. 50, n. 2, p. 34-47, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0094582X231159912. Acesso em: 10 ago. 2023
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).

Segundo a IMR (2019), no que tange a diferenciação dos migrantes por sexo, tem-se que, em 2019, as mulheres representavam 47,9% de todos os migrantes internacionais em todo o mundo, com destaque para o fato de que as mulheres migrantes superavam os homens nas regiões economicamente mais desenvolvidas do globo (51,5%), um número que se mantem estável desde 1990. Por contraste, elas representavam menos da metade da população em regiões menos desenvolvidas, sendo 43,4% em 2019.

Ainda segundo o relatório, as mulheres migrantes representaram 47,6% de todos os migrantes internacionais nos países de altos rendimentos, 48,2% nos países de rendimentos médios e 50,9% nos países de baixos rendimentos em 2019. Esses dados revelam a significativa presença do trabalho imigrante feminino nas economias dos países para onde se destinam, ao mesmo tempo que elas constituem um grupo extremamente vulnerável, na ordem de 68%, frequentemente explorado no setor de serviços (IMR, 2019).

A forte presença das mulheres no setor de serviços está, por um lado, estruturalmente relacionada à divisão sexual do trabalho no mundo do capital (Huws, 2020HUWS, U. A formação do cibertariado. Campinas: Editora Unicamp, 2020.), que atribui às mulheres as atividades do cuidado e, por outro lado, está articulada à redução da oferta de serviços públicos assistenciais pelo Estado neoliberal. Ante esse cenário, tem sido largamente utilizada a força de trabalho feminina imigrante em atividades de cuidado, tanto no setor de saúde quanto no trabalho doméstico, explorando-se de forma ainda mais intensa sua condição de mulher imigrante (Huws, 2020HUWS, U. A formação do cibertariado. Campinas: Editora Unicamp, 2020.).

Conforme o Gráfico 2, em todos os destinos migratórios, a predominância de migrantes internacionais se encontrava nas faixas etárias compreendidas na população economicamente ativa entre 20 e 54 anos. Quando se relaciona a idade dos imigrantes com os países de destino por renda, tem-se que nos países de elevados rendimentos a faixa etária de maior número de imigrantes é de 25 a 54 anos, nos de médio rendimento, é de 20 a 64 anos e, nos de baixo rendimento, é de 15 a 49 anos.

Gráfico 2
– Número de Migrantes Internacionais por Idade e Nível de Renda do País de Destino (2019)

Segundo o relatório do IOM (2021), o número de trabalhadores imigrantes chegou a quase 170 milhões em 2020, um número mais de 3 vezes maior do que os 53 milhões que em 2010. Ainda de acordo com o relatório, os trabalhadores imigrantes compunham cerca de 5% de toda a força de trabalho em 2020, comparado com menos de 2% em 2010. Esse fenômeno pode ser atribuído à intensificação do neoliberalismo e à crise de 2008, que impôs uma ampla reorganização global das cadeias produtivas sob a forma de processos de (des)indutrialização e (des)territorialização, trazendo ainda a ampliação dos setores de serviços (Harvey, 2011HARVEY, D. O enigma do capital. São Paulo: Boitempo, 2011.; Antunes, 2018ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2018.; Tonelo, 2021TONELO, I. No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2021.).

De acordo com o relatório da International Labour Organization (ILO, 2021), em 2019, cerca 66,2% dos trabalhadores imigrantes estavam no setor de serviços, 26,7% na indústria e apenas 7,1% na agricultura e, de todos os trabalhadores imigrantes, 24,2% se encontravam nos países europeus ocidentais e 22,1 % nos Estados Unidos, portanto, nos países de mais alta renda.

Os dados apontados pelo ILO (2021) corroboram os dados encontrados nos relatórios IMR (2019) e IOM (2020, 2021, 2022) quanto às ocupações, os trabalhadores imigrantes são frequentemente empregos temporários e informais ou desprotegidos e expostos a um maior risco de insegurança, demissões e deterioração das condições de trabalho.

Ainda, segundo o ILO (2021), a Pandemia Covid-19, decretada em 2020, exacerbou essas vulnerabilidades, posto que os trabalhadores imigrantes tendem a ser os primeiros a serem dispensados e são frequentemente excluídos das políticas nacionais de saúde e seguridade social. Segundo o IOM (2022), durante a Pandemia, os imigrantes, em particular aqueles que se encontravam indocumentados, eram frequentemente excluídos dos serviços públicos, tais como seguro de saúde ou seguro-desemprego e temiam se aproximar de hospitais ou instituições de saúde por medo de serem detidos ou deportados.

A submissão e os constrangimentos impostos aos trabalhadores imigrantes se manifestam já na seleção e no acesso ao emprego, passando pela distribuição das funções e tarefas no local de trabalho, como jornadas noturnas e nos finais de semana, bem como na classificação profissional (Basso, 2013BASSO, P. Imigração na Europa: características e perspectivas. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo. 2013. p. 29-42.; Cillo; Perocco, 2019CILLO, R.; PEROCCO, F. Subcontratação e Exploração diferenciada dos Trabalhadores imigrados: o caso de três setores na Itália. In: ANTUNES, R. (org). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 83-99.), estabelecendo-se assim, “uma exploração diferencial desses trabalhadores, ligada ao seu estatuto jurídico e à sua vulnerabilidade no mercado de trabalho” (Cillo; Perocco, 2019CILLO, R.; PEROCCO, F. Subcontratação e Exploração diferenciada dos Trabalhadores imigrados: o caso de três setores na Itália. In: ANTUNES, R. (org). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 83-99., p. 85).

Cabe frisar o papel dos governos nacionais dos países destino dos imigrantes internacionais na condução de políticas públicas para a atração de segmentos mais qualificados e/ou escolarizados dessa força de trabalho (Villen, 2017VILLEN, P. A Face Qualificada-Especializada do Trabalho Imigrante no Brasil: temporalidade e flexibilidade. Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 79, p. 33-50, jan./abr. 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792017000100003. Acesso em: 14 maio 2017.
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) Para Villen (2017)VILLEN, P. A Face Qualificada-Especializada do Trabalho Imigrante no Brasil: temporalidade e flexibilidade. Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 79, p. 33-50, jan./abr. 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792017000100003. Acesso em: 14 maio 2017.
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, assim como para Basso (2013)BASSO, P. Imigração na Europa: características e perspectivas. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo. 2013. p. 29-42., o recebimento desses trabalhadores também tem a função de suprir e reduzir os custos de serviços públicos, especialmente na área da saúde e educação, num contexto de desmonte do Estado Social e de redução dos subsídios à classe trabalhadora.

De acordo com a IOM (2019), em 2019, 40% dos governos relataram ter políticas para aumentar a imigração de trabalhadores altamente qualificados, 5% tinham políticas para diminuir esses ingressos, 19% tinham políticas destinadas a manter os níveis atuais e 37% não tinham nenhuma política em vigor ou não apresentaram dados (Gráfico 3).

Gráfico 3
– Porcentagem de governos com medidas relacionadas as diferentes condições de imigração em 2019

Segundo a IMR (2019), a Europa Ocidental e a América do Norte são juntas a segunda maior região com políticas de governo (55%) para elevar a imigração de trabalhadores/as altamente qualificados, sendo ultrapassada apenas pela região Central e Sul da Ásia (60%) enquanto a Oceania teve a maior proporção de políticas de governo (22%) para diminuir esse tipo de entrada.

Considerando que a formação escolar e a qualificação profissional da força de trabalho imigrante nem sempre correspondem à atividade realizada, sendo essa, muitas vezes, de menor exigência e complexidade técnica (Cillo; Peroco, 2019), tem-se que a atração de trabalhadores mais qualificados cumpre a função primordial de impor a concorrência intraclasse trabalhadora. Para os autores, essa diferença contribui para o achatamento dos salários e da seguridade social nessas regiões, implicando ainda em um processo de geral precarização do trabalho. Destaca-se também a importância do trabalho imigrante para desestabilizar ações coletivas dos trabalhadores, opondo nativos e imigrantes, contribuindo para quebra de solidariedade de classe (Basso, 2013BASSO, P. Imigração na Europa: características e perspectivas. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo. 2013. p. 29-42.; Cillo; Peroco, 2019; Antunes, 2018ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2018.).

Outro aspecto dos processos migratórios que demanda atenção é concernente ao número e à situação dos imigrantes com documentação irregular nos países de destino. De acordo com a IOM (2020), em 2019, mais de 82 milhões de migrantes internacionais viviam na Europa, um aumento de quase 10% desde 2015, quando esse número era de 75 milhões. De 2015 a 2019, a população de migrantes não europeus na Europa aumentou de pouco mais de 35 milhões para cerca de 38 milhões (IOM, 2020).

Uma pesquisa, incluindo 111 países, realizada pelo IMR (2019), buscou aferir as políticas governamentais sobre a garantia de direitos aos imigrantes, considerando-se o acesso à justiça, à seguridade social, ao pagamento igual para trabalho igual, à educação e à saúde essencial/emergencial (Gráfico 4).

Gráfico 4
– Porcentagem de Países que fornecem aos Imigrantes acesso Igual a Serviços, Benefícios e Direitos Sociais por Status legal de Imigração (2019)

Considerando-se o acesso à justiça, nota-se que 93% dos países ofereciam o serviço para imigrantes documentados, e 82% ofereciam o serviço para os imigrantes, independentemente do status da documentação. A diferença entre as duas formas de acesso ao serviço de acordo com a condição documental do imigrante indica que 11% dos países não ofereciam o serviço aos imigrantes indocumentados.

Quanto à seguridade social, 84% dos governos forneciam o seu acesso aos imigrantes documentados, e 22% dos governos prestavam esses serviços a todos os imigrantes, independentemente de seu status de imigração. A diferença entre as duas formas de acesso ao serviço de acordo com a condição documental do imigrante indica que 62% dos governos não forneciam o serviço aos imigrantes indocumentados.

No que tange o mesmo rendimento para o mesmo trabalho, 85% dos governos declararam ter medidas voltadas para garantir o mesmo rendimento para o mesmo trabalho, 39% declararam ter essas garantias a todos os imigrantes. A diferença entre as duas formas de remuneração de acordo com a condição documental do imigrante indica que 46% não garantiam o mesmo rendimento para o mesmo trabalho aos imigrantes indocumentados.

Concernente à educação pública, incluindo escolas primárias e secundarias, 91% dos governos indicaram que asseguravam o seu acesso igual a todos os imigrantes documentados, e 62% dos governos tinham políticas para fornecer acesso igual independentemente do status de imigração. A diferença entre o acesso à educação pública de acordo com a condição documental do imigrante indica que 29% dos países não garantiam acesso à educação pública para os imigrantes indocumentados.

Quanto aos serviços relativos à saúde essencial/emergencial, 95% dos governos indicaram que asseguravam o seu acesso igual a todos os imigrantes documentados, e 86% dos governos indicaram assegurar o acesso a todos os imigrantes independentemente do status de imigração. A diferença entre o acesso à saúde essencial/emergencial de acordo com a condição documental do imigrante indica que 9% dos países não garantiam acesso a esse serviço para os imigrantes indocumentados.

Observa-se, portanto, que os países do Norte possuem políticas de acolhimento para imigrantes. No entanto, diferenciam essas políticas entre imigrantes documentados e imigrantes indocumentados. Essas diferenças são mais expressivas no acesso à seguridade social, na garantia do igual pagamento para igual trabalho e na educação. Assim, os imigrantes indocumentados ou com documentação irregular nos países de destino estão sujeitos ainda à maiores níveis de exploração, considerando-se a sua situação de maior vulnerabilidade.

Segundo Cillo e Peroco (2019), os migrantes indocumentados não estão inscritos nos registros oficiais, não possuem permissão para o trabalho ficando, portanto, sujeitos a ameaças e intimidações de intermediários, bem como de empregadores que pagam menos que o acordado e até mesmo não pagam pelo trabalho. Convém ainda salientar que a garantia do acesso ao direito não significa, necessariamente, que o imigrado tenha efetiva proteção.

Dois fatores são importantes aqui para que essa efetivação não ocorra ou ocorra tardiamente. O primeiro diz respeito a uma legislação severa, repressiva e seletiva que leva ao que Basso (2013BASSO, P. Imigração na Europa: características e perspectivas. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo. 2013. p. 29-42., p. 32) chama de “passagem obrigatória pela clandestinidade” que funciona como uma quebra de expectativas do imigrante, desde a partida de seu país de origem. O segundo, ainda conforme Basso (2013)BASSO, P. Imigração na Europa: características e perspectivas. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo. 2013. p. 29-42., é referente aos processos discriminatórios, para além dos aspectos legais, que marcam a vida do imigrante. Segundo o autor:

Na Europa a vida dos imigrantes e de seus filhos é marcada por discriminações. Eles são discriminados no local de trabalho, no acesso ao trabalho, no seguro-desemprego, na aposentadoria. São discriminados no acesso à moradia, pagando aluguéis mais caros pelas casas mais deterioradas e em zonas mais degradadas. São discriminados até nas escolas (na Alemanha, são poucos, pouquíssimos os filhos de imigrantes que chegam às universidades; na Itália, 42, 5% dos filhos dos imigrantes estão atrasados nos estudos). São discriminados na possibilidade de manter a própria família unida, em particular se forem mulçumanos, e de professar livremente a própria fé (Basso, 2013BASSO, P. Imigração na Europa: características e perspectivas. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo. 2013. p. 29-42., p. 33).

Desse modo, os trabalhadores imigrantes estão expostos a uma dupla degradação: a vivenciada em seus países de origem que os constrange a imigrar e aquela que passam a vivenciar como trabalhadores imigrantes, explorados e discriminados.

Assim, pode-se inferir que os processos migratórios no sentido Sul-Norte, estão estruturalmente inseridos no contexto das estratégias do capital no âmbito dos respectivos Estados-Nação que, na fase atual da acumulação da era financeira e digital, buscam promover a imigração de trabalhadores e trabalhadoras mais qualificados e, por contraste, tendem a dificultar a documentação e mesmo a imigração daqueles que não atendem a esse novo perfil. Portanto, os países do Norte têm se valido de políticas públicas de gestão da imigração, ampliando as cisões no seio da classe trabalhadora, contrapondo “nativos” e “imigrantes”, formais e informais, documentados e não-documentados de forma estratégica, buscando criar condições para o aprofundamento do controle do trabalho localmente e contribuindo para a precarização global da força de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema da imigração apresenta distintas possibilidades de análise em diversas áreas de estudo das ciências humanas. Entre as formas de abordagem e a diversificação de categorias explicativas, encontram-se múltiplos sujeitos sociais com diversidade de raças, idiomas, religiões, gêneros e trajetórias. No entanto, a essência desse movimento está estruturalmente imbricada às necessidades do capital para extração do mais valor.

A partir das últimas duas décadas do século XXI, vivencia-se uma nova fase da acumulação do capital sob a hegemonia do capital financeiro-informacional-digital e das políticas neoliberais que impõem à classe trabalhadora mundial formas ainda mais destrutivas de trabalho e de vida. Se as modalidades de trabalho sem direitos, terceirizadas e subcontratadas, de curto prazo, em tempo parcial, intermitentes em setores privados e públicos atingem toda a classe trabalhadora, impactam de maneira particular e perversa o trabalho imigrante, transversalizado pelas dimensões de gênero, raça/etnia, idade e qualificação profissional.

Essa situação é ainda formada por meio da dialética entre a expropriação e a exploração do trabalho. A “acumulação primitiva”, recorrente e permanente, sobretudo em épocas de crise do capital, se atualiza por meio de terceirizações, privatizações no bojo da reestruturação produtiva do capital, tendo implicações econômicas, geopolíticas e sociais que impactam as populações locais e impulsionam a imigração.

Ao mesmo tempo, no bojo da acumulação financeirizada, os Estados Nacionais se subordinam ao capital internacional, por meio da dependência financeira e da tecnológica, gerando desemprego no interior de suas próprias fronteiras, mesmo para aqueles trabalhadores mais qualificados e profissionalizados. Desse modo, aprofundam as expropriações daqueles que vivem do trabalho, propiciando a movimentação social em busca de sobrevivência ou de uma vida menos regrada.

A conjunção de fatores provenientes da imigração da oferta de trabalho tem gerado, além de baixos salários e processos recorrentes de exploração, situações de conflito entre nacionais (ou locais) e estrangeiros que buscam trabalho, os quais são estimulados e mesmo promovidos pelo capital, por meios de políticas de acolhimento dos governos nacionais do Norte. Essas políticas incluem diferenciação e hierarquização e são mais expressivas quanto ao acesso à seguridade social, na garantia do igual pagamento para igual trabalho e na educação. Considerando-se que as mulheres imigrantes estão em situação de maior vulnerabilidade, conforme apontado no artigo, pode-se inferir que tais políticas estão também profundamente estruturadas a partir das relações dominação de gênero.

Frente ao nacionalismo e ao autoritarismo que tomam forças e assumem o poder institucional em regiões receptoras de trabalho internacional, o capital continua articulado e encontra maneiras de se expandir contra “a queda tendencial da taxa de lucro” (Marx, 2017b). As garantias de mesmo rendimento pela mesma atividade aos imigrantes e nacionais associadas às políticas de estímulos a imigração de trabalhadores com maior escolaridade e qualificação também contribuem para intensificar o conflito entre os imigrantes e nacionais devido à concorrência pelos melhores empregos num quadro crítico no qual imperam formas precárias de emprego, o subemprego e mesmo de desemprego.

“Em poucas palavras: no processo de globalização, os que mandam, estão unidos, enquanto os trabalhadores desconhecem sua mútua existência e podem acabar por enfrentar-se uns contra os outros” (Portelli, 2009PORTELLI, A. Terni em greve: 2004. PORTELLI, A. et al. (org.). Mundo dos trabalhadores, lutas e projetos: temas e perspectives de investigação na historiografia contemporânea. Cascavel: Edunioeste, 2009., p. 25). Dar a conhecer parte dessa história é importante para compreensão e para superação das expropriações e explorações econômicas, raciais, xenófobas, culturais e históricas que ora se configuram.

É nesse sentido que se estabelece uma relação estrutural, não sem contradições, das políticas imigratórias com a exploração e a subordinação do trabalho nos fluxos Sul-Norte. O trabalho imigrante coloca-se como elemento de controle do trabalho e como regulador do valor do trabalho no mercado de trabalho global, sendo parte constitutiva do movimento do capital para produção e reprodução do valor.

Nesse interim, torna-se um desafio vital para a classe trabalhadora – constituída por homens e mulheres, nativos e imigrantes – a unificação dos movimentos de defesa do trabalho, tendo como agenda um conjunto de direitos do trabalho que garantam a vida, e não apenas a sobrevivência, e a disponibilidade para o trabalho para além das fronteiras nacionais. Esses direitos poderiam ser concernentes a um piso mínimo salarial e assistência à saúde universal, independente do local de nascimento ou do status da legalização documental que visassem à garantia de condições básicas e dignas de trabalho e de vida da classe trabalhadora local e globalmente.

AGRADECIMENTOS

1 Agradecemos aos editores da revista CRH e aos pareceristas pela leitura atenta e pelas valiosas sugestões. Agradecemos ainda ao apoio concedido aos autores pelas agências de pesquisa CNPq e Fapemig.

REFERÊNCIAS

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  • BASSO, P. Imigração na Europa: características e perspectivas. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo. 2013. p. 29-42.
  • BENSAÏD, D. Os despossuídos: Karl Marx, os ladrões de madeira e o direito dos pobres. In: MARX, K. Os despossuídos: debate sobre a lei referente ao uso da madeira. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 11-74.
  • BIHR, A. Da grande noite à alternativa. São Paulo: Boitempo, 1998.
  • BLACKBURN, R. A construção do escravismo no Novo Mundo: do barroco ao moderno, 1492-1800. Rio de Janeiro: Record, 2003.
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  • 1
    Agradecemos aos editores da revista CRH e aos pareceristas pela leitura atenta e pelas valiosas sugestões. Agradecemos ainda ao apoio concedido aos autores pelas agências de pesquisa CNPq e Fapemig.
  • 2
    O autor chama a atenção para os continentes latino-americano e africano, onde o colonialismo histórico produziu uma “desacumulação originária” devastadora com a apropriação e expropriação do meio ambiente e da força de trabalho nativa.
  • 3
    Tradução: Organização Internacional para as Migrações. Organização não-governamental atuante desde 1956 na produção de dados sobre processos migratórios e em ações humanitárias.
  • 4
    Tradução: Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais do Secretariado das Nações Unidas/Organização das Nações Unidas (ONU), atuante desde 1946.
  • 5
    Tradução: Organização Internacional do Trabalho (OIT).
  • 6
    Tais como o “Regulamento do Pão” que recuperado pela “turba” em época de escassez e de livre mercado tentava impor um modo de preparo tido como digno e um preço justo ao alimento.
  • 7
    O Estado aqui é compreendido como categoria histórico-social, formado a partir das relações sociais de produção, sendo elemento constituinte das lutas de classe e constituindo-se enquanto esfera político-jurídica que regula e garante a reprodução da lógica capitalista-burguesa que, por sua vez, está fundada na exploração do trabalho e na produção de mercadorias para trocas lucrativas no mercado.
  • 8
    A Grã-Bretanha foi um dos países europeus que mais se destacou na construção do Estado de Bem-Estar com a aprovação, em 1942, de uma série de providências nas áreas da saúde e escolarização, que foram expandidas para os demais países da Europa.
  • 9
    A Nova Gestão Pública (NGP) começa a ser erigida em fins dos anos 1970 com reordenamento na esfera político-jurídica de regulação social sob a ascensão da “Nova Direita” na Grã-Bretanha, com Margaret Thatcher (1979-1992) e John Major (1992-1997) e, nos Estados Unidos, com Reagan (1981-1989).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2021
  • Aceito
    01 Set 2023
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