Open-access O MATERIALISMO MESSIÂNICO DE WALTER BENJAMIN

WALTER BENJAMIN’S MESSIANIC MATERIALISM

EL MATERIALISMO MESIÁNICO DE WALTER BENJAMIN

Resumos

Este trabalho teve como objetivo estabelecer um olhar sobre o conceito de materialismo histórico à luz da abordagem benjaminiana presente nas “Teses sobre o conceito de história”. Partindo de uma certa “arqueologia” do conceito de materialismo histórico nos primeiros escritos de Marx até sua expressão mais clássica no prefácio de 1859 da “Contribuição à crítica da economia política” e passando por uma leitura atenta das “Teses”, foi possível notar que Benjamin aproxima elementos do messianismo judaico como, por exemplo, os conceitos de rememoração e redenção, para estabelecer uma concepção da teologia como a “fagulha” que acende a fogueira revolucionária. Caberia aos oprimidos, portanto, e não a um Messias enviado pelos céus, a interrupção da marcha destruidora do progresso, a restituição de uma sociedade sem classes e, por que não dizer, de um reino messiânico no plano terreno.

PALAVRAS-CHAVE
Materialismo Histórico; Messianismo; Walter Benjamin


This work aimed to establish a look at the concept of historical materialism in the light of the Benjaminian approach present in the “Theses on the concept of history”. Starting from a certain “archaeology” of the concept of historical materialism in Marx’s early writings to its most classic expression in the 1859 preface to the “Contribution to the Critique of Political Economy” and through a careful reading of the “Theses”, we can see that Benjamin brings together elements of Jewish messianism, such as the concepts of remembrance and redemption, to establish a conception of theology as the “spark” that lights the revolutionary fire. It would be up to the oppressed, therefore, and not to a Messiah sent by heaven, to interrupt the destructive march of progress, to restore a classless society and, why not say, a messianic kingdom on the earthly plane.

KEYWORDS
Historical Materialism; Messianism; Walter Benjamin


Este trabajo se propone establecer una perspectiva del concepto de materialismo histórico a luz del enfoque de Benjamin presente en las “Tesis sobre el Concepto de Historia”. Partiendo de una cierta “arqueología” del concepto de materialismo histórico en los primeros escritos de Marx, hasta su expresión más clásica en el prefacio de 1859 a la “Contribución a la Crítica de la Economía Política”, y pasando por una lectura atenta de las “Tesis”, es posible observar que Benjamin aborda elementos del mesianismo judío, como, por ejemplo, los conceptos de memoria y redención, para establecer una concepción de la teología como la “chispa” que enciende la hoguera revolucionaria. Correspondería, por tanto, a los oprimidos, y no a un Mesías enviado del cielo, detener la marcha destructiva del progreso, restaurar una sociedad sin clases y, por qué no decirlo, un reino mesiánico en la tierra.

PALABRAS CLAVE
Materialismo Histórico; Mesianismo; Walter Benjamin


INTRODUÇÃO

Em sua última carta, datada de 25 de setembro de 1940 e endereçada a Henny Gurland e Theodor Adorno, Walter Benjamin se encontrava na encruzilhada da vida e da morte. Fugindo da perseguição nazista, Benjamin partiu de Marselha em direção à fronteira francesa com a Espanha com a esperança de uma nova vida na América. Em uma pequena cidade fronteiriça, Port-Bou, barrado pela polícia espanhola, essa esperança se transformou em resignação: “Numa situação sem saída, não tenho outra escolha senão pôr fim a tudo. É num vilarejo nos Pirineus onde ninguém me conhece que minha vida vai se acabar” (Adorno, 2012, p. 476). Em profundo desespero, Benjamin, encurralado entre dois fascismos (o franquista e o nazista), põe fim à sua própria vida com uma dose mortal de morfina aos 48 anos. As últimas palavras denotam sua dor de uma maneira muito particular. Diz Benjamin: “[...] não me resta muito tempo para escrever todas aquelas cartas que eu desejara escrever” (Adorno, 2012, p. 476).

É neste contexto trágico que Walter Benjamin escreve, de acordo com Löwy (2005, p. 17): “[...] um dos textos filosóficos e políticos mais significativos do século XX”. De caráter enigmático, hermético, recheado de alegorias e imagens e, até certo ponto, profético, este texto (que não se destinava a publicação) tem, como um de seus objetivos principais, uma espécie de “refundação” do materialismo histórico marxiano especialmente nos temas que lhe pareciam essenciais, quais sejam: o Estado como dominação de classe, a luta de classes, a revolução social e a utopia de uma sociedade sem classes. O resultado deste trabalho, de acordo com Löwy (2005, p. 149) seria: “[...] uma reelaboração, uma formulação crítica do marxismo, integrando ao conjunto do materialismo histórico ‘estilhaços’ messiânicos, românticos, blanquistas, libertários e fourieristas”. Tal trabalho, que levou a emergência de um “novo marxismo” de caráter herético e distinto das diversas variantes ortodoxas ou dissidentes de sua época e que causou tamanha perplexidade e incompreensão lançou as bases de um verdadeiro “marxismo messiânico”.

Este trabalho tem, portanto, como objetivo principal, estabelecer um olhar sobre o conceito de materialismo histórico à luz da abordagem benjaminiana presente nas “Teses sobre o conceito de história”. O artigo é composto, além desta introdução, pelas seguintes seções: “Percursos do materialismo histórico em Marx”, “Messianismo, materialismo histórico e as teses sobre o conceito de história”, “Considerações finais” e “Referências”.

PERCURSOS DO MATERIALISMO HISTÓRICO EM MARX

Em uma carta endereçada a Richard Fischer, jornalista social democrata e membro do parlamento alemão, no dia 15 de abril de 1895, Engels argumenta com o destinatário sobre a necessidade de publicação dos primeiros escritos de Marx (os três artigos referentes aos debates sobre a lei do furto de madeira publicados na Gazeta Renana no período entre 25 de outubro e 03 de novembro de 1842, os debates sobre a lei da liberdade de imprensa também publicados no mesmo jornal entre 05 e 19 de maio do mesmo ano, bem como os textos sobre a situação dos vinhateiros do Mosela), uma vez que os direitos autorais desses já haviam prescrito.

Engels sugere, nesse sentido, que a publicação de tais textos, em uma edição intitulada “Primeiros escritos de Karl Marx”, deveria ser anunciada com rapidez e que, além dos artigos supracitados, o volume conteria notas explicativas, uma introdução e um prefácio. O mais interessante da carta, no entanto, se encontra em seu segundo e último parágrafo. Engels se referindo, especialmente, ao artigo sobre o Mosela, afirma que Marx somente passou a se ocupar das relações econômicas de produção em detrimento da política, a partir de seus estudos sobre os furtos de madeira e da situação dos camponeses.

Ao se observar estes primeiros textos da Gazeta se pode notar um Marx ainda pouco focado nas relações materiais de existência chegando, algumas vezes, a classificar a temática discutida como sendo de natureza “estéril”, “monótona” e “insossa”. É, no entanto, no suplemento da Gazeta Renana de número 307 e publicado em 03 de novembro de 1842, que Marx faz uma das primeiras menções ao termo “materialismo” como estando diretamente ligado a um problema material concreto (embora, ainda, abordado de maneira particular e limitada pelo autor).

A madeira continua sendo madeira tanto na Sibéria quanto na França; o proprietário florestal continua sendo proprietário florestal tanto em Kamchatcka quanto na província do Reno. Portanto, quando a madeira e os possuidores da madeira enquanto tais fazem leis, essas leis em nada vão se diferenciar das demais, a não ser pelo ponto geográfico e pela língua em que foram promulgadas. Esse materialismo condenado, esse pecado contra o Espírito Santo dos povos e da humanidade, é consequência imediata da doutrina que o [Jornal do Estado da Prússia] prega ao legislador, a saber, no caso da lei referente à madeira, pensar somente em madeira e floresta e não resolver o problema material concreto politicamente, isto é, sem relação com toda a razão ao Estado e a moralidade pública” (Marx, 2017, p. 127).

Nesse sentido, de acordo com Löwy (2012), a miséria dos camponeses é vista, por Marx, apenas em seu aspecto passivo, diretamente relacionado ao universo da penúria, das carências e do sofrimento dos trabalhadores. Ainda, de acordo com o autor, tal fato poderia ser “comprovado” a partir da análise da palavra em alemão que o próprio Marx utiliza ao longo do artigo: Leiden (o termo significa ao mesmo tempo ‘sofrimento’ e ‘passividade’). É interessante notar, no entanto, pelo lado do interesse privado, que Marx (2017) o classifica (profeticamente) como sendo “mesquinho”, “desalmado”, “egoísta” e “covarde”.

Quanto à “Crítica da filosofia do direito de Hegel”, Enderle (2005) chama a atenção para o fato de que a parte introdutória do texto, escrita por Karl Marx no exílio da França, se constitui como um elemento fundamental para a compreensão da evolução do pensamento do autor desde o hegelianismo até a maturidade. Seria a partir deste ponto que Marx, baseado em uma forte crítica a Hegel, abandonaria uma oposição radical democrática em direção a luta de classes e, em seguida, chegaria a plena crítica da economia política (especialmente, em obras fundamentais como “O Capital”).

Jinkings; Backes (2005, p. 8), no prefácio da primeira edição da obra, apresentam, assim, um Marx preocupado em proclamar uma “revolução radical” como o caminho para a autorrealização do homem, bem como em demonstrar a necessidade da passagem da crítica da religião para a crítica da economia política. Convêm salientar, que tal transição parece ter sido influenciada, fundamentalmente, pelos escritos de Engels (2010) sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra.

A situação da classe operária é a base real e o ponto de partida de todos os movimentos sociais de nosso tempo porque ela é, simultaneamente, a expressão máxima e a mais visível manifestação de nossa miséria social [...] O conhecimento das condições de vida do proletariado é, pois, imprescindível para, de um lado, fundamentar com solidez as teorias socialistas e, de outro, embasar os juízos sobre sua legitimidade e, enfim, para liquidar com todos os sonhos e fantasias pró e contra. (Engels, 2010, p. 41).

Jinkings; Backes (2005, p. 8) destacam, além disto, que é, exatamente, nas páginas finais da “Crítica da filosofia do direito de Hegel: Introdução” que Marx apresenta, pela primeira vez, o proletariado como o agente histórico da mudança revolucionária, bem como seu casamento profícuo com a filosofia (“[...] a filosofia é a cabeça da emancipação revolucionária e [...] os proletários são o seu coração”). Complementarmente, para Löwy (2012, p. 89): a “[...] estrutura desse artigo [Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução] não é nada além de uma descrição rica em imagens da trajetória político-filosófica de Marx, ou seja, de um pensamento crítico em busca de uma base concreta, uma ‘cabeça’ à procura de um ‘corpo’”.

A discussão a respeito da superação da crítica da religião se encontra presente, no entanto, nos primeiros parágrafos da “Crítica da filosofia do direito de Hegel: Introdução”. É neste momento do texto, inclusive, que Marx (2013, p. 151) apresenta a religião como tendo um triplo-caráter. Sob um primeiro ponto de vista, a religião seria uma expressão da miséria real e, assim, sua crítica seria um dos elementos que poderiam mostrar as mazelas da vida material da classe trabalhadora. É dentro desta perspectiva, inclusive, que o autor utiliza da metáfora religiosa do “vale de lágrimas”, buscando, com isso, marcar a necessidade do abandono de um mundo de ilusões em direção a uma compreensão mais real da vida material.

Marx (2013), de uma forma germinal, se aproxima ainda mais de uma perspectiva de análise da sociedade capitalista a partir de sua base material. Um segundo ponto de vista acerca da religião presente no texto marxiano diz respeito ao fato de que essa teria um caráter “entorpecedor” que ajudaria o indivíduo explorado a suportar a sua vida de sofrimento. É dentro desta perspectiva que Marx (2013, p. 151) utiliza de uma frase comum da época (presente nas obras de Heine e Moses Hess) e que, de alguma forma, tomou espaço no imaginário popular dos séculos XIX e XX: “Ela (a religião) é o ópio do povo”.

Há que se destacar, no entanto, que este caráter entorpecedor da religião não diminui, para o autor, em nada, a faceta protestatária da mesma (tão presente em obras de outros autores marxistas como Engels, Bloch, entre outros, bem como na luta prática e real da Teologia da Libertação). Ao se ler a frase como um todo, observa-se que Marx (2013) é claro ao dizer que a religião seria não somente a expressão da miséria real, mas, também, o protesto contra esta mesma miséria.

Para Marx (2013, p. 152), a filosofia (“[...] que está a serviço da história [...]”) teria, neste contexto, como função primordial, “[...] desmascarar a autoalienação nas suas formas não sagradas” e “[...] estabelecer a verdade do aquém”. Ela seria, assim, a “cabeça” que estabelece a crítica e, por consequência, denuncia as injustiças presentes na realidade material da vida social, enquanto a classe trabalhadora seria seu elemento passivo (porém, necessário) para a concretização da revolução. Cumpre salientar, ainda, que é neste notável texto da teoria marxiana, que o autor afirma, pela primeira vez, que o proletariado deveria ser o agente histórico da mudança revolucionária e que os termos “classe” e “economia política” são utilizados pela primeira vez.

Por fim, convêm destacar um fragmento interessante na “Crítica da filosofia do direito de Hegel: introdução” que descarta, já em 1843, que Marx (2013, p. 153) não estabelece, de maneira alguma, uma relação de causalidade entre as esferas sociais como normalmente o senso comum atribui (entre o econômico e as demais esferas). O que o autor ressalta, já em seus primeiros escritos, é a ideia de totalidade na qual todas as esferas sociais exercem influência umas sobre as outras e que Löwy (2014) reafirma apoiando-se no conceito weberiano de afinidade eletiva.

Para Löwy (2014, p. 71-72):

[...] afinidade eletiva é o processo pelo qual a) duas formas culturais/religiosas, intelectuais, políticas ou econômicas ou b) uma forma cultural e o estilo de vida e/ou os interesses de um grupo social entram, a partir de certas analogias significativas, parentescos íntimos ou afinidades de sentido, numa relação de atração e influência recíprocas, de escolha ativa, de convergência e de reforço mútuo (Löwy, 2014, p.71-72).

Logo em seguida, em sua trajetória intelectual, a insurreição dos tecelões na Silésia, em junho de 1844, levou Marx a escrever um artigo denominado “Glosas críticas ao artigo ‘O rei da Prússia e a reforma social’. De um prussiano” que foi publicado no número 63 da revista Vorwärts em 07 de agosto de 1844. Escrito sob o calor dos acontecimentos e sob anonimato, o artigo foi confeccionado por Marx, em Paris, no dia 31 de julho de 1844 e se configurou como uma reviravolta teórico-prática nas concepções do autor sobre a potencial tendência revolucionária do proletariado. Löwy (2012) chega a apontar, no que diz respeito a este artigo, em especial, que o mesmo foi singularmente desconsiderado pela maioria dos marxistas e que ele seria, a seu ver, o ponto de partida da trajetória intelectual que levaria Marx às Teses sobre Feuerbach e a Ideologia Alemã.

Abandonando o esquema feuerbachiano, o artigo introduz a ideia de impossibilidade de uma solução política para os problemas sociais presentes na época e alça o proletariado a um papel ativo na práxis revolucionária (em contraposição a tendência anterior descrita na ‘Crítica da filosofia do direito de Hegel: Introdução’).

Löwy (2012, p. 131) explicita que:

Descobre que a ‘excelente predisposição do proletariado alemão para o socialismo’ pode manifestar-se de maneira concreta, ‘mesmo feita abstração’ da filosofia, mesmo sem a intervenção do ‘relâmpago do pensamento’ dos filósofos. Enfim, descobre que o proletariado não é ‘o elemento passivo’ da revolução, muito pelo contrário: ‘É só no socialismo que um povo filosófico pode encontrar sua prática [Praxis] adequada; e, portanto, é só no proletariado que ele pode encontrar o elemento ativo [tätige Element] de sua libertação (Löwy, 2012, p. 131).

Ainda, em sua estada na capital francesa, Marx começa a escrever em abril de 1844 os “Manuscritos Econômico-Filosóficos”. Profundamente influenciado pelo artigo de Engels nos Anais Franco-Alemães (“Esboço para uma Crítica da Economia Política”) e pela leitura (no período entre janeiro e abril do mesmo ano) de autores como Jean Baptiste Say, Adam Smith, David Ricardo, John Stuart Mill, entre outros, Marx inaugura, com este manuscrito, os fundamentos de sua crítica à economia política. De acordo com Jinkings (2004, p. 08), estas anotações, compostas de três cadernos, não foram publicadas em vida por Marx, permanecendo inéditas até o ano de 1932. A autora destaca, no entanto, o papel fundamental que estes manuscritos tiveram na construção de uma análise estruturada do modo de produção capitalista.

É nesse texto que o lugar do trabalho como forma efetivadora do ser social é realmente exposta e desenvolvida, algo que, até então, mesmo em Marx, não havia sido feito. É nele que o conjunto das esferas da existência humana (desde o lugar da arte, da religião, da filosofia, passando pela conceituação de liberdade, até as formas concretas e imediatas de realização do trabalho) aparece como dependente da esfera da produção – o trabalho é mediação entre homem e natureza, e dessa interação deriva todo o processo de formação humana.

Complementarmente, Löwy (2012, p. 121) aponta que “[...] os Manuscritos são o primeiro texto em que ele (Marx) se proclama ‘comunista’, abandona a temática jovem-hegeliana da ‘filosofia ativa’ e esboça uma análise econômica da condição proletária”. Os primeiros elementos desta análise econômica da condição proletária podem ser encontrados já na parte I do Caderno I dos manuscritos (“Salário”), em que Marx (2004) destaca a natureza do trabalho. É nesta seção, inclusive, que o autor apresenta, pela primeira vez, a ideia de que o trabalho seria uma mercadoria como outra qualquer.

A existência do trabalhador é, portanto, reduzida à condição de existência de qualquer outra mercadoria. O trabalhador tornou-se uma mercadoria e é uma sorte para ele conseguir chegar ao homem que se interesse por ele. E a procura, da qual a vida do trabalhador depende, depende do capricho do rico e capitalista (Marx 2004, p. 24).

A partir da própria economia nacional, com suas próprias palavras, constatamos que o trabalhador baixa à condição de mercadoria e à de mais miserável mercadoria, que a miséria do trabalhador põe-se em relação inversa à potência (Macht) e à grandeza (Grösse) da sua produção (...) (Marx, 2004, p. 29).

É interessante destacar, no entanto, que Marx (2004) faz uma interessante menção ao caráter diverso do trabalho, ao dizer que os seus preços (salários) variam de acordo com a sua espécie. Assim, para o autor, a atividade laboral (que constitui o produto natural elaborado) apresentaria, em si, uma diversidade natural, espiritual e social que teria implicações no ganho dos indivíduos. Este caráter diverso não apagaria, no entanto, a realidade de uma existência sofrida pela maior parte dos trabalhadores.

É preciso observar, enfim, que onde o trabalhador e o capitalista sofrem igualmente, o trabalhador sofre em sua existência, e o capitalista no ganho de seu Mamon morto (Marx, 2004, p. 25).

Se o trabalho é, portanto, uma mercadoria, é então uma mercadoria com as mais infelizes propriedades (Marx, 2004, p. 37).

Esta realidade apresentada por Marx (2004), na primeira seção do primeiro caderno dos manuscritos, caracteriza o trabalho como sendo essencialmente “desumano, “repetitivo” (como em uma máquina), “pernicioso”, “funesto” e “alienado”, enquanto o capital (e seus representantes) são apresentados como “[...] deuses privilegiados e ociosos que sobrepujam por toda parte o trabalhador e lhe ditam leis” (Marx, 2004, p.29). Este caráter dicotômico da realidade social aparece, inclusive, pela primeira vez na obra marxiana, na seção “Trabalho Estranhado e Propriedade Privada” do caderno primeiro dos manuscritos. Ali, Marx (2004, p. 79) afirma que “[...] toda a sociedade tem de decompor-se nas duas classes dos proprietários e dos trabalhadores sem propriedade”.

No que diz respeito a ideia de alienação, Marx (2004) afirma que, no capitalismo, o trabalhador se relaciona com o produto de seu trabalho (e, por que não dizer, da própria atividade) como um elemento estranho que o subjuga e o empobrece (tanto materialmente quanto subjetivamente.

Este fato nada mais exprime, senão: o objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisa (sachlich), é a objetivação (Vergegenständlichung) do trabalho. A efetivação (Verwirklichung) do trabalho é a sua objetivação. Esta efetivação do trabalhador, a objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento (Entfremdung), como alienação (Entäusserung). [...] Na determinação de que o trabalhador se relaciona com o produto de seu trabalho como [com] um objeto estranho estão todas estas consequências. Com efeito, segundo este pressuposto está claro: quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando (ausarbeitet), tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (fremd) que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador] pertence a si próprio (Marx, 2004, p. 80-81).

Mais que isto, para Marx (2004), este elemento estranho que ditas suas próprias leis para o trabalhador e o torna escravo de sua vontade é apropriado por um outro ser (capitalista) que o usufrui (e o possui) em forma de propriedade privada.

Se o produto do trabalho me é estranho, [se ele] defronta-se comigo como poder estranho, a quem pertence então? Se minha própria atividade não me pertence, é uma atividade estranha, forçada, a quem ela pertence, então? A outro ser que não eu. Quem é este ser? Os deuses? Evidentemente nas primeiras épocas a produção principal como por exemplo a construção de templos etc., no Egito, na Índia, México, aparece tanto a serviço dos deuses, como também o produto pertence a eles. Sozinhos, porém, os deuses nunca foram os senhores do trabalho. Tampouco a natureza. E que contradição seria também se o homem, quanto mais subjugasse a natureza pelo seu trabalho, quanto mais os prodígios dos deuses se tornassem obsoletos mediante os prodígios da indústria, tivesse de renunciar à alegria na produção e à fruição do produto por amor a esses poderes. [...] O ser estranho ao qual pertence o trabalho e o produto do trabalho, para o qual o trabalho está a serviço e para a fruição do qual [está] o produto do trabalho, só pode ser o homem mesmo. Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, um poder estranho [que] está diante dele, então isto só é possível pelo fato de [o produto do trabalho] pertencer a um outro homem fora o trabalhador. Se sua atividade lhe é martírio, então ela tem de ser fruição para um outro e alegria de viver para um outro. Não os deuses, não a natureza, apenas o homem mesmo pode ser este poder estranho sobre o homem (Marx, 2004, p. 86).

É dentro desta perspectiva que Jinkings (2004, p. 15) afirma que, para o Marx dos “Manuscritos Econômico-Filosóficos”,

O trabalho é, e será sempre, um elemento cujo papel mediador é ineliminável da sociedade e, portanto, da sociabilidade humana. Mas o trabalho sob os auspícios da produção capitalista traz em si a impossibilidade de suplantação do estranhamento humano, uma vez que o seu controle é determinado pela necessidade da reprodução privada da apropriação do trabalho alheio, e não por aquilo que se poderia considerar necessidade humana ancorada na reprodução social liberta da posse privatizada. A função de mediador universal do trabalho tem continuidade, mas ele se submete às exigências da troca capitalista, da propriedade privada e da divisão do trabalho.

Um último aspecto a ser destacado no âmbito dos manuscritos é o de que Marx (2004, p. 106) apresenta, ali, a ideia de que é exatamente no movimento da propriedade privada que o modo de produção capitalista pode ser compreendido em sua totalidade, inclusive, como expressão material-sensível da vida humana estranhada.

Compreende-se, portanto, que só a economia nacional, que reconheceu o trabalho como seu princípio - Adam Smith – não sabia a propriedade privada apenas como um estado exterior ao homem -, que essa economia nacional é considerada, por um lado, como um produto da energia efetiva e do movimento da propriedade privada (ela é o movimento independente da propriedade privada tornado para si na consciência, a indústria moderna como si mesma - Selbst), como um produto da indústria moderna, e como ela, por outro, acelerou, glorificou, a energia e o desenvolvimento dessa indústria, e fez deles um poder da consciência (Marx, 2004, p. 99).

A propriedade privada material, imediatamente sensível (sinnliche), é a expressão material-sensível da vida humana estranhada. Seu movimento – a produção e o consumo – é a manifestação (Offenbarung) sensível do movimento de toda produção até aqui, isto é, realização ou efetividade do homem. Religião, família, Estado, direito, moral, ciência, arte etc., são apenas formas particulares da produção e caem sob a sua lei geral (Marx, 2004, p. 106).

No percurso de construção do conceito marxiano de materialismo histórico, o manuscrito intitulado “A ideologia alemã”, redigido conjuntamente com Engels entre setembro de 1845 e maio de 1846 no exílio em Bruxelas, ocupa um lugar fundamental.

Para Marx (2007, p. 87), o primeiro pressuposto de toda a história humana seria, inicialmente, a existência de seres humanos vivos. Estes homens se distinguiriam dos animais, de acordo com o autor, pela consciência, pela religião e, sobretudo, pela sua capacidade de produzir os meios de sua sobrevivência. Nesse sentido, a produção dos seus meios de existência, que estaria na origem da própria história, forneceria duas transformações fundamentais: (a) a transformação da natureza exterior pelo homem; e (b) a transformação do próprio homem pelo fato de ele criar as suas próprias condições de existência transformando a natureza.

Em relação aos alemães, que se consideram isentos de pressupostos [Voraussetzungslosen], devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder ‘fazer história’ (Marx, 2007, p. 32-33).

No que diz respeito aos diferentes elementos constitutivos da realidade histórica, o primeiro seria, de acordo com Marx (2007), o princípio da primazia das necessidades físicas dos homens. Como o próprio autor diz, o homem teria necessidades prioritárias a serem satisfeitas e o estágio inicial da história seria, exatamente, a satisfação destas necessidades (comer, beber, morar, vestir, etc.) através do trabalho. A partir do momento em que o homem satisfaz as suas necessidades prioritárias, outras surgiriam em decorrência das primeiras em um claro movimento de progressividade e enriquecimento.

Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos. [...] O segundo ponto é que a satisfação dessa primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades [...] (Marx, 2007, p. 33).

O terceiro elemento de constituição da realidade histórica seria, de acordo com Marx (2007), a ideia de que os homens, para além de sua satisfação (prioritária ou “supérfula”), necessitariam estabelecer relações sociais de natureza familiar, ou seja, renovar diariamente suas próprias vidas através da procriação e do estabelecimento do vínculo com uma mulher. É interessante apontar, como o próprio autor destaca, que estes três últimos elementos da atividade social não devem ser considerados como sendo estágios distintos da evolução humana (e, por consequência, progressivos), mas, sim, como facetas de sua realidade.

A terceira condição que já de início intervém no desenvolvimento histórico é que os homens, que renovam diariamente sua própria vida, começam a criar outros homens, a procriar – a relação entre homem e mulher, entre pais e filhos, a família. Essa família, que no início constitui a única relação social, torna-se mais tarde, quando as necessidades aumentadas criam novas relações sociais e o crescimento da população gera novas necessidades, uma relação secundária (salvo na Alemanha) e deve, portanto, ser tratada e desenvolvida segundo os dados empíricos existentes e não segundo o ‘conceito de família’, como se costuma fazer na Alemanha. Ademais, esses três aspectos da atividade social não devem ser considerados como três estágios distintos, mas sim, apenas como três aspectos ou, a fim de escrever de modo claro aos alemães, como três ‘momentos’ que coexistiram desde os primórdios da história e desde os primeiros homens, e que ainda hoje se fazem valer na história. (Marx, 2007, p. 33-34).

Conforme Aron (2003), o quarto e decisivo momento da análise marxiana da história consiste na ideia de que a transformação dos meios de produção criaria o que, normalmente, é denominado como sendo o conceito de forças produtivas (que implica, simultaneamente, uma relação dos homens entre si e deles com a natureza). Dito de outra forma, Aron (2003, p. 215) afirma que: “[...] a ação dos homens sobre a natureza, para transformá-la e dela extrair os meios de existência, é simultânea e necessariamente uma forma de cooperação dos homens entre si”. As relações de produção (ou organização da cooperação entre homens) seriam, assim, um aspecto fundamental das próprias forças de produção, ou seja, esta capacidade do homem de transformar a natureza conteria, em si, um certo modo de organização da cooperação dos homens.

A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da alheia, na procriação, aparece desde já como uma relação dupla – de um lado, como relação natural, de outro como relação social -, social no sentido de que por ela se entende a cooperação de vários indivíduos, sejam quais forem as condições, o modo e a finalidade. Segue-se daí que um determinado modo de produção ou uma determinada fase industrial estão sempre ligados a um determinado modo de cooperação ou a uma determinada fase social – modo de cooperação que é, ele próprio, uma ‘força produtiva’ -, que a soma das forças produtivas acessíveis ao homem condiciona o estado social e que, portanto, a ‘história da humanidade’ deve ser estudada e elaborada sempre em conexão com a história da indústria e das trocas (Marx, 2007, p. 34).

O quinto e último momento da análise marxista da história consiste na ideia de consciência. Derivada do fragmento abaixo, Aron (2003, p. 217) destaca que a concepção marxiana de consciência presente na “Ideologia Alemã” estaria relacionada a uma consciência real e prática exprimida na linguagem. Não há, assim, de acordo com a teoria marxiana, “[...] forças produtivas e estado social que não impliquem um certo estado de consciência, pois os homens não podem cooperar entre si senão por intermédio da linguagem”.

Desde o início, portanto, a consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens. A consciência é, naturalmente, antes de tudo a mera consciência do meio sensível mais imediato e consciência do vínculo limitado com outras pessoas e coisas exteriores ao indivíduo que se torna consciente; ela é, ao mesmo tempo, consciência da natureza que, inicialmente, se apresenta aos homens como um poder totalmente estranho, onipotente e inabalável, com o qual os homens se relacionam de um modo puramente animal e diante do qual se deixam impressionar como o gado; é, desse modo, uma consciência puramente animal da natureza (religião natural) – e, por outro lado, a consciência da necessidade de firmar relações com os indivíduos que o cercam constitui o começo da consciência de que o homem definitivamente vive numa sociedade. [...] A linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e que, portanto, também existe para mim mesmo; e a linguagem nasce, tal como a consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens (Marx, 2007, p. 34-35).

É importante destacar, neste momento, que Marx (2007) apresenta, aqui, três conceitos que serão fundamentais no decorrer de toda a sua obra: forças produtivas, estado social e consciência. De acordo com Marx (2007, p. 36), estes três elementos

[...] podem e devem entrar em contradição entre si, porque com a divisão do trabalho está dada a possibilidade, e até a realidade, de que as atividades espiritual e material – de que a fruição e o trabalho, a produção e o consumo – caibam a indivíduos diferentes, e a possibilidade de que esses momentos não entrem em contradição reside somente em que a divisão do trabalho seja novamente suprassumida [aufgehoben] (Marx, 2007, p. 36).

Marx (2007) quer apontar, aqui, o fato de que se existe contradição entre a realidade social e a consciência dela é porque a realidade social é essencialmente contraditória. E é contraditória na medida em que a divisão do trabalho e a propriedade privada são distribuídas, de maneira desigual, no âmbito da sociedade capitalista. Nesse sentido, as desigualdades na distribuição da propriedade e da divisão do trabalho criariam, ao mesmo tempo, contradições de interesse entre grupos sociais e contradições potenciais entre a consciência real e a ideológica.

É dentro desta perspectiva, inclusive, que Marx (2007) apresenta o papel revolucionário da classe trabalhadora. De acordo com o autor, no desenvolvimento das forças produtivas poderiam surgir relações sociais que causariam somente malefícios e, portanto, não poderiam ser mais consideradas como forças de produção, mas, sim, de destruição. Nesse contexto, na classe que suportaria “[...] todos os fardos da sociedade sem desfrutar de suas vantagens [...]” emergiria uma consciência da necessidade de uma revolução radical, “(...) a consciência comunista, que também pode se formar, naturalmente, entre as outras classes, graças à percepção da situação dessa classe.” (Marx, 2007, p. 41-42).

A revolução comunista, para Marx (2007) teria, por assim dizer, um caráter diferenciado em relação as anteriores, uma vez que essa se voltaria contra a forma da atividade existente e suprimiria o trabalho e superaria a dominação de classe. Há que se destacar, ainda, que a criação em massa da consciência comunista somente teria êxito, para Marx (2007), na medida em que houvesse uma transformação massiva dos homens que somente poderia ser apreendida em uma revolução.

Além disto, para Marx (2007), os indivíduos somente formariam uma classe na medida em que promovem uma luta contra outra (classe), ou seja, colocam-se como inimigos dela. Por outro lado, para o autor, a classe somente se autonomizaria em face dos indivíduos quando “[...] estes encontram suas condições de vida predestinadas e recebem já pronta da classe a sua posição na vida e, com isso, seu desenvolvimento pessoal; são subsumidos a ela.” (Marx, 2007, p. 63).

Quanto à personalidade dos indivíduos, Marx (2007) aponta que essa seria condicionada e determinada por relações de classe bem definidas e que a diferença se tornaria complementarmente evidente somente na oposição a uma outra classe.

Entre as páginas mais representativas do pensamento marxiano, especialmente no que diz respeito ao conceito de materialismo histórico, destaca-se, o prefácio de 1859 da “Contribuição à crítica da economia política”. Considerado por muitos estudiosos como sendo uma das mais belas páginas da literatura marxista, o prefácio resume, com uma clareza e concisão impressionantes, um dos conceitos mais centrais da obra de Marx.

Partindo das inquietações de seus primeiros escritos, Marx (2003, p. 05) chega à conclusão de que “[...] na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais”. De acordo com Bottomore (2012), as relações de produção teriam, por fundamento, ligar as forças produtivas e os seres humanos no processo de fabricação.

De acordo com o autor, estas relações seriam de dois tipos principais: (a) relações técnicas necessárias ao funcionamento do processo prático de produção; e (b) relações de controle econômico, cuja forma jurídica é a propriedade, e essas regulam o acesso às forças produtivas e aos produtos. Além disto, para o autor, as relações de produção poderiam exercer influência sobre o ritmo e a direção qualitativa do desenvolvimento das forças produtivas.

Ainda, conforme Bottomore (2012, p. 254), abrangeria não somente os meios de produção, mas, também, a força de trabalho. Assim, o desenvolvimento das forças produtivas compreenderia: “[...] fenômenos históricos como o desenvolvimento da maquinaria e outras modificações do processo de trabalho, a descoberta e a exploração de novas fontes de energia e a educação do proletariado”.

Ademais, para Marx (2003, p. 05): “[...] o conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social”. Dito de outra forma, para o autor, as diversas esferas da sociedade refletiriam o modo de produção dominante e a consciência geral estaria ligada a natureza de sua produção.

Em certo estágio de desenvolvimento, no entanto, para Marx (2003), as forças produtivas de uma determinada sociedade entrariam em contradição com as relações de produção existentes, gerando um período de revolução social, no qual a base econômica alteraria, rapidamente, toda a superestrutura.

Por fim, para Marx (2003), a revolução somente seria possível se a classe operária estivesse suficientemente avançada ou se houvesse uma reorganização do capital. Nesse momento, as formas ideológicas se tornariam uma força material marcante.

Na seção seguinte, será estabelecido um olhar mais aproximado do conceito de materialismo histórico à luz da abordagem benjaminiana presente nas “Teses sobre o conceito de história”.

MESSIANISMO, MATERIALISMO HISTÓRICO E AS TESES SOBRE O CONCEITO DE HISTÓRIA

Em seu livro “Redenção e Utopia: o judaísmo libertário na Europa Central”, Löwy (1989, p. 85) apresenta um Walter Benjamin “[...] distante de todas as correntes e no cruzamento dos caminhos”. De acordo com o autor, Benjamin estaria situado à margem das principais tendências intelectuais e políticas da Europa no início do século XX (Löwy, 1989). Seria, portanto, um intelectual de caráter essencialmente inclassificável que abrigaria, em si, contradições das mais diversas, como a teologia e o materialismo histórico, a assimilação e o sionismo, o romantismo conservador e o niilismo, o messianismo místico e a utopia profana. “Vivendo entre dois mundos”, Walter Benjamin, em seus 48 anos de vida, produziu efusivamente sobre uma diversidade de temáticas que abarcavam desde a literatura (Benjamin, 2016; 2017a; 2017b; 2019a; 2020a; 2020b) até a estética (Benjamin, 2017c; 2018; 2019b), passando pela filosofia (Benjamin, 2019c; 2019d), história (Benjamin, 2019d), educação (Benjamin, 2009; 2018b) e pela política (Benjamin, 2019e).

O conceito de messianismo em Walter Benjamin precisa ser, inicialmente, visto a partir do contexto sociocultural da Europa Central em fins do século XIX. De acordo com Löwy (1989), nessa área geográfico-cultural e histórica floresceu uma geração de intelectuais judeus que utilizavam, como fonte, não somente o romantismo alemão, mas, também, elementos do próprio judaísmo (Gershom Scholem, Kafka, Ernst Bloch, Walter Benjamin, entre outros). Ainda, conforme aponta o autor, foi uma geração de sonhadores utópicos que aspiravam a um mundo radicalmente diferente (buscavam o reino de Deus na Terra) e que tinham, como ideais, a busca de uma comunidade igualitária, o socialismo libertário, a revolta antiautoritária, bem como a revolução permanente do espírito (Löwy, 1989). Tratava-se, no entanto, não de uma busca em direção a um passado (com a retomada de elementos românticos), mas, sim, de um “impulso” através do passado em uma forte crítica à civilização industrial/capitalista e ao progresso.

Nesse sentido, é possível identificar, nessa época, na Europa Central, dois grupos distintos de judeus que transitavam entre a ideia de um pensamento messiânico e o romantismo alemão. O primeiro desses, segundo Löwy (2012), constituído de judeus religiosos de sensibilidade utópica (Franz Rosenzweig, Martin Buber, Gershom Scholem, etc.) teria como característica principal, uma recusa da assimilação, bem como uma afirmação da identidade judaica em seus aspectos nacional/cultural e religioso. O segundo grupo, constituído de judeus assimilados, ateus-religiosos e libertários (Gustav Landauer, Ernst Bloch, o jovem Lukács e o próprio Benjamin), tinha como característica principal um certo afastamento em diferentes graus do judaísmo sem, no entanto, romper com todos os laços.

Cumpre destacar que o conceito de messianismo em Benjamin perpassa toda a obra do autor, desde os seus primeiros textos da juventude (“A vida dos estudantes”, “Fragmento teológico-político”) até suas últimas linhas (“Teses sobre o conceito de história”). No caso do texto “A vida dos estudantes” se percebe, em Benjamin (2009), a expressão de uma visão de mundo sociorreligiosa que pode ser caracterizada como uma crítica a uma tendência progressista da sociedade industrial/capitalista. Como contraponto a isso, Benjamin (2009) faz referências ao uso de imagens utópicas, como a da Revolução Francesa de 1789 ou do reino messiânico. Há, ainda, neste texto, uma certa simpatia pelo anarquismo, sugerido pela ideia de que toda a ciência e toda a arte devem ser estranhas ao Estado.

No que diz respeito ao “fragmento teológico-político”, Benjamin (2019d, p. 23-24) afirma que “[...] só o próprio Messias consuma todo o acontecer histórico, nomeadamente no sentido de que só ele próprio redime, consuma, concretiza a relação desse acontecer com o messiânico [...]” e continua: “[...] do mesmo modo que uma força, ativada num certo sentido, é capaz de levar outra a atuar num sentido diametralmente oposto, assim também a ordem profana do profano é capaz de suscitar a vinda do reino messiânico”.

As imagens messiânicas, em franca contradição com a ideia de progresso, podem ser vistas, ainda, em sua tese de doutorado (“Conceito de crítica de arte no Romantismo alemão”). Nesse livro, Benjamin (2018a) insiste na ideia de que a essência histórica do romantismo deveria ser buscada no messianismo romântico. Em uma passagem do livro, Benjamin (2018, p. 20) afirma: “O desejo revolucionário de realizar o Reino de Deus é o ponto elástico da cultura progressiva e o início da história moderna. O que nela não apresenta nenhuma relação com o Reino de Deus é apenas algo secundário”. Ele completa: “O pensamento de um ideal de humanidade perfeita realizando-se no infinito foi descartado, exige-se, isto sim, o ‘Reino de Deus’ agora, aqui na Terra” (Benjamin, 2018, p. 21).

De acordo com Löwy (2005), o contato com a obra de Lukács, especialmente “História e consciência de classe”, faz com que Benjamin se aproxime do marxismo, mas de uma maneira não ortodoxa. Pelo contrário, Benjamin tem por intenção realizar uma aproximação teórica entre o conceito de materialismo histórico e suas “[...] intuições antiprogressistas, de inspiração romântica e messiânica” (Löwy, 2005, p. 22). Tal realidade fez com que Benjamin ocupasse uma posição singular em relação ao marxismo “oficial” da época. Dentro deste escopo, Löwy (2020) chama a atenção para o fato de que esta aproximação tardia com o marxismo fez com que a temática do messianismo passasse a se manifestar apenas de maneira “subterrânea” na obra de Benjamin, estando menos presente em seus escritos. Tal realidade, ainda conforme o autor, começou a mudar durante o decurso da segunda metade da década de trinta.

É, no entanto, em “Teses sobre o conceito de história”, escrito no ano de 1940 às vésperas de sua morte e considerado por diversos pesquisadores como um dos textos filosóficos e políticos mais importantes do século XX, que o conceito de messianismo se apresenta de uma maneira mais evidente, especialmente em sua Tese I.

É conhecida a história daquele autômato que teria sido construído de tal maneira que respondia a cada lance de um jogador de xadrez com um outro lance que lhe assegurava a vitória na partida. Diante do tabuleiro, assente sobre uma mesa espaçosa, estava sentado um boneco em traje turco, cachimbo de água na boca. Um sistema de espelhos criava a ilusão de uma mesa transparente de todos os lados. De fato, dentro da mesa estava sentado um anãozinho corcunda, mestre de xadrez, que conduzia os movimentos do boneco por meio de um sistema de arames. É possível imaginar o contraponto dessa aparelhagem na filosofia. A vitória está sempre reservada ao boneco a que se chama “materialismo histórico”. Pode desafiar qualquer um se tiver ao seu serviço a teologia, que, como se sabe, hoje é pequena e feia e, assim como assim, não pode aparecer à luz do dia.1 (Benjamin, 2019d, p. 9).

Para Löwy (2005, p. 45), a Tese I contempla uma franca associação entre o materialismo histórico e a teologia. De acordo com a interpretação do autor, o anão escondido dentro da máquina seria, exatamente, a última. Nesse sentido, com o intuito de vencer, o materialismo histórico precisaria, necessariamente, da ajuda da teologia que funcionaria, segundo Benjamin (2019d), como uma “fagulha” que acende a fogueira revolucionária.

[...] a teologia não é um objetivo em si [...] ela deve servir para restabelecer a força explosiva, messiânica, revolucionária do materialismo histórico – reduzido, por seus epígonos, a um mísero autômato (Löwy, 2005, p. 45).

É preciso entender, no entanto, que teologia está intrinsecamente ligada a outros dois conceitos da obra benjaminiana: o conceito de rememoração (Eingedenken) e o conceito de redenção messiânica (especialmente presentes na Tese II). De acordo com Benjamin (2019d), seria preciso rememorar a história das vítimas do passado (não há que se fazer distinção entre os acontecimentos ou os indivíduos “grandes” ou “pequenos”) no sentido de se chegar à redenção messiânica. Bouretz (2011) chama a atenção para a proximidade entre a categoria da rememoração e a noção judaica de relembrança (zekher). De acordo com o autor, esta noção não designaria a simples conservação da memória dos acontecimentos passados, mas sim, a sua reatualização constante na experiência do presente. É dentro desta perspectiva, inclusive, que Benjamin (2012, p. 228), em seu texto sobre a obra de Leskov (“O narrador”), afirma na contraposição entre a memória perpetuadora do romancista em contraste com a breve memória do narrador, que “[...] a rememoração funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração”.

O autor destaca, ainda, no mesmo texto e utilizando-se de uma citação de Pascal, que “[...] ninguém morre tão pobre que não deixe alguma coisa atrás de si [...] ele deixa recordações, embora nem sempre elas encontrem um herdeiro. O romancista recebe essa herança, e quase sempre com uma profunda melancolia” (Benjamin, 2012, p. 229). A redenção messiânica seria, portanto, uma tarefa atribuída a nós por gerações (oprimidas) passadas. Não haveria, por assim dizer, um Messias que seria enviado dos céus e que nos salvaria. Benjamin (2019d) compreende que nós somos o Messias e que cada geração possui uma parcela desse poder messiânico e tem, por obrigação, que se esforçar para exercê-la.

Bouretz (2011) afirma, neste ponto, que Benjamin, inspirado nas formas mais apocalípticas do Talmud consagradas à vinda do Messias e “[...] situadas nas expressões extremas de uma mística confrontada com as dores da experiência histórica própria ao exílio”, apresenta algo como uma redenção revolucionária secularizada levada a cabo pelo proletariado.

Pertence às mais notáveis particularidades do espírito humano, [...] ao lado de tanto egoísmo no indivíduo, a ausência geral de inveja de cada presente em face do seu futuro’, diz Lotze. Essa reflexão leva a reconhecer que a imagem da felicidade que cultivamos está inteiramente tingida pelo tempo a que, uma vez por todas, nos remeteu o decurso de nossa existência. Felicidade que poderia despertar inveja em nós existe tão somente no ar que respiramos, com os homens com quem teríamos podido conversar, com as mulheres que poderiam ter-se dado a nós. Em outras palavras, na representação da felicidade vibra conjuntamente, inalienável, a [representação] da redenção. Com a representação do passado, que a História toma por sua causa, passa-se o mesmo. O passado leva consigo um índice secreto pelo qual ele é remetido à redenção. Não nos afaga, pois, levemente um sopro de ar que envolveu os que nos precederam? Não ressoa nas vozes a que damos ouvido um eco das que estão, agora, caladas? E as mulheres que cortejamos não têm irmãs que jamais conheceram? Se assim é, um encontro secreto está então marcado entre as gerações passadas e a nossa. Então fomos esperados sobre a terra. Então nos foi dada, assim como a cada geração que nos precedeu, uma fraca força messiânica, à qual o passado tem pretensão. Essa pretensão não pode ser descartada sem custo. O materialista histórico sabe disso.2 (Benjamin, 2019d, p. 09-10).

Löwy (2005, p. 55) vê, complementarmente, que Benjamin (2019d) apresenta, em sua Tese III, a ideia da redenção como sendo uma espécie de apocatástase no sentido de que “[...] cada vítima do passado, cada tentativa de emancipação, por mais humilde e pequena que seja, será salva do esquecimento e citada na ordem do dia, ou seja, reconhecida, honrada e rememorada”. O autor aponta, ainda, que o conceito de apocatástase significaria, também, uma volta a um certo estado originário (no Evangelho, o restabelecimento do Paraíso pelo Messias) e teria seu equivalente judaico no termo tikkun, ou seja, a ideia da “[...] a redenção como volta de todas as coisas ao seu estado inicial” (Löwy, 2005, p. 55).

O cronista que narra profusamente os acontecimentos, sem distinguir grandes e pequenos, leva com isso a verdade de que nada do que alguma vez aconteceu pode ser dado por perdido para a história. Certamente, só à humanidade redimida cabe o passado em sua inteireza. Isso quer dizer: só à humanidade redimida o seu passado tornou-se citável em cada um dos seus instantes. Cada um dos instantes vividos por ela torna-se uma citation à l’ordre du jour’ – dia que é justamente, o do Juízo Final3. (Benjamin, 2019d, p. 10).

Um elemento relevante, presente na Tese IV, é o fato de que Benjamin (2019d) atribui uma importância vital das forças espirituais e morais na luta de classes. Nesse sentido, a fé, a coragem, a perserverança, o humor e a astúcia seriam fundamentais para as transformações revolucionárias da vida material. Quanto a este ponto, Gagnebin (1999) destaca o fato de que a teologia, para Benjamin, cumpriria, assim, um papel salutar no combate às “crenças” do proletariado e da esquerda, que acreditavam haver um sentido único e inexorável em direção ao progresso que nem o fascismo poderia interromper.

Para Cantinho (2022), aliás, o papel do materialismo histórico na concepção benjaminiana seria, exatamente, a busca pela destruição desta continuidade do percurso do “infernal cortejo dos vencedores’. Benjamin (2019d) vê, assim, na luta de classes, um dos conceitos mais marcantes do materialismo histórico. Para ele, inclusive, o poder da classe dominante não resultaria simplesmente de sua força econômica ou da distribuição da propriedade, mas, também, de um histórico de triunfos no combate às classes subalternas, representados na história por uma sucessão de vitórias dos poderosos.

A luta de classes, que um historiador escolado em Marx tem sempre diante dos olhos, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não há coisas finas e espirituais. Apesar disso, estas últimas estão presentes na luta de classes de outra maneira que a da representação de uma presa que toca ao vencedor. Elas estão vivas nessa luta como confiança, como coragem, como humor, como astúcia, como tenacidade, e elas retroagem ao fundo longínquo do tempo. Elas porão incessantemente em questão cada vitória que couber aos dominantes. Como flores que voltam suas corolas para o sol, assim o que o foi aspira, por um secreto heliotropismo, a voltar-se para o sol que está a se levantar no céu da história. Essa mudança, a mais imperceptível de todas, o materialista histórico tem que saber discernir4 (Benjamin, 2019d, p. 10-11).

Caberia ao historiador, nesse sentido, a tarefa de escovar a história a contrapelo, ou seja, contar a história dos vencidos, dos oprimidos, daqueles que não têm voz, fugindo de uma certa tendência dominante na época de caracterizar os eventos históricos como sendo parte de uma grande engrenagem em direção ao progresso (Tese VII). É nesta perspectiva, inclusive, que Benjamin (2019d) apresenta, em sua famosa Tese IX, o papel do Messias como aquele que interrompe a marcha do progresso. Um progresso que, para Benjamin (2019d), levaria a humanidade à destruição tanto do homem quanto da natureza e que levaria o autor a ser caracterizado por alguns teóricos como sendo parte presente de um certo grupo de pessimistas revolucionários.

Existe um quadro de Klee intitulado ‘Angelus Novus’. Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade5 (Benjamin, 2019d, p. 87).

É interessante destacar que, de acordo com as notas preparatórias desse documento, para Benjamin (2019d, p. 174), seria: “[...] preciso restituir ao conceito de sociedade sem classes seu verdadeiro caráter messiânico, dentro do próprio interesse da política revolucionária dos proletariados”. Ele completa: “O Messias interrompe a história: o Messias não aparece no fim de um desenvolvimento” (Benjamin, 2019d, p. 174). Ao contrário de Marx, para Löwy (2012, p. 95), no entanto, a sociedade sem classes benjaminiana do futuro não seria uma simples volta a um certo comunismo primitivo, pré-histórico, mas, sim uma “[...] síntese dialética de todo o passado da humanidade”.

Benjamin (2019d, p. 12) destaca, ainda, nas Teses VI e VII, a necessidade de o historiador estar vigilante em relação ao potencial uso ideológico dos eventos do passado pelas classes dominantes e vê uma clara associação entre os personagens do Messias/classe proletária e do Anticristo/classe dominante na passagem: “[...] o Messias não vem somente como redentor; ele vem como vencedor do Anticristo”.

Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo ‘tal como ele propriamente foi’. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo. Importa ao materialismo histórico capturar uma imagem do passado como ela inesperadamente se coloca para o sujeito histórico no instante do perigo. O perigo ameaça tanto o conteúdo dado da tradição quanto os seus destinatários. Para ambos o perigo é único e o mesmo: deixar-se transformar em instrumento da classe dominante. Em cada época é preciso tentar arrancar a transmissão da tradição ao conformismo que está na iminência de subjugá-la. Pois o Messias não vem somente como redentor; ele vem como vencedor do Anticristo. O dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está preparado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer6 (Benjamin, 2019d, p. 11-12).

Ao historiador que quiser reviver uma época, Fustel de Coulanges recomenda banir de sua cabeça tudo o que saiba do curso ulterior da história. Não se poderia caracterizar melhor o procedimento com o qual o materialismo histórico rompeu. É um procedimento de identificação afetiva. Sua origem é a indolência do coração, a acedia, que hesita em apoderar-se da imagem histórica autêntica que lampeja fugaz. Para os teólogos da Idade Média ela contava como o fundamento originário da tristeza. Flaubert, que bem a conhecera, escreve: ‘Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage’. A natureza dessa tristeza torna-se mais nítida quando se levanta a questão de saber com quem, afinal, propriamente o historiador do Historicismo se identifica efetivamente? A resposta é, inegavelmente: com o vencedor. Ora, os dominantes de turno são os herdeiros de todos os que, algum dia, venceram. A identificação afetiva com o vencedor ocorre, portanto, sempre, em proveito dos vencedores de turno. Isso diz o suficiente para o materialismo histórico. Todo aquele que, até hoje, obteve a vitória, marcha junto no cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje [a marcharem] por cima dos que, hoje, jazem por terra. A presa, como sempre de costume, é conduzida no cortejo triunfante. Chamam-na bens culturais. Eles terão de contar, no materialismo histórico, com um observador distanciado, pois o que ele, com seu olhar, abarca como bens culturais atesta, sem exceção, uma proveniência que ele não pode considerar sem horror. Sua existência não se deve somente ao esforço dos grandes gênios, seus criadores, mas, também, à corveia sem nome de seus contemporâneos. Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a história a contrapelo7 (Benjamin, 2019d, p. 12-13).

Além disso, quanto ao método histórico, Benjamin (2019d) argumenta que é necessária a tomada de uma certa distância do campo, recuando diante da atualidade política, não com o sentido de ignorá-la, mas, sim, para encontrar suas causas profundas. Além disso, seria necessário, ao historiador, distanciar-se das ilusões e tentações do século, das doutrinas confortáveis e sedutoras do progresso (Tese X).

Os objetos que a regra monacal propunha aos monges para a meditação tinham a tarefa de torná-los avessos ao mundo e à sua agitação. O curso de pensamento que aqui perseguimos emergiu de uma determinação semelhante. Num instante em que os políticos, em quem os adversários do fascismo tinham colocado as suas esperanças, jazem por terra e reforçam sua derrota com a traição à própria causa, esse curso de pensamento se propõe a desvencilhar os filhos políticos deste século dos liames com que os políticos os tinham enredado. Partimos da consideração de que a crença obstinada desses políticos no progresso, sua confiança em sua base de massa e, finalmente sua submissão servil a um aparelho incontrolável, foram três aspectos de uma única e mesma coisa. Essa consideração procura dar uma ideia do quanto custa ao nosso pensamento habitual elaborar uma concepção da história que evite toda e qualquer cumplicidade com aquela a que esses interesses políticos continuam se apegar. (Benjamin, 2019d, p. 14-15).

O sujeito do conhecimento histórico seria, para Benjamin (2019d), a própria classe oprimida e combatente (Tese XII) que, conforme já dito, teria como dever principal a rememoração das vítimas como uma fonte fundamental de energia moral e espiritual para a luta revolucionária. É interessante notar que, para Benjamin (2019d), as classes revolucionárias não seriam somente o proletariado, mas, sim, todos os oprimidos do passado que tiveram consciência do poder de explodir, por meio de sua ação, a continuidade histórica (Tese XV).

O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe oprimida, a classe combatente. Em Marx ela se apresenta como a última classe escravizada, a classe vingadora que, em nome de gerações de derrotados, leva a termo a obra de liberação. Essa consciência que, por pouco tempo, se fez valer ainda uma vez no ‘Spartacus’, desde sempre escandalizou a social-democracia. No decurso de três decênios, a social-democracia quase conseguiu apagar o nome de um Blanqui, cujo som de bronze abalava o século anterior. Ela teve comprazer em atribuir à classe trabalhadora o papel de redentora das gerações futuras. Com isso ela lhe cortou o tendão da melhor força. Nessa escola a classe trabalhadora desaprendeu tanto o ódio quanto a vontade de sacrifício. Pois ambos se nutrem da visão dos ancestrais escravizados, e não do ideal dos descendentes libertados8 (Benjamin, 2019d, p. 16-17)

A consciência de fazer explodir o contínuo da história é própria das classes revolucionárias no instante de sua ação. A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa o novo calendário funciona como um condensador de tempo histórico. E, no fundo, é o mesmo dia que retorna sempre na figura dos dias de festa, que são dias da rememoração. Os calendários, portanto, não contam o tempo como relógios. Eles são monumentos de uma consciência da história da qual, há cem anos, parece não haver na Europa os mínimos vestígios. Ainda na Revolução de Julho ocorreu um incidente em que essa consciência se fez valer. Chegado o anoitecer do primeiro dia de luga, ocorreu que em vários pontos de Paris, ao mesmo tempo e sem prévio acerto, dispararam-se tiros contra os relógios das torres. Uma testemunha ocular, que, talvez, devesse à rima a sua intuição divinatória, escreveu então: Qui le croinait! On di qu’irrités contre l’heure. De nouveaux Josués, au pied de chaque tour. Tiraient sur les cadrans pour arrêter le jour9 (Benjamin, 2019d, p. 18).

‘Os míseros cinquenta mil anos do homo sapiens’, diz um biólogo recente, ‘representam, em relação à história da vida orgânica sobre a terra, algo como dois segundos ao fim de um dia de vinte e quatro horas. Inscrita nessa escala, a história inteira da humanidade civilizada perfaz um quinto do último segundo da última hora’. O tempo-de-agora que, enquanto modelo do tempo messiânico, resume a história de toda a humanidade numa prodigiosa abreviação, coincide, exatamente, com a figura que a história da humanidade ocupa no universo (Benjamin, 2019, p. 20).

Por fim, Benjamin (2019d) apresenta, em sua Tese XVIII, a ideia de que o tempo atual ou tempo-de-agora (Jetztzeit) resumiria todos os momentos messiânicos do passado, bem como toda a tradição dos oprimidos seria concentrada, como uma força redentora, no momento presente (o do historiador ou o do revolucionário).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo principal estabelecer um olhar sobre o conceito de materialismo histórico à luz da abordagem benjaminiana presente nas “Teses sobre o conceito de história”. Partindo de uma certa “arqueologia” do conceito de materialismo histórico nos primeiros escritos de Marx até sua expressão mais clássica no prefácio de 1859 da “Contribuição à crítica da economia política” e passando por uma leitura atenta das “Teses”, foi possível notar que Benjamin busca, através da mediação do messianismo judaico e do romantismo alemão, inserir elementos teológicos na análise marxiana.

Nesse sentido, ao se observar o desenvolvimento teórico do conceito de materialismo histórico na obra marxiana, pode-se notar que a importância do elemento religioso para o autor vai, ao longo do tempo “desaparecendo”. Nesse sentido, se em obras como a “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”, Marx apresenta a religião como tendo um triplo-caráter (expressão da miséria real, elemento entorpecedor que auxiliaria o indivíduo explorado a suportar a sua vida de sofrimento e protesto contra esta mesma realidade), no prefácio de 1859 da “Contribuição à crítica da economia política” (documento fundamental, como dito no corpo deste próprio texto, para a compreensão do conceito de materialismo histórico), o fenômeno religioso se apresenta de maneira apenas marginal. Realidade semelhante pode ser observada tanto na “Ideologia Alemã” quanto nas “Teses sobre Feuerbach”. Nessas, a religião seria produto da atividade material dos homens e refletiria, como falsa consciência, as relações de dominação de classe e exploração na sociedade capitalista.

Benjamin, ao contrário (especialmente no que diz respeito ao conteúdo das “Teses sobre o conceito de história”), insere a religião como elemento significativo de sua análise do capitalismo. Assim, vê-se que, inicialmente, o autor não atribui somente ao proletariado o papel de sujeito ativo da revolução. Caberia aos oprimidos, em geral, o dever principal de rememoração das vítimas do passado (como uma fonte fundamental de energia moral e espiritual) e de redenção através da luta revolucionária.

Nas palavras de Benjamin, seria papel dos oprimidos e não de um Messias enviado pelos céus, a interrupção da marcha destruidora do progresso, a restituição da sociedade sem classes e, por que não dizer, de um reino messiânico no plano terreno. Nesse sentido, como crítico de uma visão mecânica e progressista do materialismo histórico, bem como ao próprio desenvolvimento tecnológico (que, longe de ser positivo, traz consequências extremamente negativas para o indivíduo), Benjamin adota a ideia de que a revolução seria, fundamentalmente, um “freio de emergência” em direção a um novo tipo de sociedade.

  • 1
    Tese I.
  • 2
    Tese II.
  • 3
    Tese III.
  • 4
    Tese IV.
  • 5
    Tese IX.
  • 6
    Tese VI.
  • 7
    Tese VII.
  • 8
    Tese XII.
  • 9
    Tese XV.

REFERÊNCIAS

  • ADORNO, T. W. Correspondência 1928-1940 AdornoBenjamin São Paulo: Editora Unesp, 2012. 487 p.
  • BENJAMIN, W. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação São Paulo: Editora 34, 2009. 174 p.
  • BENJAMIN, W. Origem do drama trágico alemão Belo Horizonte: Autêntica, 2016. 335 p.
  • BENJAMIN, W. Ensaios sobre Brecht São Paulo: Boitempo, 2017a. 148 p.
  • BENJAMIN, W. Imagens de pensamento: sobre o haxixe e outras drogas. São Paulo: Boitempo, 2017b. 191 p.
  • BENJAMIN, W. Estética e sociologia da arte Belo Horizonte: Autêntica, 2017c. 282 p.
  • BENJAMIN, W. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão São Paulo: Iluminuras, 2018a. 141 p.
  • BENJAMIN, W. A hora das crianças: narrativas radiofônicas. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2018b. 289p.
  • BENJAMIN, W. Baudelaire e a modernidade Belo Horizonte: Autêntica, 2019a. 347 p.
  • BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica Porto Alegre: L&PM, 2019b. 167 p.
  • BENJAMIN, W. Sobre o programa da filosofia por vir Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019c. 70 p.
  • BENJAMIN, W. O anjo da história Belo Horizonte: Autêntica, 2019d. 261 p.
  • BENJAMIN, W. Passagens Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019e. 635 p.
  • BENJAMIN, W. Rua de mão única, Infância Berlinense: 1900. Belo Horizonte: Autêntica, 2020a. 155 p.
  • BENJAMIN, W. Linguagem, tradução, literatura (filosofia, teoria e crítica) Belo Horizonte: Autêntica, 2020b. 204 p.
  • BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento marxista Rio de Janeiro: Zahar, 2012. 705 p.
  • BOURETZ, P. Testemunhas do futuro: filosofia e messianismo. São Paulo: Perspectiva, 2011. 792 p.
  • CANTINHO, M. J. Walter Benjamin: messianismo e revolução. São Paulo: Circuito, 2022.
  • ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra São Paulo: Boitempo, 2010.
  • GAGNEBIN, J-M. Teologia e messianismo no pensamento de W. Benjamin. Estudos Avançados, [s.l], v. 13, n. 37, 1999.
  • LÖWY, M. Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa Central. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 205p.
  • LÖWY, M. Walter Benjamin – Aviso de Incêndio: uma leitura das teses sobre o conceito de história. São Paulo: Boitempo, 2005. 159 p.
  • LÖWY, M. Judeus heterodoxos: messianismo, romantismo, utopia. São Paulo: Perspectiva, 2012. 184 p.
  • LÖWY, M. A teoria da revolução no jovem Marx São Paulo: Boitempo, 2012. 218 p.
  • LÖWY, M. A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano. São Paulo: Boitempo, 2014. 138 p.
  • LÖWY, M. A revolução é o freio de emergência: ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo: Autonomia Literária, 2019. 154 p.
  • LÖWY, M. Tempo messiânico e historicidade revolucionária em Walter Benjamin. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 03, p. 2069-2089, 2020. DOI: 10.1590/2179-8966/2020/53003.| Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdp/a/TrgyhmHK7ky33Rh7nFmVq8k/?format=pdf Aacesso em: 1 mar. 2025.
    » https://doi.org/10.1590/2179-8966/2020/53003» https://www.scielo.br/j/rdp/a/TrgyhmHK7ky33Rh7nFmVq8k/?format=pdf
  • MARX, K. Contribuição à crítica da economia política São Paulo: Martins Fontes, 2003. 405 p.
  • MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos São Paulo: Boitempo, 2004. 175 p.
  • MARX, K. A ideologia alemã São Paulo: Boitempo, 2007. 614 p.
  • MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel São Paulo: Boitempo, 2013. 181 p.
  • MARX, K. Os despossuídos São Paulo: Boitempo, 2017. 150 p.
  • SCHOLEM, G. De Berlim a Jerusalém: recordações da juventude. São Paulo: Perspectiva, 1977. 188 p.
  • SCHOLEM, G; BENJAMIN, W. Correspondência 1933-1940 São Paulo: Perspectiva, 1980. 367 p.
  • SCHOLEM, G. Walter Benjamin: a história de uma amizade. São Paulo: Perspectiva, 2008. 230 p.
  • WITTE, B. Walter Benjamin: uma biografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. 159 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2023
  • Aceito
    30 Jan 2025
location_on
Universidade Federal da Bahia - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Centro de Recursos Humanos Estrada de São Lázaro, 197 - Federação, 40.210-730, Tel.: (55 71) 3283-5857 - Salvador - BA - Brazil
E-mail: revcrh@ufba.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Reportar erro