INTRODUÇÃO
O Dossiê Governança da terra: Diálogos entre a Colômbia, o Brasil e o México analisa diferentes contextos e tecnologias de governo de terras e territorialidades nos três países. Por transpassar os Estados nacionais em jogo, a governança sobre a terra implica conflitos em torno do reconhecimento de determinadas relações sociais vinculadas à terra, em seus múltiplos significados, como objeto de ações governamentais.1 Em confrontos políticos por terra, além de modos de resistência e ações coletivas, variadas identidades sociais (McAdam; Tarrow; Tilly, 2004) têm sido constituídas e mobilizadas por campesinatos, comunidades tradicionais e povos indígenas em defesa de suas territorialidades: ejidatarios, comuneros, avecindados, possuidores, beiradeiros, trabalhadores rurais, colonos, indígenas, comunidades negras ou afrodescendentes, mulheres, entre outras. Com isso, lutam contra processos expropriatórios do mercado global de terras, dos grandes projetos e das estratégias de exportação agromineral, que implicam na apropriação privada de terras públicas, tradicionalmente ocupadas ou de uso comum (Almeida, 2019; Castro, 2012; Edelman; Oya; Borras Jr., 2013; Sassen, 2016). Essa lógica da conquista do “novo mundo” e da expansão do capital relega a América Latina ao modelo extrativista (Alimonda; Pérez; Martín, 2017) ou neoextrativista (Gudynas, 2017), o qual submete o planeta Terra à crise socioecológica caracterizada como a era geológica do Antropoceno (Svampa, 2019).
Os artigos do Dossiê, de autoria de pesquisadoras e pesquisadores da Antropologia, Sociologia, Geografia, História e Ciência Política, têm como eixos analíticos os processos históricos que engendram conflitos por terras e territorialidades. Evidenciam desconexões entre os sentidos jurídicos e administrativos da terra e de territórios – delimitados e controlados consoante o conceito moderno de “propriedade privada” produtora de mercadorias, o desenvolvimentismo e/ou o preservacionismo – e os múltiplos sentidos de territorialidade e da terra, contextualmente conectados à vida, observados entre povos e comunidades historicamente expropriados pelo neocolonialismo e pela expansão do capital e do Estado-nação (Borges, 2014; Pietrafesa de Godoi, 2014).
O colonialismo interno, largamente debatido por intelectuais da América Latina, é particularmente profícuo para compreender processos de formação do Estado alicerçados na conquista e controle de povos e da natureza (Quijano, 2005). No Brasil, em meados do século XX, políticas de colonização intencionavam formar subjetividades empresariais entre camponeses de regiões conflituosas, onde organizações camponesas demandavam reforma agrária radical. Esse é o caso das políticas de colonização implementadas em áreas de ocupação antiga da plantation nos estados de Pernambuco e Rio de Janeiro, analisadas no artigo de Ricardo Brito Colonização e luta por reforma agrária no Brasil (1950-1970). Sua análise documental em acervos de órgãos públicos, entidades sindicais e eclesiais mostra que, nos dois estados, camponeses (posseiros, moradores, foreiros, colonos etc.) foram submetidos, por meio de expulsão, violências e mecanismos de disciplinarização, ao cercamento de terras, à perda de laços duradouros territoriais, à racialização, desqualificação e subalternização no mercado de trabalho. Entre os resultados da modernização da plantation pela política desenvolvimentista da ditadura, cita a especulação fundiária no Rio de Janeiro, a expansão da cana em Pernambuco e o crescimento de conflitos por terra. Sua intensificação no fim dos anos 1970, por meio de sindicatos de trabalhadores rurais, evidenciou a força da luta pela reforma agrária radical que a política de colonização pretendia sufocar.
Naquele período (anos 1970), a política de colonização da Amazônia Legal no Brasil, região representada como “fronteira”, seguiu essa lógica de controle de territórios e populações. Ao promover a lógica de colonização sistemática, favoreceu sua ocupação por grandes empreendimentos agrícolas e minerais e por camponeses autodenominados colonos, obliterando a preexistência de povos indígenas e comunidades tradicionais. O artigo de Natalia Guerrero e Mauricio Torres Campesinatos, conflitos e políticas ambientais na bacia do Xingu (PA) apresenta, com base em pesquisa etnográfica e análise documental, como autodenominados beiradeiros, cuja territorialidade no Pará remonta à economia da borracha no fim do século XIX, passaram a conviver com colonos (pequenos agricultores com perfil de beneficiários da política da reforma agrária), grileiros, madeireiras e uma mineradora transnacional, chegados após a abertura da rodovia BR-230 (Transamazônica) e BR-163 (Cuiabá-Santarém). Os autores mostram como, apesar das violências promovidas por grileiros e pistoleiros, a luta por terra dos colonos lhes assegurou o acesso legítimo à terra como posseiros. Contudo, a criação da Estação Ecológica da Terra do Meio, uma unidade de conservação (UC) de proteção integral criada pelo governo federal em 2005, desafiou as territorialidades dos beiradeiros e colonos, ao passo em que foi bem-sucedida em frear a grilagem. Argumentam que, frente ao não reconhecimento da legitimidade da demanda fundiária dos colonos pelo Estado – em contraposição à legitimidade dos beiradeiros, reconhecidos como comunidades tradicionais, com base no marco jurídico da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 –, têm se fortalecido atividades ilegais e pressões pela flexibilização dessa UC em prol da privatização de terras públicas por agentes capitalizados.
Já na Colômbia, a ampliação da fronteira agrária com a colonização dirigida foi promovida pelas políticas de reforma agrária nos anos 1960 (Ramírez, 2001), seguidas por um curto período de distribuição de terras. Na década de 1990, conflitos étnicos por terra foram intensificados sob o paradigma pluriétnico e multicultural da Constituição Política de 1991, que substituiu a representação mestiça da nação. Com isso, em departamentos (estados) como Cauca (sudoeste da Colômbia), populações negras, indígenas e camponesas passaram a lutar pela legitimidade de suas territorialidades com base na tradição. Referente a esse período, o artigo de Oscar Ramos, Estado, territorio y relaciones interétnicas en contextos de multiculturalidad, observa as relações entre comunidades negras e povos indígenas, bem como suas relações com o Estado após a promoção de políticas governamentais de criação de territórios de titulação coletiva. Seguindo a concepção de Norbert Elias (1993) de processos de formação de Estado, o trabalho aponta que as novas políticas territoriais e as relações de parentesco e de vizinhança entre esses grupos étnicos atuaram na transformação de suas relações sociais e na modernização do Estado colombiano. Esses processos geraram um híbrido entre tradição e modernidade, redefinindo continuamente as relações interétnicas e territoriais.
Em Putumayo, Amazônia Colombiana, por outro lado, observou-se um processo de expansão da fronteira mineiro-energética e agrícola promovida por políticas de desenvolvimento e de integração regional que, desde os anos 1980, têm encontrado resistência entre movimentos sociais afro, indígenas, camponeses-colonos e de mulheres. Astrid Florez, no artigo Agrietamiento estructural y transformaciones del piedemonte amazónico colombiano en las disputas por el desarrollo alternativo (2000-2013), analisa como as demandas dessas coletividades locais contrastam com as diferentes concepções de desenvolvimento construídas pelos governos nacionais entre 1990 e 2010 – como: acumulação de capital; crescimento econômico; extração empresarial; sustentabilidade; e desenvolvimento alternativo na luta contra as drogas. Para isso, retoma o conceito de “rachadura estrutural” elaborado por Fals Borda (1996), que evidencia como a violência provoca uma ordem social que diferencia normas ideais e normas reais. A autora mostra como a declaração de parques nacionais e a presença de grupos armados, que procuram controlar a circulação das mercadorias na região, impactam a vida de camponeses-colonos, indígenas e afrocolombianos. Esses elementos construíram uma nova espacialidade na região, que desafia os preconceitos de setores da academia e do Estado acerca das relações entre os grupos armados e a população civil. Movimentos dos colonos-campesinos e os povos indígenas e afro constroem territorialidades pelo trabalho na terra, as mobilizações sociais e as resistências frente aos projetos de desenvolvimento que não lhes reconhecem e aos grupos armados que os violentam.
Em contrapartida aos casos brasileiro e colombiano, a Constituição do México de 1917 fundamentou a implementação da política de reforma agrária que generalizou o uso comum das terras por meio da figura dos ejidos. O artigo de José Jacobo Eduardo Bernal, intitulado El ejido como forma de resistencia comunitaria (Zacatecas, México), traz esta discussão, ressaltando as tensões históricas em torno da terra, entre uma abordagem liberal baseada na produtividade da terra e na defesa da propriedade, e uma abordagem social, que entendia a distribuição de terras entre os camponeses como um direito e um mecanismo de justiça social, reconhecendo as práticas sociais comunitárias. Com foco no estado de Zacatecas, mostra como essa tensão está presente na formulação das leis locais e como a criação do ejido pós-revolucionário respondeu ao aumento dos conflitos sociais e das demandas dos camponeses por terra nas primeiras décadas do século XX. A partir dessa perspectiva, o autor critica as posições que concentram suas análises na dimensão econômica e produtiva do ejido, apontando para seu suposto fracasso. Defende que o ejido deve ser entendido como mais do que uma simples forma de propriedade, pois é um órgão político-administrativo e um eixo articulador da sociedade rural mexicana. Contudo, a partir dos processos de modernização do campo da segunda metade do século XX, o papel e a relevância do ejido foram reduzidos.
Isso se aprofundou com a implementação das reformas neoliberais na década de 1990 que pretendiam integrar o ejido à lógica do mercado. Nesse contexto, Juana Lara Mondragón, no artigo El PROCEDE en la reorganización socioterritorial de Tixmadejé, México, analisa o Programa de Certificación de Derechos Ejidales y Titulación de Solares Urbanos (PROCEDE), que tinha como objetivo criar e dinamizar o mercado de terras para gerar uma maior produtividade por meio do investimento privado e da agricultura intensiva nas terras comunais. Observando a realidade da localidade de Tixmadejé, no município de Acambay, no período de 2005 a 2018, a autora mostra como essas políticas de cima para baixo precisam ser estudadas em nível local, levando em consideração as dinâmicas internas, as relações sociais locais e a maneira como os atores se apropriam dessas políticas e negociam sua implementação nos territórios. Assim, com a incorporação de novos sujeitos nos núcleos agrários, o programa gerou: conflitos pelas mudanças na transmissão da terra; resistência geracional e desconfiança sobre a permanência na terra; conflitos nas comunidades pela exploração das terras florestais; aumento da participação das mulheres nos espaços de tomada de decisão; mudança dos programas produtivos estatais dirigidos aos camponeses para a assistência social; crescimento de comuneros, que passaram a tomar decisões no nível local; mudança no uso do solo como resultado da diversificação das atividades. Mostra como os camponeses agenciaram a política de formas diferentes das originalmente concebidas pelos formuladores do Estado.
Em conclusão, o Dossiê revela como o processo de formação dos Estados no Brasil, na Colômbia e no México foi marcado por políticas governamentais de reforma agrária, de colonização e de desenvolvimento (em variadas acepções) – formuladas via jogos de poder constituídos por redes de agentes desiguais, desde organismos de cooperação internacional a movimentos sociais –, bem como dispositivos jurídicos e disciplinares que conferiram ou não legitimidade às demandas de determinados grupos sociais e étnicos. Aponta também como o processo de ambientalização das lutas sociais (Leff, 2006) se manifestou na reconfiguração de identidades coletivas e processos de territorialização na América Latina – o que resultou no que Svampa (2019) chamou de giro ecoterritorial das lutas socioambientais nos anos 2000, com crescente protagonismo das mulheres. Contudo, políticas de desenvolvimento preservacionistas/conservacionistas resultaram em violações de territorialidades de camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais (Pietrafesa de Godoi, 2014), o que têm favorecido estratégias de flexibilização de normas e políticas fundiárias, agrárias e ambientais em um contexto de medidas protecionistas, voltadas ao crescimento econômico (Almeida, 2012). Por fim, demonstra como diferentes grupos, com variadas historicidades e identidades coletivas, construíram estratégias de reprodução social, resistência/adaptação e reconhecimento de seus modos de vida frente à expansão do capital, ao neocolonialismo extrativista e a estratégias de cerceamento do direito a suas territorialidades.
REFERÊNCIAS
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Nos baseamos na conceituação de governança de Teixeira e Souza Lima (2021, p.51), inspirada em Foucault (2008), de “invenção de segmentos sociais específica por dispositivos que se estatizam ao longo do tempo, ainda que não sejam exclusivamente limitados aos exercícios de poder da chamada administração direta.”
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Editor Chefe:
Renato Francisquini Teixeira
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Dez 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
10 Abr 2025 -
Aceito
16 Jun 2025
