Open-access LÓGICAS PREDATÓRIAS: indo muito além da desigualdade 1

PREDATORY LOGIC: going beyond inequality

LOGIQUES PRÉDATRICES: aller bien au-delà des inégalités

Resumos

O artigo parte da premissa de que existem elementos constitutivos importantes em sistemas sociais complexos que contribuem para desigualdades, mas que não podem ser capturados por meio de uma análise das distribuições de renda. O foco, aqui, está em uma remontagem específica e complexa de elementos-chave que vejo como uma das dinâmicas transformadoras desde os anos 1980. A segunda metade do artigo analisa um caso específico para ilustrar suas características predatórias, a partir dos anos 2000. É preciso ir muito além da noção de desigualdade para chegar a algumas das principais lógicas em jogo hoje. Fundamental para o argumento apresentado é a distinção entre finanças e bancos tradicionais. Caracterizo as finanças como marcadas por uma lógica de extração, e não de consumo de massa. Assim, os modos específicos que a desigualdade assume no período atual nos levam para além das distribuições da renda e do poder desigual.

Desigualdade; Financeirização; Capitalismo global; Expulsões; Capacidades sistêmicas


This paper assumes the existence of important constitutive elements in complex social systems that contribute to inequalities, but that cannot be understood by analyzing income distributions. I focus here on a specific and complex reassembly of key elements that constitutes one of the dynamic changes since the 1980s. The second half of the article analyzes a specific case to illustrate its predatory characteristics, from the 2000s. We must go beyond the concept of inequality to understand the main logics currently at play. Essential for this argument is the distinction between finance and traditional banking. Finance is marked by a logic of extraction and not of mass consumption. Thus, the specific modes that inequality assumes today take us beyond unequal distributions of income and power.

Inequality; Financialization; Global capitalism; Evictions; Systemic capabilities


L’article part du principe qu’il existe des éléments constitutifs importants dans des systèmes sociaux complexes qui contribuent aux inégalités, mais qui ne peuvent être capturés par une analyse des distributions de revenus. L’accent est mis ici sur un réassemblage spécifique et complexe d’éléments clés que je considère comme l’une des dynamiques de transformation depuis les années 1980. La seconde moitié de l’article se penche sur un cas spécifique pour illustrer ses caractéristiques prédatrices, à partir des années 2000. Il est nécessaire d’aller bien au-delà de la notion d’inégalité pour comprendre certaines des principales logiques en jeu aujourd’hui. La distinction entre la finance et la banque traditionnelle est fondamentale pour l’argument présenté. Je caractérise la finance comme étant marquée par une logique d’extraction plutôt que de consommation de masse. Ainsi, les modes spécifiques que l’inégalité prend dans la période actuelle nous emmènent au-delà des distributions inégales des revenus et du pouvoir.

Inégalité; Financiarisation; Capitalisme mondial; Expulsions; Capacités systémiques


INTRODUÇÃO

Grande parte da pesquisa sobre desigualdade se concentra nas distribuições de renda. Esta é uma informação crucial para entender as principais características da dinâmica social, econômica e política de um lugar, um país, uma nação soberana ou um sistema internacional. Sabemos pelos dados existentes, especialmente para o Ocidente, que os vetores que produziram essas distribuições podem variar no espaço e no tempo. As fontes de desigualdade não podem ser derivadas simplesmente de distribuições de renda. Existem elementos constitutivos importantes em sistemas sociais complexos que contribuem para desigualdades, mas que não podem ser capturados por meio de uma análise das distribuições de renda.

Mensurar a desigualdade não é suficiente. A humanidade conviveu com a desigualdade desde o início. Nenhum sistema político-econômico complexo que conhecemos sofre de falta de desigualdade. Por exemplo, focando em um de espaço-tempo estreito, porém conhecido, os dados mostram que o período capitalista pós-Segunda Guerra Mundial no Ocidente foi bem diferente daquele do pós-anos 1980, mas a desigualdade está presente em ambos. Além disso, não há dois países “ocidentais” que foram e são os mesmos em termos de estrutura econômica no tempo, mas todos são sempre marcados pela desigualdade. Muito do esforço para estudar a desigualdade no período atual limita-se a mensurar o que pode ser demonstrado por uma distribuição, como a renda. Precisamos interpelar a desigualdade, descobrir suas fontes, detectar grandes rupturas na evolução de um sistema e muito mais, a fim de entender a desigualdade e decidir em que ponto e sob quais condições ela se torna muito injusta, ou corre o risco de destruir o sistema dentro no qual ocorre. Para estabelecer isso, precisamos desenvolver uma lógica que nos permita entender o que consideramos inaceitável. Simplesmente focar na distribuição não é suficiente.

Piketty nos leva muito além de medir a desigualdade e mostrar as características da distribuição. Ele contribui com esse cenário maior e nos mostra como evoluiu ao longo do tempo e o que contribuiu para a desigualdade. Ele depende, em boa medida, da medição de distribuição, mas também traz contextos maiores para os diversos períodos do século que são o seu foco. Assim, ele vai muito além em relação a muitos trabalhos atuais sobre desigualdade, que parecem se contentar em documentar distribuições.

Entretanto, o trabalho de Piketty me deixa incomodada com certas ausências. Neste breve texto, eu foco em uma dessas ausências, que não pode ser entendida simplesmente como uma distribuição. Tem a ver com lógicas predatórias – atores ativos. Ainda que Piketty se concentre em dinâmicas maiores, como o sistema tributário, ele parece ainda ficar longe das principais lógicas predatórias. Em outro estudo ( Sassen, 2014 ), desenvolvi uma interpretação de diversas condições e dinâmicas em nosso período atual que podem ser concebidas como predatórias. Um exemplo comum que ilustra esse ponto é a mineração. Em meu trabalho, concentrei-me especialmente nas finanças e as conceituei como marcadas por uma lógica predatória em nosso período atual. Essa lógica não pode ser estudada simplesmente como uma distribuição, ainda que seja marcada por enormes diferenças de resultados entre vencedores e perdedores. Nem pode ser simplesmente explicada como marcada pela desigualdade. É um domínio distinto, com um espaço operacional distinto que alimenta essa distribuição. Assim, aqui está uma diferença em relação à tributação, que contribui explicitamente para moldar a distribuição de renda.

A proposição geral de fundo para este artigo é que a diferença entre períodos, ao longo do tempo, é minimamente acidental: tais diferenças são o resultado de uma mistura de processos transformadores possíveis de identificar. Por exemplo, como em todas as grandes épocas, as diferenças entre as décadas do pós-guerra no Ocidente e o período que se deslanchou na década de 1980 não podem ser vistas simplesmente como uma evolução ou mais do mesmo, ainda que muita coisa não tenha mudado. Condições, atores e interesses específicos estavam em jogo e havia rupturas agudas do modus operandi estabelecido. As diferenças também não podem ser reduzidas a resultados alterados, como nas mudanças de distribuição.

O foco aqui está em uma remontagem específica e complexa de elementos-chave que vejo como uma das dinâmicas transformadoras de nosso período atual (ocidental) – o pós-1980. É a reconstrução das altas finanças, doravante simplesmente chamadas de finanças. Acho que Piketty não considerou suficientemente as altas finanças em sua análise como uma das forças que geram grandes mudanças distributivas. As finanças não são o único transformador-chave do pós-1980, nem terão as capacidades que têm hoje em um futuro próximo. As finanças são um ator antigo que passou por muitas transformações ao longo do tempo e do espaço, e isso vai continuar. Vou me concentrar em características particulares de sua consolidação ou reinvenção pós-anos 1980. A segunda metade do artigo, então, toma um caso específico para ilustrar suas características predatórias, especificamente a partir dos anos 2000. De modo geral, esta é uma análise que postula que precisamos ir muito além da noção de desigualdade para chegar a algumas das principais lógicas em jogo em nosso período atual.

FINANÇAS: um conjunto de capacidades

Fundamental para o meu argumento é a distinção entre finanças e bancos tradicionais. Ressalto que o banco tradicional está voltado ao negócio de vender dinheiro ( Sassen, 2014 ).2 Nas décadas pós-Segunda Guerra Mundial, esse sistema bancário se beneficiou de uma lógica econômica que possibilitou a formação de grandes e prósperas classes trabalhadoras e médias, e do fato de que cada geração se saiu um pouco melhor que a anterior, em parte graças a diversos programas governamentais. A atividade bancária fazia parte da lógica maior do consumo de massa. O que decola no final da década de 1980 é muito diferente: é marcado por uma proliferação de inovações que possibilitam a construção de poderosas capacidades de “financiamento” para uma gama crescente de entidades – que vai das formas complexas de dívida ao financiamento de moradias modestas. Caracterizo as finanças como marcadas por uma lógica de extração3 ( Sassen, 2014 ), e não de consumo de massa, conceituação que explico brevemente aqui. Mas, por enquanto, deixe-me acrescentar que uma consequência é que as finanças constroem um espaço operacional distinto, que não tem nada que ver com consumo de massa, mas tudo que ver com extração de ganhos de diversos atores e cenários. Usam-se mentes brilhantes e matemática algorítmica para financiar domínios que no passado poderiam ter sido vistos simplesmente como ativos, ou fora das finanças ou desinteressantes para as finanças.

Esse ângulo da questão da desigualdade e, principalmente, os modos específicos que a desigualdade assume no período atual nos levam para além das distribuições da renda e do poder desigual. Convidam-nos a ver que existe um ator brilhante, poderoso e muito perigoso, que está transformando as regras do jogo.

Mesmo que a desigualdade sempre tenha existido em sistemas complexos, ela é, em parte, construída repetidamente por meio das condições, decisões e arranjos sistêmicos específicos. Uma grande diferença no Ocidente entre o período pós-Segunda Guerra Mundial e o período pós-1980 é, em minha leitura, que, no primeiro, todas as classes principais (mesmo que não todos os membros dessas classes) experimentaram melhorias em suas condições, enquanto, no pós-1980, os ricos ficaram mais ricos e os 60% ou mais que constituem a camada inferior começaram a perder terreno. Embora varie de país para país, até a década de 1980, as classes trabalhadora e média ganharam renda, acesso a diversos serviços e vivenciaram o fato de que cada nova geração geralmente se saía melhor do que a anterior. Quando a privatização e a desregulamentação começam a marcar as novas regras do jogo no final dos anos 1980, a classe média modesta e trabalhadora começa a perder terreno. No Sul Global, os chamados programas de reestruturação econômica do Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial assumem os papéis que governos nacionais e setores empresariais poderosos assumiram no Norte. Mesmo com dinâmicas diversas, ambas as regiões viram um setor significativo ficar mais rico do que o esperado e o restante ficar mais pobre do que o esperado.

Atualmente, há uma crescente literatura sobre instituições e mercados financeiros, que dão uma contribuição crítica para nossa compreensão das altas finanças – em boa parte porque é escrita por cientistas sociais, e não por “especialistas financeiros”.4 Não obstante, meu esforço aqui vai em direção um pouco diferente: o foco está na financeirização de um número cada vez maior dos componentes de nossas economias. Meu argumento é que isso tem sido uma fonte importante para o crescimento da desigualdade no período pós-1980 em cada vez mais partes do mundo. Dado o espaço limitado, vou me concentrar principalmente nos Estados Unidos, mas, claramente, o sistema financeiro é global em seu impacto.5

Um primeiro ponto crítico em minha análise é que as finanças globais ultrapassaram a noção estreitamente definida de empresas e mercados financeiros, e instituições financeiras em geral. Não se trata tanto de instituições, mas de um conjunto maior de componentes institucionais, técnicos e geográficos que funcionam como capacidades para financiar cada vez mais elementos materiais e não materiais ( Sassen, 2008 ).6 Esses componentes incluem, entre outros, uma ampla gama de instituições financeiras e não financeiras, diferentes tipos de jurisdições, infraestruturas técnicas e domínios públicos e privados. É precisamente este conjunto maior que tem permitido que as finanças sacudissem grande parte da ordem estabelecida que surgiu na era pós-Segunda Guerra Mundial.7

Essas características do sistema financeiro de hoje também explicam por que eu postulo8 que as finanças, hoje, são basicamente uma indústria extrativa – um termo geralmente restrito à mineração e a outros setores materiais. Os distintos padrões de crescimento e condições para o crescimento do sistema financeiro global são bastante diferentes daqueles de outros setores econômicos. Ele agora pode extrair valor mesmo de elementos materiais e imateriais muito modestos, porque os reposiciona em um espaço financeiro maior, onde podem funcionar em modos bastante diferentes do que na maioria dos outros setores, incluindo o banco tradicional. Uma maneira direta pela qual gosto de descrever essa diferença é que o banco tradicional vende algo que tem – dinheiro – e é aí que reside sua fonte de lucros. A finança, ao contrário, vende o que não tem e aí reside a necessidade de desenvolver instrumentos que lhe permitam invadir outros setores; essa invasão é geralmente descrita de forma muito mais abstrata por meio do termo “financeirização”.

Esse tipo de análise traz à tona o fato de que as finanças têm propriedades que a diferenciam do resto da economia de mercado: a financeirização de outros setores econômicos funciona como o grão para o seu moinho. Ele financia produtos de mineração, habitação, empréstimos tradicionais, falências, commodities, moedas e muito mais. Isso contribui para o formato em rede das finanças; um recurso que permite que as finanças incorporem diversos elementos e desenvolvam formatos inovadores, como alianças de trocas. Isso contrasta com o formato à moda antiga da corporação e do banco tradicional, ambos marcados pelo fechamento e integração vertical.

É a partir desse contexto que quero examinar a questão da desigualdade. Significa expandir a análise quantitativa sociológica mais tradicional da desigualdade – notadamente a distribuição de renda – para incluir elementos como a destruição das economias tradicionais e das estratégias tradicionais de crescimento das famílias. É uma lógica de organização radicalmente diferente daquela, por exemplo, da típica corporação orientada para o consumidor de massa. Esta última precisa de e prospera com as famílias que vão bem e com os filhos e filhas que se saem melhor do que seus pais, com os governos que apoiam as famílias por meio de subsídios de saúde para que possam usar hospitais particulares e comprar medicamentos prescritos, e assim por diante. As finanças, como a mineração, querem extrair valor que possam ser imediatamente disponibilizados (ou seja, financeirizados) para objetivos específicos e, uma vez que essa operação é executada, deixam para trás a destruição e passam para o próximo alvo.

Um indicador dessa diferença constitutiva são as mudanças políticas bruscas que decolaram na década de 1980, de protecionismos de todos os tipos a desregulamentação de todos os tipos. Esse indicador aponta para a especificidade do conjunto maior de elementos que constitui o sistema financeiro global de hoje. Não é simplesmente o poder das finanças e das corporações multinacionais que reconfigura o sistema. Significativas para as finanças são as novas formas de autoridade privada, em verdade viabilizadas pelo poder crescente do Poder Executivo estatal e que, por sua vez, retroalimentam ainda mais o poder desse mesmo Executivo9 . Presente nessa dinâmica está a possibilidade de articulação entre o Poder Executivo e o sistema financeiro que não pode ser simplificada como “declínio do Estado” ou domínio das finanças sobre o Estado. Tampouco pode ser visto como mera continuação do multilateralismo de Bretton Woods.

Duas características de enquadramento distinguem radicalmente o sistema financeiro de Bretton Woods do pós-guerra, especialmente em sua primeira década, do sistema global atual, ainda que este último incorpore algumas regras de Bretton Woods. Um deles é o papel dos mercados financeiros. Até a década de 1950, a política financeira era cautelosa, havia controles regulatórios e o mercado de ações era relativamente inativo. A questão política central era o desemprego, não o livre comércio ou as finanças globais, como se tornou na década de 1980 ( Tabb, 2004 ). Na verdade, o desemprego era visto como resultado do livre comércio.10 A fase inicial do projeto de Bretton Woods envolveu a construção de um sistema global de proteção contra grandes crises. Embora não seja fácil separar as interações causais entre políticas estatais e os mercados de ações, os governos geralmente mantiveram essas políticas em vigor mesmo quando o crescimento foi retomado e os mercados de ações reviveram na década de 1950. Isso se tornou inaceitável na década de 1980.

A segunda grande condição de enquadramento foi o uso de taxas de câmbio gerenciadas e controles sobre os fluxos internacionais de capital para proteger o sistema financeiro das pressões competitivas e cambiais internacionais. Esse isolamento era a norma na economia mundial da época11 . Todas as grandes potências apoiavam sistemas de gestão econômica doméstica – inclusive os Estados Unidos. Os mais conhecidos desses sistemas políticos são o estado de bem-estar keynesiano da Grã-Bretanha, o “mercado social” da Alemanha Ocidental, o “planejamento indicativo” da França e o modelo do Ministério de Comércio Internacional e Indústria do Japão (MITI) do Japão de promoção sistemática de indústrias de exportação. Havia um trade-off na fase inicial de Bretton Woods entre o liberalismo embutido no comércio internacional e na ordem de produção, e o aumento da gestão econômica doméstica destinada a proteger as economias nacionais de rupturas e choques externos. Subjacente a essa postura política estava a preocupação com os efeitos redistributivos das economias capitalistas. Keynes propôs fazer os países devedores e superavitários trabalharem para devolver o equilíbrio do sistema internacional – o que os Estados Unidos, então o principal país superavitário, rejeitaram.12 Keynes queria empréstimos mais fáceis para nações devedoras (na época, a Grã-Bretanha era uma delas) e que se prevenisse a fuga de capitais.13 O regime real adotado não foi bem o que Keynes havia proposto.14

Bretton Woods forneceu vários recursos para globalizar as finanças. No entanto, esses objetivos de enquadramento equivaliam a uma lógica de organização diferente do que se tornaria necessário para o atual sistema financeiro global.

O MERCADO GLOBAL DE CAPITAIS: PODER E CRIAÇÃO DE NORMAS

As muitas negociações entre os Estados nacionais e os atores econômicos globais que levaram ao nosso atual sistema financeiro global geraram uma normatividade de fato. Entre os componentes mais conhecidos estão privilegiar a baixa inflação em detrimento do crescimento do emprego, a paridade da taxa de câmbio e a variedade de itens encontrados nas condicionalidades do FMI.15 As reivindicações e os critérios para a formulação de políticas que surgem como legítimos se sobrepõem a normas mais antigas que privilegiavam os gastos para garantir o bem-estar das pessoas em geral; as normas do último tipo são agora vistas como responsáveis pelos Estados se tornarem “menos competitivos” em um contexto normativo em que se espera que os Estados se tornem mais competitivos.

Na minha leitura16 ( Sassen, 1998 ), essa transformação normativa implica uma privatização das capacidades de normatização, capacidades que associávamos ao Estado em nossa história recente. Isso traz consigo possibilidades maiores de criar normas de acordo com o interesse de poucos em detrimento da maioria. Em si, isso não é novo. Novo é a formalização dessas capacidades normativas privatizadas e a diminuição mais acentuada dos beneficiários. Essa privatização também traz consigo o enfraquecimento e até a eliminação da responsabilização pública. Na prática, isso pode não parecer uma grande mudança, dadas as múltiplas corrupções do processo político. No entanto, a formalização dessa responsabilização pública enfraquecida surge como consequência.

Este foi o cenário para a ascensão do sistema financeiro global pós-1980. O mercado de capitais global representa uma concentração de poder capaz de sistemicamente, não apenas por influência, moldar elementos da política econômica do governo nacional e, por extensão, outras políticas. Os poderosos há muito são capazes de influenciar a política governamental ( Arrighi, 1994 ). Hoje, a lógica operacional do sistema financeiro global se tornou uma norma para uma política econômica “adequada” ( Sassen, 1998 ).17 Esses mercados podem agora exercer as funções de responsabilização formalmente associadas à cidadania nas democracias liberais: eles podem votar a favor ou contra as políticas econômicas dos governos; eles podem forçar os governos a tomar certas medidas, e não outras. Dadas as propriedades dos sistemas pelos quais esses mercados operam – velocidade, simultaneidade e interconectividade –, as ordens de grandeza resultantes lhes conferem peso real nas economias dos países e na formulação de suas políticas.

Há muito tempo existe um mercado para o capital e há muito tempo ele consiste em vários mercados financeiros especializados ( Eichengreen, 2004 ; Helleiner, 2014 ). Também há muito tempo esse mercado possui componentes globais ( Arrighi, 1994 ; Eichengreen, 2004 ). De fato, uma forte linha de interpretação na literatura da década de 1990 ( Hirst; Thompson; Bromley, 1996 ) é que o mercado de capital pós-1980 não é nada novo e representa um retorno a uma era global anterior – a virada do século XIX e, novamente, o período entre guerras. No entanto, tudo isso é válido apenas em um alto nível de generalidade. Quando consideramos as especificidades do mercado de capitais de hoje, algumas diferenças significativas surgem com relação a essas fases passadas. Destaco aqui duas principais. Uma diz respeito ao nível muito mais alto de formalização e institucionalização do mercado global de capital, em parte resultado da interação com os sistemas regulatórios nacionais que gradualmente se tornaram muito mais elaborados nos últimos cem anos ( Sassen, 2001 ). A segunda diferença diz respeito ao impacto transformador das novas tecnologias de informação e comunicação, particularmente tecnologias baseadas em computador (processo doravante denominado digitalização). Em combinação com a mistura de dinâmicas e políticas, a que geralmente nos referimos como globalização, elas constituíram o mercado de capitais como uma ordem institucional distinta, a ser diferenciada de outros grandes mercados e sistemas de circulação, como o comércio global.

Uma consequência desses processos é a formação de um campo operacional estratégico transfronteiriço constituído por meio da desvinculação parcial de operações estatais específicas do quadro institucional mais amplo do Estado; isso implicou na mudança de agendas nacionais para uma série de novas agendas globais. As transações são estratégicas, atravessam fronteiras e envolvem interações específicas entre órgãos governamentais e setores empresariais, atendendo às novas condições produzidas e exigidas pela globalização econômica corporativa. Eles não envolvem o Estado como tal, como em tratados internacionais ou redes intergovernamentais. Em vez disso, essas transações consistem em operações e políticas de subcomponentes específicos de diversas ordens institucionais, incluindo proeminentemente o Estado (por exemplo, agências reguladoras técnicas, seções especializadas de bancos centrais e ministérios de finanças, comissões especiais dentro do Poder Executivo do governo etc.), o sistema supranacional vinculado à economia (FMI, Organização Mundial do Comércio – OMC) e os setores privados não estatais. Nesse processo, essas transações impulsionam a convergência entre os países, a fim de criar as condições necessárias para um sistema financeiro global viável. Esse sistema financeiro global, por sua vez, está embutido em uma vasta gama de partes específicas, muitas vezes altamente especializadas, de instituições estatais e supranacionais, que não consistem apenas em firmas, bolsas e redes eletrônicas ( Sassen, 2008 , p. 348-365).

Existem duas características distintas sobre esse campo de transações que me levam a postular que podemos concebê-lo como um espaço desencaixado em processo de estruturação. As transações ocorrem em ambientes conhecidos: o Estado, o sistema interestatal e o “setor privado”. No entanto, as práticas dos agentes envolvidos estão construindo uma formulação distinta formada de pedaços de território, autoridade e direitos que funcionam como um novo tipo de campo operacional. Nesse sentido, é um campo que ultrapassa o mundo institucional do sistema interestatal e da “economia global”. Na medida em que as interações entre esses atores estatais específicos e atores corporativos privados específicos fornecem fundamentos públicos substantivos para o desenvolvimento de políticas nacionais e internacionais, constrói-se um campo operacional que desnacionaliza as agendas estatais. Ou seja, as fundamentações lógicas para ações globais desses atores estatais e corporativos específicos passam por leis e políticas formais nacionais, mas são, na verdade, lógicas que desnacionalizam a política estatal18 ( Sassen, 2008 ). Isso pode trazer consigo uma proliferação de regras que começam a se agrupar em sistemas jurídicos parciais e especializados apenas parcialmente incorporados aos sistemas nacionais, se é que chegam a ser. Aqui entramos em um domínio totalmente novo de autoridades privadas – fragmentadas, especializadas e cada vez mais formalizadas, mas que não passam pela lei nacional per si .

Dois conjuntos de características empíricas inter-relacionadas desses mercados sinalizam a rápida transformação desde meados da década de 1980.19 Um deles é o crescimento acelerado, em parte devido à vinculação eletrônica de mercados – nacional e global – e o aumento acentuado das inovações possibilitadas pela economia financeira e pela digitalização. A segunda é o crescimento acentuado de um tipo particular de instrumento financeiro – o derivativo – um crescimento evidenciado tanto pela proliferação de diferentes tipos de derivativos quanto por este ter se tornado o instrumento líder nos mercados financeiros ( Sassen, 2008 , p. 350). Essa diversificação e o domínio dos derivativos tornou as finanças mais complexas e possibilitou taxas de crescimento que divergem largamente das de outros setores globalizados.

QUANDO A HABITAÇÃO LOCAL SE TORNA UM INSTRUMENTO FINANCEIRO GLOBAL

Além de seu papel social e político, a habitação tem sido um setor econômico crítico em todas as sociedades desenvolvidas e tem feito grandes contribuições para o crescimento econômico. Historicamente, existem três maneiras pelas quais o setor desempenhou esse papel econômico: como parte do setor de construção, como parte do mercado imobiliário e como parte do setor bancário na forma de hipotecas. Em todos os três setores, tem sido, por vezes, um vetor para inovações. Por exemplo, a energia solar tem sido amplamente aplicada à habitação e não a escritórios ou fábricas. A construção em massa tem usado a habitação como um canal-chave para desenvolver novas técnicas e formatos, e a produção industrial de edifícios pré-fabricados também se concentrou na habitação para trabalhar aperfeiçoamentos.

As hipotecas também têm sido uma das principais fontes de receita e inovações para o sistema bancário tradicional. A hipoteca de trinta anos, agora um padrão mundial, foi na verdade uma grande inovação para os mercados de crédito. O Japão e, depois, a China instituíram, respectivamente, hipotecas de noventa e setenta anos para lidar com uma demanda em rápido crescimento por financiamento habitacional em um contexto em que três gerações eram necessárias para cobrir o custo da habitação em um período de boom – os anos 1980 no Japão e os anos 2000 na China.

A securitização de hipotecas, que deslanchou na década de 1980, acrescentou mais um papel para a habitação na economia. A securitização de hipotecas residenciais pode gerar crescimento em uma economia. No entanto, também abre o mercado hipotecário à especulação, tornando-o vulnerável a riscos e perdas. Isso é aceitável se o proprietário do imóvel hipotecado decidir especular e estiver plenamente informado dos riscos. Contudo, não é aceitável que a decisão de entrar em um arranjo arriscado seja tomada sem tal consentimento. Mesmo sabendo-se que o consentimento pode não ser suficiente em um momento em que os contratos são longos e impenetráveis e a cultura que permeia o setor financeiro e de investimentos não é caracterizada pela abertura e transparência, vale lembrar a notória falência do Orange County, um governo municipal da Califórnia: o que o governo local pensava ser um empréstimo acabou sendo um investimento altamente especulativo, levando à falência o condado e seus fundos de pensão. Uma crise semelhante aconteceu no final de 2012, quando dezenas de governos municipais na Itália enfrentaram uma crise orçamentária, porque o que eles pensavam ser empréstimos bancários simples acabou sendo swaps de inadimplência de crédito – um dos tipos de investimento mais arriscados e especulativos.

A securitização de hipotecas residenciais tem efeito semelhante: por um lado, transforma o que pode parecer uma hipoteca tradicional em parte de um instrumento de investimento especulativo a ser vendido e comprado em mercados especulativos e, por outro, segue um caminho diferente e representa mais uma inovação financeira capaz de produzir extrema destruição. Insere-se um novo canal para utilização da habitação como um ativo que passa a ser representado por um contrato (a hipoteca) e pode ser fatiado em componentes menores e misturado com outros tipos de dívida para venda no circuito das altas finanças.

A seguir, desenvolvo isso em mais detalhes20 ( Sassen, 2014 ). Concentro-me nos Estados Unidos porque foi o marco zero para essa inovação e sua aplicação. O caso serve para ilustrar algumas das características da financeirização, especificamente o uso de instrumentos complexos na produção de um ciclo de investimento curto e altamente lucrativo para alguns e enormes prejuízos para os muitos milhões de famílias que foram usadas para um projeto de investimento financeiro, não de habitação.

Além disso, dentro da lógica das finanças, também é possível lucrar bem apostando contra o sucesso de uma inovação, ou seja, lucrar prevendo o fracasso. Esse tipo de obtenção de lucro aconteceu também com as hipotecas subprime e uma série de outras inovações financeiras, notadamente os swaps de inadimplência de crédito. Na verdade, foi o mercado muito maior de swaps que desencadeou a crise financeira de setembro de 2008: investidores ansiosos tentando sacar seus credit default swaps a partir de 2007 tornaram visível o fato de que esse mercado de US$ 60 trilhões não tinha os fundos reais para atender às suas obrigações. Em suma, a chamada crise do subprime não se deveu a famílias irresponsáveis contraindo hipotecas que não podiam pagar, como ainda é comumente afirmado nos Estados Unidos e no resto do mundo. Em vez disso, as execuções de hipotecas crescentes sinalizaram para os investidores que compraram swaps de inadimplência de crédito, que era hora de sacar seu “seguro”, mas o dinheiro não estava lá, porque as execuções hipotecárias também desvalorizaram os swaps e, além disso, os swaps não eram um seguro, mas um instrumento baseado em derivativos.21

A BUSCA POR ATIVOS REAIS

No início dos anos 2000, a forte aceleração do valor financeiro em relação ao PIB real estava gerando uma demanda aguda por títulos lastreados em ativos reais. É nesse contexto que mesmo hipotecas de baixo valor em casas modestas se tornaram o grão para o moinho financeiro nos Estados Unidos. A financeirização das hipotecas regulares e dos empréstimos ao consumidor já estava em vigor há duas décadas, então o que restava estava nas margens – hipotecas de baixo grau, empréstimos estudantis e coisas do tipo.

Essa desvinculação tornou a credibilidade dos detentores de hipotecas irrelevante para o potencial de lucro. O resultado foi colocar famílias modestas em uma situação de alto risco, com vendedores pressionando para que o contrato fosse assinado. O nível desejável era que cada vendedor conseguisse 500 contratos assinados por semana.

Cada hipoteca representava um “ativo” no instrumento financeiro recém-inventado. O ativo não era necessariamente a casa inteira – havia muitas emendas para multiplicar o número de fragmentos de uma casa que poderia fornecer uma parte do ativo para esses títulos lastreados em ativos. Esses fragmentos foram agrupados com dívidas de alto grau (que não eram lastreadas em ativos) e geraram um “produto de investimento” que poderia ser vendido como um título lastreado em ativos aos investidores – e assim a missão foi cumprida. Isso foi claramente um pouco enganoso, para ser gentil. Mas muitos investidores compraram e especularam sobre tal instrumento e obtiveram bons lucros, dada a crescente demanda por títulos reais lastreados em ativos.

Foi necessário um conjunto complexo de inovações para tornar possível essa desvinculação entre a fonte de lucros e o valor real do ativo. Essa desvinculação tornou a credibilidade dos detentores de hipotecas irrelevante para o potencial de lucro no setor financeiro. O resultado foi colocar famílias modestas em uma situação de alto risco, com vendedores pressionando para que o contrato fosse assinado. O que importava era aquela assinatura no contrato. Se o comprador da hipoteca poderia pagar as parcelas mensais importava menos do que assinar o contrato. A certo ponto, em meados dos anos 2000, ficou claro para os financiadores que tudo o que eles precisavam garantir era a assinatura do contrato e não importava se as famílias assinantes pagavam ou não. A fonte de lucro não era a hipoteca. Era o instrumento complexo com um pouco de ativo e muita dívida de alto grau para camuflar o ativo mínimo e de baixo valor. Para funcionar, pelo menos 500 desses contratos de hipoteca tinham que ser assinados por semana para cada agente de vendas de hipotecas.

Catorze milhões de famílias pagam o preço pelo abuso financeiro

À medida que crescia a demanda por títulos lastreados em ativos, crescia também a venda, muitas vezes forçada, de hipotecas subprime . Em dado momento, os compradores de hipotecas não precisavam pagar por cinco anos, uma vez que a fonte de lucro não eram os pagamentos (muito modestos) da hipoteca. Isso gerou altos lucros para os investidores que venderam os tais títulos lastreados em ativos. As instituições que mantinham esses títulos perderam bastante capital quando a crise chegou. Assim, a crise de execução hipotecária que explodiu em 2007 não foi gerada por compradores irresponsáveis de hipotecas. Foi gerada por bancos e empresas financeiras abusivos, agressivos e especuladores.

E foi uma grande crise que mudou a vida de milhões de famílias das classes média e trabalhadora, a maioria das quais agora sabemos que assinaram os contratos sob falsas pretensões. Eles não conseguiram pagar suas hipotecas e perderam tudo, inclusive o pouco que tinham antes de assumir a hipoteca ( Tabela 1 ). De acordo com Bernanke, ex-chefe do Federal Reserve , quando renunciou, uma das questões que levantou em seu discurso final foi o fato de que quatorze milhões de famílias perderam suas casas para execuções hipotecárias. Quatorze milhões de famílias podem ser até trinta, quarenta ou mais milhões de indivíduos. Isso é mais do que a população total de muitos países. Milhões deles agora vivem em cidades de tendas de lona.

Tabela 1
– Execuções hipotecárias arquivadas nos EUA, 2006–201422

AS EXECUÇÕES HIPOTECÁRIAS CRIARAM A CRISE?

Uma noção comum sobre a crise financeira era a de que ela resultou de compradores irresponsáveis dessas hipotecas que deveriam saber que não poderiam pagá-las. Ignora-se o fato de que o instrumento foi projetado para desvincular os lucros potenciais para os vendedores de hipotecas e investidores da capacidade do consumidor de pagar a hipoteca. Isso foi, então, também o que tornou tudo perigoso e duvidoso para os compradores das hipotecas, que eram, em sua maioria, de renda modesta – aqueles que achavam que não tinham condições de comprar uma casa. Além disso, isso também é crítico para seu potencial de disseminação para o mercado global de dois bilhões de famílias de renda média e baixa.

Esse fenômeno é também uma característica muitas vezes negligenciada nas explicações da crise e nas análises da desigualdade. Este foi um instrumento desenhado por matemáticos brilhantes que gerou riqueza para investidores bem informados e tornou famílias humildes ainda mais pobres do que eram antes; levou o pouco que tinham, e muitos deles ficaram desabrigados.

Em tudo isso, há uma situação de “rabo que abanou o cachorro” com relação as grandes empresas financeiras. Para as altas finanças, esses milhões de execuções hipotecárias modestas em 2006 e 2007 criaram uma crise de confiança: as execuções hipotecárias foram uma espécie de sinal de que havia um “mundo maior” e de que algo estava errado. No entanto, dada a complexidade dos instrumentos agrupados, tornou-se impossível identificar o componente tóxico. O valor envolvido nas hipotecas, de meros US$ 300 bilhões, não poderia ter derrubado o sistema financeiro.

Há uma profunda ironia nessa crise de confiança: o brilhantismo de quem fez esses instrumentos financeiros se tornou a ruína de um grande número de investidores (além da trágica ruína das famílias de baixa renda para quem essas hipotecas foram vendidas). O elo tóxico era que, para que essas hipotecas funcionassem como ativos para os investidores, um grande número de hipotecas foi vendido, independentemente se esses compradores poderiam pagar sua mensalidade. Quanto mais rápido essas hipotecas pudessem ser vendidas, mais rápido elas poderiam ser agrupadas em instrumentos de investimento e vendidas aos investidores. No geral, as hipotecas subprime mais do que triplicaram de 2000 a 2006 e representaram 20% de todas as hipotecas nos EUA em 2006. Esse prêmio sobre a velocidade também garantiu comissões aos vendedores de hipotecas subprime e isso reduziu os efeitos da inadimplência sobre os lucros dos vendedores de hipotecas subprime . Na verdade, os vendedores subprime que venderam os contratos se saíram bem. Foram os que não venderam essas hipotecas como parte de instrumentos de investimento que acabaram falindo, mas não antes de obter alguns lucros sobre os compradores de hipotecas e sobre pelo menos alguma venda de títulos garantidos por ativos.

As hipotecas subprime podem ser instrumentos valiosos para permitir que famílias de renda modesta comprem uma casa. Mas o que aconteceu nos EUA na última década foi um abuso extremo que pouco teve a ver com a garantia de moradia para famílias modestas. Em um mundo cada vez mais globalizado, o bom uso e, talvez principalmente, os usos abusivos desse instrumento podem facilmente proliferar.

QUEM PAGOU O MAIOR PREÇO?

A venda agressiva de hipotecas subprime para aqueles que não podiam pagar por elas fica clara no microcosmo que é a cidade de Nova York. Se considerarmos os anos-chave em que isso se acelera, de 2002 a 2006, fica claro que os brancos, que tem uma renda média muito maior do que todos os outros grupos na cidade de Nova York, eram muito menos propensos a ter hipotecas subprime do que todos os outros grupos ( Tabela 2 ). Assim, 9,1% de todas as hipotecas feitas por brancos eram hipotecas subprime em 2006, em comparação com 13,6% entre asiáticos, 28,6% entre hispânicos e 40,7% entre negros. Embora todos os grupos tenham apresentado altas taxas de crescimento nos empréstimos subprime , se considerarmos o período mais agudo, de 2003 a 2005, mais do que dobrou para brancos, mas triplicou para asiáticos e hispânicos e quadruplicou para negros.23 A maioria dessas famílias perderam suas casas em execuções hipotecárias, e muitos dos bairros se tornaram espaços urbanos devastados. Uma divisão mais além por bairros na cidade de Nova York mostra que os dez bairros mais atingidos eram pobres: entre 34% e 47% dos moradores desses bairros que fizeram hipotecas obtiveram hipotecas subprime .

Tabela 2
– Taxa de empréstimos subprime convencionais por raça, Nova York 2002–2006

Os custos se estendem a áreas metropolitanas inteiras por meio da perda de receita de imposto sobre propriedade territorial para os governos municipais. A Tabela 3 mostra as dez áreas metropolitanas dos Estados Unidos com as maiores perdas estimadas de produto municipal bruto real (BPF) para 2008 devido à crise das hipotecas e consequências associadas, conforme medido pelo Global Insight . A perda econômica total dessas dez áreas metropolitanas é estimada em mais de US$ 45 bilhões para 2008. Naquele ano, Nova York perdeu mais de US$ 10 bilhões em good manufacturing practice (GMP), Los Angeles, US$ 8,3 bilhões e Dallas, Washington e Chicago, cerca de US$ 4 bilhões cada.

Tabela 3
– Razão entre o crédito das famílias e o rendimento pessoal disponível (2000–2005)

Quando tudo se tornar global

O instrumento de hipoteca subprime desenvolvido nesses anos é apenas um exemplo de como as instituições financeiras podem alcançar grandes acréscimos de valor financeiro, negligenciando resultados sociais negativos e até mesmo resultados negativos para a economia nacional. Essa negligência é inteiramente legal, não obstante seus efeitos perniciosos. Se considerarmos a primeira metade dos anos 2000, quando essa inovação decolou e trouxermos para a cena informações globais sobre habitação e dívida das famílias ( Figura 1 ), vários padrões fortes emergem. Cruciais aqui são a dívida familiar e a dívida hipotecária residencial. Estas dívidas podem facilmente funcionar como uma fonte de dinheiro para bancos e instituições financeiras, que podem usar essas hipotecas e esse dinheiro para desenvolver diversos investimentos, como vimos nos Estados Unidos, com as hipotecas subprime . A Tabela 3 e a Figura 1 mostram a dívida hipotecária residencial em vários países ocidentais e em vários países asiáticos em 2006, pouco antes de a crise explodir.24

Figura 1
– Razão entre dívida hipotecária residencial e o PIB (países selecionados/final de 2006)

Figura 2
– Percentagem do crédito das famílias denominado em moeda estrangeira, final de 2005 (em percentagem do crédito total às famílias)

A questão maior da dívida inclui toda uma gama de consolidações. Talvez neste contexto valha a pena notar uma característica fundamental do endividamento das famílias. A razão entre a dívida das famílias e o rendimento pessoal disponível cresceu rapidamente ao longo de um período muito curto de tempo e em um conjunto bastante diversificado de países do Norte Global. O período de 2000 a 2005, também o período em que as hipotecas subprime decolaram, é um período em que as dívidas das famílias parecem ter crescido acentuadamente em uma ampla gama de países. Por exemplo, para tomar casos com aumentos elevados, na República Checa, esta proporção saltou de 8% em 2000 para 27% em 2005; na Hungria, de 11% para 39%; na Coreia do Sul, de 33% para 68%; nos mercados maduros, esses índices passaram de 83% para 124% na Austrália, de 65% para 113% na Espanha e de 104% para 133% nos Estados Unidos. Estas são taxas de crescimento elevadas e indicam o potencial para um maior crescimento da dívida das famílias.

Além disso, esse cenário internacional mais amplo nos mostra algo de interesse à luz do abuso do sistema financeiro em relação às famílias modestas por meio de hipotecas subprime . Assim, vale a pena notar que mesmo em países de renda bastante modesta, uma boa parte da nova dívida das famílias é detida ou controlada por bancos financeiros internacionais. Seria mais desejável se essa dívida estivesse nas mãos de bancos locais convencionais. Isso vale para economias tão diversas como, por exemplo, Polônia, Hungria e Romênia, onde, respectivamente, 35%, 40% e 42% dessa dívida das famílias pertence a grandes bancos estrangeiros.

CONCLUSÃO

Esta não é a primeira vez que o setor financeiro usa a habitação para desenvolver instrumentos para investidores. Os primeiros títulos lastreados em hipotecas residenciais foram produzidos no final da década de 1970. O conceito, bom em muitos aspectos, era gerar outra fonte de financiamento de hipotecas além da tradicional, que eram basicamente depósitos bancários em suas diversas variantes. Em sua forma inicial benigna, os títulos lastreados em hipotecas serviam para baixar as taxas de juros das hipotecas e estabilizar a oferta de empréstimos: ou seja, permitiram que os bancos continuassem emprestando mesmo durante as crises.

No entanto, essa forma anterior das hipotecas subprime foi um projeto do Estado. O projeto desenvolvido nos Estados Unidos no início do século XXI e agora se espalhando internacionalmente é construído pelo e para o setor financeiro. Não se trata de ajudar as famílias a obter habitação, mas, em vez disso, destina-se a construir um instrumento financeiro, um título garantido por ativos, para uso em circuitos financeiros. Duas características tornam esta inovação diferente. Uma é a medida na qual essas hipotecas funcionam apenas como instrumentos financeiros, podendo ser compradas e vendidas prontamente. A propriedade do instrumento pode durar apenas algumas horas. Assim, quando um investidor vende o instrumento, o que acontece com a própria casa é irrelevante; na verdade, as empresas ou divisões bancárias que sofreram perdas acentuadas foram em grande parte os credores subprime especializados ou divisões dentro dos bancos que mantiveram a propriedade da dívida. Além disso, como já descrito, uma vez que essas hipotecas foram divididas, emendadas e distribuídas em diversos pacotes de investimento, não há um único componente em tal pacote que realmente represente a casa inteira. Em contraste, o proprietário perde a casa inteira e todo o valor que investiu nela se não conseguir pagar as prestações da hipoteca por alguns meses – não importa quem seja o proprietário do instrumento e da fatia de sua casa dentro desse instrumento.

A segunda diferença das hipotecas tradicionais é que a fonte de lucro para o investidor não é o pagamento da hipoteca em si, mas a venda do pacote financeiro que agrupa centenas ou milhares de fatias da hipoteca. Essa característica específica do instrumento permite que os credores obtenham lucro sobre o vasto mercado potencial representado pelas famílias de renda modesta. Os bilhões dessas famílias em todo o mundo podem se tornar um alvo importante quando a fonte de lucro não é o pagamento da hipoteca em si, mas a venda do pacote financeiro. O que conta para o credor não é a capacidade creditícia do mutuário, mas o grande número de hipotecas vendidas (muitas vezes empurradas para) essas famílias. Esse recurso específico pode ser bom se o alvo dessas hipotecas for o mundo dos especuladores ricos. Mas torna-se alarmante quando as famílias menos abastadas são os alvos.

A assimetria entre o mundo dos investidores (somente alguns serão afetados) e o mundo dos proprietários de imóveis (uma vez inadimplentes, eles perderão a casa, não importa qual investidor possua o instrumento no momento) cria uma enorme distorção no mercado imobiliário e no mercado de financiamento habitacional. Enquanto os proprietários de imóveis incapazes de cumprir suas obrigações hipotecárias não podem escapar das consequências negativas da inadimplência, a maioria dos investidores pode, porque compra essas hipotecas para vendê-las. Houve muitos vencedores entre os investidores e apenas alguns perdedores nos anos anteriores à eclosão da crise em agosto de 2007. Assim, os investidores puderam se relacionar de forma positiva até mesmo com as chamadas hipotecas subprime (instrumentos de má qualidade), e essa indiferença em si foi ruim para potenciais proprietários de imóveis. Vemos aqui mais uma acentuada assimetria na posição dos diversos atores criando uma inovação.

O período atual torna clara uma terceira assimetria. Em um momento de concentração maciça de recursos financeiros em um número limitado de superempresas, qualquer ator que detivesse uma grande parte das hipotecas subprime quando a crise de inadimplência das hipotecas se deflagrou em 2007-2008 ficou preso com perdas maciças. Em um período anterior, a propriedade de hipotecas era amplamente distribuída entre um grande número de bancos e cooperativas de crédito e, portanto, as perdas também eram mais amplamente distribuídas. Práticas implacáveis, a capacidade das empresas de dominar os mercados e a crescente interconexão dos mercados tornaram essas superempresas vulneráveis ao seu próprio poder, em uma espécie de efeito de rede.

Finalmente, como muitos desses instrumentos podem ser implantados globalmente, o risco se eleva para uma gama cada vez maior de famílias modestas. A dívida das famílias em países pequenos e modestos (dívida hipotecária, dívida geral das famílias etc.) pode agora ser combinada com dívidas de alto grau e gerar instrumentos para o circuito de investimentos de alto nível. O que vimos de forma extrema nos Estados Unidos está, agora, se espalhando para cada vez mais partes do mundo. Esses são atores e empresas que podem acarretar empobrecimento em setores crescentes da população de um país, gerando dívidas que destroem os devedores, porém permitindo que o setor financeiro crie instrumentos especulativos totalmente novos e fontes de superlucros misturando um pouco de ativos (a casa modesta) com vasta dívida corporativa e financeira de alto grau. A oferta de famílias de renda modesta em todo o mundo é vasta, assim como a capacidade do setor financeiro de usar essas famílias e descartá-las uma vez usadas.

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  • ZALOOM; C. Out of the pits: traders and technology from Chicago to London. Chicago: University of Chicago Press, 2006.
  • 1
    Publicado originalmente em inglês com o título “Predatory Logics: Going Well beyond Inequality”, no livro Twenty-First Century Inequality & Capital. Piketty, Marx and Beyond (Brill Academic Publishers, 2018, p. 64-85), organizado por Lauren Langman e David A. Smith. Agradecemos a professora Saskia Sassen e a Editora Brill por terem autorizado sua publicação em português. Tradução: Evaristo Nunes Junior; revisão técnica da tradução: Elayne Cardoso de Morais.
  • 2
    Ver mais especificamente os capítulos 1 e 3.
  • 3
    Ver mais especificamente os capítulos 1 e 3.
  • 4
    Representantivo, por exemplo, dessas abordagens são: Donald MacKenzie, Fabian Muniesa e Lucia Siu (2007) , Karin Knorr Cetina e Alex Preda (2004) , Barry Eichengreen (2004) , Caitlin Zaloom (2006) ; Melissa S. Fisher e Greg Downey (2006) ; Greta R. Krippner (2011) e Globalization and Crisis Special issue 7/1-2, fev.-abr. (2010) apud Tom Reifer (2010) .
  • 5
    Fiz uma análise detalhada de como o sistema financeiro construiu um espaço operacional que é, sim, global, mas marcado por inserções muito específicas em diversas localidades do mundo. Cf. Sassen(2016, p , p. 97-108).
  • 6
    Veja os capítulos 4, 5 e 7 (p. 348-365).
  • 7
    Essa perspectiva analítica ajuda a explicar por que o internacionalismo de Bretton Woods (BW) não foi suficiente para gerar o sistema financeiro global que surgiu na década de 1980. Muitos dos componentes que se tornaram importantes na década de 1980 estavam em vigor no período pós-guerra, assim como no final do século XIX. Mas a lógica organizadora de todo o conjunto de elementos em cada um desses períodos anteriores não foi propícia à formação de um mercado de capitais global, distinto de um internacional, e muito menos para o tipo de capacidade de financeirização que distingue hoje o mercado financeiro dos sistemas antes chamados de regimes financeiros, embora eles devam ser descritos como mais semelhantes aos bancos tradicionais do que às finanças. Cf. Sassen (2008) e o capítulo 3 de Sassen (2014) .
  • 8
    Cf. Sassen (2014) , capítulo 3.
  • 9
    Ver Sassen (2008) , capítulo 4.
  • 10
    Não houve forte oposição ao livre comércio nem consideração séria sobre ele. Jacob Viner observa, naquela época, que ninguém estava abordando a questão do livre comércio ou mesmo falando sobre isso. Cf. Jacob Viner (1958) .
  • 11
    Barry Eichengreen (2003) , Smith, Solinger e Topik (1999, p. 138-157). Cf. também Helleiner (2014) .
  • 12
    Os Estados Unidos insistiram que os países superavitários não fossem penalizados. Eventualmente, os Estados Unidos tornaram-se muito menos competitivos e um grande devedor; no entanto, sua posição hegemônica permitiu-lhes escapar ao disciplinamento do sistema supranacional e da dinâmica de mercado a que outros países devedores estavam submetidos. Cf. Sassen (1996, 19 , 1998 ). Assim como a Grã-Bretanha em sua época de domínio mundial, no período pós-guerra, os Estados Unidos buscaram um sistema comercial aberto, enquanto a maioria dos outros países buscava proteção sob regimes desenvolvimentistas nacionais. Há uma vasta produção acadêmica sobre a assimetria do pós-guerra entre os Estados Unidos e a maioria dos outros países que traça em grande detalhe as consequências para diferentes atores em ter um sistema comercial aberto sob o domínio dos Estados Unidos versus as vantagens para o desenvolvimento de economias protegidas nacionalmente; é bem diferente da literatura que emerge nas décadas de 1980 e 1990. É impossível fazer justiça, aqui, a essa produção acadêmica do pós-guerra.
  • 13
    William Tabb (2004) , entre outros, acha que há um forte argumento a ser levantado de que os altos custos suportados pelos componentes mais vulneráveis da comunidade mundial poderiam ter sido evitados se a posição de Keynes de que os países superavitários tivessem tanta responsabilidade quanto os devedores para restabelecer o equilíbrio.
  • 14
    Ruggie (1993 , p. 139-174), Tabb (2004) , Kapstein (1994 , p. 93 e 112).
  • 15
    Desde a crise financeira do Sudeste Asiático, houve uma revisão de algumas das especificidades desses padrões. Por exemplo, a paridade cambial agora é avaliada em termos menos estritos.
  • 16
    Veja o capítulo 5.
  • 17
    Veja o capítulo 5.
  • 18
    Ver capítulo 4.
  • 19
    Há outros fatores significativos, principalmente as mudanças institucionais, como o pacote de políticas usualmente agrupado sob o termo desregulamentação e, em nível mais teórico, as mudanças nas escalas de acumulação de capital. Para uma análise completa dessas questões, cf. Eichengreen (1996, 20 , 2004 ) e Krippner (2012). Para entender melhor as novas escalas de acumulação de capital, incluindo desregulamentação, rerregulamentação e desenvolvimentos recentes nos mercados financeiros, veja a edição especial sobre Globalization and Crisis, em Globalizations , v. 7, 2010. Para um exame do estado da arte de toda a gama de serviços empresariais especializados, cf. Bryson e Daniels (2009) .
  • 20
    Veja o capítulo 3.
  • 21
    Para mais detalhes, cf. Sassen (2014) , capítulo 3.
  • 22
    Determinado imóvel pode ter mais de uma execução hipotecária.
  • 23
    Vale a pena notar que um processo federal aberto em Nova York em 2016 alega que investidores privados que se apoderaram de hipotecas seguradas pelo governo federal estavam colocando os proprietários negros em maior risco de execução hipotecária. Consulte http://www.nytimes.com/2016/08/15/nyregion/sale-of-federal-mortgages-to-investors-puts-greater-burden-on-blacks-suit-says.html?em_pos=small&emc =edit_ur_20160815&nl=nyhoje&nlid=54151248 &ref=título&_r=0. Acesso em 16 de dezembro de 2016.
  • 24
    Desenvolvi este tema profundamente em Sassen (2014) .
  • 25
    Disponível em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/GFSR/2006/02/pdf/chap2.pdf . Acesso em: 26 ago. 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2022
  • Aceito
    08 Abr 2022
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