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A POLÍTICA COMO ANTAGONISMO: a irredutibilidade do conflito político

POLITICS AS ANTAGONISM: the irreducibility of political conflict

LA POLITIQUE COMME ANTAGONISME: l’irréductibilité du conflit politique

Resumos

Na teoria democrática contemporânea tende-se a enfatizar a importância de valores e processos que canalizem a produção de consensos, tratando o conflito político como nocivo à democracia. Mesmo Chantal Mouffe, autora que denuncia esse movimento com seu modelo agonístico de democracia, reafirma a necessidade de consensos. Assim, o objetivo deste artigo é retomar a noção de antagonismo desenvolvido por Ernesto Laclau (e por Chantal Mouffe) e apresentar um renovado olhar sobre as possiblidades da política, vislumbrando o modelo democrático. Entendemos que está em jogo na política (e na política democrática), sempre permeado pela dimensão do antagonismo, e que visões que enfatizam a necessidade de consensos apenas mascaram processos desiguais e com primazia à aceitação de modos de exclusão. Portanto repensar o antagonismo e suas possibilidades, e entender que as instituições de regimes democráticos são marcadas por conflitos que possibilitam sua pluralidade e inclusão é mais frutífero para a política democrática.

Antagonismo; Conflito Político; Agonismo; Teoria do Discurso; Teoria Democrática


Contemporary democratic theory tends to emphasize the importance of values and processes that channel the production of consensus, treating political conflict as harmful to democracy. Even Chantal Mouffe, who denounces this movement in her agonistic model of democracy, reaffirms the need for consensus. This paper seeks thus to resume the notion of antagonism developed by Laclau (and by Mouffe herself) and present a renewed look at the possibilities of politics, envisioning the democratic model. What is at stake in politics (and in democratic politics) is always permeated by the dimension of antagonism, and views that emphasize the need for consensus only mask unequal processes and favors the acceptance of modes of exclusion. Rethinking antagonism and its possibilities, and understanding that democratic institutions end up marked by conflicts enables their plurality and inclusion, becomes, therefore, more fruitful for democratic politics.

Antagonism; Political Conflict; Agonism; Discourse Theory; Democratic Theory


La théorie démocratique contemporaine tend à souligner l’importance des valeurs et des processus qui canalisent la production du consensus, traitant le conflit politique comme nuisible à la démocratie. Même Chantal Mouffe, qui dénonce ce mouvement dans son modèle agonistique de démocratie, réaffirme la nécessité du consensus. Cet article cherche donc à reprendre la notion d’antagonisme développée par Laclau (et par Mouffe elle-même) et à présenter un regard renouvelé sur les possibilités du politique, en envisageant le modèle démocratique. Les enjeux de la politique (et de la politique démocratique) sont toujours imprégnés de la dimension de l’antagonisme, et les points de vue qui mettent l’accent sur la nécessité du consensus ne font que masquer les processus inégaux et favorisent l’acceptation des modes d’exclusion. Repenser l’antagonisme et ses possibilités, et comprendre que les institutions démocratiques finissent par être marquées par des conflits permet leur pluralité et leur inclusion, devient donc plus fructueux pour la politique démocratique.

Antagonisme; Conflit Politique; Agonisme; Théorie du Discours; Théorie Démocratique


INTRODUÇÃO

Na teoria política atual, existe uma tendência central de compreendê-la a partir de sua capacidade normativa e restritiva em se tratando de conflito político. Seja a partir de um viés descritivo e abertamente procedimental, como nos modelos defendidos por Schumpeter ([1947] 2017), Downs ([1957] 2013) e Dahl ([1972] 2015, [1998] 2009), seja pelas críticas imputadas a essas visões a partir da perspectiva deliberacionista de vertentes diferentes, como a de Rawls ([1993] 2011, [1971] 2016) ou de Habermas ([1992] 1997, [1981] 2003, [1962] 2014), entendendo-se que ambas assumem um fundamento consensual sobre o que a democracia representa e sobre o funcionamento do modelo democrático como forma de governo. Enquanto a primeira restringe a participação do “povo” ao momento de duração do processo eleitoral, entendendo que aspectos formalistas podem produzir e captar/capitanear a “vontade do cidadão”, a segunda (levando em consideração as semelhanças entre os “fundadores” do deliberacionismo), na tentativa de resgatar a dimensão moral da política, acredita ser possível construir consensos de base sobre os fundamentos do que é justo, no caso de Rawls, e do que é possível ser a base da comunicação entre os sujeitos, no caso de Habermas.

Mouffe ([1993] 1999, [2000] 2003, 2005, 2013, [2005] 2015, 2018) assume hoje o posto de ser a principal voz a criticar as perspectivas consensuais da teoria política considerando que influenciam a teoria democrática.1 1 Aletta Norval (2007) , em Aversive democracy: in heritance and originality in the democratic tradition , busca desenvolver aspectos teóricos e normativos a partir do pós-estruturalismo, dialogando com a proposta de Mouffe. No entanto a ressonância da teoria proposta por Mouffe a coloca como a principal voz pós-estruturalista nesse campo de crítica. Para uma revisão sobre a teoria de Norval, ver Prado (2009) . Para uma análise e comparação entre Norval e Mouffe, ver Mendonça (2010b). Suas críticas são pertinentes e relevantes no que concerne tanto à teoria política como propriamente à prática da política institucional e sua necessidade de estabelecer normatizações para modelos democráticos. No entanto sua teoria enfrenta diversos problemas: Beckstein (2011)BECKSTEIN, M. The dissociative and polemical political: Chantal Mouffe and the intellectual heritage of Carl Schmitt. Journal of Political Ideologies, Abingdon, v. 16, n. 1, p. 33-51, 2011. menciona a apropriação dos conceitos de Carl Schmitt; enquanto Mendonça (2010a, 2010b, 2012b) indica a limitação normativa da proposta da autora; Roskamm (2014)ROSKAMM, N. On the other side of “agonism”: “the enemy”, the “outside” and the role of antagonismo. Planning Theory, [s. l.], v. 14, n. 4, p. 384-403, 2014. aponta a fragilidade do “pluralismo agonístico” a partir do debate em torno do conceito de antagonismo; e Miguel (2014)MIGUEL, L. Consenso e conflito na teoria democrática: para além do “agonismo”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 92, p. 13-43, 2014. enaltece a não superação do consenso proposto pela autora. Freitas (2020b) aponta os problemas teóricos que a autora não transgride em relação aos deliberacionistas.

Com isso, o objetivo deste artigo é retomar a noção de antagonismo desenvolvido por Laclau (e pela própria Mouffe) e apresentar um renovado olhar sobre as possiblidades da política vislumbrando o modelo democrático. Entendemos que o que está em jogo na política (e na política democrática) é sempre permeado pela dimensão do antagonismo e que visões que enfatizam a necessidade de consensos apenas mascaram processos desiguais e com predileção à aceitação de modos de exclusão. Por isso, repensar o antagonismo e suas possibilidades se torna mais frutífero para a política democrática, entendendo que as instituições de regimes democráticos são marcadas por conflitos que possibilitam uma maior pluralidade e inclusão de identidades. Laclau e Mouffe, autores que trilharam caminhos diferentes após a publicação do livro Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical (1985), mantiveram o pós-fundacionalismo e o pós-estruturalismo como bases e horizontes ontológicos e epistemológicos. Enquanto Laclau deu continuidade ao desenvolvimento e aprofundamento de elementos ontológicos, epistemológicos e teóricos que “estruturam” sua teoria do discurso, Mouffe direcionou seu olhar para modelos democráticos e buscou apresentar novos elementos teóricos que pudessem contribuir para a radicalização da democracia no sentido de garantir sua pluralidade em termos de processos de identificações e de valorização de sentimentos democráticos. Laclau buscou repensar alguns dos elementos ontológicos que reposicionaram os conceitos de antagonismo e de sujeito a partir da incorporação do conceito de deslocamento (Laclau, [1990] 2000), bem como avançar em debates sobre as noções de emancipação e liberdade, particularismo e universalismo, significantes vazios e desenvolver uma (re)definição do conceito de populismo (Laclau, [1996] 2011, [2005] 2013). Como destaca Mendonça (2010, p. 479), o objetivo de Laclau “parece estar cada vez mais claro na direção da construção de um modelo de explicação para os fenômenos sociais, ocupando a dimensão ontológica do político um lugar de destaque”. Já Mouffe (1999MOUFFE, C. El retorno de lo político. 1ª edição [1993]. Barcelona: Paidós, 1999. , 2003MOUFFE, C. La paradoja democrática. 1ª edição [2000]. Barcelona: Gedisa, 2003. , 2005MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. , 2013MOUFFE, C. Agonistics: thinking the world politically. London: Verso, 2013. , 2015MOUFFE, C. Sobre o político. 1ª edição [2005]. São Paulo: Martins Fontes, 2015. (Versão digital). , 2018MOUFFE, C. For a left populism. London: Verso, 2018. ) preocupou-se em desenvolver uma teoria política normativa e produzir seu próprio “modelo agonístico de democracia”. Com essas posturas, trataremos neste artigo do que se manteve comum nos propósitos teóricos de Mouffe em relação aos desenvolvimentos teóricos de Laclau e, a partir dessa relação, problematizar os insights de Mouffe.

Assim, nossa intenção é repensar o conceito de agonismo no âmbito da teoria do discurso e do modelo teórico de democracia pensado por Mouffe. A democracia, como entendida por Laclau e Mouffe (2015)LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. 1ª edição [1985]. São Paulo: Intermeios, 2015. , um campo discursivo que possibilita diversas manifestações identitárias, só se torna possível por antagonismos. Nesse sentido, a função do agonismo é a de promover meios pelos quais os antagonismos sejam reconhecidos e legitimados pelas instituições da democracia. Assim, o agonismo mostra sua importância na organização e legitimação de normas e valores (democráticos) que canalizem os conflitos políticos (os antagonismos) para ordenações da democracia. Desse modo, a democracia, segundo a teoria do discurso – um modelo radical de democracia –, assume três características basilares para sua estabilidade: a) mantém, com o conceito de antagonismo, sua substância enquanto o reconhecimento da pluralidade do social (um social político); b) enquanto modelo político, se “alarga” no sentido de reconhecer e abarcar as múltiplas manifestações políticas sempre buscando, com o regramento agonístico, gerar reconhecimento e legitimidade as reivindicações políticas/democráticas; e c) resgata e rearticula o conflito político como construção de sentidos e significações em relação à materialidade do discurso e seu efeito político no social, desprendendo qualquer essência e fundamento sobre a existência física dos objetos.

Para isso, este artigo está dividido em quatro seções, mais as conclusões. Na primeira seção, são apresentadas as críticas de Mouffe ao deliberacionismo e as bases de seu “modelo” agonístico de democracia. Na segunda seção, é exposta a noção (conceito) de discurso, segundo a teoria do discurso desenvolvida por Laclau e Mouffe, e seus desdobramentos teóricos pertinentes para nossa reflexão e análise. Na terceira seção, é apresentada a noção (conceito) de antagonismo segundo a teoria do discurso, desenvolvendo uma leitura no sentido de avançar na sua capacidade heurística. Na quarta seção, são apontados os limites do modelo agonístico de Mouffe. Por fim, nas conclusões, oferecemos um renovado olhar em relação à noção e ao conceito de antagonismo, indicando a necessidade de pensar a teoria política e o modelo democrático a partir do conflito político, identificando o antagonismo político como elemento central para o processo democrático.

ECOANDO AS CRÍTICAS DE MOUFFE À TRADIÇÃO DELIBERATIVA: o agonismo como modelo teórico

O foco desta seção é familiarizar o leitor sobre o debate acerca dos limites apontados por Mouffe em relação à perspectiva teórica deliberativa de John Rawls e de Jürgen Habermas, para daí expor o desenvolvimento teórico do modelo agonístico desenvolvido pela autora. Esses elementos servirão de base para, na última seção deste artigo, expressar nossas considerações sobre o limite do agonismo desenvolvido por Mouffe. Nesse sentido, os autores ligados à tradição deliberativa têm por objetivo conceber um modelo alternativo à perspectiva agregativa da democracia, sem se colocarem numa corrente antiliberal. A partir da conexão entre valores liberais e as instituições democráticas, têm como meta recuperar sua dimensão moral. Apostam, de modo geral, na promoção de uma racionalidade normativa que se relaciona com um ideário liberal (suas instituições liberais) e com a ideia de soberania democrática. Mouffe (1999) assimila a importância do pensamento político de inspiração liberal-democrática, entendendo que tal corrente foi capaz de capturar – mesmo querendo eliminar– a natureza do político.

Por meio de procedimentos adequados de deliberação, esses autores entendem ser possível construir acordos que satisfaçam fundamentos de direitos liberais – sua dimensão racional –, bem como garantir a soberania popular em regimes democráticos ( Mouffe, 2005MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. ). Estas afirmações são resumidas a partir das definições de “razoável”, feitas por Rawls (2016)RAWLS, J. Uma teoria da justiça. 1ª edição [1971]. São Paulo: Martins Fontes, 2016. , como “racionalidade comunicativa”, de Habermas (2003)HABERMAS, J. Teoría de laacción comunicativa: crítica de larazón funcionalista. 1ª edição [1981]. Madrid: Taurus, 2003. ; e aqui reside a possibilidade de fundamentar a autoridade e a legitimidade do modelo democrático deliberacionista a partir de formas de razão pública. Como destaca Mouffe, o movimento de “mero acordo” para “consenso racional” é balizado pelo princípio da imparcialidade, sendo um problema para a corrente deliberativa. Enquanto Rawls dá prioridade à ideia de “posição original” para alcançar “os princípios de justiça” e Habermas acredita em elementos procedimentalistas sem limitação para o conteúdo da deliberação, ambos entendem ser possível “encontrar o conteúdo idealizado da racionalidade prática nas instituições da democracia liberal” (Mouffe, 2005, p. 13).

Mouffe (2005)MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. chama atenção para outro objetivo dos deliberacionistas, o qual se refere ao tratamento dado entre as esferas do público e do privado. Enquanto Rawls apresenta uma separação “radical” entre essas duas esferas, entendendo ser o privado o reino das diferenças irreconciliáveis e o público o espaço da promoção do consenso forjado por meio de um sentido de justiça compartilhado, Habermas não toma esse caminho, considerando a separação “radical” feita por Rawls um equívoco teórico-filosófico, pois elimina a amplitude da deliberação e dos problemas (novas questões) que possam surgir no próprio processo deliberativo (Habermas, 2003). Nessa esteira, Mouffe discorda de ambas as posições: Rawls elimina as formações de visões abrangentes que transitariam para a esfera pública, e Habermas esbarra em seu modelo extremamente procedimentalista, acreditando ser possível controlar as substancialidades que possam emergir. Por isso, conforme Mouffe, ambos os modelos não compreendem a própria lógica da formação de consensos.

Relacionado a isso, tanto Rawls como Habermas compreendem ser possível conectar as “liberdades dos antigos”2 2 Ver Constant ([1874] 1985). com as “liberdades dos modernos”,3 3 Ver Berlin (2002) . aceitando haver autonomias distintas nesses dois espaços que se relacionam e caminham juntas ( Mouffe, 2005MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. , p. 16). Os dois autores buscam recolocar no debate a ideia de participação democrática e de autogoverno relacionando com os direitos liberais. É a partir desses pontos que Mouffe contesta as teorias de Rawls e de Habermas. A questão central para Mouffe passa a ser a forma como ambos os autores buscam fugir das consequências impostas pelas formações de relações plurais: o pluralismo de valores. Nesse processo, Rawls e Habermas buscam alicerçar os fundamentos da democracia liberal com uma forma de racionalidade que se mostra incapaz de dar espaço para a possibilidade de contestação (Mouffe, 2005). É nisso que reside a grande questão das formações dos consensos. A separação entre público e privado e a relação com o pluralismo de valores não é resolvida nas teorias dos autores por meio dos consensos “originais”.

Mouffe (2003MOUFFE, C. La paradoja democrática. 1ª edição [2000]. Barcelona: Gedisa, 2003. , 2005MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. ) entende que os autores buscam negar o caráter paradoxal da democracia moderna que passa necessariamente pela tensão entre a lógica da democracia e a lógica do liberalismo, e que os direitos individuais e a ideia de autogoverno são constitutivos da democracia moderna. A novidade desse modelo, segundo a autora, é a articulação entre o liberalismo e o autogoverno de forma a não separá-los, mas construir um entendimento relacionando-os. A democracia, nesse sentido, é um processo de contínua negociação em torno desse paradoxo ( Mouffe, 2003MOUFFE, C. La paradoja democrática. 1ª edição [2000]. Barcelona: Gedisa, 2003. ). Assim, a autora acredita que Rawls e Habermas, mesmo que de modos diferentes, vislumbram, no final, construir bases estáveis para a democracia liberal e suas instituições por meio de consensos racionais. A substituição de uma racionalidade de meios-fim por uma deliberativa ou comunicativa não soluciona os problemas das instituições democráticas que envolvem a construção de uma lealdade democrática ( Mouffe, 2005MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. ). O principal ponto, no sentido defendido por Mouffe, então, é o abandono dessa racionalidade em prol da valorização das paixões e afetos na construção da fidelidade e valores democráticos.

Crítica à tradição deliberativa, Mouffe entende ser demasiadamente reducionista em termos de pluralidade e com um fator excessivamente racionalista em direção a um consenso sempre capaz de eliminar o conflito e as paixões das relações humanas. A autora aponta para a necessidade de repensar os “princípios fundamentais” da democracia sem deixar de lado o conflito, a paixão e, principalmente, o poder como constitutivos das relações políticas/sociais (Mouffe, 2015, p. 627). Aqui, ela move-se para o campo da ontologia, defendendo que a tradição deliberativa “é incapaz de reconhecer a dimensão do antagonismo e seu caráter inerradicável, que decorre do pluralismo de valores” ( Mouffe, 2005MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. , p. 19). Assim, o antagonismo (o pluralismo de valores e o conflito político) é o que a autora defende como sendo a especificidade do político, entendendo que a tarefa da política democrática não consiste em superar essa natureza conflitiva transformada por meio de consensos, mas repensar mecanismos que estimulem o confronto democrático ( Mouffe, 2015MOUFFE, C. Sobre o político. 1ª edição [2005]. São Paulo: Martins Fontes, 2015. (Versão digital). ). Para a autora, “o que falta a essas abordagens racionalistas é a própria questão de quais são as condições de existência do sujeito democrático” ( Mouffe, 2005MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. , p. 17-18).4 4 Além da limitação do próprio texto, decidimos por não aprofundar esse debate em torno da constituição do sujeito democrático na teoria do discurso a partir do pós-estruturalismo por entendermos haver nessa definição incompreensões que ainda carecem de um melhor tratamento. Essa empreitada se dará em outro texto futuro.

Assim, a autora defende a ampliação de instituições e discursos que estimulem identificações com valores democráticos, enfatizando a ideia de “tipos de práticas” em vez de argumentação ( Mouffe, 1999MOUFFE, C. El retorno de lo político. 1ª edição [1993]. Barcelona: Paidós, 1999. ). Podemos entender a democracia como uma organização de vida, e não simplesmente como forma de governo. Democracia, nesse sentido, está ligada a sentimentos compartilhados entre cidadãos que se reconhecem como interlocutores legítimos diante de conflitos políticos, ou seja, mediante ideias contrárias/opostas. Conflitos que podem emergir em diversos locais do social, como, por exemplo, no ambiente do trabalho ou mesmo na família, e que sejam lidos e amparados pelos valores democráticos: o reconhecimento e a legitimidade da contrariedade. A democracia, enquanto modelo político, deve garantir os mecanismos necessários para que manifestações conflituosas sejam “absorvidas” pelas normas institucionais, e não denegadas, garantindo sua vitalidade e estabilidade.5 5 Mendonça (2019a, 2019b), propondo uma leitura a partir do conceito de populismo de Laclau (2013) , indica a forma como modelos democráticos excluem o povo e, como isso, pode ser danoso para a democracia.

Ao entender a necessidade de reconhecer os desafios que o pluralismo de valores impõe ao modelo democrático, Mouffe lembra que não se trata de um pluralismo total. Segundo a autora, ao contrário de construir fundamentos morais e racionais como exigências para o modelo democrático, é necessário compreender que algumas limitações precisam ser estabelecidas no que diz respeito à forma de confronto que será considerada legítima na esfera pública (Mouffe, 2005). Preocupada com as instituições da democracia e sua continuidade (Ralws e Habermas também têm essa preocupação), a autora aposta em outro caminho, não o apresentado por Rawls e por Habermas; identificando nos autores que critica um problema para além de elementos empíricos e epistemológicos, mas, também – e de grande relevância e importância –, um problema ontológico. Portanto, a partir da dimensão ontológica, a autora considera a impossibilidade de se chegar a consensos finais e que a hegemonia de concepções racionalistas prejudica o próprio entendimento da política. Entender a natureza “do político” corresponde a entender o próprio futuro “da política” de modo geral e, especificamente, da democracia moderna. Nesse sentido, Mouffe percebe ser impossível construir uma racionalidade e imparcialidade, e identificar um ponto de vista universal capaz de produzir, então, um consenso racional universal. Isso seria a totalização do social, um consenso final/original. Isso se dá pela especificidade do político, que é constituída pelo antagonismo (Mouffe, 1999, 2005).

Diferentemente de como os liberais entendem e os deliberacionistas evocam como sendo a particularidade da política democrática, a de eliminar a posição entre nós/eles e a de que essa oposição se dá entre o que é certo e errado, respectivamente, Mouffe (2005)MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. propõe que essa relação deva ser lida de forma diferente, ou seja, nem pela sua eliminação tampouco pela sua distorção. A autora entende ser necessária uma interpretação em que a separação entre o nós/eles passe por um entendimento democrático no qual ela se estabelece. Não há como eliminar o conflito das relações humanas, mas há como produzir determinados consensos, sempre precários e contingentes, a partir de valores democráticos – o reconhecimento do inimigo como tomado por direitos ( Mouffe, 1999MOUFFE, C. El retorno de lo político. 1ª edição [1993]. Barcelona: Paidós, 1999. 14). Lançando mão dos insights conceituais de Carl Schmitt ([1932] 2009), como a distinção feita pelo jurista alemão entre amigo e inimigo, Mouffe (2015)MOUFFE, C. Sobre o político. 1ª edição [2005]. São Paulo: Martins Fontes, 2015. (Versão digital). retoma e reinterpreta a compreensão do conceito “do político” e sua distinção do conceito “da política”. Nesse sentido, o principal objetivo da autora é construir um novo modelo (agonístico) de democracia, levando em consideração a dimensão ontológica “do político” (seu ser) e a dimensão ôntica “da política” (as práticas institucionalizadas/a realidade da atividade da política), buscando, com isso, resgatar os valores democráticos (liberdade, igualdade e poder do povo) para sustentar a separação entre inimigos e adversários, defendendo que num modelo de democracia as regras democráticas (e seus valores democráticos) instituem aos seus participantes uma relação de adversários que compartilham um conjunto de valores e princípios ético-políticos.6 6 Além desses pontos, são indispensáveis para a autora as críticas desenvolvidas por Schmitt (2009) aos fundamentos do liberalismo. Nesse sentido, Mouffe (2005 , 2013 , 2015 ) se vale da contradição entre liberalismo e democracia apresentada por Schmitt para reinterpretar tal questão sem, necessariamente, desconstruir todos seus pontos teóricos. As críticas aos liberais continuam, no entanto a contradição entre liberalismo e democracia é repensada. Para Mouffe, a democracia moderna mantém relação direta com a ideia liberal.

Utilizando a separação conceitual entre ser e ente e a reflexão sobre fundamento ausente que Heidegger ([1926] 2015, [1928] 2000, [1929] 2007) desenvolve Mouffe busca esclarecer e direcionar o processo de diferenciação do político e da política. Esta reflete filosófica e teoricamente sobre o político a partir de uma perspectiva ontológica, ou seja, uma reflexão do ser enquanto ser, ao passo que pensa a política como manifestação do ser em “forma” de ente (entificação), ou seja, sua manifestação no mundo (o ser no mundo – Desein ). Desse modo, o político está ligado a uma leitura ontológica do ser, já a política está ligada a uma leitura ôntica das manifestações dos entes. Para explicar melhor esses elementos é importante ter maior clareza sobre a ideia de fundamento em Heidegger e a diferença ontológico-ôntico. Vejamos.

Marchart ([2007] 2009, p. 35-36), ao tratar sobre a filosofia de Heidegger e sua ideia de ausência de fundamento, esclarece o caráter abissal de todo fundamento como “sem fundamento”, que leva a um “fundamento ausente”. Conclui que não se trata da ausência total, mas de fundamentos que não contém um “fundo” (uma origem para além de si mesmo) e, por isso, fundamentos sempre contingentes. Não se trata, como destacam Mendonça, Linhares e Barros (2016), de negar o fundamento, mas de compreender um fundamento que não tem um fundo (sem fundamento), um Abgrund , um abismo. Marchart (2009)MARCHART, O. El pensamiento político posfundacional: la diferencia política em Nancy, Lefort, Badiou e Laclau. 1ª edição [2007]. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009. explica a diferença entre o nível ontológico – do ser – e o nível ôntico – dos entes –, informando que a entidade dos entes (o ser no mundo – Dasein ) se constitui no processo de fundamentar-se, ou seja, de gerar sentido no mundo fenomênico (no ôntico). Assim, o ser é sempre ontológico, sem fundamento, mas que fundamentasse, em sua constituição de ente (sua entificação, sua entidade), no ôntico. Então o ser é sempre um ser no mundo (ente), pois ele só pode ser conhecido quando considerado seu contexto (Mendonça; Rodrigues, [2008] 2014).7 7 Para mais informações e sobre a crítica à lógica clássica feita por Heidegger, ver Stein (2004) . Assim, o ôntico é o tempo do ente que se manifesta em dada especificidade histórica. O fato de o ente se manifestar como fundamento e estar inscrito em dada especificidade histórica, ou seja, podendo ser outro em outro contexto histórico, indica a falta de fundamento transcendental, o que caracteriza sua “condição ontológica”: não ter um fundamento último ( Marchart, 2009MARCHART, O. El pensamiento político posfundacional: la diferencia política em Nancy, Lefort, Badiou e Laclau. 1ª edição [2007]. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009. ).

Apesar de haver a impressão de uma separação entre ontológico (ser) e ôntico (ente, entidade e entificação), isso não passa de falsa impressão. Nunes ([2002] 2010) explica que a ontologia fundamental é a filosofia realizada como ontologia universal e fenomenológica, que inicia na hermenêutica do dasein. Assim, o Desein é a possibilidade ôntica de compreender o ser.

Para Heidegger (2015)HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 1ª edição [1926]. Petrópolis: Vozes. 2015. , o ser nunca está separado do mundo e de seu processo de fundamentar-se enquanto ente. Como relatam Mendonça, Linhares e Barros (2016), a leitura heideggerina sobre ser e tempo em que o ser é um ser no mundo se posiciona contrariamente à tradição cartesiana do “penso, logo existo”. O ser no mundo modifica a definição do cogito de Descartes ([1737] 2009), compreendendo sua existência como “sou no mundo, logo penso” ( Nunes, 2010NUNES, B. Heidegger & ser e tempo. 1ª edição [2002]. São Paulo: Zahar, 2010. (Versão digital). , p. 26).

Voltando ao propósito de Mouffe em diferenciar, a partir do processo de diferenciação ontológico-ôntico, o político e a política (do político da política), a autora explica que o político, entendido a partir de uma dimensão ontológica, é caracterizado pelo antagonismo, também entendido, a partir dessa dimensão, “inerente às relações humanas, um antagonismo que pode tomar muitas formas e emergir em diferentes tipos de relações sociais” (Mouffe, 2005, p. 20), ou seja, no ôntico, na política. A política, de outra forma, designa a institucionalidade e o conjunto de práticas que buscam estabelecer certa ordem ao social, práticas estas que têm por objetivo “acalmar” os antagonismos. A relação entre essas duas dimensões (ontológico e ôntico) e, por consequência, entre o político e a política, busca, no escopo teórico de Mouffe, enfatizar a importância do poder como constitutivo das relações sociais, bem como a impossibilidade de eliminar o conflito. A dimensão ontológica do ser do político é sempre pautada pela dimensão do antagonismo que, por consequência, “assombra” a política a partir da impossibilidade de fundamentação última, pois o antagonismo e o conflito político estão sempre em “latência” e no aguardo de sua reativação. A dimensão da política, nesse sentido, é sempre afetada pela dimensão do político, pela dimensão ontológica do antagonismo. Portanto a institucionalidade será sempre precária e contingente.8 8 Martínez (2014) elucida a transformação “do político” de Schmitt realizado por Mouffe e a passagem do “inimigo” para o “adversário” pensando num modelo democrático. O autor busca enaltecer o conflito político como elemento central para a democracia, enfatizando, de outro modo, o mesmo processo já indicado por Mouffe.

Nesse trânsito teórico, a função da política passa a ser a de domesticar os antagonismos existentes nas relações humanas, ou seja, o político. Mouffe (1999)MOUFFE, C. El retorno de lo político. 1ª edição [1993]. Barcelona: Paidós, 1999. entende ser esse o caminho para pensar a política democrática e suas dinâmicas plurais. Então a função da política é a busca por uma unidade em um contexto formado por conflitos e diversidades em que há diversas formações antagônicas (um nós contra um eles). Nesse sentido, a novidade da política democrática, conforme Mouffe (2005)MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. , não é a superação dessas relações antagônicas, mas a construção de meios para que esses conflitos sejam assimilados por valores democráticos: o pluralismo agonístico.

A autora propõe uma compreensão de que, num modelo democrático balizado pelos valores democráticos (liberdade, igualdade e poder do povo), inimigos, entendidos de uma dimensão antagônica – do político –, devem ser substituídos por adversários. Há, aqui, como já apontado por Miguel (2014)MIGUEL, L. Consenso e conflito na teoria democrática: para além do “agonismo”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 92, p. 13-43, 2014. , um princípio de reciprocidade quanto à coexistência de diferenças. Além disso, há um princípio de legitimidade quanto à “disputa” em torno dessas diferenças. Na política democrática, numa dimensão ôntica, por assim dizer, adversários são identificados como pessoas (como discursos, no sentido laclauniano), por mais que sejam antagônicos (ontologicamente), concorrentes, e que essa diferença seja legitimada pela aceitação dos valores democráticos. Enquanto o inimigo deve ser destruído e o adversário não, é reconhecido seu direito de contrariedade. Esse seria o verdadeiro sentido da tolerância liberal-democrática ( Mouffe, 2005MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. ). Nessa transição, um adversário continua sendo um inimigo, mas um inimigo legítimo transformado em adversário por esse reconhecimento de legitimidade. Um inimigo que, ao compartilhar os mesmos valores democráticos (liberdade e igualdada), torna-se adversário.

Segundo Mouffe (2005MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. , p. 21), “desde a perspectiva do “pluralismo agonístico”, o propósito da política é transformar antagonismo em agonismo”. Nesse sentido, e se diferenciada dos deliberacionistas, “a tarefa primordial da política democrática não é a de eliminar as paixões da esfera do público, de modo a tornar possível um consenso racional, mas mobilizar tais paixões em prol de desígnios democráticos” ( Mouffe, 2005MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. , p. 21). Sendo o modelo agonístico sua condição de existência, concilia uma dimensão de conflito com um modelo de democracia que requer um mínimo de consenso (um consenso conflituoso).

Portanto, ao defender seu modelo agonístico, a autora enfatiza que os consensos temporários nada mais são que hegemonias temporárias e que sempre haverá disputa em torno desse momento hegemônico. Nesse sentido, o poder se mantém como constitutivo do social e da prática política e, por consequência, o antagonismo como constitutivo do político. Em sua concepção, Mouffe se diferencia dos autores deliberativos no que concerne à existência do poder e como este interfere nas relações políticas/sociais. Enquanto os deliberacionistas entendem ser possível uma deliberação racional e um consenso universal sobre valores plurais sem exclusão, e acabam por negar o caráter do conflito, Mouffe entende que toda política é, em sua essência, excludente. Desse modo, o poder e o conflito são reinterpretados e recolocados no debate democrático pela autora.

Mouffe (1999MOUFFE, C. El retorno de lo político. 1ª edição [1993]. Barcelona: Paidós, 1999. , 2003MOUFFE, C. La paradoja democrática. 1ª edição [2000]. Barcelona: Gedisa, 2003. , 2005MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. , 2013MOUFFE, C. Agonistics: thinking the world politically. London: Verso, 2013. , 2015MOUFFE, C. Sobre o político. 1ª edição [2005]. São Paulo: Martins Fontes, 2015. (Versão digital). ) indica a necessidade de uma teoria política e democrática que leve em consideração a natureza do político, ou seja, a natureza antagônica e, logo, a emergência de conflitos. Nesse sentido, tanto o antagonismo como o poder assumem centralidade em sua perspectiva. No pensamento da autora, é aqui que reside a impossibilidade de uma objetividade do social. O poder não é anterior ao social, mas constitutivo deste (de seus processos de identificações e formações de identidades). Por isso a autora entende não só ser impossível eliminar o poder das relações sociais como defende a necessidade de construir e “constituir formas de poder mais compatíveis com valores democráticos” ( Mouffe, 2005MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. , p. 19).

Permeando isso, Mouffe (2005)MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. faz uma relação entre poder e legitimidade. Para a autora, onde há poder há algum reconhecimento de legitimidade por alguma parte, e a legitimidade só se “mostra” porque o poder se fez bem-sucedido. Essa relação, que constitui uma hegemonia, segundo a autora, é preterida nos argumentos dos defensores da tradição deliberativa. A possibilidade de consensos, assim, passa por essa redefinição ontológica.

DISCURSO COMO CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS SOCIAIS/POLÍTICOS: reinterpretando suas interpretações

Antes de entrarmos nos pontos nevrálgicos do modelo agonístico desenvolvido por Mouffe, é necessário problematizar o conceito de discurso no âmbito da teoria do discurso de Laclau e da própria Mouffe. Desse modo, esta seção tem como propósito construir um entendimento de discurso que vai além das simplificações que muitas vezes o termo discurso remete. Aqui, veremos que discurso não se refere a uma objetividade materialmente pré-concebida, pelo contrário: discurso é a própria possibilidade da materialidade de dado objeto que, por si só, não existiria. Com isso, um objeto é sempre objeto de um discurso. Essa “simples” recolocação dos termos no debate teórico/filosófico da teoria do discurso possibilita o reposicionamento de debate em relação ao entendimento de conflito político e a destruição do inimigo político. Do modo como tratamos o sentido de discurso da e na teoria do discurso de Laclau e Mouffe, possibilita verificarmos que não se trata da destruição de um inimigo, mas dos sentidos discursivos que o constitui. O inimigo, portanto, só pode ser concebido como discurso.

No tratamento comum (fora do ambiente acadêmico que estude e conceitue a definição de discurso, constituindo uma disciplina e/ou um campo do conhecimento), o termo (a noção) discurso é tido como algo estruturalmente construído na forma de fala ou de texto por um sujeito a partir de sua posição na estrutura social. Nesse sentido, discurso é atribuído a qualquer ato de fala ou escrita que ressoe em algum meio da sociedade (espaço do social). O discurso do reitor de uma universidade, o discurso do deputado “X”, o discurso do presidente de um país, o discurso de algum representante da sociedade civil, são exemplos da forma como o termo (noção) discurso é entendido. Num outro caminho, o discurso como disciplina das Ciências Humanas no campo da linguística contribuiu para a criação de novos métodos a partir da distinção entre significações e sentidos, contribuindo para a perseguição de um ideal de produzir leis universais no âmbito das ciências humanas, a espelho do que faziam as ciências exatas.

Segundo Burity (2008)BURITY, J. Discurso, política e sujeito na teoria da hegemonia de Ernesto Laclau. In: MENDONÇA, D.; RODRIGUES, L. (org). Pós-estruturalismo e teoria do discurso: em torno de Ernesto Laclau. Porto Alegre: ESPUCRS, 2008. p. 35-51. , Laclau dá início a uma reflexão sobre o entendimento de discurso e seu papel na constituição do sentido na ação social. É a partir disso que o termo (noção e conceito) de discurso assume novas características extrapolando a definição de discurso como uma simples forma de comunicação ou como modo de estudo estruturado pela linguística. A realidade era entendida como algo externo à consciência e independente dos saberes construídos. Os campos dos saberes tinham a função apenas de descrever as coisas como elas se apresentam, ou seja, construir um entendimento da realidade, e não a própria realidade. Como destaca Burity (2008)BURITY, J. Discurso, política e sujeito na teoria da hegemonia de Ernesto Laclau. In: MENDONÇA, D.; RODRIGUES, L. (org). Pós-estruturalismo e teoria do discurso: em torno de Ernesto Laclau. Porto Alegre: ESPUCRS, 2008. p. 35-51. , Laclau inverte essa lógica; a dimensão da significação e do sentido é o que constrói a realidade, uma realidade simbólica (uma construção de sentidos).

A construção do sentido está relacionada com esse jogo entre o simbólico e a própria construção da realidade. Portanto não há um sentido puro nem mesmo uma realidade objetiva e simbolicamente pré-estruturada. O simbólico se relaciona de forma direta com o sentido, que conecta a realidade. É assim que toda configuração social é significativa, pois são atribuídos aos eventos sociais diferentes significados, ou seja, um acontecimento, dependendo de seu contexto, pode gerar vários significados diferentes.

A compreensão do fato social que ocorre relacionada com a questão física e material depende do sentido que será dado a esse fato. A realidade, portanto, é uma construção simbólica – uma significação ( Burity, 2008BURITY, J. Discurso, política e sujeito na teoria da hegemonia de Ernesto Laclau. In: MENDONÇA, D.; RODRIGUES, L. (org). Pós-estruturalismo e teoria do discurso: em torno de Ernesto Laclau. Porto Alegre: ESPUCRS, 2008. p. 35-51. ).

Nossa análise rejeita a distinção entre práticas discursivas e não-discursivas. Afirmamos que; a) todo objeto é constituído como objeto de discurso, uma vez que nenhum objeto é dado fora de condições discursivas de emergência; e b) qualquer distinção entre o que usualmente se chama de aspectos linguísticos e comportamentais de uma prática social ou é uma distinção incorreta, ou deve ter lugar como diferenciação na produção social de sentido, que é estruturada sobre a forma de totalidades discursivas ( Laclau; Mouffe, 2015LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. 1ª edição [1985]. São Paulo: Intermeios, 2015. , p. 180).

Então, todo objeto é de formação discursiva e, além do mais, nenhuma significação pode ser constituída fora de uma formação discursiva, ou seja, todo objeto é constituído do social, em que este é fruto da relação discursiva. Assim, o social é necessariamente simbólico, discursivo e fundado a partir da relação política.

  1. O fato de que todo objeto é constituído como objeto de discurso não tem nada a ver com a existência de um mundo externo ao pensamento, nem com a oposição realismo/idealismo. Um terremoto ou queda de um tijolo é um evento que certamente existe, no sentido de que ocorre aqui e agora, independente de minha vontade. Mas, se sua especificidade como objeto será construída seja em termos de um fenômeno natural ou como expressão da ira de Deus, vai depender da estruturação de um campo discursivo. O que se nega não é que tais objetos existam externamente ao pensamento, mas antes a afirmação bastante diferente de que eles próprios possam se constituir como objetos fora de qualquer condição discursiva de emergência.

  2. Na origem do preconceito anterior reside a suposição do caráter mental do discurso. Contra isso, afirmamos o caráter material de toda estrutura discursiva […]. Os elementos linguísticos e não-linguísticos não são meramente justapostos, mas constituem um sistema diferencial e estruturado de posições – isto é, um discurso. As posições diferenciais incluem, portanto, uma dispersão dos diversos elementos materiais ( Laclau; Mouffe, 2015LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. 1ª edição [1985]. São Paulo: Intermeios, 2015. , p. 181-182).

O discurso, deste modo, é uma prática significativa que constitui e organiza relações sociais, como apresentada no excerto anterior. Assim, toda produção de sentidos depende de uma estrutura discursiva. Portanto discurso é a ligação entre palavras e ações que formam totalidades significativas. Além do mais, o linguístico não pode ser visto separado do social, rechaçando toda e qualquer separação entre práticas discursivas e práticas não discursivas – uma crítica direcionada a Foucault ([1969] 2013a, [1970] 2013b) –, pois o discurso não tem caráter meramente mental, mas material ( Laclau; Mouffe, 2015LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. 1ª edição [1985]. São Paulo: Intermeios, 2015. ). É esse caráter material que dá ao discurso sua forma de ação no mundo fenomênico, ou seja, na prática cotidiana dos sujeitos políticos/sociais. A realidade da materialidade é sempre uma materialidade construída em formas discursivas, ou seja, não há uma realidade preconcebida ao “processo” discursivo.

Em nosso entendimento, o sentido assume um aspecto tanto ontológico quanto ôntico. Ontológico porque não há sentido fundante antes das relações discursivas, no entanto depende de formações de sentidos. Ôntico porque as formações desses sentidos só ocorrerão a partir das condições reais de existência. Então o “ser” (ontológico) é a possibilidade do ente (ôntico) que, por sua vez, “funda” o ser do ente (sua entificação). O ser no mundo deve ser entendido como multiplicidades de entes e é a possibilidade das manifestações na forma de fenômenos sociais/políticos. Portanto o sentido discursivo é constituído nas relações ônticas (mundo na physis , e não na metafísica).

Até aqui está claro que discurso não se restringe às áreas da escrita e da fala ( Laclau; Mouffe, 2015LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. 1ª edição [1985]. São Paulo: Intermeios, 2015. ). Ele abarca um conjunto complexo de elementos nos quais as relações sociais se constituem. Com isso, toda significação social é discursiva, é uma construção por meio da relação entre posições diferentes dispersas no campo da discursividade constituindo o social. É nesse sentido que discurso é entendido a partir de um conjunto de elementos em que as relações desempenham um papel constitutivo na sua simbolização. “Isso significa que os elementos não preexistem ao complexo relacional, mas se constituem através dele” ( Laclau, 2013LACLAU, E. A razão populista. 1ª edição [2005]. São Paulo: Três Estrelas, 2013. , p. 116). Portanto não existe nada que ultrapasse o jogo das diferenças assumindo caráter de fundamento anterior ao próprio jogo, mas toda e qualquer centralidade de um elemento deve ser compreendida dentro e a partir do próprio jogo.

Todos os sentidos de um discurso devem ser entendidos em seus contextos e a partir de suas condições de emergência. Logo é devido à precariedade e à contingência que nenhum discurso poderá garantir que determinadas explicações sejam capazes de se universalizar para todo o sempre. Com isso, podemos perceber que um discurso é a organização de elementos que antes estavam dispersos, fragmentados no campo da discursividade, ou seja, todo discurso é uma prática articulatória que constitui e organiza as relações sociais. Portanto basta que certas regularidades estabeleçam posições diferentes para que possamos falar de uma formação discursiva.

A formação discursiva é composta por uma heterogeneidade de discursos constituídos por uma gama de sentidos; é estruturada por uma relação de sobredeterminação em que não há apenas um modo de sua constituição e de sua explicação, mas envolvem uma multiplicidade de sentidos que lhe confere uma diversidade de abordagens. É esse o entendimento de práticas discursivas ( Burity, 2008BURITY, J. Discurso, política e sujeito na teoria da hegemonia de Ernesto Laclau. In: MENDONÇA, D.; RODRIGUES, L. (org). Pós-estruturalismo e teoria do discurso: em torno de Ernesto Laclau. Porto Alegre: ESPUCRS, 2008. p. 35-51. ). A orientação desse discurso será condensada em torno de outro discurso, representativo: o ponto nodal. Um discurso se forma sempre na tentativa de dominar o campo da discursividade, buscando, desse modo, se constituir como um ponto nodal, privilegiado, hegemônico – um discurso hegemônico ( Laclau; Mouffe, 2015LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. 1ª edição [1985]. São Paulo: Intermeios, 2015. ).

Dessa forma, um ponto nodal é onde as significações serão articuladas, ou seja, onde a lógica da equivalência irá subverter, em partes, todas as diferenças das identidades articuladas com esse ponto privilegiado. Isso é o que Laclau denomina hegemonia. Todo discurso busca se hegemonizar, ou seja, uma identidade tenta impor sua particularidade sobre a outra, mesmo que seu sentido nunca seja plenamente constituído; e é disso que decorre a impossibilidade de totalização, a impossibilidade da formação de um discurso pleno. É nesse sentido, mais precisamente, que Laclau (2000) desenvolve sua ideia de impossibilidade da sociedade, pois, como existem várias formas de relações dispersas nesse espaço, a sociedade não pode ser um objeto inteligível como um todo e, assim, passa ser identificado como o “espaço do social”, o espaço das várias produções discursivas. Todo instante hegemônico necessita de uma relação antagônica, porque o momento em que uma identidade particular “atinge” a hegemonia é precedido por algum discurso que o antagonizava ou ainda se mantém como antagônico. Por outro lado, mesmo que haja uma hegemonia, o social ainda se mantém fragmentado por diversas lutas antagônicas, o que poderá ameaçar a hegemonia “dominante” a partir de outros pontos hegemônicos.

Portanto todo ponto nodal se constitui em uma luta por hegemonia e, nesse sentido, quando determinada identidade se hegemoniza, esvaziando sua particularidade inicial, se torna, necessariamente, um significante vazio. A hegemonia, desse modo, é um lugar vazio, pois, para “atingir” a posição hegemônica, certa identidade precisa esvaziar suas particularidades na busca de representar outras tantas identidades, portanto universalizar seus sentidos.

Sem dúvida, outro conceito de grande importância para a teoria do discurso é a noção de significante vazio. Segundo Laclau (2011LACLAU, E. Emancipação e diferença. 1ª edição [1996]. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011. , p. 67), “um significante vazio é, no sentido estrito do termo, um significante sem significado”. Determinado discurso, um ponto nodal, abarca tantos significados de vários momentos que se articularam em torno desse ponto nodal que ele acaba esvaziando suas particularidades e representando outras particularidades dessas identidades articuladas com ele. Com isso, ele representa muitas outras identidades, mas nenhuma única em particular, e assim se torna um significante vazio. Tal vazio é entendido a partir de uma abundância de sentidos, e não pela ausência deles ( Laclau, 2011LACLAU, E. Emancipação e diferença. 1ª edição [1996]. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011. ).

Para Laclau (2011)LACLAU, E. Emancipação e diferença. 1ª edição [1996]. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011. , o significante pode estar vinculado a distintos significados. Isso significa que demandas diferentes com sentidos diferentes se articulam em torno de um ponto nodal que teve sua particularidade universalizada, portanto tornou-se um significante vazio. Assim, o significante vazio “representa” a impossibilidade de objetivação de um objeto qualquer, ou seja, de um fundamento último. O lugar vazio do significante é a possibilidade de formação de identidades a partir de relações de identificação, pois a não existência desse fundamento último é o que possibilita fundamentar verdades parciais, contingentes e precárias.

Então é assim que se dão as formações discursivas. Os sentidos são sempre antagonicamente disputados, formando pontos nodais na tentativa de se tornar um universal representativo. Passaremos agora para o conceito de antagonismo, segundo a teoria do discurso de Laclau e Mouffe.

O CONCEITO DE ANTAGONISMO NA TEORIA DO DISCURSO DE LACLAU E MOUFFE: (re)delineando seu significado

O objetivo desta seção consiste em realçar a categoria de antagonismo no todo teórico da compreensão de discurso, pois, como veremos, o conceito de antagonismo assume centralidade para a política. Essa centralidade, entre outras características, se dá pelo fato de um discurso não ter uma materialidade objetiva construída anteriormente ao complexo relacional e de formação simbólica. Portanto o antagonismo não assume necessariamente uma dimensão negativa ou mesmo perigosa para a democracia, como em muitos momentos Mouffe busca ponderar. Antes, longe de ser um perigo para a democracia, o antagonismo é sua condição.

É importante atentar para o fato de que a categoria antagonismo, desenvolvida por Laclau e Mouffe, necessita do mundo simbólico para se constituir. O antagonismo só pode emergir numa relação complexa de significação em que o discurso é formado e constitui as relações materiais. Laclau e Mouffe (2015) descartam a relação antagônica como oposição real ou contradição, como desenvolvida por Lucio Colletti (1975)COLLETTI, L. Marxism and the dialectic. New Left Review, London. n. 93, p. 3-29, 1975. . O choque entre dois objetos não elimina sua existência física e a oposição real ocorrida entre eles. Além disso, muitas relações contraditórias emergem do social sem necessariamente constituir uma relação antagônica. Portanto o antagonismo é um conceito específico que não mantém relação direta e necessária com a ideia de oposição real e de contradição. No terreno da teoria do discurso dos autores aqui tratados, o antagonismo constitui determinadas identidades a partir de articulações discursivas marcadas pela negação de sua expansão dentro de um jogo simbólico de significados e sentidos. Enquanto oposição real e contradição se originam do entendimento de que suas identidades já são plenas e constituidoras de uma totalidade (mesmo no caso físico, para oposição), a noção de antagonismo parte da impossibilidade dessa totalização tendo em vista a presença do “outro”.9 9 Esses mesmos argumentos podem ser encontrados em Laclau (2014) . A presença do discurso antagonizado impossibilita essa totalização (Laclau, Mouffe, 2015MOUFFE, C. Sobre o político. 1ª edição [2005]. São Paulo: Martins Fontes, 2015. (Versão digital). , p. 201-202).

Antagonismo é definido a partir de uma relação de exclusão entre duas formações discursivas. De forma simplificada, podemos afirmar que “A” é o que “B” não é. No entanto antagonismo também é compreendido como constituidor dos discursos. Entendemos então que “A” só é “A” pela negação de “B”. Há aqui duas evidências claras: posições antagônicas não compartilham conteúdos comuns e, por isso, não produzem sentidos iguais, e ambas dependem uma da outra para se constituir.

A noção de antagonismo parte da impossibilidade da objetivação de qualquer identidade, não havendo, assim, uma relação entre identidades plenas. É nesse sentido que se entende a impossibilidade de fechamento completo ou da plenitude de um discurso qualquer, por isso a precariedade de toda identidade que, por consequência, só existe no âmbito da identificação política constituída por diferenças. O antagonismo tem função de revelação: ele mostra a natureza contingente de toda identidade ( Norris, 2002NORRIS, A. Agaist antagonism: on Ernesto Laclau’s political thought. Constellations, Hoboken, v. 9, n. 4, p. 554-573, 2002. ).

Então, para Laclau e Mouffe (2015)LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. 1ª edição [1985]. São Paulo: Intermeios, 2015. , todo discurso que nega o outro se constitui como antagônico, pois, ao mesmo tempo em que ele delimita seu corte antagônico, seu opositor, ele se constitui como “ele mesmo”. Portanto a negação do outro é, ao mesmo tempo, a possibilidade de constituir sua própria identidade e a impossibilidade do antagonizado constituir plenamente sua identidade. Ainda segundo os autores, na formação do social há possibilidade da existência de vários antagonismos.

Para os autores, o social pode ser percebido a partir de vários antagonismos e, ainda, quanto mais um sistema político institucional não responde de forma satisfatória às demandas sociais, quanto menos ele é capaz de conciliar as diferenças em virtude de sua multiplicidade, maiores serão os pontos de antagonismos (Laclau, Mouffe, 2015MOUFFE, C. Sobre o político. 1ª edição [2005]. São Paulo: Martins Fontes, 2015. (Versão digital). ). Diferentemente de regimes autoritários ou de sociedades com grandes desigualdades econômicas, em que o campo social tende a produzir uma separação em dois polos antagônicos devido à repressão ou à luta por condições mínimas e dignas de sobrevivência, o campo democrático (ainda que com desigualdades econômicas) propicia outras manifestações de antagonismo, como, por exemplo, a luta pelos direitos das mulheres e lutas ecológicas. A multiplicidade desses antagonismos e as múltiplas relações entre identidades (em processos de identificação) impedem que o sistema político institucional democrático satisfaça todas as demandas.

Ao tratar sobre os conceitos de deslocamento e antagonismo, Laclau (2000)LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. rearticula seu pensamento em relação a três pontos principais: sobre o caráter deslocado de toda identidade, sobre o limite da simbolização e sobre o limite da objetividade – os dois últimos estão intimamente ligados ao primeiro, mas, no nosso entendimento, constituem espaços e momentos diferentes. Por outro lado, o autor enfatiza que o antagonismo é o limite de toda objetividade:

o antagonismo é o limite de toda objetividade. Isto deve ser entendido em seu sentido mais literal: como afirmação de que o antagonismo não tem um sentido objetivo, mas é aquele que impede que a objetividade se constitua como tal. […] o antagonismo com um “exterior constitutivo”. É o “exterior” que bloqueia a identidade do “interior”. […] a força que me antagoniza nega a minha identidade no sentido mais estrito do termo ( Laclau, 2000LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. , p. 34).

Antes de Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo (2000), o autor indicava que o antagonismo era o limite de toda identidade (sua possibilidade e sua impossibilidade), o limite da simbolização de dado sistema e o limite de toda objetividade de uma identidade e de um sistema (discurso). Isso significa que, em dada estrutura social, a relação antagônica apresentava sua própria estruturalidade em relação ao seu corte antagônico. O inimigo antagonizado era o desconhecido e, desse modo, o limite da simbolização do discurso. Posterior a isso, Laclau (2000)LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. afirma que as relações entre identidades se constituem sempre de maneira a não formar um sistema fechado e não conseguirem se constituir plenamente. Portanto “as identidades e suas condições de existência formam um todo inseparável” ( Laclau, 2000LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. , p. 37), o que nos leva a compreender que o antagonismo já está inscrito no sistema simbólico a partir do deslocamento de uma identidade. No entanto o deslocamento assume uma primazia em relação às possibilidades de dado discurso, como afirma o autor:

Segundo vimos, toda identidade é deslocada na medida em que depende de um exterior constitutivo que, ao mesmo tempo em que a nega, é sua condição de possibilidade. Mas isto mesmo significa que os efeitos do deslocamento terão de ser contraditórios. Se por um lado eles ameaçam as identidades, por outro estão na base da constituição de novas identidades ( Laclau, 2000LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. , p. 55).

Além disso, o autor afirma que o deslocamento “resulta da presença de forças antagônicas” ( Laclau 2000LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. , p. 56), o que nos leva a compreender que o caráter deslocado de toda identidade é sempre reconfigurado pelo exterior constitutivo a partir de uma falta constitutiva, ou seja, o deslocamento possibilita novas identificações a partir das relações antagônicas: “Na medida em que a estrutura é deslocada, surge a possibilidade de centros: a resposta ao deslocamento da estrutura será a recomposição da mesma por parte das diversas forças antagônicas em torno de pontos nodais de articulações preciosas” ( Laclau, 2000LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. , p. 57).

Nesse sentido, podemos entender que o deslocamento passa a ser o limite de toda simbolização. No entanto a categoria antagonismo pode ser entendida como o limite de toda objetividade. Em nosso entendimento, constituem dimensões diferentes. Isso implica o entendimento de que o caráter deslocado de toda identidade é o espaço do não simbolizado, é a possiblidade da compreensão de que um discurso em sua estruturalidade só pode ser “significado” dentro desse mundo simbólico. Assim, o antagonismo só se constitui nesse mundo simbólico, ou seja, é quando uma falta desloca uma identidade levando-a a uma nova rearticulação marcada por seu corte antagônico. Por isso o antagonismo surge a partir do deslocamento, na tentativa de criar uma nova ordem a partir de uma nova simbolização. Tal simbolização foi deslocada pela falta que emergiu numa dada identidade/discurso. O antagonismo, assim, se constitui como limite da objetividade desse discurso antagonizado por outro, mas que já faz parte desse mesmo mundo simbólico.10 10 Para uma revisão sobre esses conceitos, ver Mendonça (2009) .

Dessa maneira, o discurso – entendido não como simples atos de fala, mas como prática – se constitui em oposição a outro discurso, ao seu “negativo”, ao seu concorrente, de forma a negar toda substância antagonizada a partir da produção de sentidos opostos. Além do mais, dentro dessa disputa discursiva, o antagonismo impossibilita o fechamento completo dos sentidos de um discurso; “o antagonismo e a exclusão são constitutivos de toda identidade” ( Laclau, 2011LACLAU, E. Emancipação e diferença. 1ª edição [1996]. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011. , p. 88). Com isso, todo discurso é mais do que aquilo que ele abarca. É também aquilo que ele exclui. O antagonismo não tem um sentido objetivo, ele é a própria impossibilidade de sua construção. Conforme afirmamos anteriormente, um discurso nunca vai articular características de seu antagônico, pois assim ele estaria negando a si mesmo. Portanto discursos antagônicos não possuem conteúdos comuns, logo toda formação discursiva tem bloqueada sua expansão de sentidos pela presença de seu corte antagônico. No entanto a articulação discursiva envolverá disputas por significantes que poderão estar nos dois polos antagônicos dos discursos envolvidos. Pinto (2017)PINTO, C. A trajetória discursiva das manifestações de rua no Brasil (2013-2015). Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 100, p. 119-153, 2017. , mobilizando o exemplo sobre corrupção, explica que o combate à corrupção se desloca da cadeia de equivalência e se torna um significante flutuante, disputado pelos discursos envolvidos. Na continuidade, a autora enfatiza seu caráter de flutuação, informando que um significante flutuante, como no exemplo sobre corrupção, poderá ser articulado com uma posição (um discurso) de esquerda ou de direita.

Mendonça (2012a), tratando sobre a categoria antagonismo a partir da releitura feita por Laclau e indicando sua função no desencadeamento de um processo articulatório, afirma que “sua função limita-se a isso, uma vez que, estando o corte antagônico externo ao discurso, ele não é capaz de produzir sentido nele” (p. 206). Decerto, um discurso não é capaz de produzir sentidos em termos positivos num outro discurso, o que não elimina sua necessidade constitutiva, tendo em vista seu caráter deslocado, da relação com seu negativo nessa constituição. Isso significa dizer que a reestruturação de um sistema deslocado só é possível em virtude da relação antagônica. “mostrar que a negatividade é constitutiva de toda identidade e que, portanto, o projeto racionalista de determinar o sentido objetivo ou positivo último dos processos sociais estava destinado ao fracasso” (Laclau, 2000, p. 20). Dessa afirmação podemos tomar duas interpretações: a primeira é que, marcados pelo corte antagônico, um discurso “A” não produz sentidos positivos num discurso “B”; e a segunda é que o discurso “A” só pôde existir pelo fato de que algo lhe foi tolhido, ou seja, outro discurso, o discurso “B”, “irritou” e afetou alguma estabilidade que existia no sistema – a ligação que forma um discurso a partir da relação antagônica.

As forças antagônicas não são a expressão de um movimento objetivo mais profundo que englobaria a ambas, e o curso da história não pode, portanto, expandir-se a partir da objetividade essencial de nenhuma delas. Esta última é sempre uma objetividade ameaçada por um exterior constitutivo ( Laclau, 2000LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. ).

Feitas essas ponderações e levando em consideração as indicações de Mendonça (2012a), que baseou-se nas reflexões da carta de Alleta Norval sobre o caráter positivo na formação de uma identidade,11 11 Este debate entre Norval e Laclau é um dos capítulos do livro Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tempo ( Laclau, 2000 ). que também podem ser encontradas em Norris (2002)NORRIS, A. Agaist antagonism: on Ernesto Laclau’s political thought. Constellations, Hoboken, v. 9, n. 4, p. 554-573, 2002. , Laclau (2000)LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. afirma que toda positividade interna de um discurso só é possível por um exterior radical que subverte e impossibilita sua expansão e completude, ou seja, o corte antagônico. Seu negativo é a própria possibilidade de articulação interna de um discurso e a construção dessa positividade, uma positividade sempre limitada e falha em sua tentativa de completude ( Laclau, 2000LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. ). Portanto a relação de identificação política passa pela relação antagônica possibilitada pelo deslocamento de toda identidade que se inscreve nesse mundo simbólico e é limitada pelo seu antagônico – sendo a possibilidade de sua positividade como seu limite.

Afirmar o caráter constitutivo do antagonismo, como temos feito, não implica, portanto, remeter toda objetividade a uma negatividade que substituiria a metafísica da presença em seu papel de fundação absoluta, já que essa negatividade só é concebível, precisamente, no marco da metafísica da presença. O que implica é afirmar que o momento da indecibilidade entre o contingente e o necessário é constitutivo e que o antagonismo, portanto, também é ( Laclau, 2000LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. ).

Desse modo, o antagonismo exerce uma função no sentido de desestabilizar e subverter as diferenças constituídas, seja dentro do discurso antagônico, seja dentro do próprio discurso antagonizado. A relação antagônica é constitutiva da identidade interna do discurso, e também afeta a formação da identidade do discurso antagonizado, pois o limite ameaça todas as diferenças envolvidas nessa relação. Por isso toda identidade será constantemente cindida, marcada pela relação entre a lógica da diferença e a lógica da equivalência. É nesse trânsito entre diferença e equivalência, constantemente deslocado, conforme o autor, que reside o momento da indecibilidade. Portanto o antagonismo é a possibilidade de identificações políticas na constituição de identidades, ainda que precárias e contingentes.12 12 Para mais informações sobre identificações políticas no âmbito da teoria do discurso aqui utilizada, ver Stavrakakis (2007) .

A lógica antagônica possibilita compreender as relações políticas a partir de identificações, demostrando que tais lutas não resultam de identidades prontas, mas, sim, as formam. Nesse sentido, a realidade social não pode ser simplesmente descrita por relações preestabelecidas, mas sua complexidade aparece no instante em que tais relações se mostram sempre precárias e contingentes. Não existe uma essência que define uma identidade, pelo contrário, é a impossibilidade de se chegar a essa essência (marcada pelo seu caráter deslocado e pela impossibilidade de objetivação imposta pelo corte antagônico) que constitui e configura as identificações resultantes dessa luta antagônica. Por isso, como temos buscado demonstrar, a formação de identificações políticas parte de uma disputa política que é marcada por uma fronteira que a delimita, o que impõe um não fundamento, ou seja, a disputa política é fruto de conflitos que constituem identificações políticas que jamais serão finitas, fechadas, mas que constituem identidades enquanto articuladas em torno de um ponto nodal.

Toda relação de identificação necessita de algo externo que coloque em xeque aquilo que antes definia uma estrutura qualquer, e é nesse exato instante que se percebe a precariedade de tal estrutura e sua impossibilidade de fechamento. A relação com o outro é condição de qualquer identificação política ( Laclau, 2000LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. ), portanto o limite antagônico marca as relações políticas constitutivas do social.

O exterior constitutivo na operação de uma identificação política não pode ser confundido como algo similar, mas o oposto disso. O que caracteriza o momento de uma identificação é a existência de um deslocamento no sistema em que a identidade será reconfigurada por uma nova identificação limitada e constituída a partir de uma falta que marcará a emergência do corte antagônico. É nesse sentido que a sociedade é compreendida como impossibilidade ( Laclau, 2000LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. ) e que o autor enfatiza que uma identidade plena e fechada é impossível, pois as relações antagônicas constituem o social que, a partir de relações de identificações possibilitadas pelo seu corte antagônico, fragmentam o espaço do social apresentando sua complexidade constituída a partir de diversas lutas, sem o reducionismo de uma luta apenas e com a formação de identidades fechadas em torno dessa luta. Assim, quando falamos em identificações políticas, estamos falando de articulações entre elementos que se tornam momentos de uma cadeia articulatória antagonizada por outro discurso. Por isso, se pensarmos numa identificação política sem pensar no que a precede, a relação antagônica, não estaríamos falando de disputa política, mas de uma mesma identidade já constituída e fechada – a questão da positividade criticada por Laclau.13 13 Para outras questões em torno do conceito de antagonismo, permeando parte do debate ontológico e filosófico, ver Marchart (2018) .

OS LIMITES DO MODELO AGONÍSTICO DE MOUFFE: em defesa do antagonismo

Após termos conhecimento das críticas de Mouffe à tradição deliberativa, seu modelo agonístico, o conceito de discurso e de antagonismo desenvolvido pela autora em conjunto com Laclau, o intuito desta seção é retomar parte significativa das críticas feitas ao modelo agonístico de Mouffe e desenvolver uma renovada reflexão acerca das críticas que a autora direciona aos deliberacionista, visando, com isso, recolocar e deslocar o conceito de antagonismo no próprio âmbito do modelo agonístico mouffetiano, para, no fim, indicar a irredutibilidade do conflito político para um pluralismo democrático sempre revigorado. Aqui, a partir da explanação das fragilidades teóricas do modelo agonístico, serão “amarrados” todos os pontos enaltecidos nas seções anteriores.

O primeiro problema a ser pontuado é a apropriação dos conceitos de Carl Schmitt e a imbricação entre questões analíticas e metodológicas realizada por Mouffe. Segundo Beckstein (2011)BECKSTEIN, M. The dissociative and polemical political: Chantal Mouffe and the intellectual heritage of Carl Schmitt. Journal of Political Ideologies, Abingdon, v. 16, n. 1, p. 33-51, 2011. , esse movimento compromete, em certa medida, o modelo agonístico de Mouffe, pois relaciona questões polêmicas do histórico intelectual de Schmitt ligado ao nazismo com uma proposta de democracia radical. Esse problema também foi ventilado por Miguel (2014)MIGUEL, L. Consenso e conflito na teoria democrática: para além do “agonismo”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 92, p. 13-43, 2014. , mesmo de forma rápida em sem grande aprofundamento. De forma contrária, entendemos que a apropriação dos conceitos de Carl Schmitt por Mouffe não prejudica seu modelo agonístico de democracia radical, pois o movimento proposto por Mouffe, em se tratando de Schmitt, se dá no campo conceitual. Mouffe se vale do aparato crítico de Schmitt para consolidar suas críticas aos liberais-agregativos e avançar por outro caminho no desenvolvimento de seu modelo agonístico de democracia, o que, daí, vislumbra uma realidade política diferente da proposta por Schmitt. Veremos que Mouffe enfrenta problemas bem mais estruturais.

A questão nevrálgica é que Mouffe aceita acriticamente a definição do político de Schmitt (2009)SCHMITT, C. O conceito do político: teoria do Partisan. 1ª edição [1932]. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. mesmo após sua releitura a partir do modelo agonístico proposto pela autora. Para Schmitt (2009)SCHMITT, C. O conceito do político: teoria do Partisan. 1ª edição [1932]. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. , o político é sempre lido a partir de um antagonismo que estrutura uma relação entre amigo/inimigo em sua máxima manifestação de contrariedade ou, como prefere o autor, de diferenciação, que excede as fronteiras formais da política. Da forma como olhamos este problema e como vamos desenvolver neste artigo, a definição de agonismo de Mouffe deveria modificar esse tratamento: o outro antagônico é um sentido simbólico que o agonismo delimita de forma ôntica em sua existência física e em sua materialidade simbólica. O agonismo impede o que podemos chamar de forma simplificada de violência física, ou seja, a morte do meu inimigo de carne o osso. Mas, em complemento, não impede que a relação entre inimigos instituída pelo antagonismo se manifeste no campo simbólico, tendo como base e horizonte a democracia em si e suas instituições.

O segundo problema da concepção mouffetiana a ser destacado se refere à crítica feita por Mendonça (2010a, 2010b, 2012a, 2012b) de que, na verdade, Mouffe apenas enuncia alguns princípios, não chegando a ser um modelo de democracia. De fato, entendemos que Mendonça tem razão. No entanto, mesmo que isso seja um problema para o modelo agonístico, não é um problema no campo teórico e conceitual. Mouffe, em certa medida, antes mesmo de avançar em sua proposta, enfrenta problemas ontológicos.

O terceiro problema é indicado por Roskamm (2014)ROSKAMM, N. On the other side of “agonism”: “the enemy”, the “outside” and the role of antagonismo. Planning Theory, [s. l.], v. 14, n. 4, p. 384-403, 2014. , em que o autor atenta para o fato de Mouffe levar a teoria política para o campo da “política real” (p. 397). Dito de outra forma, conforme o autor, a substituição do antagonismo pelo agonismo (da teoria política para a realidade política, por assim dizer), não é possível nem mesmo desejável. Não é possível em virtude de o agonismo não ser um substituto do antagonismo na atividade da política, pois a possibilidade da política se dá pelo antagonismo. Não é desejável, pois esse movimento pode ser entendido como uma forma de despolitização da política. Nesse sentido, Roskamm (2014)ROSKAMM, N. On the other side of “agonism”: “the enemy”, the “outside” and the role of antagonismo. Planning Theory, [s. l.], v. 14, n. 4, p. 384-403, 2014. entende que Mouffe não avança suficientemente na ideia de domesticar o antagonismo, como se a política assumisse uma forma de pós-antagonismo, porque esse movimento seria contraditório com sua base teórica e epistemológica. Por isso, entende o autor, o conceito de “pluralismo agonístico” de Mouffe se torna problemático, assumindo apenas um novo olhar sobre as relações antagônicas, e não uma substituição. Em grande medida, concordamos com as afirmações proferidas por Roskamm. No entanto, quando o autor critica Mouffe por tentar transferir o antagonismo da dimensão ontológica para a ôntica, indicando sua impossibilidade (Roskamm, 2014), discordamos. Veremos a seguir no texto, e como resposta a essa afirmação de Roskamm, que antagonismo emerge na atividade política em diversos níveis de sua institucionalização (Freitas, 2020b).

O quarto problema é referente à “suspenção” dos conflitos por meio de canais democráticos que, simultaneamente, assumem bases consensuais e produzem novos consensos. Ao mesmo tempo em que Mouffe denuncia uma virada consensualista da democracia como problemática, enfatizando a irredutibilidade do conflito, postula a necessidade de mecanismos de produção de consensos mínimos para o “bom” funcionamento de uma democracia ( Miguel 2014MIGUEL, L. Consenso e conflito na teoria democrática: para além do “agonismo”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 92, p. 13-43, 2014. ). Mouffe, ao fazer da forma como faz a separação entre ontológico e ôntico e entre inimigos e adversários, “não ultrapassa uma acomodação com a virada consensualista da teoria política” ( Miguel 2014MIGUEL, L. Consenso e conflito na teoria democrática: para além do “agonismo”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 92, p. 13-43, 2014. , p. 14). Entendemos que aqui reside uma das principais fragilidades do modelo agonístico de Mouffe.

A virada consensualista proposta por Mouffe requer, em contraposição à crítica de Roskamm (2014)ROSKAMM, N. On the other side of “agonism”: “the enemy”, the “outside” and the role of antagonismo. Planning Theory, [s. l.], v. 14, n. 4, p. 384-403, 2014. de que o conceito de agonismo de Mouffe apenas oferece um novo olhar sobre as relações antagônicas, que o agonismo não só organize as emergências de antagonismos no campo democrático como explique a relação com o inimigo antagônico a partir da concepção da materialidade do discurso, e não de existência física dos objetos no mundo. Assim, a crítica de Roskamm enunciada neste parágrafo não se sustenta, pois o principal problema que Mouffe enfrenta passa pela forma como a autora pensa o político (o antagonismo) após a política (o agonismo), ou seja, o conflito político lido por uma concepção democrática e de valores democráticos.

O quinto problema, identificado por Freitas (2020b), é o de que a crítica de Mouffe à tradição deliberativa a partir de uma dimensão ontológica não se sustenta numa dimensão ôntica, pois a autora defende a necessidade de construção de consensos mínimos que operaram nas relações ônticas, ou seja, na prática da política democrática e por meio de suas instituições. Esse trânsito entre o ontológico e o ôntico acaba sendo infrutífero na teoria mouffetiana. Em nosso entendimento, o principal problema é que Mouffe desconstrói toda a base de sustentação ontológica dos deliberacionistas (e também do modelo liberal-agregativo) para, no fim, concordar e legitimar sua dimensão ôntica consensual e pós-conflito. Afirmamos isso porque a autora acredita serem necessários consensos mínimos – mesmo que não fundamentais e essencializados – para construir uma relação democrática. Mas, se estamos falando a partir da teoria do discurso e de formação e disputa de sentidos que constituíram identidades num constante processo de identificação, não é nesse nível que o agonismo opera. Portanto o agonismo não substitui o antagonismo, como queira a autora, em se tratando de regimes democráticos. Esse “simples” movimento teórico-ontológico prejudica todo o desenvolvimento do modelo agonístico de Mouffe.

Entendemos claramente que o agonismo não é um tipo de antagonismo ( Mendonça, 2003MENDONÇA, D. A noção de antagonismo na ciência política contemporânea: uma analise a partir da perspectiva da teoria do discurso. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 11, n. 20, p. 135-145, 2003. ), porém não enxergamos que o agonismo substitui o antagonismo em se tratando de um modelo “democrático estável”. A política antagônica, como Mouffe (2005)MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. tenta apresentar como devendo ser controlado/domesticada,14 14 Além das citações da própria Mouffe em relação à necessidade de domesticar o conflito (como interpretamos aqui), encontramos essas afirmações em Miguel (2014) e Mendonça (2010b). indica uma contradição na própria teoria política do discurso. O antagonismo é condição de qualquer processo de identificação política ( Laclau, 2014LACLAU, E. Los fundamentos retóricos de la sociedad. Buenos Aires: Fundo de Cultura Económica, 2014. ). Se assim o é, a única possibilidade da política democrática radical e do pluralismo democrático passa necessariamente por relações de identificações constituídas por antagonismos. Dito de outra forma, a formação de identidades políticas, como, por exemplo, o(s) feminismo(s) contra as diversas manifestações do(s) machismo(s), ou até mesmo os movimentos mais institucionalizados e com menor apelo popular (reconhecimento da população de modo geral), como a política de controle de pragas (a utilização dos defensivos agrícolas, veneno versus os ecologistas), indicam disputas por sentidos e formações de identidades que emergem por meio de relações antagônicas que são reconhecidas e tratadas por instituições da democracia moderna. Além do mais, quando analisado o processo de institucionalização da democracia e suas instituições, identificamos conflitos que emergem internamente em torno de disputa de sentidos (Freitas, 2020b).

No processo proposto por Mouffe, há uma descaraterização do antagonismo. O agonismo surge como forma mesma de transformar o antagonismo e indica a possibilidade de um fundamento precário e contingente assumir valor positivo comum a todas as identidades. Assim, não haverá mais antagonismos quanto ao modelo democrático. As relações nesse modelo se tornam simples positividades articuladas. Há, aqui, uma justaposição entre o ontológico e o ôntico, exatamente o que Laclau (2014)LACLAU, E. Los fundamentos retóricos de la sociedad. Buenos Aires: Fundo de Cultura Económica, 2014. critica. Novos processos identitários só serão possíveis quando o próprio modelo democrático (os consensos de base que Mouffe defende – a produção dos valores democráticos comuns) for deslocado. Para um pluralismo, entendemos que não existem esses valores positivos nem mesmo é possível sua construção. Eles estarão sempre em xeque, seus sentidos estarão sempre em jogo.

Por exemplo, Lefort ([1981] 2011), ao trabalhar o sentido de democracia, busca se distanciar das concepções atribuídas aos liberais-pluralistas, mesmo caminho percorrido por Mouffe. O autor tem por objetivo transferir a definição de democracia como uma instituição da política para o entendimento de uma forma de sociedade. Conforme Castoriadis (1995)CASTORIADIS, C. La democracia como procedimiento y como régimem. Revista Vuelta, Ciudad de México, n. 19, p. 23-32, 1995. , fazendo eco a Lefort, a democracia não pode ser simplesmente definida por seus procedimentos. Referindo-se ao modelo ateniense, o autor entende que os procedimentos democráticos constituem elementos importantes, mas indicam apenas uma parte de um regime verdadeiramente democrático. Desse modo, antes de ser um método de formação de governo, a democracia deve ser lida como uma “forma de vida” em sociedade.15 15 Nosso objetivo não é o de equivaler a perspectiva de Laclau com a de Lefort. Para uma distinção entre os autores, ver Marchart (2009) . Nosso objetivo é unicamente resgatar a compreensão do conflito político existente nas teorias dos autores e colocar em evidência apenas essa faceta interpretativa em detrimento de tantas outras possíveis. Para outras informações sobre democracia segundo Lefort, ver Ortiz Leroux (2006) e Gutiérrez (2011) . Assim, e em virtude do conflito político ser inerente às relações políticas, a democracia “é uma forma de sociedade que não tem nenhuma garantia de êxito. O fantasma do totalitarismo sempre ronda as portas da democracia” ( Ortiz Leroux, 2006ORTIZ LEROUX, S. La interrogación de lo político: Claude Lefort y el dispositivo simbólico de la democracia. Revista Andamios, Ciudad de México, v. 2, n. 4, p. 79-117, 2006. , p. 93, tradução nossa).16 16 Esses mesmos elementos podem ser encontrados em Rancière ([2005] 2014a, 2014b). Para uma comparação entre Rancière e Laclau a partir de suas definições de democracia, ver Mendonça e Vieira Junior (2014) . Nessa passagem, identificamos a impossibilidade de uma positividade em torno do próprio sentido de democracia; como buscamos expor neste artigo, o antagonismo aflora nesses espaços democráticos. Segundo Lefort (1991)LEFORT, C. Ensayos sobre lo político. Guadalajara: Editora Universidad de Guadalajara1991. , o interior de uma sociedade democrática (e seus antagonismos) se organiza não pela via do consenso, mas pela do conflito político. A unidade, em todas as suas dimensões, só pode ser compreendida por meio de sua divisão.17 17 Rodel, Frankenberg e Dubiel (1997) realizam uma leitura mais aprofundada sobre este aspecto. No entanto, entendemos que os autores acabam, em certa medida, limitando a interpretação do sentido de conflito realizado por Lefort quando definem suas características como algo legitimamente aceito por todos. Da forma como está, existe uma aproximação com o conceito de agonismo de Mouffe. Conflito, como entendemos, não pode ser reduzido à legitimidade institucional ou mesmo social, pois é ele que “funda” e possibilita tais relações.

Retomando nosso raciocínio, entendemos que o conflito ultrapassa o âmbito das relações pensadas em nível ontológico e ocupa as relações na esfera ôntica quando estas constituem disputas por sentidos. E isso não é a justaposição. Não há, assim, uma fundamentação do ôntico pelo ontológico, mas sua contaminação e recorrência na política. O ôntico sempre pontuará a falta nesses processos de identificações a partir das relações com seu negativo (a própria disputa política, mesmo que regrada). As identidades ônticas nunca complementaram seu ser como substância objetiva. A positividade dos dois polos antagônicos só é possível pelo exterior negativo, sempre necessário para a própria identidade. Seu reconhecimento é sempre um reconhecimento “falho”, nunca positivo por completo num processo articulatório, seja pelo antagonismo, seja pela própria articulação interna.18 18 Para uma referência sobre esse ponto, ver Mendonça (2003) . Por isso contrariamos a ideia defendida por Roskamm (2014)ROSKAMM, N. On the other side of “agonism”: “the enemy”, the “outside” and the role of antagonismo. Planning Theory, [s. l.], v. 14, n. 4, p. 384-403, 2014. apresentada anteriormente. Aqui reside a grande contribuição do debate pós-estruturalista para a teoria política e para a democracia moderna.

Laclau (2000)LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. afirma que toda positividade interna de um discurso só é possível por um exterior radical que subverte e impossibilita sua expansão e completude, ou seja, o corte antagônico. Seu negativo é a própria possibilidade de articulação interna de um discurso e a construção dessa positividade, uma positividade sempre limitada e falha em sua tentativa de completude. Portanto, segundo o autor, a relação de identificação política passa pela relação antagônica possibilitada pelo deslocamento de toda identidade que se inscreve nesse mundo simbólico e é limitada pelo seu antagônico – sendo a possibilidade de sua positividade como seu limite. A relação com o outro é condição de qualquer identificação política e, portanto, o limite antagônico marca as relações políticas constitutivas do social ( Laclau, 2000LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. ).

É a partir da própria teoria que buscamos compreender as relações de conflito político que, no nosso entendimento, existem em todos os níveis da atividade política que, sendo conflitantes, são instituídas pelo que Laclau (2000)LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. denomina de “o momento do político” (Mendonça, 2012b. p. 206). Assim, o conflito político e as relações de antagonismos podem emergir a partir de espaços já institucionalizados, sem a necessidade de disputa sobre seus limites em si, mas construindo disputas políticas antagônicas nos próprios limites a partir de disputas por sentidos referentes a alguma questão específica (Freitas, 2020b).

Interpretamos, a partir da teoria do discurso, que a política é resultado do conflito e que este não pode ser eliminado. Além disso, pelo caráter deslocado de toda identidade, o antagonismo é o que constitui e reorganiza as disputas existentes no espaço do social, um espaço fragmentado, mas que mantém certa estabilidade. Se estamos lidando com formações de identidades políticas (ou identificações políticas), a estruturalidade do social (suas regras, inclusive as que delimitam disputas políticas) para além de constituir a possibilidade da disputa política não pode ser identificada como o limite dessa disputa, pois assim estaríamos presos apenas à própria estruturalidade da identidade relacionada com seu exterior constitutivo. Dito de outra forma, a “radicalidade do social” identificada na teoria do discurso embasada nos escritos de Laclau permite pensar os espaços de luta política a partir de uma ordem já estabelecida, desde que haja disputas por sentidos envolvendo outras ordens relacionadas. Então, se estamos no fim da emancipação e no início da liberdade, como afirma Laclau (2011), as disputas políticas não necessariamente devem buscar alguma forma de emancipação, elas se dão a partir de uma estrutura – o próprio sentido de radicalidade democrática.

Antagonismo não significa mais uma exclusão radical ( Laclau; Mouffe, 2015LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. 1ª edição [1985]. São Paulo: Intermeios, 2015. ), mas subentende-se que toda relação antagônica se encontra numa mesma estrutura simbólica ( Laclau, 2000LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. ). É por isso que há uma disputa por sentidos simbolicamente construídos e materialmente vividos, e não o contrário, como buscamos demonstrar na seção que tratados sobre o conceito de discurso.19 19 Em uma crítica ao conceito de antagonismo, Norris (2002) afirma que, se a objetividade é baseada na exclusão, os vestígios dessa exclusão sempre estarão, de alguma forma, presentes e, por isso, o antagonismo deixaria de ter força descritiva. Em contraposição, como demonstramos no texto, o antagonismo é o limite de toda objetividade, e não o limite do simbólico.

O próprio modelo democrático, como desenvolvido por Laclau e Mouffe (2015)LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. 1ª edição [1985]. São Paulo: Intermeios, 2015. – por um modelo radical de democracia –, abre caminho para novas lutas. É nesse sentido que as relações antagônicas se mostram constitutivas de todas as identidades/identificações, incluindo relações estabelecidas a partir de elementos democráticos. Se estamos lidando com lutas políticas e reconhecemos o caráter conflitante da própria política, temos de pensar e identificar tais pontos nas disputas constituídas no espaço do social em qualquer que seja seu nível. Por isso concordamos com a crítica de Miguel (2014)MIGUEL, L. Consenso e conflito na teoria democrática: para além do “agonismo”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 92, p. 13-43, 2014. e entendemos a necessidade do conflito e do antagonismo para lutar contra padrões vigentes na sociedade, o que, em grande medida, é imposta pela lógica da política democrática liberal-pluralista.

A política, como descrevemos aqui, é sempre resultado de algum conflito. O conflito, como abordamos nesse artigo, é sempre uma disputa antagônica. Os acordos mínimos de um modelo democrático não constituem sua base de sustentação, mas indicam seu limite. São espaços plurais de disputas que configuram a democracia. Portanto a política também é antagônica. A tentativa de domesticação distorce seu processo de disputa por liberdade e igualdade, legitimando e reproduzindo desigualdades estruturalmente estabelecidas por consensos tidos como legítimos.20 20 Para uma leitura sobre a normatividade da teoria do discurso de Laclau (e Mouffe) e sua relação com a política e suas práticas “institucionais”, ver Mendonça (2014). O problema está na própria forma de concepção democrática e de conflito político. Isso ainda se mostra uma barreira na teoria política especificamente e na ciência política como um todo (sua normatização para além de políticas de consensos).21 21 Para uma revisão sobre conflito político na teoria democrática contemporânea, ver Vitullo (2007) .

CONCLUSÕES: um “outro olhar” sobre o antagonismo, o conflito e a política

No início do artigo, apresentamos o conceito de discurso segundo a teoria de Laclau e Mouffe. Esclarecemos o caráter material que o discurso assume, desenvolvemos a crítica à separação entre práticas discursivas e não discursivas e explicamos a dinâmica da/na formação do(s) discurso(s) dentro da estruturação do campo simbólico. A intenção foi apresentar um ponto central do que se entende por discurso, segundo a teoria mobilizada: de que o social é sempre um social político e fruto da simbolização de sua estruturação. Ou seja, o sentido material que constitui os objetos enquanto discursos não se referiram a sua existência física, mas trata de sua existência enquanto fenômeno no mundo. Por isso as disputas políticas por sentidos se dão sempre em torno desse discurso enquanto fenômeno da e na política, e não em relação a sua materialidade física. Assim, o antagonismo é sempre um conflito político contra sentidos e significações gerados num campo simbólico.

No decorrer do texto, esclarecemos como o conceito de antagonismo opera na lógica do discurso de Laclau e Mouffe. O principal ponto enaltecido foi a diferença que o conceito de antagonismo assume no desenvolvimento da teoria do discurso. Ele deixa de ser o limite do simbólico, ou seja, a falta constitutiva, passando a ser o limite da objetividade, ou seja, o exterior constitutivo. Nesse trânsito, o antagonismo passa a ser entendido como parte do campo simbólico, e não fora dele.

A partir dos dois conceitos enunciados e explicados, o passo seguinte foi apontar as fragilidades do modelo agonístico proposto por Chantal Mouffe. Entre as críticas apontadas, duas se relacionam e assumem relevância para o propósito deste artigo: a insistência na ideia de necessidade de produção de consensos políticos e o processo de transformação do antagonismo em agonismo. Mouffe acaba por reproduzir as mesmas limitações que ela aponta em relação à tradição deliberativa, só que usando o conceito de antagonismo como forma de explicar a necessidade de consensos provisórios; as relações agônicas e seu “modelo agonístico de democracia”. Com isso, dois problemas se evidenciam: o primeiro é o de que o conflito político, em última instância, se mostra negativo para a política, o que leva ao segundo problema, que o objetivo da política passa a ser a estabilidade do sistema instituído deixando pouco espaço para as contestações contra padrões desiguais que se sedimentam na sociedade.

Defendemos, então, o contrário: o antagonismo e o conflito político como irredutíveis. Entendemos que esse caminho é uma das principais contribuições do pós-estruturalismo. Mesmo o reconhecimento do conflito político como parte relevante para a política, e ainda o reconhecimento desse conflito na dimensão ontológica e ôntica, o fato de a autora entender a necessidade de domesticar o antagonismo e o conflito político fruto dele na dimensão ôntica acaba por relegar a segundo pano um elemento central para a teoria do discurso como para a teoria política. Esta, pensada em vista de um modelo democrático, tendo os processos de produção de desigualdades como efeito empírico numa sociedade, necessita do conflito político como elemento operante no que tange novas lutas políticas de identificação na busca por (ou mais) inclusão. E isso o pós-estruturalismo da teoria do discurso comtempla de forma exemplar. Assim, como buscamos mostrar, a “chave” desse processo só pode ser o antagonismo. Portanto o antagonismo, ao mesmo tempo em que impede que uma identidade se fundamente num processo de totalização do social, abre novas possibilidades de processos de identificações. Dito de outa forma, o conflito político antagônico possibilita a manifestação da democracia a partir de novas demandas e novos processos de formação de identidades.

Estando o antagonismo contemplado no campo simbólico, o antagonismo, então, só pode ser um conflito político entre e contra sentidos e significações. Enfatizamos isso, pois este elemento compreensivo é central para a crítica desenvolvida à ideia do agonismo de Mouffe. Gostaríamos de deixar claro que não discordamos da existência do agonismo como constituidor de ordem (de estrutura, de instituições) e de sua importância para lógicas democráticas, mas discordamos de que o agonismo se contraponha ao antagonismo quando tratados do ponto de vista da democracia – seja ela em seu sentido filosófico ou institucional. Regras institucionais, agônicas, não eliminam e não domesticam o antagonismo. Regras eleitorais, por exemplo, estruturam um espaço político em que antagonismos emergem. As eleições de 1994, 1998, 2002 e 2006 evidenciaram a formação do antagonismo entre as identidades de PSDB e PT22 22 Partido da Social Democracia Brasileira e Partido dos Trabalhadores. a partir da disputa em torno do Plano Econômico que, nesse processo específico, modificou as identidades partidárias envolvidas (Freitas, 2018, 2019a, 2019b, 2020a). O mesmo ocorre na relação antagônica entre os ambientalistas e os desenvolvimentistas (Vieira Junior, 2010). Rodeados por normas e regras, exemplificando o agonismo defendido por Mouffe, o antagonismo emergiu e reestruturou essas identidades que colocaram em disputa o papel da silvicultura e do desenvolvimento sustentável no estado do Rio Grande do Sul.

O movimento da teoria do discurso, no sentido de que todos os seus conceitos se interligam e assumem importância em momentos e processos distintos de constituição de uma identidade política, nos permite afirmar, como buscamos apresentar neste artigo, que o agonismo, como momento que institui ordem, não elimina nem mesmo domestica o antagonismo. Além disso, a tentativa dessa acomodação consensual sobre as regras que institui não mantém medida comum com o antagonismo. Antagonismo diz respeito a outro momento no movimento da teoria do discurso (e da teoria democrática de Mouffe). Um momento/movimento que nega outra identidade que se forma num mesmo complexo relacional. Um movimento/momento que nega/disputa o próprio sentido de democracia. Aqui é o ponto central da ideia de democracia. Entendemos que Mouffe está certa ao defender a necessidade de construir mecanismos democráticos que promovam os valores democráticos e que canalizem o poder para relações de reciprocidade e de legitimidade quanto ao reconhecimento de adversários. E isso é, em nosso entendimento, o que diferencia Mouffe dos liberais agregativos.

O agonismo (a democracia radical e plural) institui as regras pelas quais os antagonismos se manifestarão; o agonismo organiza a sistematicidade do sistema político democrático para possibilitar canais em que os antagonismos serão reconhecidos como legítimos ou, dependendo das forças políticas envolvidas, combatidos como ilegítimos e sedimentados como ilegítimos. O agonismo é o alargamento do campo democrático a partir do reconhecimento do antagonismo como inerente à democracia, relacionado com as ideias liberais sobre a institucionalidade da democracia. O agonismo é, portanto, a abertura da democracia institucionalizada para os conflitos políticos e seus possíveis desdobramentos, inclusive podendo afetar a ordem democrática instituída ou mesmo alguma legitimidade antes acordada. O agonismo não modifica a “natureza ontológica” do antagonismo, pelo contrário, ele reconhece e delimita a manifestação ôntica dos antagonismos. Portanto a ameaça à democracia e as formas violentas de manifestações (também antagônicas) ocorrem devido à tentativa de homogeneidade que o processo democrático liberal impôs aos processos identitários. Esse seria o caminho mais promissor para o desenvolvimento do conceito de agonismo no âmbito teórico da teoria do discurso e da teoria da democracia de Mouffe.

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  • 1
    Aletta Norval (2007)NORVAL, A. Aversive democracy: in heritance and originality in the democratic tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. , em Aversive democracy: in heritance and originality in the democratic tradition , busca desenvolver aspectos teóricos e normativos a partir do pós-estruturalismo, dialogando com a proposta de Mouffe. No entanto a ressonância da teoria proposta por Mouffe a coloca como a principal voz pós-estruturalista nesse campo de crítica. Para uma revisão sobre a teoria de Norval, ver Prado (2009)PRADO, N. Democracia aversiva: por un ethos democrático postestructuralista. Pensamento Plural, Pelotas, n. 5, p. 171-180, 2009. . Para uma análise e comparação entre Norval e Mouffe, ver Mendonça (2010b).
  • 2
    Ver Constant ([1874] 1985).
  • 3
    Ver Berlin (2002)BERLIN, I. Dois conceitos de liberdade. In: HARDY, H.; HAUSHEER, R. (org.) Isaiah Berlin: estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 226-248. .
  • 4
    Além da limitação do próprio texto, decidimos por não aprofundar esse debate em torno da constituição do sujeito democrático na teoria do discurso a partir do pós-estruturalismo por entendermos haver nessa definição incompreensões que ainda carecem de um melhor tratamento. Essa empreitada se dará em outro texto futuro.
  • 5
    Mendonça (2019a, 2019b), propondo uma leitura a partir do conceito de populismo de Laclau (2013)LACLAU, E. A razão populista. 1ª edição [2005]. São Paulo: Três Estrelas, 2013. , indica a forma como modelos democráticos excluem o povo e, como isso, pode ser danoso para a democracia.
  • 6
    Além desses pontos, são indispensáveis para a autora as críticas desenvolvidas por Schmitt (2009)SCHMITT, C. O conceito do político: teoria do Partisan. 1ª edição [1932]. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. aos fundamentos do liberalismo. Nesse sentido, Mouffe (2005MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, p. 11-23, 2005. , 2013MOUFFE, C. Agonistics: thinking the world politically. London: Verso, 2013. , 2015MOUFFE, C. Sobre o político. 1ª edição [2005]. São Paulo: Martins Fontes, 2015. (Versão digital). ) se vale da contradição entre liberalismo e democracia apresentada por Schmitt para reinterpretar tal questão sem, necessariamente, desconstruir todos seus pontos teóricos. As críticas aos liberais continuam, no entanto a contradição entre liberalismo e democracia é repensada. Para Mouffe, a democracia moderna mantém relação direta com a ideia liberal.
  • 7
    Para mais informações e sobre a crítica à lógica clássica feita por Heidegger, ver Stein (2004)STEIN, E. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EDPUCRS, 2004. .
  • 8
    Martínez (2014)MARTÍNEZ, H. De enemigos a adversarios: latransformacióndel concepto de “lo político” de Carl Schimitt por Chantal Mouffe. Revista Andamios, v. 11, n. 24, p. 83-102, 2014. elucida a transformação “do político” de Schmitt realizado por Mouffe e a passagem do “inimigo” para o “adversário” pensando num modelo democrático. O autor busca enaltecer o conflito político como elemento central para a democracia, enfatizando, de outro modo, o mesmo processo já indicado por Mouffe.
  • 9
    Esses mesmos argumentos podem ser encontrados em Laclau (2014)LACLAU, E. Los fundamentos retóricos de la sociedad. Buenos Aires: Fundo de Cultura Económica, 2014. .
  • 10
    Para uma revisão sobre esses conceitos, ver Mendonça (2009)MENDONÇA, D. Como olhar “o político” a partir da teoria do discurso. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, DF, n. 1, p. 153-169, 2009. .
  • 11
    Este debate entre Norval e Laclau é um dos capítulos do livro Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tempo ( Laclau, 2000LACLAU, E. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. 1ª edição [1990]. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. ).
  • 12
    Para mais informações sobre identificações políticas no âmbito da teoria do discurso aqui utilizada, ver Stavrakakis (2007)STAVRAKAKIS, Y. Lacan y lo político. Buenos Aires: Prometeu Libros, 2007. .
  • 13
    Para outras questões em torno do conceito de antagonismo, permeando parte do debate ontológico e filosófico, ver Marchart (2018)MARCHART, O. Thinking antagonism: political ontology after Laclau. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2018. .
  • 14
    Além das citações da própria Mouffe em relação à necessidade de domesticar o conflito (como interpretamos aqui), encontramos essas afirmações em Miguel (2014)MIGUEL, L. Consenso e conflito na teoria democrática: para além do “agonismo”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 92, p. 13-43, 2014. e Mendonça (2010b).
  • 15
    Nosso objetivo não é o de equivaler a perspectiva de Laclau com a de Lefort. Para uma distinção entre os autores, ver Marchart (2009)MARCHART, O. El pensamiento político posfundacional: la diferencia política em Nancy, Lefort, Badiou e Laclau. 1ª edição [2007]. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009. . Nosso objetivo é unicamente resgatar a compreensão do conflito político existente nas teorias dos autores e colocar em evidência apenas essa faceta interpretativa em detrimento de tantas outras possíveis. Para outras informações sobre democracia segundo Lefort, ver Ortiz Leroux (2006)ORTIZ LEROUX, S. La interrogación de lo político: Claude Lefort y el dispositivo simbólico de la democracia. Revista Andamios, Ciudad de México, v. 2, n. 4, p. 79-117, 2006. e Gutiérrez (2011)GUTIÉRREZ, F. Poder y democracia en Claude Lefort. Revista de Ciência Política, Santiago, v. 31, n. 2, p. 247-266, 2011. .
  • 16
    Esses mesmos elementos podem ser encontrados em Rancière ([2005] 2014a, 2014b). Para uma comparação entre Rancière e Laclau a partir de suas definições de democracia, ver Mendonça e Vieira Junior (2014)MENDONÇA, D.; VIEIRA JUNIOR, R. Rancière e Laclau: democracia além do consenso e da ordem. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 13, p. 107-136, 2014. .
  • 17
    Rodel, Frankenberg e Dubiel (1997) realizam uma leitura mais aprofundada sobre este aspecto. No entanto, entendemos que os autores acabam, em certa medida, limitando a interpretação do sentido de conflito realizado por Lefort quando definem suas características como algo legitimamente aceito por todos. Da forma como está, existe uma aproximação com o conceito de agonismo de Mouffe. Conflito, como entendemos, não pode ser reduzido à legitimidade institucional ou mesmo social, pois é ele que “funda” e possibilita tais relações.
  • 18
    Para uma referência sobre esse ponto, ver Mendonça (2003)MENDONÇA, D. A noção de antagonismo na ciência política contemporânea: uma analise a partir da perspectiva da teoria do discurso. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 11, n. 20, p. 135-145, 2003. .
  • 19
    Em uma crítica ao conceito de antagonismo, Norris (2002)NORRIS, A. Agaist antagonism: on Ernesto Laclau’s political thought. Constellations, Hoboken, v. 9, n. 4, p. 554-573, 2002. afirma que, se a objetividade é baseada na exclusão, os vestígios dessa exclusão sempre estarão, de alguma forma, presentes e, por isso, o antagonismo deixaria de ter força descritiva. Em contraposição, como demonstramos no texto, o antagonismo é o limite de toda objetividade, e não o limite do simbólico.
  • 20
    Para uma leitura sobre a normatividade da teoria do discurso de Laclau (e Mouffe) e sua relação com a política e suas práticas “institucionais”, ver Mendonça (2014).
  • 21
    Para uma revisão sobre conflito político na teoria democrática contemporânea, ver Vitullo (2007)VITULLO, G. 2007. O lugar do conflito na teoria democrática contemporânea. Tomo, [s. l.], n. 10, p. 59-83, 2007. .
  • 22
    Partido da Social Democracia Brasileira e Partido dos Trabalhadores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2019
  • Aceito
    27 Jul 2021
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