Open-access TEORIZAÇÃO CRÍTICA, ESCREVIVÊNCIA E EPISTEMOLOGIA RESISTENTE1

CRITICAL THEORIZATION, ESCREVIVÊNCIA AND RESISTANT EPISTEMOLOGY

TEORIZACIÓN CRÍTICA, ESCREVIVÊNCIA Y EPISTEMOLOGÍA RESISTENTE

Resumos

O artigo tem como objetivo contribuir nos debates acerca das teorias sociais contemporâneas, especialmente das teorias críticas, na ênfase aos descentramentos teóricos e à inclusão das vozes subalternas. Elege a crítica pós-colonial e a interseccionalidade a fim de, na esteira de Collins (2022), propor o “engajamento dialógico” capaz de, sem deixar de problematizar os impasses das distintas linhagens, conceber um “projeto de conhecimento resistente”. Nesse movimento, destaca a experiência e a “autoridade testemunhal” como produtoras de epistemes legítimas. Traz, para sustentar o argumento, as escrevivências (Evaristo, 2005) das autoras negras que, longe de abdicar da autorreflexividade, produzem contradiscursos importantes na configuração do mundo por outros sujeitos epistêmicos, capazes de desvelar e desestabilizar a estrutura da diferença/estrutura da subalternidade que fundou a modernidade hegemônica. Tais discursos combinam recursos heurísticos vários que combatem os epistemicídios, provocam novos processos de subjetivação, expandem as comunidades interpretativas no seio da academia e apontam valiosas possibilidades ao pensamento crítico.

Crítica pós-colonial; Subalternidade; Interseccionalidade; Escrevivência; Autoridade testemunhal


Este artículo busca insertarse en los debates sobre las teorías sociales contemporáneas, en particular las teorías críticas, con énfasis en los descentramientos teóricos y la inclusión de las voces subalternas. Adopta la crítica poscolonial y la interseccionalidad para proponer, siguiendo a Collins (2022), un compromiso dialógico capaz de formular un proyecto de conocimiento resistente, sin dejar de problematizar los desafíos de las distintas tradiciones teóricas. En este proceso, destaca la experiencia y la autoridad testimonial como productoras legítimas de epistemes. Para sustentar este argumento, el artículo recurre a las escrevivências (Evaristo, 2005) de autoras negras que, lejos de renunciar a la autorreflexividad, generan contra-discursos que reconfiguran el mundo a través de otros sujetos epistémicos, capaces de revelar y desestabilizar la estructura de la diferencia/subalternidad que sustenta la modernidad hegemónica. Estos discursos combinan diversos recursos heurísticos que combaten los epistemicidios, provocan nuevos procesos de subjetivación, amplían las comunidades interpretativas en el ámbito académico y señalan nuevas posibilidades para el pensamiento crítico.

Crítica poscolonial; Subalternidad; Interseccionalidad; Escrevivência; Autoridad testimonial


This article aims to engage in debates on contemporary social theories, particularly critical theories, emphasizing theoretical decentralization and the inclusion of subaltern voices. It adopts postcolonial critique and intersectionality to propose, following Collins (2022), a dialogical engagement capable of formulating a resistant knowledge project while critically addressing the challenges of different theoretical traditions. In this process, it highlights experience and testimonial authority as legitimate epistemic producers. To support this argument, the article draws on escrevivências (Evaristo, 2005) by Black women authors who, far from abandoning self-reflexivity, generate counter-discourses that reshape the world through other epistemic subjects, unveiling and destabilizing the difference/subalternity structure that underpins hegemonic modernity. These discourses combine various heuristic resources that resist epistemicide, provoke new subjectivation processes, expand interpretive communities within academia, and offer new possibilities for critical thought.

Postcolonial critique; Subalternity; Intersectionality; Writerliness/escrevivência; Testimonial authority


1INTRODUÇÃO

Se uma acadêmica de origem latina, que considera importante a análise de fronteira feita por Gloria Anzaldúa, presume que colegas da academia desvalorizam seu trabalho acadêmico, por que ela deveria continuar a falar? Apresentar argumentos diversas vezes para colegas que não conseguem ou se recusam a entendê-los são desgastes exaustivos para determinado número de intelectuais (Collins, 2022, p. 192).

A proposta desse artigo é discutir possíveis descentramentos teóricos nas ciências sociais, encampando o que Patrícia Hill Collins (2022) chama de engajamento dialógico a fim de expandir o campo da teorização crítica. Tomo essa estudiosa como especial interlocutora no debate da interseccionalidade, que, ao mesmo tempo em que desaloja os essencialismos, expõe a modernidade como estrutura de subalternidade. Elejo, por outro lado, a crítica pós-colonial,2 cujo prefixo pós – importa esclarecer de antemão – não anula os efeitos secundários do colonialismo, mas o reenquadra na história global (nem única nem universal).

Os pós-coloniais substituem a dicotomia O Ocidente e o resto (Hall, 2009) ao revelar as imbricadas relações de poder que confundem centro e margens e permitem que o colonizado, revertendo sua condenação à inexistência, se infiltre no discurso dominante, de maneira a “perturbar as relações estabelecidas de dominação” (Hall, 2009, p 114). Dito isso, a crítica realizada põe os holofotes nos “movimentos transacionais, transnacionais e transculturais inscritos desde sempre na história da colonização, mas cuidadosamente obliterados” e visibilizam as formas de “[...] resistência inscritas em outras narrativas e formas de vida” (Hall, 2009, p. 114).

A autora de Bem mais que ideias. A interseccionalidade como teoria social crítica (Collins, 2022) vê como alvissareiras as táticas de coalizão entre a interseccionalidade e o pós-colonial a fim de se construir um “projeto de conhecimento de resistência” no enfrentamento dos dilemas da desigualdade e da injustiça social. Mas, assim como submete a interseccionalidade a uma análise crítica interna, não poupa os pós-coloniais de críticas, sobretudo, quanto à ação política.

O eixo de nossa reflexão é identificar pontos fulcrais das epistemes descolonizadoras. Esperamos poder desenvolver o argumento do papel central da experiência na produção crítica, sobretudo, desde o ingresso das vozes historicamente silenciadas a reivindicar a “autoridade testemunhal”, conceito caro a Patrícia Hill Collins (2022) e central em nossa análise, como se poderá constatar.

Finalmente, ao convergir, nas diferenças, o pós-colonialismo e a interseccionalidade, o artigo assume um desafio específico: articular os “projetos de conhecimento interconectados e especializados em resistência” (Collins, 2022, p. 172), que a autora chama de epistemologia resistente ou projeto de conhecimento de descolonização. Trata-se de um envolvimento intelectual e político que revela a violência das relações coloniais que perseveram, ainda hoje, no campo da ciência, mas a ultrapassa, uma vez conectado às necessidades expressas de grupos específicos. Com isso, trata-se de evidenciar os laços entre saber e poder, entre análise crítica e ações políticas com o propósito de desmantelamento da colonialidade e enfrentamento do sofrimento humano. Postula-se, ao fim, que falamos, durante todo o tempo, de concepções de “vida ética”, algo inerente à teorização crítica, mas que se expande mediante a atenção aos efeitos hostis do racismo, do heteropatriarcado e do colonialismo.

Tentando responder a inquietação acerca de como as vozes subalternas podem participar da crítica, analisamos o exercício da escrevivência, expressão cunhada, no campo da literatura, por Conceição Evaristo (2005). Deslocamos e expandimos seu significado, desvelando essa prática como epistemologia feminista negra, capaz de promover novas comunidades interpretativas cuja presença na academia é, conforme argumento a ser desenvolvido, combustível do conhecimento de resistência, conquistado pelo engajamento dialógico (Collins, 2022) que promove a articulação das perspectivas subalternas para fazer frente às injustiças sociais.

O artigo divide-se em duas partes. Na primeira, trago a discussão mais teórica propriamente que me permite defender que abordagens críticas podem, no respeito às singularidades, têm muito a ganhar ao se tornarem aliadas. Nesse gesto, não se subestima o quão uma corrente pode apontar as falhas da outra ou seus dilemas. Destacamos o olhar nada complacente de Collins (2022) para com as linhagens autoproclamadas anti-eurocêntricas que, contudo, passam a ocupar o mainstream da academia, perdendo a conexão com a práxis. Entretanto, enumeramos o quão é benfazeja a aposta na retroalimentação entre reflexões que expandem os loci enunciativos, propõem ontologias outras e inspiram a emergência das epistemes subalternas. Essa é a definição de engajamento dialógico.

Na segunda parte, trata-se precisar como uma análise que se pretende anti-hegemônica pode concretamente se constituir em um giro epistêmico. Retornam, então, os conceitos de “autoridade testemunhal” e de conhecimento de resistência de Collins (2022), então já discutidos na parte um, que sustentam a consideração das escrevivências das autoras negras como justiça epistêmica, isto é, equalização e democratização dos sujeitos cognoscentes, até então objetos de estudo, que se tornam partícipes legítimos de um campo de saber.

POR UM ENGAJAMENTO DIALÓGICO

O empenho de Collins (2022, p. 13), ao reivindicar a teoria da interseccionalidade “como uma forma reconhecida de investigação e práxis críticas”, merece atenção. Citando diretamente Max Horkheimer (1975), a estudiosa expõe a inevitabilidade da impregnação teórica dos dados e da presunção normativa que isso comporta. Elenca, por sua vez, como pressupostos da teoria crítica: i. o diagnóstico das mudanças sociais, entraves e potencialidades; ii. o engajamento com uma estrutura de justiça social ética; iii. a percepção da interrelação entre saber/poder e do papel emancipatório da crítica; e iv. a responsabilidade reflexiva sobre as práticas teóricas. Para ela,

Algumas teorias sociais têm o poder de oprimir e o fazem de maneira bastante eficaz sem que a maior parte das pessoas percebam o poder da teoria na manutenção de uma ordem social injusta. Outras teorias sociais suscitam considerável ação social, provendo explicações críticas do mundo social que foram catalisadoras de grandes e pequenas rebeliões. Teorias sociais justificam ou contestam as ordens sociais vigentes. Dentro desse universo da teoria social, a teoria social crítica tanto explica quanto critica as desigualdades sociais vigentes com o olhar voltado para a criação de possibilidades de mudança. Em outras palavras, teorias sociais críticas visam reformar o que está posto com a esperança de transformá-lo em algo diferente (Collins, 2022, p. 17).

Collins manifesta admiração pelos pensamentos metafórico, heurístico e paradigmático que se tornaram, nas mãos dos frankfurtianos, ferramentas de elaboração da teoria social em perspectiva interdisciplinar. Atenta ao salutar movimento no qual cada geração da Escola de Frankfurt segue as trilhas abertas anteriormente, julgando possível avançar no tratamento dos obstáculos ontológicos e epistemológicos ainda não resolvidos.

Faz sentido, portanto, que ela tenha pensado a interseccionalidade como um desdobramento necessário no curso da crítica. Collins (2022) propõe a interseccionalidade fundamentada em alguns pressupostos: 1. Relacionalidade (heterogeneidade e complexidade dos sistemas sociais); 2. Poder; 3. Desigualdade social; e 4. Contexto social. Interessa-lhe, conforme sabemos, conectar dimensões da desigualdade até pouco tempo vistas como estanques. Sobretudo, a autora compreende a crítica como um projeto em construção em direção a um horizonte aberto.

O engajamento dialógico é a expressão de Collins para se referir ao propósito da construção de alianças entre teorias comprometidas com a transformação social. Nada há de inocente, contudo, em tal empenho, estando ciente de que: “Trabalhar dialogicamente, no entanto, sempre ocorre em meio a diferenças de poder. As relações de poder moldam todas as relações sociais, incluindo o ímpeto de trabalhar de maneira dialógica” (Collins, 2022, p. 209). Para a estudiosa:

A teoria social marxista, a Teoria Crítica de Frankfurt, o existencialismo, a teoria da libertação e os estudos culturais britânicos, todos têm um ímpeto crítico em seu núcleo. Outros projetos podem vestir a camisa da teoria social crítica, como no caso do pós-modernismo e do pós-estruturalismo, mas podem estar mais interessados em criticar a sociedade que em reformá-la ou transformá-la. Apesar dessa heterogeneidade, projetos de conhecimento como esses emprestam ideias para a investigação crítica (Collins, 2022, p. 207).

Defender o diálogo não torna Collins (2022) menos ácida na revisitação dos Estudos Pós-Coloniais, mas, como também a mim parece mais frutífero, as coalizões são bem-vindas. Conforme sabemos, os pós-coloniais compõem uma lista extensa que inclui os expoentes dos Estudos Subalternos Indianos, a exemplo de Arjun Appadurai, Homi Bhabha e da crítica feminista pós-colonial Gayatri Spivak, ao lado dos Estudos Culturais Britânicos de Stuart Hall e Paul Gilroy, atentos ao fenômeno da diáspora negra e dos dilemas do multiculturalismo. Remontando às raízes do movimento, temos Frantz Fanon, Amílcar Cabral e Edward Said, além de muitos outros nomes de espaços e temporalidades distintos, porém, todos tendo o “trauma colonial” como a base de sua crítica (Miglievich-Ribeiro, 2020).

Nessa chave de leitura, defendemos o projeto pós-colonial como uma “gnosiologia poderosa emergente” ou nova modalidade epistemológica que reordena a geopolítica do conhecimento e se constitui como uma “ética da autoconstrução” (Bhabha, 1998, p. 331), forma de autoconsciência/autodeterminação da agência subalterna que passa a reivindicar a “diversalidade como projeto universal” (Mignolo, 2003, p. 420). É curioso pensar a interseccionalidade, também, como um gesto ético-político-epistemológico, através do qual a centralidade das questões do colonialismo, racismo, heteropatriarcado e classismo é inegociável.

Mas, não parece justo Collins (2022) atribuir ao pós-colonialismo o postulado acerca do fim do colonialismo, o que destoa do discurso pós-colonial, muito mais preocupado em produzir uma ousada mudança paradigmática a fim de desvelar a presunção contida no telos moderno e a cegueira que os binômios da modernidade impõem sobre as diferenças. Conforme Hall (2009, p. 109), não é da superação do colonialismo que o pós-colonial fala, e sim da urgência de se reler a colonização “como parte de um processo global essencial, transnacional e transcultural – [que] produz uma reescrita descentrada, diaspórica ou ‘global’ das grandes narrativas imperiais do passado centradas na nação”.

Não significa, conforme tentamos demonstrar anteriormente, que o que chamamos de “efeitos secundários” do domínio colonial foram suspensos. Certamente não significa que passamos de um regime de poder-saber para um fuso horário sem conflitos e sem poder. Contudo, reafirma-se aqui o fato de que configurações “emergentes”, porém relacionadas de poder-saber, começam a exercer seus efeitos específicos. (Id. Ibid.)

Pode ser, então, que o real incômodo de Collins (2022) não se relacione às epistemes pós-coloniais, mas à sua institucionalização na academia estadunidense e potencial de despolitização.

Ironicamente, já que as instituições de elite abrigaram intelectuais pós-coloniais proeminentes, de forma deliberada ou não, a posição social dos estudos pós-coloniais pode funcionar como um discurso colonial em relação às aspirações das pessoas que pretendem ir “além das epistemologias do Norte” (Collins, 2022, p. 160).

A autora observa ainda a “linguagem altamente especializada de termos e convenções” (Collins, 2022, p. 164), um obstáculo à comunicação para além da academia, que atribui à crítica literária fartamente desenvolvida no âmbito dos estudos pós-coloniais. É curioso que elogie Said menos por conta de Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente (2007), cânone da teoria pós-colonial, e mais por seus escritos contundentes acerca do intelectual advindo das margens. Nas palavras da autora,

Said também é bastante direto a respeito das dificuldades de fazer um trabalho intelectual (...), foi um intelectual privilegiado no Ocidente, mas também um intelectual no exílio, e isso fez diferença no que ele viu, no que escreveu e em quem constituiu seu público leitor. Na década de 1990, quando os estudos pós-coloniais estavam se estabelecendo, Said conhecia bem a resistência acadêmica (Collins, 2022, p. 162-163).

A crítica quando dissociada da práxis é o paradoxo apontado por Collins (2022). Para ela, as lutas anticolonialistas, antirracistas e anticapitalistas urgem e exigem um “projeto de conhecimento de descolonização” (p. 165) no interior da academia, que se comunique com as necessidades e possibilidades de vida dos grupos vulnerabilizados. Essa ponderação torna-se especialmente relevante quando introduzirmos a escrevivência das mulheres negras como epistemologia descolonizadora.

Collins (2022), em sua teorização crítica da interseccionalidade, afirma a necessidade de se considerar a identidade como experiência geradora de comunidades de interpretação (assim como também são as sociedades científicas). Se negada, o que sobra é o establishment e o silenciamento daqueles que traduzem os marcadores sociais da diferença.

Interpretar de forma errônea a compreensão robusta de política identitária expressa no feminismo negro reformulando essas ideias por considerá-las simplórias (essencialistas e, portanto, sem complexidade) e autopromocionais (particularistas e desprovidas de apreciação de princípios superiores além do interesse pessoal), não apenas interpreta mal a intenção de teorizar criticamente, como também enfraquece uma importante fonte de ação epistêmica para indivíduos pertencentes a grupos oprimidos (Collins, 2022, p. 196).

Conforme Muniz Sodré (2017, p. 131), o conhecimento resistente remete à insurgência dos novos sujeitos epistêmicos, capazes de traduzir “toda a envergadura das realizações transtemporais de um grupo humano guiado pelo brilho de sua verdade própria e pelo apelo de sua dignidade, isto é, da regra ancestral instituída ao mesmo tempo em que se fundou o grupo”.

Alguns esclarecimentos se fazem necessários antes que se julgue que o programa de descolonização epistêmica postula a substituição dos parâmetros da ciência moderna pela adesão ao tradicionalismo, às verdades congeladas e imunes à prática reflexiva. Quando se reivindica, por exemplo, a ancestralidade no “projeto de conhecimento de descolonização”, assim nomeado por Collins (2022), o que se busca, conforme Sodré (2017) é a tradição viva, isto é, a consciência subalterna.

[...] não se trata aqui exatamente do mesmo implícito na ideia de “autenticidade” por meio da repetição do tradicional, pois o que a tradição viva dá e transmite é a “traição” da igualdade das repetições: só conteúdos, dados, resultados e técnicas de fazer é que se podem repetir e, pela e na repetição, acionar os poderes de diferenciação da ancestralidade. Esta última, para instaurar história, instiga os poderes do “não” das diferenças no “sim” da compulsão de repetir. Não se confina, portanto, à mera repetição “tradicional” de conteúdos (o tradicionalismo), pois é propriamente uma forma de regras e hierarquias destinada a atualizar a origem aqui e agora na mutação acelerada da história (Ibid., p. 129).

Fabrício Pereira (2024) contribui nesse argumento, ao trazer a ideia de comunidade. Importa dissociar o conceito de uma mera remissão ao passado que poderia equivaler ao reacionarismo. Ao contrário, na emergência da comunidade como possibilidade de resistência, o que temos é uma perspectiva futurista. Aliás, “o presente é um elemento de não pouca monta nessas narrativas, pois elas geralmente afirmam a permanência, em algum nível, daquele passado no presente” (Pereira, 2024, p. 27). Nesse sentido, a presentificação do passado almeja sua reinvenção como base para as transformações sociais.

Falamos de uma solidariedade flexível entre os subalternos como experiência decorrente das múltiplas opressões. Conforme Almeida (2011), no jogo da diferença, tudo existe como potência e se realiza em uma agitação molecular que, ao ressoar o passado, produz a novidade, em um eterno devir.

Para Stuart Hall (2009), na esteira de Derrida (2001) e de sua formulação da différance (com a no lugar de e), é falsa, portanto, a polarização tradição x modernidade, que nega uma estética dos cruzamentos e a lógica da negociação de identidades múltiplas. Um exemplo notável é a construção identitária da cultura negra caribenha. De um lado, ativa-se uma ancestralidade comum como forma de resistência. De outro, sabe-se que somos o que nos tornamos, nos processos de colisão e expropriação, nas relações de poder, de maneira que a identidade caribenha ganha contornos maleáveis, é ponto de encontro de discursos que interpelam aqueles que sob essa chancela se constituem como sujeitos em processos sempre contínuos e inacabados.

Temos a tendência de pensar que a identidade nos leva de volta às nossas raízes, à parte de nós que permanece essencialmente a mesma ao longo do tempo. Na verdade, a identidade é sempre um processo nunca concluído de devir - um processo que envolve a variação de identificações em vez de um estado de ser singular, completo, terminado (Hall, 1996, p. 70).

Um mote promissor do engajamento dialógico entre o pós-colonial e a interseccionalidade, respeitadas as diferenças das perspectivas teóricas, é o modo como a noção de experiência é aproveitada em ambas as vertentes. No pós-colonial, a estrutura contingente da agência é similar ao saber da ação, bem como é na vida cotidiana que se articulam práticas e valores anti-hegemônicos.

Na figura da testemunha de uma modernidade pós-colonial temos uma outra sabedoria: ela vem daqueles que presenciaram o pesadelo do racismo e da opressão na luz banal do dia a dia. Eles representam uma ideia de ação e agência mais complexa do que o niilismo do desespero ou a utopia do progresso. Eles falam da realidade da sobrevivência e da negociação que constitui o momento de resistência, sua tristeza e sua salvação, mas que é raramente mencionada nos heroísmos ou nos horrores da história (Bhabha, 1998, p. 402).

Bhabha quer iluminar as práticas de resistência, portanto, os lugares híbridos, alternativos e de negociação cultural que subvertem a metanarrativa moderna. Nesse movimento, os seres objetificados se transformam em sujeitos de sua história. A narrativa moderna da escravidão, por exemplo, é contestada em seu fechamento arbitrário e reaberta para a escrita dos subalternos e seus significantes diversos que estampam a inverossimilhança da história única.

A intervenção da crítica pós-colonial ou negra tem por objetivo transformar as condições de enunciação no nível do signo – no qual se constitui o domínio intersubjetivo – [...] O desafio à modernidade está em redefinir a relação de significação com um “presente” disjuntivo: encenando o passado como símbolo, mito, memória, história, o ancestral – mas um passado cujo valor iterativo como signo reinscreve as “lições do passado” na própria textualidade do presente, que determina tanto a identificação com a modernidade quanto o questionamento desta: o que é o “nós” que define a prerrogativa do meu presente? (Bhabha, 1998, p. 339-340).

O presente dessacraliza o passado é tomado como o entrelugar e o entretempo, transformados em “zonas de luta política” (Bhabha, 2007, p. 35), das quais emerge o sujeito subalterno para anunciar o hibridismo como forma de resistência.

O poder da tradução pós-colonial da modernidade reside em sua estrutura ‘performática’, ‘deformadora’, que não apenas reavalia os conteúdos de uma tradição cultural ou transpõe valores “transculturalmente”. A herança cultural da escravidão ou do colonialismo é posta ‘diante’ da modernidade ‘não’ para resolver suas diferenças históricas, em uma nova totalidade, nem para renunciar suas tradições. É para introduzir outro lócus de inscrição e intervenção, um outro lugar de enunciação híbrido, ‘inadequado’, através daquela cisão temporal – ou entretempo – [...] da agência pós-colonial (Bhabha, 2007, p. 3).

O “conhecimento-testemunho” (Miglievich-Ribeiro, 2020) ganha proeminência na revisão da metanarrativa moderna, como uma especial “capacitação política e epistemológica” (Brennan, 1989) a partir do ponto de vista. Segundo Seligmann-Silva (2003), o testemunho diz respeito às narrativas intransferíveis de travessia da morte por aqueles que sobrevivem. Coadunado às abordagens pós-coloniais “emergem do testemunho colonial dos países do Terceiro Mundo e dos discursos das ‘minorias’ dentro das divisões geopolíticas de Leste e Oeste, Norte e Sul” (Bhabha, 2007, p. 275). Arautos de uma espécie de contramodernidade, os pós-coloniais põem os holofotes naqueles que sofreram o sentenciamento da história, mas recuperam a palavra.

Isso vai ao encontro da defesa da “autoridade testemunhal” por Collins (2022), já mencionada em nosso texto. A autora recorda Gloria Anzaldúa, Rigoberta Menchú, Nawal El-Saadawi e Carolina de Jesus, escritora afro-brasileira, filha do escravagismo, “descoberta” na favela, entre os corpos considerados descartáveis pela sociedade. Collins (2022) destaca a produção intelectual que se dá na forma de autobiografias, discursos e narrativas em primeira pessoa, ao mesmo tempo em que esta autora expõe a violência epistêmica na exclusão do testemunho como conhecimento válido. Reconhece, porém, a resiliência no intelectual que desafia sua comunidade interpretativa (a ciência), inovando as linguagens, fazendo uso de recursos literários, poesias e prosas, até ensaios e entrevistas, em que uma multiplicidade de vozes silenciadas nos textos comumente chamados científicos, se fazem audíveis, podendo narrar sua experiência, sensibilidade e pensamento arguto para somar nas análises mais objetivas da desigualdade social, do poder, das dissidências e da transformação.

É possível ainda o engajamento dialógico entre interseccionalidade e pragmatismo, para o qual importa menos a questão da ordem social e mais a dimensão criativa da vida social. Embora Charles Peirce, William James, John Dewey e George Herbert Mead nunca tenham problematizado os marcadores sociais da diferença nem desafiado as estruturas de poder, para Collins (2022), o pragmatismo estadunidense fornece instrumentos heurísticos úteis às epistemologias subalternas, por exemplo, à valorização do trabalho comunitário de mulheres negras como faz o pensamento feminista negro.

Na sociedade civil negra ou na comunidade negra, muitas mulheres exerceram uma liderança que foi planejada para ajudar os membros das comunidades a sobreviver, crescer e rejeitar as práticas racismo contra a população negra. O trabalho materno das mulheres negras, um importante espaço de trabalho comunitário, ilustra as várias camadas da política dessas mulheres. Embora o trabalho materno se assemelhe ao trabalho do cuidado, em especial no entendimento do trabalho do cuidado como um conjunto de princípios para a participação democrática, por ser profundamente enraizado nas políticas de sobrevivência das comunidades negras estadunidenses, ele foi transmitido com uma intenção política mais ampla. Quer que tivessem crianças de seus próprios ventres ou não, o trabalho que as mulheres negras realizavam no cuidado de suas comunidades constituiu um importante espaço que ao mesmo tempo politizou as mulheres negras estadunidenses e serviu para muitas como expressão de ativismo político (Collins, 2022, p. 237-238).

Reconhecendo o significado da práxis para a produção de conhecimento, nossa aposta é que a escrevivência das autoras afro-brasileiras possa contribuir no avanço da teorização crítica, capaz de fomentar a mudança social. A mulher negra, portanto, nasce, pela escrevivência, isto é, no processo de narrar a si própria, constituindo-se como novo sujeito epistêmico, o que procuro demonstrar.

ESCREVIVÊNCIA E EPISTEMOLOGIA RESISTENTE

O gesto político contido na categoria mulher negra reivindica o lugar de fala historicamente marcado pela interdição (Ribeiro, 2017) e relegado a lugar do desconhecimento ou da rejeição (Gonzales, 1984). A mulher negra luta por seus filhos e pelos filhos uma das outras mulheres negras, pelo direito à vida e ao pertencimento, pelo território onde habita, por sua memória e crenças. A luta antirracista, assim, não é equivalente às demandas por status ou afirmação da autonomia individual. Seus códigos são outros, dificilmente capturados nos quadros analíticos modernos eurocêntricos.3

As mulheres negras substituem o eu pelo nós, em referência a pessoas concretas, recusando o sujeito abstrato do Iluminismo. Sua existência, marcada pelo desterro e diásporas, é recuperada na (re)invenção dos vínculos e afetos: “Longe de casa, a raça torna-se uma pátria” (Couto, 2024, p. 22). Bell hooks4 recorda Audre Lorde (1984) quando pergunta às irmãs negras: “Por que não nos olhamos nos olhos? Esperamos pela traição no olhar da outra, ou pelo reconhecimento?” (hooks, 2019, p. 55). Nas palavras de Lorde,

[...] o mais importante para todas nós é a necessidade de ensinarmos a partir da vivência, de falarmos as verdades nas quais acreditamos e as quais conhecemos, para além daquilo que compreendemos. Porque somente assim podemos sobreviver, participando de um processo de vida criativo e contínuo, que é o crescimento (Lorde, 2019, p. 54-55).

Maria da Conceição Evaristo de Brito, mineira de Belo Horizonte, nascida em 1946, uma entre nove irmãos, depois, tendo migrado para o Rio de Janeiro, onde se formou como professora e se titulou mestre e doutora em Letras, conta que, em sua própria casa, vazia de móveis, e, às vezes, de alimento e roupas, aprendeu a “colher” as palavras: “Tudo era narrado, tudo era motivo de prosa-poesia” (Evaristo, 2005, p. 201). Um sentimento de urgência pairava no ar: “Como ouvi conversas de mulheres! Falar e ouvir entre nós era talvez a única defesa, o único remédio que possuíamos” (Evaristo, 2005, p. 4). Foi ela quem cunhou o termo escrevivência, por meio da qual “toma-se o lugar da escrita como direito, assim como se toma lugar de vida” (Evaristo, 2005, p. 54). Segundo Evaristo,

se inconscientemente desde pequena, nas redações escolares eu inventava outro mundo, pois dentro dos meus limites de compreensão, eu já havia entendido a precariedade da vida que nos era oferecida, aos poucos fui ganhando uma consciência. Consciência que compromete a minha escrita como um lugar de autoafirmação de minhas particularidades, de minhas especificidades como sujeito-mulher-negra (Evaristo, 2007, p. 20. Os itálicos são nossos)

Grada Kilomba faz uma reflexão similar em Memórias da Plantação. Episódios de racismo cotidiano (2021), ponderando sobre a passagem de objeto a sujeito por aquele que toma a palavra para si:

Eu sou quem descreve minha própria história, e não quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como um ato político [...] o ato da escrita como um ato de tornar-se e, enquanto escrevo, eu me torno a narradora e a escritora da minha própria realidade, a autora e a autoridade na minha própria história (Kilomba, 2021, p. 28).

Eduardo Assis (2020) chama a prática de “quilombismo literário”, a escrita afro-diaspórica, que contém traços de escrita de si, de inquietude e indignação, voltada para a memória da resistência comunitária e materializa em formas distintas de mobilização e associativismo. Assim é a a feição quilombista das escrevivências. A escrevivência de Evaristo, portanto, é memória ancestral, forma de “cobrir os vazios de lembranças transfiguradas” com os “retalhos de memória” (Evaristo, 2005, p. 4): “Sem essa fortaleza, sem a criação de táticas de sobrevivência, a ancestralidade do povo negro morreria nos próprios porões dos navios (tumbeiros)” (Evaristo, 2018, p. 2).

Dessa vez, as histórias contam a perspectiva da vítima, cuja presença indesejável e incômoda, insere-se na paisagem, alardeando os processos históricos de violência a que foi submetida: “escrever é uma maneira de sangrar” (Evaristo, 2017, p. 109). Assim é o poema “Vozes-Mulheres”:

A voz de minha bisavó ecoou

criança

nos porões do navio.

Ecoou lamentos

de uma infância perdida.

A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos donos de tudo.

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado

rumo à favela.

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue

e

fome.

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

O eco da vida-liberdade.

(Evaristo, 2008, p. 10-11).

O “brutalismo poético” da escritora (Duarte, 2020) revela um mundo destruído pelo trauma colonial que necessita ser refeito, pela descolonização da memória (Mbembe, 2019). A ideia é partilhada por Lugones (2014) ao considerar que

[...] A transformação civilizatória justificava a colonização da memória e, consequentemente, das noções de si das pessoas, da relação intersubjetiva, da sua relação com o mundo espiritual, com a terra, com o próprio tecido de sua concepção de realidade, identidade e organização social, ecológica e cosmológica (Lugones, 2014, p. 938).

A reinvenção do mundo requer, assim, a descolonização epistêmica que parece começar nas narrativas das mulheres negras ultrajadas. Na escrevivência se reorganiza o arquivo afro-diaspórico e se reinventa um novo entendimento das pessoas sobre si mesmas, um “nós” não-essencialista: “vontade ativa de comunidade” (Mbembe, 2019, p. 361), fruto da “dororidade” (Piedade, 2017), a experiência da dor capaz de gestar vínculos solidários através dos quais a mulher negra insurge como “porta-voz da esperança de novos tempos” (Duarte, 2010, p. 233).

O poema “Vozes Mulheres” expõe “um circuito criado pelas vozes da memória, e as vozes atualizadas pelas histórias do presente, viabilizando o redesenho de práticas, [que] permitem a construção de um potente trânsito criativo” (Souza, 2007, p. 33). Na análise de Oliveira (2010), a criação compreende a dimensão subjetiva (o arquivo gravado na pele e na luta, ato de resistência, que “contrabandeia” o passado para instaurar novas representações do “existir negro”); o processo enunciativo fraterno e compreensivo: quem escreve se confunde com as várias personagens que povoam a obra; e, por fim, o recurso estético ou construção retórica, que dá credibilidade à narrativa.

Em meu argumento, a escrevivência é, também, um projeto de conhecimento resistente que interpela a academia quanto mais as mulheres negras configuram nesse espaço privilegiado novas comunidades interpretativas. Exercendo o engajamento dialógico, podemos lembrar de Anzaldúa, a fim de compreender a escrevivência como “pensamento divergente [...], que inclui em vez de excluir” (2019, p. 325). Assim como podemos vê-las como contracultura, contra-epistemicídio e anti-barbárie. Nos termos de Bhabha (1998), o terceiro espaço = presente disjuntivo que fissura a modernidade e revela o poder da agência subalterna.

A cada vez que um enunciado de dominação [...] é ativado, por uma instância imprevista - um estado de emergência ou de exceção, como diria Walter Benjamin - deverá existir necessariamente uma negociação de significado. [...] o dominado tentará então devolver para o dominador uma quantidade desses significantes carregados de tensão demarcadora de territórios. Essa arena aberta de possibilidades configura um terceiro espaço; e sobre essa negociação não há como estabelecer a priori qual será o resultado (Bhabha, 1998, p. 73-74).

No terceiro espaço, “espécie de hiato, intervalo vazio, onde se instala o contradiscurso/contracoerência” (Carvalho, 2013, p. 72), as coisas já estão de alguma forma presentes neles em um estado de potencialidade e ressonância. Nele, “corpos-histórias” e “corpos-documentos” emergem justapostos, multiplicados e subvertidos. Na linha heideggeriana, o corpo é o “ser-no-mundo” ou o “encontro concreto” no mundo. Os significados, então, “não funcionam como ‘significados’ per se, mas sim na medida em que ganham densidade e textura enquanto se movem através de corpos, sonhos, dramas e mundos sociais de todos os tipos” (Stewart, 2007, p. 3; tradução minha). Segundo Silva,

o corpo-mar da diáspora [...] atravessado por rios turvos da colonialidade/modernidade que deixaram as águas sujas [...] reagem e atuam no hoje [...]. São corpos que contam histórias, que vivem histórias e se estabelecem no presente como aqueles que fazem uma nova história e recontam o que se tem como historiografia oficial (Silva, 2022, p. 115).

A escrevivência é afetação mútua, coexistência, compartilhamento, realidade comum. Os “aparatos afetivos” (Grossberg, 1997) produzem presença que reúne tempos múltiplos, lugares e corpos diferentes nas vivências tais como experimentadas. O afeto é energia, humores, emoções, inflexões, desejos, paixões, sensações, capazes de gerar uma comunidade de sentido, quiçá libertadora. Ao contrário da história única, da ficção dos binômios modernos, da precariedade dos discursos de progresso e nação e do suposto do conhecimento universal, a escrevivência é subversão que põe à luz o status ontológico das mulheres negras, reveladoras da estrutura da diferença ou estrutura da subalternidade pautada na interseccionalidade das múltiplas opressões que molda a modernidade capitalista. Por isso, na perspectiva do engajamento dialógico, associa-se à crítica pós-colonial que contesta a autoconsciência moderna, desfaz estereótipos, performa outro “nós” e traz à tona a ética da escrita como ato político. Talvez, se possa lê-la como epistemologia resistente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pudemos notar que a escrita de si de mulheres negras como “conhecimento-testemunho” (Miglievich-Ribeiro, 2020), que expressa ativa vontade de existir como comunidade, irrompe como inéditas formas heurísticas capazes de “interromper os discursos ocidentais da modernidade através dessas narrativas deslocadoras interrogativas do subalterno ou da pós-escravidão e das perspectivas crítico teóricas que elas engendram” (Bhabha, 1998, p. 333). Isso implica questionar o quão a sociologia se desfaz ou se fortalece quando soma a suas categorias um novo glossário que, ao renomear o mundo, promove existências.

O tema é indubitavelmente, polêmico. Nada menos que a epistemologia moderna é posta em xeque em nome das epistemologias contextuais e da diversidade epistemológica: “contradiscursos importantes [que] são lugares de potência e configuração do mundo por outros olhares e geografias” (Ribeiro, 2017, p. 75).

O ponto é que o modo de conhecer confunde-se com o que existe de fato, derivando-se daí o caráter ontoformativo da teoria (Connel, 2012). Assim, é plausível pensar que as teorias descentradas alargam o mundo conhecido e, do ponto de vista ético, o torna habitável àqueles que não cabem nos binômios modernos que classificaram, até então, a realidade complexa.

A modernidade hegemônica desenhou o mundo como uma “estrutura da diferença” ou “estrutura da subalternidade” (Bhabha, 1998), negando as mediações culturais que constituíram mutuamente colonizadores e colonizados. O pós-colonialismo propõe ver além da diferença colonial, rompendo com o fundamentalismo que inventou a diferença colonial como uma entidade etnicizada rígida e, assim, a manteve hipostasiada e presa a seu lugar de sujeição. O imbróglio é que a sociologia nasce moderna e se depara, hoje, com desafios verdadeiramente desestabilizadores, perceptível em graus e sentidos variados entre os produtores de conhecimento, mais consolidados e menos no campo.

Uma hipótese para isso é o que Collins (2019) se preocupou em observar que todo enunciado vem de um lugar. Falamos aqui da geopolítica do conhecimento. Na esteira de Fanon (2008), Dussel (2010) e Anzaldúa (2005), Grosfoguel (2008) chamou atenção para o “lugar epistêmico” ocupado pelo sujeito cognoscente. Denunciou, por conseguinte, o mito do Ego não situado que caracteriza a filosofia ocidental e, em substituição, revelou o “corpo-político” do conhecimento. Não se trata de um automatismo entre “lugar social” (étnico-racial/sexual/de gênero) e enunciado crítico, mas do reconhecimento das estruturas de poder colonial que condicionam a ciência moderna.

Collins (2022) interpela a epistemologia moderna mais concretamente ao reivindicar a validade da “autoridade testemunhal” na teorização crítica. Nesse sentido, propusemos as escrevivências das mulheres negras brasileiras como giro epistêmico de(s)colonial. Recusando a mulher negra como uma “política de identidade não reflexiva” (Bhabha, 1998, p. 341), marcamos sua experiência intransferível como estratégia de alargamento da intersubjetividade, capaz de fazer avançar a sociologia crítica.

Buscamos, assim, apresentar a escrevivência, reescrita poética de histórias obliteradas que incide sobre os processos de subjetivação, em sua potência desestabilizadora da metanarrativa moderna produtora de inexistências, que devolve a agência subalterna e seu poder de “autodefinição” (Collins, 2019). A escrevivência faz nascer novos sujeitos epistêmicos que rasuram a escrita científica pela introdução da linguagem artística (Soares; Machado, 2017), dos afetos e das sensibilidades. É exercício de tradução cultural e é produção teórica. Negocia com o passado, o presente e o futuro, refundando a vida ética para projetar outros mundos possíveis.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    O presente artigo decorre do projeto PQ-CNPq em andamento “Política ontológica, descentramentos e teoria social: uma cartografia dos feminismos subalternos”.
  • 2
    Não há consensos que nos garanta o absoluto rigor do termo, utilizado ora como substantivo ora como adjetivo (Cahen; Braga, 2018; Hiddleston, 2021; Go, 2016). Cada “comunidade interpretativa” recepciona as várias teorizações a seu modo e narram sua gênese e desenvolvimento em moldes distintos. Uma leitura dessa diversidade teórica pode ser lida em Miglievich-Ribeiro, 2022.
  • 3
    O tema foi abordado em Miglievich-Ribeiro e Brito (2024), ao tratar das agendas feministas, quando se tentou problematizar a exclusão das demandas identitárias na cena pública sob o pretexto de essencialistas. Opostamente, ao invés de descartá-las, observamos como permitiram desde a dessencialização do “proletariado nacional” até contemplar lutas impensáveis, como o antiepistemicídio, se reduzidas, no caso dos feminismos negros, às demandas de mobilidade social ascendente.
  • 4
    A autora grafa seu nome em minúsculas: bell hooks, como uma estratégia de destacar suas ideias, em vez de sua pessoa. A escritora, aliás, de nome Gloria Jean Watkins, optou pelo pseudônimo em homenagem à sua avó: Bell Blair Hooks.
  • Editor Chefe:
    Renato Francisquini Teixeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2024
  • Aceito
    20 Fev 2025
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