Open-access UNIVERSIDADE, SINDICATO E TRABALHO DOCENTE: descontinuidades 1960-2024

UNIVERSITY, UNION AND TEACHING WORK: discontinuities 1960-2024

UNIVERSIDAD, SINDICATOS Y TRABAJO DOCENTE: discontinuidades 1960-2024

Resumos

O artigo propugna que as universidades federais brasileiras experenciaram três contextos de mudanças acentuadas, caracterizadas como descontinuidades, entre 1960 e 2024. A efetivação do golpe empresarial-militar, por meio da contrarrevolução preventiva, impediu o movimento de reforma universitária que ganhava força entre 1960 e 1964 e instaurou o modelo da chamada modernização conservadora que alterou profundamente a universidade. No contexto de crise estrutural, na segunda metade dos anos 1970, a criação das Associações de Docentes e, a seguir, da Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior, logrou obstaculizar a fragmentação pretendida das universidades como centros de excelência e instituições de ensino, por meio da conquista da carreira nacional, da autonomia universitária e da gratuidade nos estabelecimentos oficiais. Finalmente, as políticas de austeridade e de contenção orçamentária que se aprofundaram a partir de 2015 estão contribuindo para a presença direta do capital nas universidades. O artigo conclui que as lutas não podem estar restritas ao setor de educação, pois sem impedir o aprofundamento da austeridade e o encolhimento do público não mercantil, o cenário para as Federais não se coaduna com a relevância destas instituições para a superação dos grandes problemas dos povos.

Palavras-chave:
ANDES-SN; Universidades federais; Ditadura empresarial-militar; Carreira docente nacional


The article argues that Brazilian federal universities underwent three contexts of marked changes, characterized as discontinuities, between 1960 and 2024. The military-corporate coup, through the preventive counter-revolution, prevented the university reform movement that was gaining momentum between 1960 and 1964 and established the so-called conservative modernization model that altered the university profoundly. In the context of the structural crisis, in the second half of the 1970s, the creation of the Teachers’ Associations and, later, the National Association of Higher Education Teachers, succeeded in hindering the intended fragmentation of universities as centers of excellence and educational institutions, by winning national careers, university autonomy and free tuition at official establishments. Finally, the policies of austerity and budget restraint that have deepened since 2015 are contributing to the direct presence of capital in universities. The article concludes that the struggles cannot be restricted to the education sector, because without preventing the deepening of austerity and the shrinking of the non-market public, the scenario for the Federal Universities does not match the relevance of these institutions for overcoming the great problems of the peoples.

Key words:
ANDES-SN; Federal universities; Business-military dictatorship; National teaching career


El artículo sostiene que entre 1960 y 2024 las universidades federales brasileñas experimentaron tres contextos de cambios acentuados, caracterizados como discontinuidades. La consumación del golpe empresarial-militar, mediante la contrarrevolución preventiva, impidió el movimiento de reforma universitaria que cobraba fuerza entre 1960 y 1964 e instauró el modelo de la llamada modernización conservadora, que alteró profundamente la universidad. En el contexto de crisis estructural de la segunda mitad de la década de 1970, la creación de las Asociaciones de Docentes y, posteriormente, de la Asociación Nacional de Docentes de la Educación Superior, logró impedir la fragmentación deseada de las universidades como centros de excelencia e instituciones de enseñanza, mediante la conquista de la carrera nacional, la autonomía universitaria y la gratuidad en los establecimientos oficiales. Por último, las políticas de austeridad y contención presupuestaria que se han intensificado desde 2015 están contribuyendo a la presencia directa del capital en las universidades. El artículo concluye que las luchas no pueden limitarse al sector de la educación, ya que, si no se impide la profundización de la austeridad y la reducción del sector público no mercantil, el panorama para las universidades federales no se ajusta a la importancia de estas instituciones para la superación de los grandes problemas de los pueblos.

Palabras clave:
ANDES-SN; Universidades federales; Dictadura empresarial-militar; Carrera docente nacional


O artigo desenvolve a proposição de que o surgimento das Associações de Docentes (1977-1980), da Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior - ANDES (1981), afinal instituída, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, como Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), foi de importância ímpar para alterar parte das heranças da ditadura empresarial-militar que, por diferentes vias, adaptou as universidades federais ao projeto de instauração das bases do capitalismo monopolista no Brasil (Netto, 2001). As mudanças possibilitadas pela nova Constituição – centradas no Regime Jurídico Único e na autonomia universitária, acrescidas das conquistas na carreira, na generalização do regime de dedicação exclusiva, na isonomia salarial entre as universidades federais, na paridade entre ativos e aposentados, nas consultas para reitor e demais dirigentes – são logros das lutas no transcurso da década de 1980 nas quais se destaca o protagonismo do Andes-SN. Tais vitórias conferiram uma forte legitimidade ao Andes-SN nos anos 1980 e 1990.

Entretanto, as drásticas mudanças nas correlações de forças, em benefício da ordem do capital, possibilitaram não apenas uma profunda contrarreforma do Estado na segunda metade dos anos 1990, como uma crescente hegemonia sobre a sua validade e pertinência. No início dos anos 2000, Lula da Silva manteve seus fundamentos, por meio das parcerias público-privadas, da reforma da previdência dos servidores, do uso de contratos de gestão nas políticas públicas etc. Em consórcio com a contrarreforma do Estado, o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) e o Programa Universidade para Todos (Prouni), alicerçaram inédita mercantilização da educação superior. Em menos de duas décadas, com as parcerias das corporações com o Estado, o país passou ao topo das nações em que a educação superior está sob controle de um seleto grupo de holdings que negociam suas ações nas bolsas de valores (Leher, 2022).

Nesse contexto, a presença do capital passou a ser direta também no cotidiano das instituições universitárias públicas. O Estado perdeu o monopólio das demandas às universidades por meio das estatais, doravante, empresas privadas, bancos, fundos patrimoniais ganharam proeminência e o orçamento das universidades federais passou a depender cada vez mais das receitas próprias e de emendas parlamentares. Todo esse processo tem conformado mudanças profundas caracterizadas como universidade operacional (Chaui, 2003), universidade contratada (Salles, 2024) e capitalismo acadêmico (Slaughter; Leslie, 1997), deflagrando um período de crise na representação sindical docente.

O artigo propõe uma periodização que compreende três grandes descontinuidades na história da universidade pública federal a partir do final dos anos 1950.

Descontinuidade com o processo de reforma universitária que assumiu dimensão crescente no final dos anos 1950, liderado como buscado pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Álvaro Vieira Pinto), pela criação da UnB (Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro) e pelos Seminários sobre a Reforma Universidade da União Nacional dos Estudantes (UNE). por meio, por meio do O intento de reforma universitária foi interrompido pelo golpe empresarial-militar e pela imposição da chamada modernização conservadora, período de expansão da pesquisa e da pós-graduação a serviço do Estado que, no período, está visceralmente comprometido com a implementação do capitalismo monopolista, especialmente no período 1964-1979.

Descontinuidade relativa em relação ao projeto da ditadura e ao intento de fragmentação das universidades federais, cada qual com seu orçamento global e carreira, coroando o projeto da ditadura empresarial-militar, luta protagonizada especialmente pelo movimento docente organizado na ANDES e, depois, no Andes-SN, compreendendo os anos 1980-2000.

Descontinuidade com o modelo da universidade pública federal como dever do Estado, estruturado em carreira nacional comum, paridade entre ativos e aposentados, financiamento estatal a partir de critérios comuns para a manutenção e o desenvolvimento do conjunto das instituições, por meio de mudanças que foram conformando a universidade operacional (Chaui, 2003), a universidade contratada (Salles, 2024) e o capitalismo acadêmico (Slaughter e Leslie, 1997) – situação que, como apontado, abre novas formas de conflito sobre a atuação das entidades representativas de caráter sindical, contexto em que surge a Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico Técnico e Tecnológico- Proifes.1

DESCONTINUIDADE DOS ANOS 1960-1979

Nos termos de Ribeiro (1969), a universidade necessária requer um setor interno de vanguarda, engajado e crítico, disposto a construir e a viabilizar no seio das universidades um processo efetivo de reforma universitária. Na perspectiva de Fernandes (2024), a dificuldade de constituir esse setor interno crítico à modernização reflexa a que se refere Darcy Ribeiro, decorre da ausência de uma revolução burguesa clássica e, no contexto ditatorial, até a atualidade, de movimentos sociais capazes de conformar uma vontade nacional popular (Gramsci, 2017) na qual a universidade esteja inserida de modo virtuoso e com centralidade. Fernandes (2024) constata que não foi possível alicerçar as lutas pela reforma universitária no início dos anos 1960 em um movimento socialista forte nas universidades. Apesar de não ter conformado um período massivo de luta popular em prol do socialismo, é indubitável que foi um período de ascenso das lutas das classes trabalhadoras, mas este não logrou nexos orgânicos com os setores críticos dispostos a levar adiante uma efetiva reforma universitária. Desse modo, mesmo os importantes I Seminário Nacional de Reforma Universitária (I SERU, Salvador, 1961), II Seminário Nacional de Reforma Universitária (II SERU, Curitiba, 1962) e a Declaração Luta Atual pela Reforma Universitária (1963) que lograram elaborar uma agenda concreta e pulsante de reforma universitária não estabeleceram fortes conexões com o ascendente movimento camponês, expresso no I Congresso camponês (1961),2 e com as lutas gerais das classes trabalhadoras em crescimento, especialmente com os setores que buscavam posições autônomas frente ao sindicalismo de Estado (Mattos, 2009).

A ruptura desse processo ainda difuso de reforma universitária que ganhava forma no final dos anos 1950 se deu na ditadura. Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro vivenciaram uma difícil correlação de forças após a consolidação do golpe empresarial-militar de 1964. Naquele momento era impossível desconsiderar a dor da derrota (Fernandes, 2020). A violência aberta contra as universidades no contexto do golpe perpetrada pelo aparato repressivo do Estado, por meio do Ato Institucional no 1, de 9 de abril de 1964, referências para a educação como Anísio Teixeira, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Paulo Freire perderam seus direitos políticos e vínculos com o serviço público. Foi generalizado o uso da força no interior dos campi, as intervenções, as demissões de professores, as apreensões de livros e as ameaças, situações que indicavam as dificuldades por vir (Salmeron, 1999).

Efetivado o golpe empresarial-militar, rapidamente a repressão contra as lutas das classes trabalhadoras repercutiu nas universidades, sobretudo no movimento estudantil organizado na UNE, então na ilegalidade, e de modo destacado na UnB (Salmeron, 1999). Nos primeiros anos, muitas entidades ainda nutriam a crença de que haveria logo o restabelecimento das eleições diretas, no entanto, o movimento foi o oposto. A reação da ditadura diante das greves (como a de Osasco, 1968) e das mobilizações estudantis, foi ainda mais violenta, por meio do AI-5/1968 e do Decreto 477/1969, e de assassinatos de opositores. As manifestações de crítica abertas ao regime nas universidades foram drasticamente reduzidas. Isso explica o fato de que boa parte das conferências que Florestan realizou no contexto das lutas de 1968 e da luta contra o AI-5 (ele mesmo atingido pela medida) foi organizado pelos coletivos estudantis e não pelos espaços institucionais, pelas entidades acadêmicas e tampouco pelo movimento dos trabalhadores.

É importante ressaltar que a contrarreforma não foi um processo unicamente de fora para dentro. De modo doloroso, Fernandes (2020) e Ribeiro (1969) logo constataram a existência de uma inteligência contrarrevolucionária no interior da universidade. A publicação do Parecer no977, de 3 de dezembro de 1965 sobre a organização da pós-graduação pelo Conselho Federal de Educação (CFE), revelou que a ditadura lograra apoios internos significativos, como visto no texto da lavra de Newton Sucupira que, em seu Parecer, indicou a adesão acrítica ao modelo estadunidense. As movimentações no CFE não foram uma obra solitária do relator, ele mesmo professor da Universidade do Brasil, pois junto com ele estava, entre outros, Valnir Chagas (Universidade Federal do Ceará). Tal apoio não foi episódico, ambos seguiram servindo à ditadura na elaboração da lei 5.540/1968, na regulamentação das licenciaturas curtas e, especialmente Chagas, na lei 5.692/1971. Outros exemplos confirmam a existência de uma larga base de apoio ao regime nas universidades. O desmonte da UnB foi efetivado por dois reitores que foram docentes de prestígio em suas instituições, Zeferino Vaz (USP) e Laerte Ramos de Carvalho (USP) (Salmeron, 1999).

Poucos anos mais tarde, após o AI-5/1968, a ação dos adeptos da ditadura já não necessitava de subterfúgios e dissimulações. Um dos episódios mais significativos do colaboracionismo foi protagonizado pela Faculdade de Medicina da USP que elaborou uma lista com professores que deveriam ser cassados:

a Congregação da Faculdade de Medicina da USP decide por maioria e impõe ao governador Ademar de Barros a cassação dos seus professores, incluídos numa lista de candidatos ao inquérito policial-militar e à exclusão, elaborada com a colaboração de agentes do serviço de segurança das Forças Armadas e de professores “democráticos” da própria USP. (Fernandes, 2024, p. 39-40)

Outra situação muito conhecida ocorreu na Faculdade Nacional de Filosofia (e depois do desmonte desta na ditadura, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Brasil, depois UFRJ), em que o professor Eremildo Viana, notório colaborador da ditadura, indicou seus colegas que deveriam ser cassados (Pereira, 2008). Mas essas situações mais visíveis não podem eclipsar outras facetas do colaboracionismo com a ditadura. A inteligência contrarrevolucionária agiu também de modo sutil sob o manto de ações “em nome da ciência”. Muitos professores, uns com forte convicção (como Zeferino Vaz), outros por adaptação ao novo ambiente, contribuíram para moldar e adaptar a universidade pública aos imperativos da ditadura empresarial militar pari passu ao processo de expansão da pós-graduação no país. As recompensas recebidas do regime ditatorial se deram na forma de infraestrutura, bolsas para cursar o doutorado nas universidades estadunidenses imbuídas da lógica da guerra fria (vide projeto Camelot) (Ribeiro, 1969),3 incentivos governamentais diversos e cargos no governo Federal. Tais recompensas possibilitaram que os setores mais próximos aos intentos da ditadura empresarial militar adquirissem proeminência acadêmica organizando um importante sistema de pós-graduação, como é o caso brasileiro. A pesquisa na pós-graduação brasileira nas universidades públicas é indissociável desse movimento interno no qual frações da comunidade acadêmica se adaptaram e se harmonizaram com os objetivos da ditadura empresarial-militar.

Com efeito, os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND) e as prioridades dos órgãos de fomento (CNPq, Finep) na ditadura empresarial-militar operaram em prol da contrarreforma interditando, desde o ambiente interno às universidades, as possibilidades da reforma universitária, como se veria com a imposição da Lei 5.540/1968 e com o recrudescimento da repressão a partir de 1968 pelo AI-5/1968 e pelo Decreto 477/1969.

Naquele contexto, assumiram grande proporção as particularidades da consolidação do capitalismo monopolista nos marcos do capitalismo dependente (Fernandes, 1981), processo que exigiu a conformação de uma inteligência no Estado, em domínios estratégicos como energia, telecomunicações, efetivação da revolução verde, engenharias diversas para erigir portos, aeroportos, indústria química, rodovias, grandes hidrelétricas etc., demandando aportes em ciência e tecnologia e a conformação de um outro tipo de universidade, distinta da existente até então.

Uma das expressões da situação de heteronomia intrínseca ao capitalismo dependente é a reconfiguração (e assimetria) de áreas de conhecimento em função das demandas do Estado em prol do capitalismo monopolista. A ditadura recalibrou o prestígio dos campos de conhecimento presentes nas universidades ‘originalmente conglomeradas’ (Fernandes, 2020). A ditadura necessitava de universidades com pesquisa em novos domínios, porém, ao mesmo tempo, de universidades silenciadas quanto à crítica à modernização conservadora e à própria ditadura. O silenciamento inicialmente se deu pela repressão aberta, abrangendo os referidos AI-5/1968 e Decreto 477/1969 e, mais tarde, após o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), pela imposição do que é dado a investigar por meio de linhas de pesquisa prioritárias e editais focalizados (Leher; Silva, 2014). Com efeito, as mudanças nas universidades operadas pela ditadura para a consolidação do capitalismo monopolista demandaram investimentos em infraestruturas tecno-científicas, inseridos nos PND e nas prioridades das linhas de pesquisa estabelecidas para os órgãos de fomento e para a pós-graduação. As novas prioridades redefiniram a hierarquia entre as áreas de conhecimento, alterando os pilares das universidades conglomeradas – Engenharia, Direito e Medicina (Fernandes, 2020).

No período da ditadura o Estado efetuou medidas de grande alcance que constituíram parte relevante dos fundamentos da universidade pública federal que existe hoje no país. Entre estas, o processo de constituição (e fortalecimento) de determinadas universidades como instituições engajadas nas pesquisas, a persistência das listas tríplices, o foco nos editais e linhas de pesquisa considerados prioritários, o sistema de créditos, a departamentalização etc. A ditadura buscou legitimar as distinções entre as universidades a partir do manejo político das pós-graduações que cresceram exponencialmente no período (Tabela 1). Por isso, é tão importante considerar o modo de sua institucionalização, notadamente após o Parecer Sucupira (1965) (Leher; Silva, 2014).

Tabela 1
– Cursos de Mestrado e Doutorado (1965-2021)

Outra mudança que contribuiu para conformar as universidades foi o deslocamento do aparato de fomento à ciência e à tecnologia (até então autarquias) para o âmbito da Secretaria de Planejamento (Seplan) da Presidência da República como fundações, concentrando nela (Seplan) a definição das linhas de pesquisa a serem apoiadas pelo Estado em conformidade com os PND, por intermédio do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), criado em 1969 (Leher; Silva, 2014) e, mais tarde, em 1984, com o Banco Mundial, o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT). A heteronomia assumiu novas dimensões como um projeto do Estado estabelecido na ditadura.

O modelo a ser seguido, o estadunidense, como postulado de modo subserviente pelo Parecer Sucupira, moldou as formas de avaliação dos programas de pós-graduação, das áreas, das instituições e, cada vez mais, pavimentou as rotas heterônomas que levam à excelência acadêmica concebidas pela métrica utilitarista frente às prioridades do regime ditatorial. O prestígio conferido aos programas de pós-graduação das áreas estratégicas, por sua vez, repercutiu (e foi expressão) no lugar de poder das áreas de conhecimento, engendrando um circuito que conformou a universidade e, em grande parte, o próprio campo científico de hoje (Bourdieu, 1983).

É possível constatar que tais movimentos corroboram a tendência de descentração das unidades acadêmicas tradicionais que conformaram a universidade conglomerada. As escolas tradicionais, no entanto, não deixaram de ser relevantes na estrutura de poder em virtude dos acúmulos herdados do passado (vagas diferenciadas de professores titulares, antes da modificação da carreira em 2012, maior oferta de bolsas de produtividade), assim como pela relevância intrínseca destas áreas para o país e pelos nexos com as forças políticas que organizam a ordem do capital. Com a expansão da pós-graduação, a heteronomia das linhas de pesquisa definidas pela Seplan em conformidade com os PND, a transformação das autarquias em fundações, conjugado com a repressão sistemática, é muito forte a proposição de que a ditadura efetivou uma ruptura em relação ao processo de adensamento da reforma universitária desejada pelos setores democráticos, como expresso nos Seminários da Reforma de 1961, 1962 e da Declaração de 1963.

CRIAÇÃO DA ANDES E A SEGUNDA DESCONTINUIDADE: 1979-2000

A segunda grande descontinuidade ocorreu no período compreendido entre a criação da ANDES até o final dos anos 1990. Será no final dos anos 1970, período inscrito na crise estrutural do capitalismo – que agrava os problemas econômicos decorrentes do modelo econômico da ditadura cujo ápice será a Crise da Dívida de 1982 – que surgirá um movimento de novo tipo nas universidades e que dará origem a ANDES, “Começar de novo, superar os enganos (e os acertos ocasionais) da experiência acumulada, eis o busílis [...] Professores e estudantes, congregados em torno da ANDES, já deram um bom salto nessa direção” (Fernandes, 2024, p. 44). De modo visionário, Fernandes alerta que não bastaria uma entidade de docentes: comunidade universitária precisa estar engajada diante de problemas candentes, “como a miséria de mais de um quarto da população, a formas predatórias persistentes de exploração da força de trabalho e de alienação do trabalhador” (Fernandes, 2024, p. 44). “Não nos cabe ‘restabelecer’ a USP de 1964. O que temos que estabelecer são as bases do novo ponto de partida e o que deve ser a universidade como instituição-chave que terá de enfrentar, por fim, os tremores históricos da revolução democrática” (Fernandes, 2024, p. 54). Tal perspectiva – é importante salientar – não estava presente no horizonte médio dos docentes, se mostrando de modo nuançado nas concepções sobre a organização sindical por parte de docentes que, em sua maioria, careciam de formação política sistemática.

Como é possível depreender do perfil do crescimento dos cursos de pós-graduação, as pesquisas nas ciências básicas ganharam forte impulso, o que irá se refletir no crescimento das publicações em periódicos e livros. A referida indução do Estado nas áreas de pesquisa básica e aplicada, carreando recursos para áreas emergentes, linhas de pesquisa e grupos específicos com o objetivo de erigir uma ‘inteligência no Estado’ indispensável para a consolidação do capitalismo monopolista no Brasil, contribuiu para a profissionalização do trabalho de pesquisa e do labor universitário em geral.

Distintamente dos objetivos da ditadura, a diversificação de áreas modificou os processos de trabalho, especialmente pela necessidade (demandada pela maioria dos professores), cada vez mais premente, do regime de dedicação exclusiva, concursos públicos sem as travas dos atestados de bons antecedentes ideológicos, valorização salarial, e de maior democracia para que as novas configurações de poder internas pudessem ser recepcionadas na vida institucional.

Professores: trabalhadores docentes ou especialistas? Andes, natureza da entidade

A concepção de que docentes, embora intelectuais, compõem a classe trabalhadora foi algo de imenso significado, ainda mais quando adotaram métodos e práticas de lutas próprias das classes trabalhadoras, como as avaliações políticas por meio de assembleias e o recurso às greves, como a crucial greve de 1980. Esta greve provocou antagonismos que vêm sendo atualizados até o presente. A posição de converter a Associação em uma entidade de caráter sindical de âmbito nacional e unitária (e não em uma Federação de Associações de Docentes (AD’s), gerou disputas e conflitos. Setores relevantes, liderados entre outros por Luiz Pinguelli Rosa (então, presidente da Adufrj), aos quais se associaram militantes do PCB e do PC do B, se mobilizaram para que a Andes fosse uma federação de AD’s, sustentando que, como professores são intelectuais, não caberia adotar uma representação política e sindical própria inserida no bojo das classes trabalhadores na forma de um Sindicato Nacional (naquele contexto, em virtude da impossibilidade de criação de um sindicato de trabalhadores do serviço público, como uma Associação Nacional unitária). Conforme depoimento de Pinguelli Rosa: “A concepção sindical certamente era puxada mais pelo grupo que apoiava Maciel e [havia] a concepção de entidade mais como associação, nos moldes da Associação Brasileira de Física [...]” (Pinguelli Rosa, 1996 apud Navarro, 1999, p.108), isto é, como organização para-acadêmica (Mattos, 2011) como queria o grupo em torno de Rosa. Para estes setores, a Andes, concebida como Associação, incorporaria pautas econômico-corporativas, atuando como grupo sindical de universidades públicas e de pressão “mais acadêmica” alicerçado no convencimento dos governos – como ficou evidenciado no encontro para negociação fora do comando de greve entre Pinguelli e membros da Adufrj e o ministro Ludwig e parlamentares (Navarro, 1999) acerca da importância da ciência: uma vez convencidos de que a ciência custa caro, mas produz resultados com impactos econômicos, os problemas seriam paulatinamente resolvidos, sem que os intelectuais tivessem que construir greves, algo anacrônico e não condizente com a condição de pesquisadores. Naquele contexto, 1980, ficou famosa a entrevista de Pinguelli para a televisão em que, diante de uma assembleia lotada, buscou acalmar a população de que não haveria greve, como era próprio do posicionamento da corrente por ele liderada – entretanto, ao contrário de suas expectativas, a greve foi aprovada pela assembleia da Adufrj (Navarro, 1999). As cisões tornaram-se mais acentuadas e nítidas com a possibilidade de criação de uma central do conjunto da classe trabalhadora na 1a Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras - CONCLAT de 1981, o que não contou com apoio do grupo reunido em torno de Pinguelli Rosa.

Retomando o tema da organização das lutas dos docentes nos anos 1980 é preciso ressaltar que prevaleceu, largamente, a proposta de criação da Andes no Encontro Nacional das Associações de Docentes de 1981 como entidade nacional e de caráter unitário, posição que contou com o apoio de cerca de 70% dos delegados (Navarro, 1999). Este posicionamento foi organizado em torno da liderança de Osvaldo Maciel (UFSC), o primeiro presidente da Andes e de Newton Lima Neto (UFSCAR), e que se materializou na corrente Andes: autônoma e democrática que dirigiu o sindicato na maior parte do tempo desde então. A opção sindical estava fortalecida com as grandes vitórias do período de ascenso das lutas das classes trabalhadoras, como a equiparação das universidades autárquicas com as fundacionais, o Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e Empregos de que trata a Lei nº 7.596, de 10 de abril de 1987 (PUCRCE), a dedicação exclusiva, o reconhecimento econômico da pós stricto sensu na progressão da carreira e as lutas na constituinte, entre 1987 e 1988. Desse modo, as gerações que coexistiram na universidade nesse período, majoritariamente, se pronunciaram de modo original, constituindo práticas jamais vistas nas universidades brasileiras. Isso foi possível em virtude das contradições do próprio modelo de expansão das universidades federais ao longo dos anos de ditadura.

Como salienta Dal Rosso (2011), houve grande entusiasmo pela nova entidade por parte de docentes vinculados com organizações de esquerda que resultaram na criação do Partido dos Trabalhadores, na reorganização do Partido Comunista Brasileiro e do Partido Comunista do Brasil, disposição compartilhada por militantes independentes e por docentes que foram estudantes da geração de 1968-1970.

As contendas acerca da natureza da nova entidade não foram resolvidas no plano das ideias. O perfil dos docentes estava mudando. De fato, exigências de pesquisa e da pós-graduação, em grande parte induzidas pela ditadura, já não se coadunavam com a universidade adaptada aos interesses dos profissionais liberais que possuíam outras fontes de renda. Os docentes das ciências básicas e das humanidades, em geral, almejavam a dedicação exclusiva e melhorias salariais.

Nesse período, em sentido oposto ao pretendido pela ditadura e por seus apoiadores na universidade, docentes das áreas emergentes possibilitadas pelas políticas da ditadura demandaram liberdade de cátedra, autonomia, carreira, dedicação exclusiva e remuneração que possibilitasse o trabalho em apenas uma instituição. Assim, questões trabalhistas, previdenciárias, acadêmicas relacionadas à autonomia universitária pesaram decisivamente no apoio de segmentos das ciências da natureza, das áreas aplicadas, e das humanidades em geral, ao processo de radicalização em prol do Sindicato Nacional e da necessidade de priorizar pautas trabalhistas focalizadas na carreira.

No escopo do inédito e pujante ascenso de lutas e de organização dos “de baixo” (especialmente no período 1975-1989), as questões da democracia deixaram de ser privativas do bloco no poder (Poulantzas, 1981). É nesse ambiente que a ANDES foi organizada, sob a liderança de docentes que não compunham os núcleos de poder dos profissionais liberais e, tampouco, os grupos incentivados diretamente pela ditadura, embora com a participação de docentes que provinham das áreas apoiadas pela ditadura, mas que haviam assumido clara oposição à ditadura nas reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A nova entidade já nasceu com características do novo sindicalismo crítico ao sindicalismo de Estado. A ANDES foi organizada a partir das AD, que passaram a se articular nas reuniões anuais da SBPC, ampliadas na segunda metade dos anos 1970 com a entrada das ciências sociais na Sociedade, medida defendida, entre outros, por Darcy Ribeiro. A Reunião de 1977 foi um marco importante, pois o confronto com o governo da ditadura foi direto.4 Os setores majoritários que organizaram a criação da ANDES, de modo inédito, adotaram como pode ser visto no Estatuto, uma perspectiva de unidade com as classes trabalhadoras que vinham forjando o novo sindicalismo autônomo frente ao Estado (Alem,1991).

A primeira grande greve no período da ditadura, em 1980, colocou em relevo a equiparação das universidades fundacionais e autárquicas realizando, desse modo, suturas que, com o Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e Empregos - PUCRCE em 1987, conformaram a rede unitária de universidades federais, todas com a mesma carreira, remuneração, carga horária de aulas, iguais direitos de aposentadoria. Foram essas conquistas que possibilitaram a consolidação, em 1989, de uma entidade nacional comum a todas as universidades federais, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais do Ensino Superior (ANDIFES), e a criação de uma mesma matriz de distribuição dos recursos alocados pelo Orçamento da União para as instituições. Foi nesse período que o Andes-SN se consolidou e ampliou sua base social. É possível concluir, por conseguinte, que as lutas que irromperam em 1980 foram muito mais amplas do que o movimento organizado pelas correntes políticas, abarcando docentes sem passado de militância política. Essas lutas foram decisivas na consolidação da nova entidade nacional (Rizzo, 2011). A experiência concreta das lutas pesou decisivamente na avaliação de que os embates pela carreira, por exemplo, não eram locais. A agenda da constituinte tampouco poderia ser local. Assim, de modo mais simples e direto, foram as greves de 1980 e as lutas subsequentes que confirmaram que a melhor alternativa seria, de fato, uma entidade nacionalmente organizada, autônoma em relação aos governos e de caráter sindical.

A emergência do movimento docente permitiu pela primeira vez o debate entre docentes de áreas distintas, após longos anos de separação pela interdição de espaços de participação comuns. As assembleias docentes se consolidaram como lócus de discussão e deliberação em prol de interesses compartilhados, como a carreira e a remuneração. Além das questões econômico-corporativas, no ocaso da ditadura os pontos de unidade foram a abertura política (Diretas, Já! Anistia) e a luta pela constituinte. No plano interno, tornou-se comum o questionamento das bases que reproduzem as universidades conglomeradas, sob o comando das escolas tradicionais guiadas pelos profissionais liberais nos Conselhos Superiores e, especialmente, o colaboracionismo de muitos de seus expoentes que configuraram uma verdadeira inteligência contrarrevolucionária (Fernandes, 2024). A unidade no período da chamada redemocratização foi motivada, por conseguinte, pelos anseios ainda imprecisos de um outro tipo de universidade, mais efetivamente plurifuncional.

No entanto, como é possível constatar pelos estudos de Navarro (1999), a referida confluência de objetivos comuns (carreira, remuneração, paridade salarial etc.) esteve tensionada pelas concepções sobre o fazer universitário: professores como pesquisadores e intelectuais ‘acima das classes’, elite cultural, categoria profissional versus professores como trabalhadores da educação, parte das classes trabalhadoras. A rigor, as tensões estão relacionadas com a função social da universidade. Persistiu uma significativa tendência de associar o ethos universitário advindo das induções da ditadura à excelência acadêmica (que pouco contemplava as ciências sociais e as humanidades), materializando, assim, as rotas de excelência que, na ótica das áreas prioritárias, deveriam guiar as pautas econômico-corporativas e de democratização das universidades, especialmente na definição diferenciada dos docentes na escolha dos reitores.

De fato, no processo de organização da ANDES os docentes se apropriaram de métodos de luta próprios das classes trabalhadoras, como as greves dos anos 1980 que legitimaram a nova entidade ainda na ditadura, pois arrancaram dos centros decisórios do Estado conquistas como a isonomia entre as universidades autárquicas e as fundacionais; o PUCRCE como base de uma carreira única, nacional e que não distingue, a priori, as áreas de maior prestígio; reposições salariais em contexto de hiperinflação; a reintegração parcial dos professores cassados pela ditadura; as primeiras consultas diretas para as reitorias; as lutas pela democratização dos Conselhos; exercício da liberdade de cátedra e contribuíram, de modo relevante, já no período considerado pós-ditatorial para fortalecer o Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública na constituinte, possibilitando a autonomia universitária como prerrogativa constitucional; a gratuidade também nos estabelecimentos públicos de ensino superior; o Regime Jurídico Único, a valorização do regime de dedicação exclusiva, o ingresso exclusivamente por meio de concurso público, e a efetiva paridade entre ativos e aposentados, uma conquista de inequívoco teor classista, pois busca irmanar gerações distintas de trabalhadores, todos com os mesmos direitos.

Essa trajetória da entidade, que então estava sendo construída, não foi, por conseguinte, linear e consensual. Mesmo entre os que não colaboraram diretamente com a ditadura e, inclusive, se contrapuseram ao arbítrio, a heterogeneidade política foi expressiva. Segmentos do corpo docente das áreas emergentes que se fortaleceram na ditadura compunham uma fração influente por seus nexos com as agências de fomento. Embora houvesse uma acentuada convergência com a luta pela carreira, muitos compartilhavam uma concepção do exercício do magistério superior como um labor sem afinidade com as lutas gerais das classes trabalhadoras e, por conseguinte, mantiveram questionamentos em relação à concepção da nova entidade em formação, notadamente quanto ao uso de métodos das classes trabalhadoras, como as greves que, afinal, asseguraram a desejada carreira.

Com efeito, a análise de Florestan nos mostra que uma parcela importante colaborou indiretamente com as políticas da ditadura em nome da ciência. Nesse prisma, contribuiu para a institucionalização do modelo de pós-graduação e se adaptou à heteronomia das políticas de fomento à pesquisa, evitando temas que pudessem desagradar ao regime. Contudo, as práticas da ditadura levaram muitos destes docentes a aderir, em nome da liberdade de cátedra, à oposição, então se organizando no âmbito de entidades científicas como a SBPC. A crítica não era tanto às políticas econômicas, ao modelo da modernização conservadora e às suas políticas educacionais e de ciência e tecnologia, mas ao modus operandi dos governos, sobretudo no que diz respeito à censura e à perseguição aos colegas. No final dos anos 1970, já no estertor da ditadura, quando o golpe já estava com evidentes sinais de derrota, muitos desses professores já estavam publicamente na luta contra ditadura.

O período da ditadura empresarial-militar redefiniu a universidade conglomerada pelo fortalecimento de novas áreas tidas como prioritárias. Houve real indução das agências de fomento em um processo que impulsionou o crescimento da pós-graduação. Resultou dessa diferenciação de áreas formas distintas de se perceber docente; de um lado, aqueles que afirmam “trabalho como professor na universidade” e, correlatamente, “trabalho no ramo da educação” e, de outro lado, aqueles que se identificam como pesquisadores de uma certa área de conhecimento, na forma de ‘sou físico’, ‘sou sociólogo’, e, no caso dos profissionais liberais, como ‘sou engenheiro’, ‘sou médico’, ‘sou advogado’, tal como no período áureo das universidades conglomeradas (Fernandes, 2024).

A análise do processo de constituição da ANDES sugere que essas formas de autoidentificação, seja como trabalhadores docentes ou professores, seja como pesquisadores e profissionais liberais, repercutiu na forma de representação política buscada no período de articulação das AD em uma entidade nacional. Os primeiros defenderam que a nova entidade deveria ter um caráter de Sindicato Nacional de trabalhadores docentes; os últimos como uma Associação Nacional organizada na forma de uma federação de AD, nos moldes de uma associação de teor econômico-corporativo.

As diferentes concepções sobre as lutas contra a herança da ditadura na universidade e no sistema de ciência e tecnologia ficaram patentes no primeiro governo civil (José Sarney, 1985-1990). Frente ao ascenso das greves e mobilizações de professores, técnicos e administrativos e estudantes em prol de reformas que acentuassem as descontinuidades com a ditadura, o governo Sarney buscou alianças com os chamados grupos de excelência, por meio de “contato pessoal” do ministro da Educação Jorge Bornhausen com a “diretoria da SBPC, da Academia Brasileira de Ciências – ABC e do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras – CRUB” (Brasil, 1986, p. 2), entre os quais havia setores preocupados com a mobilização autônoma do ‘baixo clero’ nas universidades (Fávero, 1996). Sarney lançou o projeto do Grupo Executivo para a Reformulação da Educação Superior (GERES) que contou com o apoio ativo do Núcleo de Pesquisa sobre o Ensino Superior – NUPES/USP (Eunice Duhram, J.A. Giannotti,5 José Goldenberg, Maria Helena Castro, Sérgio Costa Ribeiro, Simon Schwartzman) (Sguissardi, 2000) que convergia não apenas com a instituição de um setor privado propriamente com fins lucrativos (então expresso no Decreto 2.306/1997, art. 7), como propugnava uma perspectiva universitária que privilegia uma forma de poder e de hierarquia baseada no mérito (Giannotti, 1998).

É relevante salientar que os fundamentos do GERES estão presentes em diversos projetos até os dias de hoje. Este estabelecia medidas que inviabilizariam o padrão unitário de qualidade das universidades públicas e, na prática, pretendia cindir as universidades públicas em instituições de pesquisa e em instituições de ensino (Coelho, 2005 apud Dotta; Gabardo, 2013) e, ainda mais, estabelecer distinções salariais entre as instituições e as áreas do conhecimento, semelhante ao Chile, a partir de Pinochet. Um aspecto importante do GERES é a sua concepção de avaliação centrada nos indivíduos, por meio de métricas que pretensamente expressam o mérito individual de cada docente, nos termos da ideologia da meritocracia que legitimaria um determinado ‘poder acadêmico’ (Giannotti, 1998). Resulta dessas técnicas de aferição da competência a diretriz de que os recursos, por serem limitados, devem ser direcionados prioritariamente para as instituições de maior produtividade, justificando, assim, a referida cisão entre universidade de pesquisa e universidade de ensino (Limoeiro Cardoso, 1991). Ademais, o projeto inviabilizaria a escolha democrática de reitores, por meio de eleição direta, pois mantem a prerrogativa da escolha pelo Executivo.

A ANDES (1988) se posicionou firmemente contra o referido projeto, denunciando o seu caráter centralizador autoritário, segregador e que acentuaria as piores contradições do desenvolvimento desigual do capitalismo, pois as instituições mais jovens e que receberam menor aporte de recursos na ditadura, deixariam de ser universidades com pesquisa, o que cindiria também a categoria docente: de um lado, docentes pesquisadores, de outro, docentes que apenas ministram aulas e, ainda, entre professores de uma mesma instituição conforme o prestígio das áreas do conhecimento, o que colidia abertamente com o projeto de universidade e de carreira única da ANDES. No que se refere à avaliação, desde a primeira versão de seu Projeto para a Universidade Brasileira, a avaliação é concebida como parte do esforço coletivo de elevar todas as instituições a um padrão unitário de qualidade propriamente universitário, avaliação regida por critérios puramente acadêmicos e referenciados nas boas práticas do serviço público, como impessoalidade, publicidade e foco na relevância social do uso dos recursos públicos, não dos indivíduos isoladamente, mas das instituições como um todo (Limoeiro Cardoso, 1991). Entretanto, o grupo aliado a Fernando Henrique Cardoso, composto por segmentos autointitulados como ‘grupos de excelência’, não logrou hegemonia. A oposição ao GERES foi generalizada, abrangendo ANDES, SBPC, UNE e Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores das Universidades Públicas Brasileiras- Fasubra etc., pois muitos docentes perceberam que poderiam ser discriminados negativamente em caso de sua aprovação.

Com efeito, almejando a democratização da universidade e a dignificação das condições de trabalho, a entidade, antes mesmo de ser formalmente um sindicato (1988), obstou o objetivo da ditadura em seus estertores e, especialmente, da Nova República, de segregar cada universidade federal por meio do orçamento global (pessoal, custeio e capital) e, consequentemente, de planos próprios de carreira. Disso resultaria, conforme os intentos do período, em dois tipos de instituições universitárias federais: as vocacionadas para a pesquisa e as instituições de ensino, reproduzindo, desse modo, o desenvolvimento desigual do capitalismo nos territórios. Anos depois, o Sindicato Nacional foi crucial na luta contra a conversão das universidades federais em Organizações Sociais (OS) pretendida pelo governo Fernando Henrique com apoio de setores autointitulados como “grupos de excelência”. A conversão das universidades em entes regidos pelo direito privado dar-se-ia no âmbito do Plano Diretor da Reforma do Estado. Tal como no GERES, cada universidade ficaria insulada em sua própria OS, como pretendido pela Emenda Constitucional no19/1998, afinal não implementada em virtude de greves nacionais como as de 1998 e 2001 (Rizzo, 2011).

A complexidade da condição de professor universitário, fortemente marcada pelo individualismo nutrido pela meritocracia, uma herança da ditadura, foi magnificada pelas políticas neoliberais dos anos 1990 (por meio dos Programas dos Núcleos de Excelência -PRONEX, 19966, Institutos do Milênio (2001) e da avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, então em rápido ajuste ao cânone neoliberal da reforma administrativa do Estado). Mas isso não significa que inexista um trânsito entre os dois polos – trabalhadores docentes versus professores-pesquisadores desvinculados das classes trabalhadoras.

É interessante observar que o deslocamento de muitos docentes na direção da condição de trabalhador docente ocorre nos contextos de maior arrocho salarial. De fato, em determinados contextos, a luta econômico-corporativa em favor de um novo regime jurídico que balizasse as formas de contratação, em prol de uma carreira que propiciasse real dedicação ao trabalho na universidade, inclusive garantindo remuneração compatível com a formação e a natureza do trabalho universitário, aumentou o fluxo na direção do ‘sou um trabalhador docente’ ou ‘sou servidor público’. Tal direção do vetor do fluxo permitiu a consolidação do Andes-SN nos anos 1990.

Em outros contextos, ao contrário, há uma afirmação da condição de pesquisador e da identidade profissional (jurista, médico, engenheiro) que não se reconhece como classe trabalhadora, buscando recompensas exclusivas que valorizem a hierarquia do mérito, tendência que tem favorecido a mudança no sentido do vetor para a concepção professor-pesquisador como um segmento especial que não está relacionado às questões gerais das classes trabalhadoras, nem, tampouco, aos embates sobre o papel do Estado na garantia das políticas sociais em geral. Nesse prisma, pouco importa que um ajuste fiscal calibrado pela austeridade estrangule os gastos primários, pois predomina a crença de que como a universidade pública federal é uma instituição diferenciada, em algum momento, se os professores excelentes mostrarem a sua relevância para a sociedade, estas instituições serão preservadas e apoiadas, como se inscritas em um inexistente Estado de bem-estar social. Outra dimensão relevante que alimenta o fluxo em direção a concepção do professor como pesquisador é a presença direta do capital, por diversas vias, que alcançam segmentos influentes da categoria e que guardam nexos com a herança da ditadura, no sentido de que suas áreas foram destacadas como prioritárias desde aquele período, agora reconfiguradas como áreas alicerçadas pelos fundos setoriais nas quais predominam os interesses das empresas que adquiriram as antigas estatais.

CIÊNCIA E TECNOLOGIA SOB INFLUÊNCIA DO CAPITAL E TRABALHO DOCENTE: TERCEIRA DESCONTINUIDADE (2000 – 2024)

A terceira descontinuidade está em curso e vem ganhando impulso com a presença direta do capital no cotidiano das instituições e pela indução, por parte do Estado, de mecanismos de financiamento que não se coadunam com o fortalecimento da autonomia universitária. O Estado mantém draconiano arrocho orçamentário e, com isso, estimula a conversão da autonomia de gestão financeira em autonomia financeira. A melhor expressão desse intento foi o Programa Future-se (Leher, 2021) que possibilitaria a generalização de fundos patrimoniais7 como é comum nas grandes universidades estadunidenses. Enquanto na ditadura os interesses do capital eram manejados pelo Estado (PND/PADCT) (primeira descontinuidade), desde a reforma do Estado e da criação dos fundos setoriais em 1999 (Oliveira; Moraes, 2016), do PRONEX, dos Institutos do Milênio e dos editais direcionados à inovação tecnológica, as empresas chegam direto aos laboratórios e aos cursos, em um fenômeno denominado anos atrás como ‘capitalismo acadêmico’ (Slaughter; Leslie, 1997). Agora, as unidades passam a estar mais autonomizadas, a exemplo da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe) na UFRJ que, em virtude dos recursos da Agência Nacional do Petróleo, pode ficar mais protegida do arrocho orçamentário que afetam as áreas ditas menos competitivas, dirigindo muitas de suas atividades para o setor de petróleo e gás.

Não é apenas a presença direta do capital que está conformando a terceira descontinuidade, embora parte de novas áreas de conhecimento esteja associada a demandas do capital. Tal como ocorreu na primeira descontinuidade, o processo de produção do conhecimento está sendo fortemente alterado, por questões intracientíficas, por indução estatal e pela indução de empresas e setores econômicos, a exemplo do agronegócio sobre as instituições voltadas para a agropecuária e áreas afins.

No processo de formação da consciência engendrado no trabalho docente é importante salientar as novas características assumidas pelo trabalho nas diversas áreas da universidade que repercutem no modo de produzir e socializar o conhecimento e, assim, conformam as experiências dos professores (Thompson, 1987).

Com auxílio da bibliometria, é possível demonstrar que, no caso das humanidades, ¾ das publicações são na forma de livros, muitos deles autorais, tendência que se manteve estável nos últimos 30 anos. No mesmo período, na área de economia houve redução dos livros de 55% para 30%. Na área de física, entretanto, 80% das publicações são na forma de artigos em revistas (Gingras, 2016).

A divisão do trabalho que resulta nas publicações igualmente é distinta entre as áreas. Nas ciências biomédicas, o número médio de autores por artigo passa de 2 em 1960, para 6, em 2014; nas ciências da natureza de 2 em 1960 para 5 em 2014; nas ciências sociais de 1,2 em 1960 para 3 em 2014 e, nas humanidades, de 1 para 1,2 no mesmo período. O percentual de publicações com mais de um autor, em 2014, foi de 95% nas biomédicas, de 92% nas ciências da natureza e engenharias, de 70% nas sociais e de 12% nas humanidades (Gingras, 2016). Isso significa que nas áreas biomédicas e das ciências da natureza foram estabelecidos circuitos intracientíficos especializados alicerçados em complexas formas de divisão do trabalho, abrangendo uma hierarquia que se expressa na ordem dos autores dos artigos e que frequentemente inclui autores internacionais. Também os seminários e colóquios reproduzem esses circuitos especializados. Este fenômeno avança também nas ciências sociais. Nesse prisma, muitos docentes desenvolvem suas carreiras nesses ambientes acadêmicos fortemente especializados em que o projeto de universidade neles discutido deixa de enfrentar o problema de sua fragmentação interna. Contraditoriamente, o movimento de insulamento ganha força nesses ambientes especializados.

Diferente da primeira grande descontinuidade, as mudanças não resultam exclusivamente do crescimento da pós-graduação e da titulação correspondente. Embora, certamente, o credenciamento na pós-graduação siga sendo uma realidade importante, em especial pela intensificação do trabalho que afasta os docentes das lutas coletivas (Sguissardi; Dos Reis, 2009), outras formas de validação da excelência docente ganham força, como o grau de internacionalização, publicações internacionais nas revistas vinculadas aos maiores grupos editoriais, o fator de impacto das publicações individuais e a captação de recursos.

Desse modo, frente à massificação de professores doutores, possibilitada pelos concursos no período 2007-2014, o movimento que consubstancia a terceira grande descontinuidade é indissociável de novas vias para a excelência acadêmica, conformando percursos acadêmicos empreendedores que tornam a concepção de carreira comum uma proposição crescentemente indesejada.

Com efeito, a importação de parâmetros comuns nas grandes universidades estadunidenses configura ideias fora do lugar. O tempo presente é de aprofundamento da divisão internacional do trabalho na esfera do trabalho de teor científico – acentuada pelos novos circuitos das cadeias mundiais de valor – e de proletarização do trabalho docente e das atividades de pesquisa (Mandel, 1979). O controle direto que as corporações exercem sobre a ciência e a tecnologia na forma da geoeconomia do conhecimento reconfigura as próprias instituições universitárias e o posicionamento dos países no domínio de patentes estratégicas e do lugar entre as lideranças científicas e tecnológicas mundiais (Leher; Santos, 2023).

Não há como comparar os montantes que circulam nos incipientes fundos patrimoniais das universidades brasileiras, contabilizados em dezenas (e no máximo, poucas centenas) de milhões de reais, com a escala de recursos privados que circula nos fundos patrimoniais das universidades estadunidenses, atualmente da ordem de US$ 850 bilhões (Frankel, 2024 apud Leher, 2024), equivalente a 45% do PIB brasileiro em 2023. Nos Estados Unidos, contudo, os investidores nos fundos patrimoniais vêm ampliando sua influência nas instituições, até mesmo cerceando a liberdade de cátedra e a liberdade de expressão, como visto em 2024 nos episódios em que os estudantes em luta contra o genocídio dos palestinos exigiram o fim dos contratos de suas instituições com o sionismo. Em virtude das supostas demora e falta de severidade da repressão ao movimento de ocupação estudantil, por parte dos dirigentes, metade das reitoras da Ivy League (Columbia, Harvard, Pennsylvania, Cornell) foi destituída em virtude do poder de pressão dos investidores (Leher, 2024).

A despeito do fato de que a transposição de realidades não é possível, os aparatos de fomento à Ciência e Tecnologia e de regulação e controle (rankings, grupos editoriais vinculados às corporações, fator de impacto, certificados de qualidade) funcionam como catalisadores da concepção do labor docente como uma atividade própria do pesquisador. Este processo é mais acentuado nas chamadas ciências duras e nas áreas aplicadas, especialmente nos ramos em que predominam os especialistas. Nos dias de hoje, a forma como muitos docentes se percebe tende a exacerbar o individualismo, o particularismo de grupos, o distanciamento em relação à categoria docente. Na primeira descontinuidade, a constituição e o fortalecimento das áreas de conhecimento, por meio da expansão vertiginosa da pós-graduação vista na Tabela 1, ultrapassou as fronteiras dos pilares tradicionais das universidades conglomeradas, resultou no fortalecimento da concepção sindical por exigência da profissionalização da carreira. No período recente, a realidade é outra. A força totalizadora do capital, ainda que como ideologia, em diversas áreas, altera tão profundamente o ethos acadêmico que a representação sindical parece um anacronismo para muitos docentes.

CONCLUSÃO: UNIVERSIDADE PÚBLICA, ENFRENTAMENTO À AUSTERIDADE E SINDICALISMO AUTÔNOMO

Nas duas últimas décadas, muitos professores não se sindicalizam ao ingressar na universidade, o que denota uma inflexão em relação à segunda descontinuidade. Outros se veem contemplados em corrente sindical que não se levantou contra a distinção de direitos entre os docentes que ingressaram antes e depois da efetivação da reforma da previdência de Lula da Silva e de Dilma Rousseff. Tampouco se insurgiram contra a carreira estabelecida em 2012 (Lei 12.772/2012) que desvinculou os professores aposentados da paridade estabelecida como princípio constitucional em 1988, fruto da vitória das lutas que configuram a segunda descontinuidade. De fato, os novos docentes já não podem se reconhecer como sujeitos portadores dos mesmos direitos que seus colegas mais próximos à aposentadoria, nem mesmo em relação aos aposentados. A indiferença do Proifes, como entidade que busca validar posições de governos, em relação aos seus antigos colegas (e orientadores), de um lado, e ao futuro de seus estudantes, de outro, denota um ethos muito distinto do que predominou na segunda descontinuidade. O mesmo é verdade para as correntes que atuaram para impedir que o movimento docente autônomo lograsse êxito na isonomia entre jovens docentes e seus colegas que ingressaram há mais tempo e na paridade entre todos os ativos e destes com os aposentados.

No contexto de aprofundamento da austeridade, não é possível a expansão das universidades públicas lastreadas por crescimento orçamentário. Ao contrário, está em curso um grave estrangulamento orçamentário que em nada difere do arrocho do período de governo Bolsonaro. É profundamente irrealista supor que a terceira descontinuidade, sumamente destrutiva, poderá ser superada por meio de negociações nos marcos das políticas governamentais, a partir de mobilizações virtuais e de esporádicas visitas de convencimento a dirigentes governamentais.

Em virtude das ásperas condições de trabalho em diversas áreas de conhecimento e da localização em campi periféricos, muitos professores já perceberam que as vias para as novas rotas de excelência estão interditadas e, ainda mais, que as suas promessas não são realistas para a quase totalidade dos docentes. Em virtude do arrocho salarial, a progressão na carreira não é acompanhada de efetiva valorização da remuneração, obstando projeções otimistas quanto ao futuro.

Sobressai, desse modo, formas de consciência sobre a docência nos dias de hoje que requerem maior aproximação do Andes-SN com os anseios dos novos docentes. Inquietações importantes, como as que deflagraram a segunda descontinuidade, estão presentes no cotidiano do trabalho – carreira, regime jurídico, aposentadoria, condições de trabalho e financiamento das universidades. Como foi possível depreender pela elevada participação de jovens docentes na importante greve das instituições Federais de 2024, muitos perceberam pela experiência de fazimento de lutas que a organização no Sindicato Nacional pode assegurar conquistas, mas que as lutas da categoria, por si sós, não são capazes de mudar efetivamente a difícil realidade das Federais.

A complexidade maior é como tratar as pautas de fato estruturantes que estão na raiz do subfinanciamento das Federais e dos baixos salários, como as políticas de austeridade, a exemplo da Emenda Constitucional no95/2016 e do Regime Fiscal Sustentável. A radicalização das lutas em favor de pautas específicas torna-se uma saída aparentemente combativa, mas pouco eficaz. Uma categoria do setor de educação, a despeito de sua relevância, não é capaz de, por si só, alterar a política econômica do bloco no poder. Desse modo, a questão do sindicalismo classista volta ser um tema crucial para contrarrestar a terceira descontinuidade.

Se nos anos 1980 a maior parte dos militantes do Partido dos Trabalhadores optou por um sindicalismo classista e autônomo, embora com muitas ressalvas da corrente Articulação, nos anos 2000 o quadro mudou. A concepção de que as seções sindicais devem se afastar do sindicalismo classista, autônomo frente aos governos e aos partidos, retornando às práticas defendidas pelo campo que pretendia criar uma Associação Nacional de tipo acadêmico-corporativa passou a ser defendida em nome da governabilidade dos governos eleitos com quadros do PT.

Entretanto, as respostas logradas pelas negociações encerradas nos gabinetes sequer arranham as perdas orçamentárias e o arrocho salarial decorrentes das políticas econômicas patrocinadas pelo bloco no poder. E, com isso, as universidades federais estão encolhendo (atualmente são responsáveis por cerca de 8% dos novos estudantes que ingressam no ensino superior) e sua infraestrutura está sendo rapidamente erodida por anos de estrangulamento orçamentário. A alternativa do silêncio diante do desmonte é equivalente à paz dos cemitérios. A terceira descontinuidade não é, por conseguinte, apenas a da mercantilização e da privatização do cotidiano acadêmico, mas, sobretudo, a ruptura com a possibilidade de um sistema federal de ensino superior capaz de tornar as universidades públicas uma das nervuras centrais da Nação, aptas a produzir conhecimento e a garantir processos formativos complexos indispensáveis ao enfrentamento dos grandes dilemas da humanidade.

O resgate, por certo difícil e complexo, do sindicalismo autônomo, democrático e classista, comprometido com os grandes problemas dos povos, como nos instou Florestan Fernandes, é condição necessária para evitar o esgarçamento que caracteriza a terceira descontinuidade no capitalismo dependente. Foi possível inventar as suas bases na segunda descontinuidade. Os seres humanos somente se colocam problemas em vias de resolvê-los, nos lembrou Marx. O histórico de lutas sugere que será possível inventar práticas que possibilitem enfrentar a austeridade e, assim, reverter a comoditização e a política de desmanche das universidades federais, uma exigência contra a barbárie e contra a fascistização da sociedade brasileira.

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  • THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
  • 1
    Foi então constituído um novo aparelho como braço sindical do governo no movimento [2004]. O PROIFES, que foi se apresentando como oposição e, dada as seguidas derrotas eleitorais, decidiu “autonomizar-se da categoria”. O PROIFES passou à prática da democracia virtual. Tudo, absolutamente tudo, inclusive sua fundação, a eleição das suas diretorias, é feito pela internet. [...] O PROIFES não precisava de bases, já que era “convidado” pelo governo nas negociações. A um só tempo o governo combate e tenta destruir nosso Sindicato, e privilegia aqueles que são seus homens de confiança. Mesmo em relação ao PROIFES, os resultados são pífios, mas têm a aparência de melhores salários, de construção de novas universidades etc. (Dias, 2011, p. 70).
  • 2
    O Primeiro Congresso dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas no Brasil, conhecido como I Congresso Camponês, realizado na cidade de Belo Horizonte em novembro de 1961, estava inserido nas lutas pela imediata reforma agrária, reunindo cerca de 5 mil pessoas.
  • 3
    Darcy Ribeiro (1968) chamava atenção para o fato de que a reforma universitária desejada no âmbito das reformas de base estava bloqueada pela ditadura e não só por forças internas, como pelas pressões estadunidenses explicitadas no referido projeto Camelot e pela assessoria da USAID.
  • 4
    A 29ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), de 1977, sofreu total restrição por parte do governo. Tendo como presidente o professor da USP Oscar Sala, físico, e como secretária-geral a professora Carolina Martuscelli Bori, do Instituto de Psicologia da USP, esta última responsável pela organização do evento, a SBPC tinha sua reunião prevista para acontecer em Fortaleza, na Universidade Federal do Ceará. Em data próxima ao evento, o então ministro da Educação Ney Braga comunicou aos dirigentes da instituição que não haveria verba para o financiamento da reunião e as universidades federais ficaram proibidas de sediá-la. Integrantes da SBPC, em reunião com cerca de 900 sócios, indicaram a USP como sede alternativa, mas o aval da reitoria não foi obtido. Os dirigentes então recorreram à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). A reitora, professora Nadir Kfouri, com a anuência imediata de D. Paulo Evaristo Arns, acolheu a proposta. (Comissão Nacional da Verdade. Relatórios, V. 2. 2014. Violações dos Direitos Humanos na Universidade. (Org. Rosa Maria Cardoso da Cunha, disponível em https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/volume_2_digital.pdf.
  • 5
    Cabe mencionar que Giannotti, também estudioso de Marx, foi cassado pelo AI-5 tal como Florestan, embora com uma concepção de universidade marcadamente distinta.
  • 6
    Criado em 1996 pelo DECRETO Nº 1.857, DE 10 DE ABRIL DE 1996, o PRONEX é um instrumento de estímulo à pesquisa e ao desenvolvimento científico e tecnológico do País, por meio de apoio continuado e adicional aos instrumentos hoje disponíveis, a grupos de alta competência, que tenham liderança e papel nucleador no setor de sua atuação. https://www.gov.br/cnpq/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programas/pronex.
  • 7
    Lei nº 13.800 de 2019 dispõe sobre a criação de fundos patrimoniais no Brasil. Estabelece que o patrimônio do fundo e da instituição apoiada sejam segregados contábil, administrativamente e financeiramente. Entre os mais conhecidos que atuam no fomento da educação: Fundação Bradesco, Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Instituto Unibanco, Fundação Itaú Social, Instituto Ayrton Senna, Amigos da Poli (USP), Fundo da USP, Fundo Centenário (UFRGS), Lumina (Unicamp), Fundo Catarina (UFSC). Paula Jancso Fabiani e Andréa Wolffenbüttel. Panorama dos Fundos Patrimoniais do Brasil. IDIS.2022.
  • Editor Chefe:
    Renato Francisquini Teixeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Out 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2024
  • Aceito
    06 Maio 2025
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