Open-access A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE NAS UNIVERSIDADES FEDERAIS

THE PRECARIOUSNESS OF TEACHING WORK IN FEDERAL UNIVERSITIES

LA PRECARIEDAD DEL TRABAJO DOCENTE EM LAS UNIVERSIDADES FEDERALES

Resumos

O artigo tem como objetivo principal refletir sobre a precarização do trabalho docente nas Universidades Federais brasileiras, partindo do pressuposto de que essa é uma das expressões de um processo mais geral de reestruturação do serviço público, decorrente da emergência e fortalecimento do Estado neoliberal. No caso do sistema educacional, essa reestruturação instituiu e promoveu o princípio da concorrência e o modelo empresa por meio da adoção de práticas de gestão baseadas em critérios de “eficiência”, produtividade e resultados mensuráveis, alterando profundamente a organização do trabalho nas instituições de ensino, particularmente nas Universidades públicas brasileiras. O texto é constituído de três partes principais. Na primeira são apresentadas algumas transformações que constituem o Estado neoliberal; na segunda parte se discute as principais mudanças no serviço público brasileiro e, por fim, examina-se como a adoção do princípio da concorrência e do modelo empresarial alterou a organização do trabalho na Universidade em um quadro de subfinanciamento público, e tem acarretado a precarização do trabalho docente.

Palavras-chave:
Precariedade; Trabalho docente; Universidades Federais; Neoliberalismo


The article’s main objective is to reflect on the precariousness of teaching work in Brazilian federal universities, based on the assumption that it is one of the expressions of a more general process of restructuring the public service, resulting from the emergence and strengthening of the neoliberal State. In the case of the educational system, this restructuring instituted and promoted the principle of competition and the company model through the adoption of management practices based on criteria of “efficiency”, productivity and measurable results, profoundly changing the organization of work in educational institutions, particularly in Brazilian public universities. The text is divided into three main parts. The first presents some transformations that constitute the neoliberal State; the second part discusses the main changes in the Brazilian public service and, finally, examines how the adoption of the principle of competition and the business model has changed the organization of work in universities in a context of public underfunding, and has led to the precariousness of teaching work.

Key words:
Precariousness; Teachingwork; Federal Universities; Neoliberalism


El principal objetivo del artículo es reflexionar sobre La precariedad del trabajo docente em las universidades federales brasileñas, partiendo del supuesto de que es una de las expresiones de un proceso más general de reestructuración del servicio público, resultante del surgimiento y fortalecimiento de El Estado neoliberal. Em el caso del sistema educativo, esta reestructuración instituyó y promovió el principio de competencia y el modelo de empresa mediante la adopción de prácticas de gestión basadas em criterios de “eficiencia”, productividad y resultados medibles, cambiando profundamente la organización del trabajo em las instituciones educativas, particularmente en las universidades públicas brasileñas. El texto consta de tres partes principales. El primero presenta algunas transformaciones que constituyen el Estado neoliberal; em la segunda parte, se discuten los principales câmbiosem El servicio público brasileño y, finalmente, se examina cómo la adopción del principio de competencia y del modelo de negócios cambió la organización del trabajo em la universidadenun contexto de subfinanciación pública, y ha llevado a la precariedad del trabajo docente.

Palabras clave:
Precariedad; Trabajo docente; Universidades Federales; Neoliberalismo


INTRODUÇÃO

A precarização do trabalho docente nas Universidades Federais brasileiras é uma das expressões de um processo mais geral de reestruturação do serviço público no contexto do Estado neoliberal. A adoção do princípio da concorrência e de modelos gerenciais pautados em critérios de eficiência e produtividade modificou profundamente a organização do trabalho acadêmico, redefinindo os sentidos do ensino, pesquisa e extensão nas Instituições Federais de Ensino Superior.

Este artigo analisa as transformações estruturais do capitalismo contemporâneo que impulsionaram a reestruturação do serviço público no Brasil, com foco nas mudanças organizacionais do trabalho docente nas Universidades Federais brasileiras, cujos efeitos incluem a precarização do trabalho. Vale ressaltar que, embora essa precarização se manifeste de forma desigual, dependendo de fatores como o tempo de existência das instituições (novas e antigas) e sua localização geográfica (Nordeste, Sudeste, etc.), os indicadores e a bibliografia especializada revelam que se trata de uma realidade que atinge todas as Universidades, ainda que com graus diferentes.

O texto é dividido em três partes principais. Na primeira são discutidas as transformações do Estado no capitalismo contemporâneo. A segunda parte aborda as principais mudanças no serviço público brasileiro em um contexto de fortalecimento do neoliberalismo. Por fim, examina-se como a adoção do princípio da concorrência e do modelo empresarial alterou, de forma significativa, a organização do trabalho docente nas Universidades, resultando na precarização do trabalho.

AS TRANSFORMAÇÕES DO ESTADO NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

O trabalho nas Universidades públicas só pode ser examinado à luz das transformações mais gerais que vêm ocorrendo no capitalismo contemporâneo, destacadamente os processos de reestruturação do Estado e das relações de trabalho.

Um capitalismo globalizado, financeirizado e sob a hegemonia neoliberal que redefiniu radicalmente as formas de organização do trabalho em consonância com uma verdadeira revolução digital, sob o impulso e comando da lógica financeira, em que o rentismo ocupa um lugar central no processo de acumulação.

A financeirização não determina apenas a conduta econômica, mas a vida social e pública, transferindo normas de comportamento tipicamente privadas e mercantis para outros campos sociais, como educação, saúde, previdência, assistência social, cultura, segurança, entre outros. Processo que pode ser observado tanto na transferência de serviços públicos para empresas privadas, como na reestruturação interna do Estado e na gestão pública, que expressam a mercantilização da vida (Harvey, 2014; Dardot e Laval, 2016, Bin, 2017). E, nessas transformações históricas do capitalismo, nas últimas quatro décadas, o Estado, compreendido como relação social e de dominação, assumiu novas configurações no interior mesmo da sociedade capitalista, refletindo uma condensação das relações de forças entre as classes e suas frações (Poulantzas, 1977).

Nessa medida, o Estado neoliberal no capitalismo financeirizado é crucial para compreender a essência do debate sobre a interminável “crise fiscal” do Estado brasileiro e, consequentemente, a defesa de um ajuste fiscal permanente, impactando diretamente na educação pública e nas Universidades. A natureza das reformas do Estado, nos últimos quarenta anos expressa a institucionalização de um Estado de novo tipo, formatado pelo capitalismo flexível sob a domínio das finanças, no qual ocorre a apropriação privada do fundo público através de um conjunto de mecanismos – desonerações, incentivos fiscais, subsídios e destacadamente a dívida pública – com a crescente transferência de recursos públicos para o setor privado (Druck, 2023).

O movimento internacional de reformas do Estado, que tem origem na Inglaterra, durante o governo de Margareth Tatcher e nos Estados Unidos da América (EUA) sob a presidência de Ronald Reagan, introduz no plano da organização interna do trabalho no serviço público, o gerencialismo, associado com a ideia de “governança corporativa”, que propõe gerir o Estado como uma empresa, tendo como um dos princípios a responsabilização e autonomia controlada dos trabalhadores, buscando transformar “burocratas” em “empreendedores”, que assumem riscos, têm que apresentar resultados e são responsabilizados e vistos como culpados pelas deficiências da ação dos governos (Gaulejac; Hanique, 2024; Paes de Paula, 2005). Complementarmente, o “culto à excelência”, especialmente nos Estados Unidos da América, contamina a gestão pública em todas as áreas.

O gerencialismo prega a motivação, a ambição criativa, a inovação, a excelência, a independência, a cultura de resultados e da avaliação de desempenho, a flexibilidade e a responsabilidade pessoal, qualidades e valores que alimentam o que Gaulejac e Hanique (2024) denominam de “organizações paradoxantes”, que podem ser identificadas a partir da máxima: “fazer mais com menos”. Pois, ao mesmo tempo que se prega essa nova conduta do servidor público, são reduzidos os recursos do orçamento público, é enxugado o aparelho de Estado, são adotadas formas precárias de contratação, em que se reduzem os concursos públicos e a estabilidade, se amplia a terceirização e se adota a digitalização do trabalho, inclusive com o uso de aplicativos.

Nesse quadro, os servidores públicos estão submetidos à paradoxos, que os têm levado a condições extremamente precárias de trabalho e ao adoecimento, pois o cotidiano de trabalho os obriga a dizer sim, quando teriam que dizer não, a assumir responsabilidades de forma solitária, em uma crescente ausência de solidariedade do coletivo de trabalho.

Segundo Gaulejac e Hanique (2014, p. 113):

Cada trabalhador é então condenado a fazer escolhas em uma situação cada vez mais caótica, que nenhuma instância de decisão permita harmonizar o conjunto. Cada um é impelido a tomar decisões por si próprio, impostas na urgência. O curto prazo torna-se a regra. Cada um transfere para o outro a responsabilidade das “disfunções” do trabalho. A desorganização contínua se torna a norma. (....) Fala-se de flexibilidade, mobilidade e adaptabilidade, termos que tentam descrever uma situação caótica que ninguém parece controlar.

Não seria esse o ambiente de trabalho nas Universidades hoje? E por que isso acontece? Para responder a essa questão, faz-se necessário explicitar o que vários estudiosos denominam de “hegemonia neoliberal”. Para Harvey (2014, p. 15), o neoliberalismo não é somente uma alternativa econômica, pois para “reestabelecer o poder de classe”, é preciso um modo de pensamento que se torne dominante e, para isso, tem que “... propor um aparato conceitual que mobilize nossas sensações e nossos instintos, nossos valores e nossos desejos, assim como as possibilidades inerentes ao mundo social que habitamos” e, quando esse modo de pensamento ou concepção de mundo se torna dominante, “....esse aparato conceitual se incorpora a tal ponto ao senso comum que passa a ser tido por certo e livre de questionamento.” Em outras palavras, se tornou hegemônico, conforme definido pelo autor, “...como modalidade de discurso e passou a afetar tão amplamente os modos de pensamento que se incorporou às maneiras cotidianas de muitas pessoas interpretarem, viverem e compreenderem o mundo.” (Harvey, 2014, p. 13).

Em uma perspectiva similar, embora em uma outra vertente teórica, Dardot e Laval (2016, p. 18) consideram que o neoliberalismo é também uma resposta a uma “crise de governamentalidade”, termo cunhado por Foucault, que significa “[...] o encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si”, ou seja, [...] governar é conduzir a conduta dos homens, desde que se especifique que essa conduta é tanto aquela que se tem para consigo mesmo quanto aquela que se tem para com os outros. Por isso, defendem que o neoliberalismo é uma nova racionalidade, pois “...tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados.” (Dardot; Laval, 2016, p. 17).

De acordo com Boron (1999, p.10), criou-se um “senso comum” neoliberal, uma “nova sensibilidade, nova mentalidade que penetra muito profundamente no chão das crenças populares”. Fruto de um projeto de sociedade que buscou “manufaturar um consenso” (expressão de Noam Chomsky), com recursos multimilionários, tecnologia mass-mediática e, na atualidade, com as redes sociais, processando uma verdadeira lavagem cerebral para aceitar as políticas neoliberais. Assim, consegue convencer de que não há outra alternativa e o neoliberalismo se apresenta como única saída. Além disso, teve o poder de mudar até o sentido das palavras: “reforma”, que tinha uma conotação positiva e progressista, foi apropriado e “reconvertido” como processos involutivos e antidemocráticos. As reformas econômicas na AL, que aumentam a desigualdade, esvaziam as instituições democráticas, são “contrarreformas”.

Ainda, segundo Boron (1999), ocorreu um processo de neoliberalização dos sindicatos e suas direções, convencidas de que não têm forças para enfrentar essas mudanças, optam por se adaptar, em uma postura defensiva diante da inevitabilidade dessa “ordem econômica”. Nessa medida, muitas organizações sindicais dos servidores públicos passam a negar os espaços coletivos e públicos de decisão, a exemplo de assembleias e de movimentos paredistas (greves), declarando-os ineficientes e superados.

AS TRANSFORMAÇÕES DO SERVIÇO PÚBLICO NO BRASIL

O gerencialismo, a governança corporativa e os modelos de reforma do Estado para além das experiências inglesa e norte-americana se difundiram pela Europa e América Latina. No caso brasileiro, foi a partir dos anos 1990, submetido à agenda neoliberal, que a reforma do Estado passou a ser defendia para solucionar a suposta “crise do Estado”, que teria se desviado de funções básicas ampliando a presença no setor produtivo, acarretando o agravamento da crise fiscal e da inflação e, portanto, precisava ser “revolucionado”.

Para o Ministério da Administração Federal da Reforma do Estado, criado por Fernando Henrique Cardoso, em 1995, o Estado precisaria ser reconstruído e a Reforma deveria solucionar quatro grandes problemas: a redefinição do seu papel como regulador, isto é o grau de intervenção no mercado; a recuperação da “governança”, ou seja, a capacidade financeira e administrativa de implementar as decisões do governo, ou a solução da crise fiscal; o aumento da governabilidade, garantindo legitimidade para governar e a delimitação do tamanho e das funções do Estado, através das privatizações, da “publicização” e da terceirização (Druck, 2022).

A aprovação da Emenda Constitucional nº19, em 1998, estabeleceu as bases da reforma, aprovando as linhas fundamentais do Plano Diretor, que propunha um modelo de administração pública gerencial e de resultados. Segundo Amorim (2009), oitenta preceitos da Constituição foram alterados e introduzidos sete novos artigos. Para o autor, a reforma administrativa, no interior da reforma do aparelho do Estado, foi a mais radical, baseada na experiência da administração gerencial da iniciativa privada (Amorim, 2009).

Após três décadas dessa Reforma do Estado, não houve nenhuma “contrarreforma” no sentido de romper com essa diretriz neoliberal, causando um processo de precarização do trabalho dos servidores públicos e, consequentemente, dos serviços públicos prestados à sociedade. A terceirização cresceu sem controle, o uso de Organizações Sociais (OSs), especialmente na área de saúde, avançou enormemente sem a devida fiscalização por parte do poder público, os contratos temporários e pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) cresceram mais do que os estatutários nos municípios e estados, que congregam a maioria dos servidores públicos do país.

As políticas neoliberais no Brasil, mesmo com intensidades distintas, nas diferentes conjunturas desde os anos 1990, continuam a ser aplicadas e, nos anos 2000 com maior radicalidade, a partir de 2016. A Emenda Constitucional 95 (teto de gastos) que definiu o congelamento dos gastos sociais por vinte anos – e que foi inviabilizada pela crise sanitária da pandemia do coronavírus –, a contrarreforma trabalhista, a contrarreforma da previdência e a proposta de “reforma administrativa” do Governo Bolsonaro-Guedes, são alguns dos fortes exemplos, apesar de encontrarem resistências e movimentos contra hegemônicos, especialmente nas Universidades públicas.

No plano da gestão pública, apesar da PEC 32 (Reforma Administrativa) proposta pelo governo Bolsonaro-Guedes não ter sido aprovada, um conjunto de dispositivos, como decretos-lei, portarias, “programas”, e decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), estão em curso e reestruturando o serviço público. Cabe destacar o Decreto-Lei nº 11.072/2022, que dispõe sobre o Programa de Gestão e Desempenho - PGD da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. “O PGD é instrumento de gestão que disciplina o desenvolvimento e a mensuração das atividades realizadas pelos seus participantes, com foco na entrega por resultados e na qualidade dos serviços prestados à sociedade.” (Decreto-Lei nº 11.072- 2022, grifos nossos). Um dos principais conteúdos do Programa de Gestão e Desempenho (PGD) é a regulação do teletrabalho, a ser implementado de forma regular no serviço público federal, inclusive nas Universidades, para os técnico-administrativos.

No atual governo, eleito em 2022, não houve ruptura com a política neoliberal, o que se evidencia pela continuidade e reafirmação do Programa de Gestão e Desempenho, um exemplar do gerencialismo na gestão pública; e do ajuste fiscal permanente, através do “arcabouço fiscal”, que tem a mesma lógica e impactos do Teto de Gastos, com cortes no orçamento público, alimentando o subfinanciamento na educação, saúde, assistência etc., sem qualquer limite à transferência de recursos públicos às instituições financeiras, pelo pagamento dos juros da dívida pública.

Os resultados dessa política fiscalista para as Universidades públicas são de grande gravidade, pois inviabilizam o seu funcionamento. Os exemplos se reproduzem na mídia, como corte de energia por falta de pagamento, desabamento de tetos de salas de aula, para citar o caso da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a maior Universidade Federal do país. Um quadro de precarização da infraestrutura generalizado em todas as Universidades junto com a suspensão ou congelamento de financiamentos de equipamentos, inviabilizando as atividades de ensino e pesquisa no caso dos docentes e dificultando, quando não impossibilitando, o trabalho dos técnico-administrativos.

A NEOLIBERALIZAÇÃO DAS UNIVERSIDADES E A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE

As Universidades públicas, como parte do Estado, não estão imunes ao “consenso neoliberal” e vêm reproduzindo, em seu interior, as máximas do gerencialismo. Os critérios de avaliação acadêmica das pesquisas e dos trabalhos produzidos por docentes e pesquisadores, por exemplo, têm uma ótica produtivista, “focando nos resultados” e não nos processos, como pleiteia um dos princípios do gerencialismo. É nesta direção que aponta Chauí (2001, p. 55) ao analisar a difusão do neoliberalismo nas Universidades: “a Universidade [operacional] está estruturada segundo o modelo organizacional da grande empresa, isto é, tem o rendimento como fim, a burocracia como meio e as leis do mercado como condição”.

Para Laval (2004; 2021), a Universidade neoliberal instituiu e promoveu o princípio da concorrência e o modelo empresa através da difusão de práticas de gestão baseadas em critérios de eficiência, produtividade e competitividade, alterando radicalmente a sua função social. Se no passado, a Universidade, inspirada nas ideias de Wilhelm von Humboldt, preconizava a integração entre ensino e pesquisa, autonomia universitária, a formação crítica e a produção de um conhecimento universal, hoje, a Universidade está cada vez mais contaminada pelas ideias neoliberais, pressionada a adotar o alinhamento da pesquisa e do ensino às demandas do mercado com intuito de se transformarem em instituições empresariais acadêmicas voltadas à rentabilidade, a exemplo do que foi o Programa Future-se (Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores), proposto pelo governo Bolsonaro e rejeitado pala imensa maioria das Universidades Federais, cujo projeto de lei foi arquivado por falta de apoio e pela reação negativa das instituições representativas dos segmentos da Universidade.

Na Universidade neoliberal (ou operacional), o conhecimento é concebido como um bem econômico, tornando-se um produto de mercado. Na condição de bem econômico, o valor do conhecimento não está relacionado com sua qualidade intrínseca ou contribuição intelectual, mas é definido por métricas quantitativas, a exemplo dos índices de citação, rankings, etc. Isso cria um mercado simbólico, no qual o conhecimento possui um valor agregado (Laval, 2021).

Neste contexto, a produtividade dos professores e pesquisadores, que no passado era mensurada, principalmente, em função da relevância social e do impacto do trabalho, passa a ser avaliada quase que exclusivamente em números – como o número de artigos publicados, índice de citação, produtividade bibliométrica, etc. Esse processo altera a dinâmica de produção do conhecimento, pois incentiva a publicação de artigos curtos (os papers) no lugar de livros ou obras mais extensas (Laval, 2021).

A prioridade, portanto, passa a ser aumentar métricas e escores, transformando os docentes em “empreendedores de si”, um novo professor universitário, que inspirado no conceito de homem empresa de Dardot e Laval (2016), será denominado de professor-empresa. Para além da mercadorização das Universidades, o neoliberalismo também estabelece novas formas de relacionamentos acadêmicos e subjetividades, o docente enquanto parte de um espaço coletivo de produção crítica da pesquisa, do ensino e extensão passa a ser um gerenciador de suas carreiras como um negócio, o neoliberalismo conformando uma nova vida universitária, no sentido expressado por Dardot e Laval (2016, p. 16):

O neoliberalismo não destrói só regras, instituições e direitos. Ele produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades [...] Esta norma impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo de mercado, obriga a justificar as desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comporta-se como uma empresa.

Dessa forma, cada professor-empresa é responsável por gerir seu portfólio de atividades, competências e habilidades com intuito de se adaptar ao mercado acadêmico, tendo em vista que ele é o próprio gestor de seu “capital humano”. Esta nova forma de se relacionar leva ao esvaziamento dos espaços públicos e de construção coletiva, consolidando uma lógica individualista e competitiva da vida acadêmica.

Em suma, além da tradicional polivalência do professor (ensinar, pesquisar, fazer extensão, gestão administrativa e produzir artigos e livros), acrescenta-se o “business”, função que caracteriza a busca por financiamento, a negociação de projetos e convênios com empresas e instituições, além do trabalho de consultorias (Lemos, 2010). Tal atividade é cada vez mais recorrente, por conta dos cortes nos recursos para as Universidades públicas, sobretudo as federais, e para as pesquisas. O professor “business” precisa demonstrar o seu empreendedorismo como indispensável ao sucesso, pois é esse, segundo a cultura dominante, o responsável para vencer a concorrência com os demais empreendedores, conduta que, na avaliação de estudiosos, dilacera a Universidade.

Sob a perspectiva mercadológica, na Universidade neoliberal não apenas a pesquisa, mas também o ensino é visto como um produto ou serviço que tem um valor agregado. As atividades de ensino são concebidas a partir de um novo “senso comum pedagógico”. Essa noção de senso comum pedagógico é trabalhada por Fávero e Trevisol (2020), que identificam que os princípios mercadológicos alteram as práticas pedagógicas, currículos e a própria função social das Universidades, inclusive as públicas, que deixam de ser o espaço da formação crítica para focar na competência, produtividade, eficácia e rentabilidade.

Veja-se como essa lógica mercadológica, ao transformar o ensino e a pesquisa em mercadorias, resultou em um processo de intensificação do trabalho docente e em uma precarização que se tornou sistemática (Druck, 2021).

Alguns indicadores da precarização do trabalho docente nas universidades federais

Preliminarmente, é importante destacar que a partir de 2003, a Educação Superior Federal brasileira iniciou um processo de expansão que pode ser dividido em três fases. A primeira fase, entre 2003 e 2007, teve como principal característica a interiorização do ensino, por meio da criação de novas Universidades e da ampliação de campi em regiões mais distantes das grandes cidades. A segunda fase, ocorrida entre 2008 e 2012, foi marcada pela implementação do Programa de Apoio à Reestruturação e Expansão das Universidades Brasileiras (Reuni). A terceira fase, entre 2013 e 2014, teve foco na conclusão das obras iniciadas na fase anterior, além da implementação de políticas voltadas para a fixação de profissionais nas instituições universitárias (Paula; Almeida, 2020).

Vale ressaltar que o Reuni tinha as seguintes metas globais, i) aumento do número de matrículas; ii) elevação da taxa de conclusão para 90%; iii) aumento da relação professor-aluno para uma proporção de 18 alunos por docente. Diversas pesquisas apontam como aspecto extremamente positivo o fato de que, por meio do Reuni, as Universidades conseguiram expandir o número de vagas e criar novos cursos, seja por meio da ampliação de campi ou da criação de novas Universidades. No entanto, também é destacado que essa expansão estava submetida a uma lógica gerencialista, em que se buscava “fazer mais com menos recursos” (Leher, 2010; Lemos, 2010).

Um indicador desse processo foi o aumento da relação professor-aluno, que, na prática, resultou em intensificação e sobrecarga do trabalho docente. Além disso, parte do financiamento da Educação Superior Federal passou a depender da adesão às diretrizes do programa, evidenciando uma relação entre o apoio financeiro e a aceitação dessas novas regras.

De acordo com o Censo da Educação Superior de 2023, existem 69 Universidades federais no Brasil, com um corpo docente de 93.927 profissionais, entre efetivos e temporários (substitutos e visitantes). O perfil médio desse corpo docente é predominantemente masculino, branco, doutor e com dedicação em tempo integral.

Há uma vasta produção acadêmica que aborda os impactos da recente expansão da Educação Federal no contexto neoliberal e seus reflexos sobre o trabalho docente nas Universidades. Nesta seção serão revisitadas as pesquisas realizadas pelos membros do grupo de pesquisa Trabalho, Precarização e resistência. O foco recairá sobre dois estudos conduzidos por pesquisadoras do referido grupo.

Inicialmente, destaca-se que, embora sejam utilizados os estudos empíricos dos membros de pesquisa mencionados acima, outras investigações indicam que a precarização do trabalho docente é uma realidade em todas as Universidades Federais, ainda que se manifeste de forma desigual em decorrência de diversos fatores, como o tempo de existência das instituições (novas e antigas), sua localização geográfica (Nordeste, Sudeste etc.), entre outros.

O primeiro estudo, intitulado Sentidos e Significados do Trabalho Docente na Universidade Federal da Bahia, foi desenvolvido por Bleicher, Oliveira e Silva (2014). A metodologia contou com um levantamento dos dados secundários no setor pessoal da UFBA, cujo objetivo foi traçar o perfil dos docentes das Unidades de Direito, Educação e Odontologia. Na segunda etapa, foram realizadas entrevistas com docentes efetivos e substitutos dessas unidades. O segundo estudo, conduzido por Vieira (2016) na mesma universidade, teve como objetivo construir indicadores qualitativos sobre a precarização social do trabalho docente nas Universidades Federais brasileiras, além dos movimentos de resistência a esse fenômeno, com base na análise da produção acadêmica sobre o tema.

A partir das referidas pesquisas, fica evidente que a expansão da Educação Federal sob a ótica do neoliberalismo, embora tenha ampliado o acesso ao Ensino Superior, alterou profundamente a dinâmica de trabalho dos docentes das Universidades, que passaram a vivenciar um processo crescente de precarização.

Etimologicamente, precarização deriva do termo “precário”, originado do latim precarius, que significa algo instável, frágil ou insuficiente (Seligmann-Silva, 2011). Assim, precarizar se refere à ação de tornar algo precário. Para Druck (2013, p. 373), a precarização social do trabalho é um “processo econômico, social e político que se tornou dominante e central na atual dinâmica do novo modelo de desenvolvimento capitalista – a acumulação flexível”. Essa precarização se caracteriza pelo surgimento de um novo estilo de trabalho e vida, que resulta da combinação da flexibilização das estruturas produtivas e salariais com o desmantelamento da proteção social.

Ao analisar os dados da pesquisa Sentidos e Significados do Trabalho Docente na Universidade Federal da Bahia,Silva (2017), inspirada na tipologia proposta por Druck (2013), constatou os seguintes indicadores de precarização: 1) Formas de inserção e discriminação; 2) Intensificação do trabalho; 3) Produtivismo acadêmico; 4) Adoção de métricas quantitativas; 5) Problemas de saúde.

Quanto às formas de inserção e discriminação, foi constatada a presença de professores efetivos, substitutos, visitantes e pós-doutorandos (que atuam como professores em cursos de pós-graduação). Os professores efetivos são concursados e, por essa razão, têm estabilidade no emprego. Normalmente, os efetivos possuem uma carga horária de sala de aula menor do que a dos substitutos. Já esses últimos são contratados por processo seletivo, com vínculo temporário de dois anos no máximo e carga horária de aula de 16 horas semanais. Os substitutos dedicam-se quase que exclusivamente ao ensino de graduação, uma área que, no contexto acadêmico atual, é desvalorizada em comparação à pesquisa ou a pós-graduação. Essa diferença entre os professores efetivos e substitutos se reflete também na distribuição das atividades, tendo em vista que os primeiros podem balancear sua carga horária entre ensino, pesquisa e extensão, enquanto os segundos se concentram apenas no ensino.

A intensificação do trabalho está dada pelas várias tarefas desempenhadas pelos professores: além das atividades em sala de aula, assumem funções burocráticas que, no passado, eram exercidas por funcionários técnico-administrativos, e ainda precisam se dedicar a atividades de pesquisa, extensão e gestão. No que diz respeito à gestão, verifica-se uma dupla questão: i) os docentes necessitam assumir, em algum momento da carreira, atividades de gestão, como chefia de departamento ou colegiado etc.e ii) assim como devem lidar com a gestão da própria carreira como um negócio, o que implica a participação em congressos, bancas, publicações em periódicos indexados e a tarefa de dar visibilidade a essas atividades.

Em outras palavras, o docente passa a ser um “empreendedor de si mesmo” ou um professor-empresa, que deve gerir seu portfólio de habilidades e competências, como já assinalado anteriormente.

Os depoimentos dos entrevistados abaixo são ilustrativos da sobrecarga de trabalho na Universidade neoliberal:

Eu não lembro a última vez que eu entrei em casa e disse hoje eu não tenho nada pra fazer, porque você tem prova pra preparar, prova pra corrigir, e-mail de aluno pra responder, artigo pra ler, atualizar aula tal e a maioria das vezes eu faço isso em casa por isso que eu disse que não distingo o que é hora de trabalho do que é hora de não trabalho (Entrevistada O2).

...] é uma carga horária pesada, porque nosso papel não é só dar aula, é também dar aula. [...} Aquele professor que não produz conhecimento está acabado, está condenado ao ostracismo, enfim, será um mero repetidor. A principal dificuldade hoje é a sala de aula, quantidade de alunos, eu pego turmas com 45, 50 estudantes, às vezes, 60, então, essa é uma dificuldade [...] (Professor, DE).

Ao analisar o ambiente de trabalho na Universidade neoliberal, Laval (2021) chama atenção para essa questão da sobrecarga de trabalho dos professores-pesquisadores e a dificuldade de separar o trabalho da vida pessoal. Laval (2021) aponta que o “tempo do mercado universitário” transformou o trabalho acadêmico, que prioriza as demandas burocráticas. Isso reduz o tempo para atividades fins, como ensino e pesquisa, e faz com que a pressão por maior produção ultrapasse o ambiente de trabalho e invada a vida pessoal. É por isso que o depoimento da docente demonstra como se desfaz a fronteira entre trabalho e casa.

Em relação à atividade de gestão, uma das evidências de como a precarização se processa está nas instituições responsáveis pelo financiamento da pesquisa e da pós-graduação no país, como Capes e CNPq. As avaliações dos Programas de Pós-graduação, através dos relatórios (Plataforma Sucupira), considerados quase por unanimidade pelos coordenadores, como uma “verdadeira tortura”, são exemplares da “organização paradoxante” (Gaulejac; Hanique, 2024).

Os critérios de avaliação sintetizam o “fazer mais com menos”. Situação que atinge todos os espaços de gestão, a exemplo das chefias de departamento ou de colegiados de graduação, sem falar nas direções de unidades, pois enquanto as demandas aumentam, os recursos – de todo tipo – diminuem, exigindo que esse gestor dê respostas individualmente sem o respaldo da instituição e do governo federal.

A sobrecarga de trabalho está diretamente relacionada a outro indicador identificado por Silva (2017): o produtivismo acadêmico. Esse fenômeno se manifesta na pressão exercida, especialmente pelos programas de pós-graduação, para que pesquisadores publiquem constantemente. Os entrevistados apontam que essa lógica produtivista resulta na priorização da quantidade de publicações em detrimento da qualidade das produções acadêmicas.

É isso, eu sou contra porque eu acho que o que se instalou hoje no Brasil foi um grande deserto pensante, as pessoas não leem, quem não lê não pode escrever, eu não entendo como as pessoas escrevem mais do que leem, não tem tempo para isso, mas precisam estar na estatística. (Entrevistado D5).

Outros estudos corroboram os achados desta pesquisa ao identificar que o produtivismo acadêmico está, em parte, relacionado ao sistema de avaliação do desempenho docente, que passou a adotar métricas quantitativas.

Além disso, Silva (2017) aponta como um dos achados da pesquisa Sentidos e Significados do Trabalho Docente na Universidade Federal da Bahia,a existência de uma associação entre as precárias condições de trabalho e o surgimento de distúrbios psíquicos, como tensão, cansaço, tristeza e alterações no sono.

Em pesquisa realizada pelo Grupo de Trabalhode Seguridade Social e Assuntos de Aposentadoria do ANDES em 2023,1 os primeiros resultados indicam: aumento de trabalho, sendo que 42% se sentem sobrecarregados sempre e 33% frequentemente; 79% se sentem pressionados por prazos e metas e 88% trabalham por demanda/tarefas. Uma informação interessante se refere à avaliação sobre a adoção de novas tecnologias de comunicação e informação (TICs), a partir da pandemia – com o uso de plataformas –, 38% avaliaram como negativa, sendo que 98,8% responderam terem resolvidos questões do trabalho fora da jornada, via e-mails ou aplicativos.

No que se refere à saúde, 53% dos entrevistados a consideram ruim ou péssima e apenas 6% acham ótima; 55% relacionam os problemas de saúde com o trabalho. As doenças mais citadas são: doenças musculoesqueléticas, transtornos de ansiedade, doenças cardiovasculares, doenças digestórias, enxaquecas e transtornos de humor.

A esses indicadores de precarização do trabalho docente, Vieira (2016) acrescenta outros fatores importantes: a desqualificação do ensino e da aprendizagem e a competitividade predatória. A desqualificação do ensino e da aprendizagem se refere à perda de centralidade e de qualidade do ensino nas Universidades, resultado do baixo investimento nessa área. Esse fenômeno ocorre, principalmente, porque o ensino, especialmente na graduação, não é valorizado nas métricas de avaliação do desempenho docente, que priorizam a produção acadêmica, ou seja, as publicações em periódicos indexados. Na Universidade neoliberal, o ensino de graduação acaba marginalizado no sistema de avaliação do desempenho docente (Vieira, 2016).

Outro indicador, apontado por Vieira (2016), é a competitividade predatória entre os professores-pesquisadores, que resulta fundamentalmente do sistema de concorrência estabelecido pelas agências de avaliação, um modelo que dificulta a criação de vínculos entre os pares e individualiza o trabalho, afetando a colaboração e o desenvolvimento coletivo.

Acrescenta-se a esse quadro, o crescimento da oferta de cursos de Ensino Superior à distância nas Universidades Federais que tem se constituído em mais um elemento de diferenciação e precarização do trabalho docente. Essa oferta ocorre via o Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB), que tem como objetivo central expandir e interiorizar o Ensino Superior, oferecendo cursos de Licenciatura, Bacharelados e Tecnológicos; e especialização lato sensu na modalidade a distância.

De acordo com a Capes (2024a), 150 Instituições de Ensino Superior estão vinculadas ao sistema UAB. Em 2024, o UAB registra 919 cursos em atividade e 126,6 mil discentes matriculados. Deste total, 90 mil são alunos de cursos de Licenciatura (Capes, 2024a).

A análise da literatura sobre o Universidade Aberta do Brasil (UAB)revela o caráter contraditório do referido sistema: pois, se de um lado, há um reconhecimento da importância da UAB na expansão e interiorização do Ensino Superior, especialmente em relação à formação de professores da Educação Básica; do outro, os pesquisadores afirmam que essa expansão ocorre em um contexto de precarização do trabalho docente, cujos principais indicadores são a sobrecarga de trabalho, a diferenciação nas formas de inserção, o sistema de remuneração por meio de pagamento de bolsas e a fragmentação da função docente (Lapa; Pretto, 2010; Will, 2018; Branco; Passos, 2020).

O sistema Universidade Aberta do Brasil funciona por meio de parcerias com estados e municípios, sendo estes últimos responsáveis pela manutenção da estrutura de apoio fixo, chamada de Polo Universidade Aberta do Brasil, que oferece suporte aos estudantes dos cursos ofertados nos municípios (CAPES, 2024b).Em relação aos recursos humanos, o sistema conta com os seguintes profissionais: i)Professores das universidades que atuam na condição de coordenadores (geral, adjunto, de curso etc.) ou professores (formadores ou conteudistas); ii) Tutores (presenciais e a distância); iii)Coordenadores de polo; v) equipe administrativa do Polo UAB.

Os professores das Universidades Federais recebem bolsas para atuar nessa modalidade de ensino, seja nas atividades de coordenação ou de formação. Os tutores, por sua vez, são selecionados por meio de editais divulgados pelas Instituições Federais de Ensino Superior vinculadas ao sistema. Já os coordenadores de polo e a equipe administrativa são de responsabilidade dos estados e/ou municípios (Capes, 2024b).

Um dos indicadores de diferenciação na Educação a Distância (EaD) é a fragmentação da função docente, que resulta da divisão do trabalho em diferentes atribuições, a exemplo do professor-formador, professor-conteudista e tutor. Os diferentes papéis assumidos pelos docentes geram uma distinção entre participantes do sistema Universidade Aberta do Brasil, a saber: o professor-formador assume atividades típicas de ensino, como planejamento pedagógico, concepção do curso e acompanhamento das atividades de tutoria; enquanto o professor-conteudista é o responsável pela elaboração de materiais. Já o tutor desempenhaa função de mediação entre professores e estudantes. No entanto, embora os tutores exerçam funções diretamente relacionadas à atividade-fim da docência, eles não são oficialmente reconhecidos como professores (Lapa; Pretto, 2020; Will, 2018; Branco; Passos, 2020).

Além disso, como os tutores são contratados por meio de bolsas, eles não têm estabilidade, nem garantidos direitos trabalhistas, como férias, 13º salário, descanso semanal remunerado e aposentadoria. Assim, no âmbito do modelo de Educação aDistância (EaD) adotado pelas Instituições Federais de Ensino Superior, existe um fosso que separa os tutores e os professores no que tange à remuneração, à estabilidade no trabalho, à forma de inserção e discriminação e, consequentemente, aos direitos trabalhistas.

Os valores pagos, especialmente para tutores e professores (seja conteudistas ou formadores) estão aquém da complexidade e da responsabilidade do trabalho realizado por estes profissionais. Atualmente, a bolsa de um tutor é de R$ 1.100,00, representando 59,5% do valor da bolsa pago ao professor formador I ou conteudista I e abaixo do salário-mínimo atual (Brasil, 2023). É a bolsa de menor valor monetário no âmbito da Universidade Aberta do Brasil (UAB).

Para os professores das Universidades Federais, a sobrecarga de trabalho é um problema central. A Educação a Distância (EaD) exige que os professores, a depender de sua função (formador ou conteudista) desenvolvam materiais didáticos, acompanhem o progresso dos alunos, coordenem as atividades dos tutores e realizem avaliações constantes. Esses professores, por serem ligados ao ensino presencial das Universidades Federais acumulam as demandas das duas modalidades de ensino (presencial e a distância). Outro exemplo dessa sobrecarga é a relação aluno-professor nos cursos Educação a Distância (EaD) nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). Conforme o Censo da Educação Superior de 2023, nas IFES, a razão aluno-docente nos cursos presenciais é de 10,8, enquanto nos cursos a distância esse índice sobe para 33,2, ou seja, 33 alunos por docente (Ministério da Educação, 2023).

Para os tutores, além da sobrecarga de trabalho, a falta de enquadramento de sua função como docente contribui para a desvalorização profissional devido, fundamentalmente, a ausência de reconhecimento oficial de sua experiência docente, a instabilidade no trabalho (são bolsistas sem vínculo empregatício com as Ifes) e a baixa remuneração.

Por fim, vários estudos apontam que há uma priorização do controle orçamentário em detrimento do planejamento pedagógico. Desse modo, conforme Lapa e Pretto (2010), as diretrizes financeiras da Universidade Aberta do Brasil (UAB) impuseram a padronização dos cursos em detrimento da diversidade e autonomia pedagógica. Tal fato tem se constituído em um fator limitador da capacidade dos professores de adaptarem os conteúdos às realidades de cada município e às necessidades específicas dos discentes dos cursos Educação aDistância (EaD), produzindo efeitos negativos em termos da qualidade da formação oferecida pelas IFES.

A análise do trabalho docente nas Universidades Federais demonstra que o neoliberalismo aprofundou as desigualdades no corpo docente, criando docentes de várias categorias a depender do tipo de vínculo com a instituição (concursado/efetivo, substituto etc.), a modalidade de curso (presencial ou EaD), entre outros fatores de diferenciação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O neoliberalismo transformou profundamente o modo de organização das Universidades Federais e os sentidos atribuídos à educação e ao trabalho docente. Submetida à lógica mercadológica, a educação deixa de ser concebida como um bem público e passa a ser vista como mercadoria (Laval, 2004; Fávero; Trevisol, 2020). Assim, seus objetivos e práticas passam a se apoiar em critérios de eficiência, produtividade e competitividade, características do modelo “universidade-empresa”. Nesse cenário, a Universidade, que no passado focava na formação crítica e na produção de conhecimento universal, vinculou-se às demandas do mercado impostas pela racionalidade neoliberal.

Assim, o trabalho docente nas Universidades Federais foi reconfigurado. Sob a ótica produtivista, os professores se tornaram “empreendedores de si” e passaram a vivenciar um intenso processo de precarização do trabalho, cujos principais indicadores são a intensificação das atividades, o produtivismo acadêmico, o acirramento da competitividade e a consequente frustração e adoecimento.

Na Universidade neoliberal, a atividade docente está cada vez mais fragmentada e alienante (Lemos, 2007). Ao deslocar o foco do ensino e da formação crítica para a obtenção de métricas e resultados vinculados à pesquisa, as Universidades e seus docentes ocupam hoje um papel contraditório: de um lado, são agentes fundamentais para a produção e disseminação do conhecimento; de outro, encontram-se imersos em um sistema que busca, a todo tempo, subverter suas próprias finalidades e ainda em um quadro de redução dos recursos materiais por conta do subfinanciamento, dos contingenciamentos e bloqueios de verbas, como parte das políticas de ajuste fiscal permanente implementadas no país desde os anos 1990 até os dias atuais.

Vale ressaltar que, nesse cenário de transformações das Universidades, sob o domínio econômico, político e ideológico do neoliberalismo, há movimentos de resistência e de contra hegemonia, através de várias formas de mobilização - greves, manifestações de rua, seminários, abaixo-assinados e outros – que expressam possibilidades de impedir que a Universidade operacional se estabeleça integralmente.

Superar a lógica da mercantilização exige organização da ação coletiva, resistência e capacidade imaginativa para conceber outro modelo de educação e, por sua vez, de Universidade. É preciso recolocar a centralidade do sentido da Universidade como espaço de formação crítica, socialmente referenciada e a serviço da sociedade, e não somente do mercado. Com o neoliberalismo, assiste-se a um processo de mercantilização da vida em todas as suas esferas. Logo, a luta pela autonomia e pela função social das Universidades Federais se apresenta como uma tarefa histórica para o conjunto da sociedade.

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  • 1
    A pesquisa Condições de Trabalho e saúde dos (as) docentes que atuam nas Universidades Públicas, Institutos Federais e CEFETS está em desenvolvimento. Os resultados aqui apresentados se referem ao projeto-piloto, publicados pelo ANDES, em 2023. Nesta primeira fase a pesquisa atingiu 1874 docentes de 11 instituições.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Out 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2024
  • Aceito
    03 Fev 2025
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