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Representações sociais no contexto intercultural: o cotidiano de três subsidiárias brasileiras

Representaciones sociales en el contexto intercultural: la vida cotidiana de tres filiales brasileñas

Resumo

A aceleração e o desenvolvimento de negócios globais fizeram aumentar o grau de diversidade cultural entre profissionais nas organizações, assim como cresceu o interesse sobre o trabalho em grupo e de equipes multiculturais, como mostram pesquisas sobre a dinâmica dessas equipes (ZHOU e SHI, 2011ZHOU, W.; SHI, X. Culture in groups and teams: a review of three decades of research. International Journal of Cross Cultural Management, v. 11, n. 1, p. 5-34, 2011.; CHEVRIER e VIEGAS-PIRES, 2013). Este artigo tem por objetivo identificar e analisar quais são as representações sociais construídas por membros de equipes multiculturais de trabalho em suas interações interculturais e como elas afetam o cotidiano organizacional em três subsidiárias de multinacionais no Brasil. Com abordagem qualitativa e método de estudo de caso, a coleta de dados foi realizada por meio de pesquisa documental e 33 entrevistas semiestruturadas com brasileiros e estrangeiros membros de equipes de trabalho. Utilizou-se a Teoria de Representações Sociais (TRS), de Moscovici (2004), para identificar as principais representações sociais no contexto dessas subsidiárias. Como resultado, surgiram pontos comuns entre as três subsidiárias, como: as estratégias de transnacionalização para fortalecer as diretrizes globais e atender às demandas locais, com isso, observou-se a construção de culturas organizacionais com elementos globais; o incentivo à transformação de alguns profissionais em posições-chaves em profissionais globais; o entendimento de que a diversidade cultural é um capital que pode trazer muitos resultados positivos para as organizações; e o desenvolvimento de competências interculturais para facilitar os processos de mobilidade internacional. Em contrapartida, foram observados muitos problemas de comunicação, falta de preocupação com o processo de aprendizagem intercultural, formas de registro de assimilação do conhecimento e experiência adquiridos. Conclui-se que, apesar dos problemas e desafios, as equipes multiculturais contribuem, por meio da interação cotidiana, com a aprendizagem organizacional, o desenvolvimento e a consolidação da cultura e de rotinas globais nas organizações. Como contribuição, este artigo demonstra que o uso da TRS para analisar o contexto intercultural pode proporcionar uma visão mais dinâmica da interação e construção de um cotidiano intercultural em empresas multinacionais. Além disso, esta pesquisa demonstrou a possibilidade de traços comuns na cultura organizacional de empresas multinacionais que trabalham com equipes multiculturais.

Palavras-chave:
Cotidiano Intercultural; Representações Sociais; Subsidiária Brasileira

Resumen

La aceleración y el desarrollo de negocios globales aumentaron el grado de diversidad cultural entre los profesionales en las organizaciones, así como creció el interés en grupos de trabajo y equipos multiculturales, como muestran las investigaciones sobre la dinámica de dichos equipos (ZHOU y SHI, 2011; CHEVRIER y VARGA-PIRES, 2013). Este artículo tiene como objetivo identificar y analizar cuáles son las representaciones sociales construidas por los miembros de equipos multiculturales en sus interacciones interculturales y cómo afectan la vida cotidiana organizacional en tres filiales de multinacionales en Brasil. Con un enfoque cualitativo y el método de estudio de caso, la recolección de datos se realizó a través de investigación documental y de entrevistas semiestructuradas con 33 miembros extranjeros y brasileños de equipos de trabajo. Se utilizó la teoría de las representaciones sociales (TRS), de Moscovici (2004), para identificar las principales representaciones sociales en el contexto de esas filiales. Como resultado, hubo puntos en común entre ellas, tales como: las estrategias de transnacionalización para fortalecer las directrices mundiales y atender las demandas locales, así, se observó la construcción de culturas organizacionales con elementos globales; el fomento de la transformación de algunos profesionales globales en puestos clave; la comprensión de que la diversidad cultural es un capital que puede traer muchos resultados positivos a las organizaciones; y el desarrollo de competencias interculturales para facilitar los procesos de movilidad internacional. Por otro lado, se observaron muchos problemas de comunicación, falta de preocupación por el proceso de aprendizaje intercultural, formas de registro de asimilación del conocimiento y experiencia adquiridos. Se concluye que, a pesar de los problemas y desafíos, los equipos multiculturales contribuyen, a través de la interacción cotidiana, al aprendizaje organizacional, al desarrollo y consolidación de la cultura y de las rutinas globales en las organizaciones. Como aporte, este artículo demuestra que el uso de TRS para analizar el contexto intercultural puede proporcionar una visión más dinámica de la interacción y construcción de una vida cotidiana intercultural en empresas multinacionales. Además, esta investigación demostró la posibilidad de rasgos comunes en la cultura organizacional de empresas multinacionales que trabajan con equipos multiculturales.

Palabras clave:
Vida cotidiana intercultural; Representaciones sociales; Filial brasileña

Abstract

The acceleration and development of global business have increased the degree of cultural diversity among professionals in organizations, as well as increased concern about teamwork and multicultural teams, as shown by researchers such as Zhou and Shi (2011) ZHOU, W.; SHI, X. Culture in groups and teams: a review of three decades of research. International Journal of Cross Cultural Management, v. 11, n. 1, p. 5-34, 2011.and Chevrier and Viegas-Pires (2013). This article identified and analyzed the social representations built by members of multicultural teams through their intercultural interactions and how these affect the organizational daily life in three subsidiaries of multinational companies in Brazil. Qualitative approach and case study methods were used to collect data using documental research and 33 semi-structured interviews with Brazilian and foreign members of work teams. Using the Theory of Social Representations (TSR) of Moscovici (2004), we identified the main social representations in the context of these Brazilian subsidiaries. The results show commonalities of the three subsidiaries such as: the transnationalization strategies of conciliating global guidelines with local demands, building organizational culture with global elements; the incentive to transform some of the professionals in key positions in global professionals; the understanding that cultural diversity is a capital that can bring many positive results for organizations; and the development of intercultural competencies to facilitate the processes of international mobility. In contrast, there are many communication problems and a lack of concern with the process of intercultural learning and assimilation of knowledge and experience acquired. The conclusions show that despite the problems and challenges, the multicultural teams contribute, through daily interaction, with organizational learning, development and consolidation of culture and global routines in organizations. This article demonstrates that using TSR to analyze the intercultural context can provide a dynamic vision of the interaction and construction of an intercultural routine in multinational companies. In addition, this research demonstrates how common traits can be found in organizational culture of multinational companies with multicultural teams.

Keywords:
Intercultural Daily Life; Social Representation; Brazilian Subsidiaries of Multinational Companies

INTRODUÇÃO

As culturas nacionais variam de modos significativos e distintos, a forma de pensar, os costumes, os comportamentos, as interações, os valores compartilhados são alguns dos elementos que formam a cultura de uma nação. A maneira de pensar, sentir e comportar-se não é nem randômica nem casual, mas é profundamente influenciada pela herança cultural (ADLER e GUNDERSEN, 2008ADLER, A.; GUNDERSEN, N. International dimensions of organizational behavior. 5. ed.Cincinnati, OH: Thomson South-Western, 2008.). Até que deixe sua comunidade, frequentemente o indivíduo não percebe a cultura que compartilha com os demais membros da comunidade. À medida que entram em contato com pessoas de outras culturas é que os indivíduos tornam-se cientes de sua individualidade e começam a apreciar suas diferenças. Para Hall (2005HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2005., p. 47), a cultura nacional de uma pessoa constitui uma das “principais fontes de identidade cultural. Ao nos definirmos, algumas vezes dizemos que somos ingleses ou galeses ou indianos ou jamaicanos”. Essa forma metafórica de falar expressa, de modo efetivo, como se pensa a cultura como parte da natureza essencial do indivíduo.

A influência da história, a infraestrutura e a cultura de uma nação permeiam todos os aspectos da vida no país, incluindo as normas, os valores e os comportamentos dos gerentes nas organizações nacionais. As características comportamentais que são influenciadas pelo país tornam-se parte arraigada do “modo de ser” de cada organização e moldam a estrutura e os processos de sua extensão internacional. Geertz (1989GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.) declara que as pessoas vivem em um “universo de significações”. Elas codificam e decodificam a todo o momento, não somente palavras, mas também expressões, posturas, ações dos mais variados tipos, sempre com o objetivo de empregar sentido. Uma cultura nacional é mais do que símbolos e representações, ela é um discurso, uma maneira de construir significados que influencia e organiza tanto as ações quanto a concepção que se tem de si. Ao produzir sentidos sobre nação, sentidos com os quais é possível se identificar, os indivíduos constroem sua identidade (HALL, 2005HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2005.).

No ambiente organizacional, mesmo com o processo de abertura de mercados e a homogeneização de discursos e modelos de gestão, continuam coexistindo as particularidades, as diferenças locais e o compartilhamento de crenças comuns (CHEVRIER, 2009CHEVRIER, S. Is national culture still relevant to management in a global context? The case of Switzerland. International Journal of Cross-cultural Management, v. 9, n. 2, p. 169-184, 2009.). A cultura é um quadro de referência para a ação individual e coletiva, nesse sentido, as práticas de gestão são culturalmente enraizadas e as relações hierárquicas são interpretadas sob a luz da cultura dominante (CHEVRIER e VIEGAS-PIRES, 2013CHEVRIER, S.; VIEGAS-PIRES, M. Delegating effectively across cultures. Journal of World Business, v. 48, n. 3, p. 431-439, 2013.). Assim, o reconhecimento do outro como diferente é um avanço para que haja melhoria da convivência de pessoas, sociedades e organizações, pois favorece o respeito mútuo, a diminuição de estereótipos, incompreensões e dificuldades de interação. Também aumenta a qualidade das decisões tomadas no ambiente de trabalho, além da tendência à formação de um ambiente cada vez mais qualificado, diverso, porém, mais sujeito a conflitos e exclusão (FREITAS, 2005FREITAS, M. E. Executivos brasileiros expatriados na França: uma contribuição aos estudos organizacionais interculturais. Relatório de professor titular submetido à banca avaliadora da Fundação Getulio Vargas. São Paulo: FGV, 2005.; 2008FREITAS, M. E. O imperativo intercultural na vida e na gestão contemporânea. Revista Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, p. 79-89, 2008.).

O resultado da convivência intercultural pode significar um acréscimo de capacidades para lidar com situações diversas e a diminuição de efeitos negativos de determinados traços. Entretanto, em um primeiro momento, são as diferenças que prevalecem e o potencial para conflitos é extremamente alto. A relação intercultural demanda complementação de saberes e aperfeiçoamento de competências comunicativas e de negociação, além da habilidade para a coordenação de equipes multiculturais e multidisciplinares. É preciso, também, compreender e fazer acontecer a aprendizagem e a inovação como processos contínuos que emergem da permanente reestruturação organizacional, que exige cada vez maiores níveis de flexibilidade e sinergia (MATVEEV e NELSON, 2004SÁ, C. P. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, M. J. (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 19-45.; FREITAS, 2008FREITAS, M. E. O imperativo intercultural na vida e na gestão contemporânea. Revista Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, p. 79-89, 2008.).

Como argumentam Bueno e Freitas (2015BUENO, J. M.; FREITAS, M. E. Representações sociais e ambiente intercultural nas organizações. In: MOURA, C. P.; FERRARI, M. F. Comunicação, interculturalidade e organizações: faces e dimensões da contemporaneidade. Porto Alegre: Ed. PUCRS, 2015. p. 193-211., p. 207), “a experiência intercultural é um momento enriquecedor para os profissionais e para as organizações, pois as diferentes formas de ver e resolver os problemas, a capacidade de gerar e transmitir conhecimentos e a ampliação de visões de mundo são alguns dos ganhos esperados”. Por isso gestores e acadêmicos têm buscado a compreensão de como a gestão intercultural pode ajudar na construção de um ambiente organizacional mais plural e diverso.

Ainda há espaço para a pesquisa, análise e mudanças sobre a mobilidade internacional e o trabalho das equipes multiculturais nas organizações. Desde questões relacionadas ao uso de definições e nomenclaturas diferentes por pesquisadores e gestores, passando por políticas e práticas desenvolvidas, até a avaliação de resultados e da aprendizagem para os sujeitos e para as organizações. No âmbito geral, as pesquisas existentes têm tido foco predominantemente prescritivo, com cunho gerencialista e pouco focadas na interação e no desenvolvimento das equipes multiculturais (FREITAS, 2008FREITAS, M. E. O imperativo intercultural na vida e na gestão contemporânea. Revista Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, p. 79-89, 2008.; BUENO e DOMINGUES, 2014BUENO, J. M.; DOMINGUES, C. R. Gestão intercultural ou administração intercultural? Diferentes perspectivas e tendências para agenda de pesquisa. In: CONGRESO INTERNACIONAL RED PILARES, 3.; 2014, São Leopoldo. Anais... São Leopoldo: {s.n}, 2014.). No Brasil, são poucos os trabalhos que abordam a administração intercultural e seus subtemas. Da mesma forma que no cenário internacional, as pesquisas brasileiras tratam mais de aspectos da gestão da mobilidade internacional e o processo de adaptação do expatriado, pouco abordam a interação entre os estrangeiros e os locais e a construção de seu novo cotidiano multicultural de trabalho (BUENO e DOMINGUES, 2014BUENO, J. M.; DOMINGUES, C. R. Gestão intercultural ou administração intercultural? Diferentes perspectivas e tendências para agenda de pesquisa. In: CONGRESO INTERNACIONAL RED PILARES, 3.; 2014, São Leopoldo. Anais... São Leopoldo: {s.n}, 2014.).

Nesse contexto, buscou-se com este estudo contribuir com a administração intercultural ao adotar uma abordagem teórica que prioriza a análise da interação e da construção do conhecimento coletivo, de forma dinâmica, no contexto intercultural. O objetivo da pesquisa foi identificar e analisar quais foram as representações sociais construídas por brasileiros e estrangeiros, membros de equipes multiculturais de trabalho, em suas interações interculturais e como estas afetaram o cotidiano organizacional. O uso da Teoria das Representações Sociais (TRS) na Administração tem-se mostrado como uma forma instigante e dinâmica para compreender as interações e relações sociais no ambiente organizacional (SALLES e COSTA, 2013SALLES, D. M. R.; COSTA, I. S. A. Representações do trabalho: estudo sobre confinamento na indústria petrolífera. Revista de Administração de Empresas, v. 53, n. 3, p. 230-242, 2013.; CAVEDON, 2014CAVEDON, N. R. As representações sociais circulantes no período de margem do ritual de passagem: o caso dos peritos criminais em estágio probatório. Revista de Administração Mackenzie, v. 15, n. 2, p. 66-96, 2014.; GONZAGA, OLIVEIRA e CHAGAS, 2015GONZAGA, J. C. R.; OLIVEIRA, J. S.; CHAGAS, P. B. Representações sociais dos estudantes de administração sobre os estágios não obrigatórios: um estudo na Universidade Estadual de Maringá. Administração: Ensino e Pesquisa, v. 16, n. 3, p. 477-511, 2015.), porém, pouco se tem utilizado dessa teoria nos estudos interculturais (MARTINS-SILVA, SILVA JÚNIOR, PERONI et al., 2016MARTINS-SILVA, P. O. et al. Teoria das representações sociais nos estudos organizacionais no Brasil: análise bibliométrica de 2001 a 2014. Cadernos EBAPE.BR, v. 14, n. 4, p. 891-919, 2016.). A TRS ajudou a evidenciar que a necessidade de tornar familiar e dar sentido àquilo que é diferente, desconhecido, é um caminho compartilhado a ser percorrido no ambiente organizacional, dando maior amplitude às análises e ao entendimento de que as representações são coletivamente construídas.

ADMINISTRAÇÃO INTERCULTURAL

O potencial para a produtividade superior de equipes culturalmente diversas é alto, elas possuem o fôlego de recursos, insights, perspectivas e experiências que facilitam a criação de novas e melhores ideias (MATVEEV e NELSON, 2004SÁ, C. P. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, M. J. (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 19-45.; ADLER e GUNDERSEN, 2008ADLER, A.; GUNDERSEN, N. International dimensions of organizational behavior. 5. ed.Cincinnati, OH: Thomson South-Western, 2008.). O que ocorre é que, lamentavelmente, as equipes culturalmente diversas raramente alcançam todo o seu potencial. O processo perde pela desconfiança, falta de comunicação, estresse e a falta de coesão frequentemente negam os potenciais benefícios da diversidade da equipe. Somente se sua diversidade for bem gerenciada é que as equipes multiculturais podem esperar alcançar seu pleno potencial (ADLER e GUNDERSEN, 2008ADLER, A.; GUNDERSEN, N. International dimensions of organizational behavior. 5. ed.Cincinnati, OH: Thomson South-Western, 2008.).

A vivência em outro país causa um alto nível de incertezas. Vários autores trabalham essa questão e mencionam que se, por um lado, a incerteza causa tensão, angústia e estresse, por outro lado, ela move o indivíduo para a aceitação e adaptação das diferenças, pois não gostamos de ficar em uma situação incerta por muito tempo. E a reação natural é tentar descobrir padrões nas situações desconhecidas para torná-las conhecidas, classificar e ressignificar os objetos, as relações, enfim, tudo o que nos cerca (BLACK, GREGERSEN e MENDENHALL, 1992BLACK, J. S.; GREGERSEN, H. B.; MENDENHALL, M. E. Global assignments: successfully expatriating and repatriating international managers. San Francisco, CA: Jossey-Bass, 1992.; CERDIN, 2002CERDIN, J. L. L’expatriation. 10. ed. Paris: Organisation, 2002.; MOSCOVICI, 2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.; FREITAS, 2005FREITAS, M. E. Executivos brasileiros expatriados na França: uma contribuição aos estudos organizacionais interculturais. Relatório de professor titular submetido à banca avaliadora da Fundação Getulio Vargas. São Paulo: FGV, 2005.; ADLER e GUNDERSEN, 2008ADLER, A.; GUNDERSEN, N. International dimensions of organizational behavior. 5. ed.Cincinnati, OH: Thomson South-Western, 2008.).

A gestão de grupos de pessoas com culturas nacionais diferentes é uma realidade para um número cada vez maior de organizações. Tanto para aquelas consideradas locais em seu alcance e nas dimensões de seu mercado, mas que podem contar com profissionais de outros países, quanto (e mais fortemente) para aquelas que atuam em diferentes países com equipes de trabalho multiculturais. O contato intercultural ocorre de outras formas além da expatriação: os meios de comunicação como vídeo e teleconferência, correio eletrônico, sistemas de gestão interligados e outras ferramentas de tecnologia de informação permitem que as pessoas possam conversar e discutir estratégias e projetos, decidir as ações que serão realizadas bem como fazer o acompanhamento e a mensuração de resultados dessas ações em diferentes locais e por profissionais de diversos países. O diálogo intercultural, nessas circunstâncias, torna-se um importante elemento do êxito ou fracasso de muitos negócios globais (FINURAS, 2003FINURAS, P. Gestão intercultural: pessoas e carreiras na era da globalização. Lisboa: Sílabo, 2003.; DASKALAKI, 2008DASKALAKI, M. Identity and work across boundaries: the personal story of a ‘nomadic’ academic. In: LATIN AMERICAN EUROPEAN MEETING IN ORGANIZATIONAL STUDIES, 2.; 2008, Rio de Janeiro. Proceedings... Rio de Janeiro: {s.n} 2008.). Por isso, questões como a liderança e a comunicação tornam-se elementos-chave para estabelecer esse diálogo, seja pela identificação de estilos e práticas de liderança entre culturas (CHEVRIER e VIEGAS-PIRES, 2013CHEVRIER, S.; VIEGAS-PIRES, M. Delegating effectively across cultures. Journal of World Business, v. 48, n. 3, p. 431-439, 2013.), seja pela definição do uso de um idioma comum (LAURING e SELMER, 2010LAURING, J.; SELMER, J. Multicultural organizations: common language and group cohesiveness. International Journal of Cross Cultural Management, v. 10, n. 3p. 267-284, 2010.).

Chevrier (2000CHEVRIER, S. Le management des équipes interculturelles. Paris: PUF, 2000.) argumenta que, para gerenciar pessoas com culturas diferentes, é preciso primeiro reconhecer a própria cultura. E o contato com o outro propicia esse reconhecimento, recordando o conceito de alteridade. Contudo, a formação de equipes multiculturais é mais do que o reconhecimento das diferenças entre seus membros. Para Matveev e Nelson (2004MATVEEV, A.; NELSON, P. E. Cross cultural communication competence and multicultural team performance perceptions of American and Russian managers. International Journal of Cross Cultural Management, v. 4, n. 2, p. 253-270, 2004.), a gestão da diversidade cultural e dos conflitos entre culturas é o desafio mais comum para equipes multiculturais e os principais desafios são: gerenciar as diferenças e os conflitos; lidar com as distâncias e a dispersão geográfica entre os membros; tratar de questões de coordenação e controle; manter o grau de comunicação elevado; e desenvolver e manter a coesão da equipe. Para Finuras (2003FINURAS, P. Gestão intercultural: pessoas e carreiras na era da globalização. Lisboa: Sílabo, 2003.) também é importante saber lidar com as diferenças de personalidade; desenvolver um objetivo comum da equipe; e abordar as questões de liderança.

Mesmo tomando cuidado com os aspectos envolvidos na formação das equipes multiculturais, elas poderão apresentar vários níveis de qualidade de desempenho e eficácia na execução das tarefas, pois as equipes têm uma dinâmica própria e um contexto específico que influenciam seu desempenho (MATVEEV e NELSON, 2004SÁ, C. P. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, M. J. (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 19-45.; ADLER e GUNDERSEN, 2008ADLER, A.; GUNDERSEN, N. International dimensions of organizational behavior. 5. ed.Cincinnati, OH: Thomson South-Western, 2008.; CHEVRIER e VIEGAS-PIRES, 2013CHEVRIER, S.; VIEGAS-PIRES, M. Delegating effectively across cultures. Journal of World Business, v. 48, n. 3, p. 431-439, 2013.). Segundo Adler e Gundersen (2008ADLER, A.; GUNDERSEN, N. International dimensions of organizational behavior. 5. ed.Cincinnati, OH: Thomson South-Western, 2008.) e Finuras (2003FINURAS, P. Gestão intercultural: pessoas e carreiras na era da globalização. Lisboa: Sílabo, 2003.), a produtividade de uma equipe também vai depender do tipo de tarefas e de seus recursos disponíveis e seus processos. Por isso, os objetivos da equipe devem direcionar os processos, as atividades e a velocidade das ações.

Em equipes homogêneas, é mais fácil compreender o que os outros estão tentando dizer e acreditar nos outros é mais rápido. Em equipes culturalmente diversas, as falhas de percepção, de comunicação e de interpretação emergem a toda hora. Por conta de membros das equipes multiculturais possuírem expectativas diferentes, é comum demorar mais para a apropriação de informações relevantes e a tomada de decisões particulares pode elevar o nível de estresse. Também há um aumento de ambiguidade, complexidade e confusão nas equipes multiculturais. A coesão é a “habilidade dos membros das equipes agirem como um”, dizem Adler e Gundersen (2008ADLER, A.; GUNDERSEN, N. International dimensions of organizational behavior. 5. ed.Cincinnati, OH: Thomson South-Western, 2008., p. 142). Essa habilidade está relacionada à percepção, à interpretação e à ação em situações em que foi mutuamente acordado qual é o melhor caminho. O Quadro 1 mostra como as falhas na interpretação, na comunicação e o estresse diminuem a coesão e, muitas vezes, a produtividade das equipes multiculturais.

Quadro 1
Diversidade em equipes multiculturais: vantagens e desvantagens.

Alguns problemas enfrentados pelas equipes multiculturais dizem respeito a problemas atitudinais, como o desconhecimento e a desconfiança. Eles podem levar a dificuldade de comunicação, de troca de informações e de delegar ou compartilhar responsabilidades. Outros problemas são da natureza da percepção, como a criação de estereótipos. Estes, muitas vezes, carecem de veracidade e partem muito mais da leitura enviesada pela cultura do indivíduo do que de características reais. Nas relações interculturais, a comunicação torna-se o grande instrumento de ligação entre os indivíduos que ajudará a diminuir o desconhecimento do outro. Como não se sabe o que é similar e o que é diferente, será por meio do diálogo que será construída a ponte entre os indivíduos. Entretanto, a comunicação de equipes multiculturais nem sempre resulta em compreensão. Ela envolve, continuamente, entendimento errôneo por causa de percepção, interpretação e avaliação incorretas (ADLER e GUNDERSEN, 2008ADLER, A.; GUNDERSEN, N. International dimensions of organizational behavior. 5. ed.Cincinnati, OH: Thomson South-Western, 2008.).

De acordo com Adler e Gundersen (2008ADLER, A.; GUNDERSEN, N. International dimensions of organizational behavior. 5. ed.Cincinnati, OH: Thomson South-Western, 2008.), a percepção é o processo pelo qual os indivíduos, estimulados pelo ambiente externo, selecionam, organizam e avaliam para dar significado às experiências deles mesmos. Os modelos de percepção não são inatos e nem absolutos, eles são seletivos, aprendidos, culturalmente determinados, consistentes e imprecisos. São seletivos de acordo com nossos modelos mentais; são aprendidos por meio de nossa experiência; são culturalmente determinados; são consistentes, uma vez que se vemos algo de uma maneira, ele continuará a ser visto sempre assim; e são imprecisos porque nós vemos coisas que não existem e não vemos coisas que existem. A interpretação ocorre quando um indivíduo dá significado para observações e para suas relações. Baseados em nossa experiência, criamos pressupostos sobre nossas percepções e não precisamos redescobrir significados cada vez que encontramos situação similar. O processo de interpretação utiliza categorias para classificar situações, pessoas e objetos e dar sentido ao que percebemos. De acordo com Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.), a categorização ajuda-nos a distinguir o que é mais importante no ambiente e como agir de acordo com ele. Categorias de percepção de imagens tornam-se ineficientes quando colocamos as pessoas e as coisas em grupos errados. A falha na categorização intercultural ocorre quando se utilizam categorias domésticas para entender situações no estrangeiro.

Segundo Moscovici (2004SÁ, C. P. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, M. J. (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 19-45.), criar estereótipos envolve uma forma de categorização que organiza a experiência e guia o comportamento diante de grupos étnicos e grupos nacionais. Estereótipos nunca descrevem um comportamento individual, mas o comportamento normal dos membros de um grupo particular. Assim como outras formas de categorização, os estereótipos tanto podem ser úteis como podem ser prejudiciais, dependendo de como são usados. Uma estereotipagem eficiente permite que as pessoas compreendam e ajam apropriadamente em novas situações. Por isso, MacNab e Worthley (2012)MACNAB, B. R.; WORTHLEY, R. Stereotype awareness development and effective cross-cultural management: an experiential approach. International Journal of Cross Cultural Management, v. 13, n. 1, p. 65-87, 2012. demonstram a importância do desenvolvimento da consciência da criação de estereótipos como uma forma de melhorar a relação intercultural e a capacidade de gestão do ambiente multicultural.

A cultura influencia fortemente e, em muitas situações, determina nossas percepções e interpretações. Tanto as categorias quanto os significados que damos são baseados em nosso arcabouço cultural, diz Finuras (2003FINURAS, P. Gestão intercultural: pessoas e carreiras na era da globalização. Lisboa: Sílabo, 2003.). Para Adler e Gundersen (2008ADLER, A.; GUNDERSEN, N. International dimensions of organizational behavior. 5. ed.Cincinnati, OH: Thomson South-Western, 2008.), mais do que a percepção e a interpretação, as condições culturais afetam a avaliação. Esta envolve o julgamento de alguém ou de algo como bom ou ruim. Usamos nossa própria cultura como um padrão de medida, um critério, julgando nossa própria cultura como normal e boa e tudo aquilo que é diferente como anormal e ruim. A avaliação raramente ajuda na tentativa de compreender, de comunicar-se com ou de fazer negócios com pessoas de outras culturas.

A diversidade poderá causar ineficiência quando na equipe dominar a visão etnocêntrica e o domínio cultural, porque direcionam as ideias, ignoram as diferenças e sempre buscam respostas com base no consenso (FINURAS, 2003FINURAS, P. Gestão intercultural: pessoas e carreiras na era da globalização. Lisboa: Sílabo, 2003.) ou quando não houver suporte local para as relações e demandas de equipes multiculturais ou na relação entre expatriados e locais (MAHAJAN e DE SILVA, 2012MAHAJAN, A.; DE SILVA, S. R. Unmet role expectations of expatriates, host-country national support, and expatriate adjustment. International Journal of Cross Cultural Management, v. 12, n. 3, p. 349-360, 2012.). Quanto mais a diversidade for tratada como um recurso, mais ela poderá estimular o surgimento de ideias inovadoras. Isso significa que a divergência de ideias e opiniões é positiva, as equipes devem provocar o surgimento das diferenças nos momentos em que a diversidade possa ser usada como recurso. Para isso, será necessário instaurar um clima de respeito, que acolha os participantes e, ao mesmo tempo, evite que o diálogo seja polarizado em um desequilíbrio de forças. Por isso, é importante desenvolver a liderança em equipes multiculturais.

Em um contexto intercultural, é preciso aumentar a consciência dos líderes sobre preocupações básicas e refletir sobre o significado de suas práticas. Chevrier e Viegas-Pires (2013CHEVRIER, S.; VIEGAS-PIRES, M. Delegating effectively across cultures. Journal of World Business, v. 48, n. 3, p. 431-439, 2013.) questionam: será que o líder deveria adaptar-se às expectativas de seus liderados ou os liderados deveriam aceitar e seguir as práticas do líder? Como apontam os autores, não existe uma única resposta ou uma resposta fácil, mas compreender os contextos culturais pode abrir caminho para a negociação das melhores ou mais apropriadas práticas. E um dos ganhos da diversidade cultural é que ela pode trazer aos membros de uma equipe multicultural a aprendizagem. E não ganham só os sujeitos envolvidos, mas a organização pode criar um ciclo virtuoso de inovação e criatividade ao utilizar as perspectivas e capacidades individuais e suas múltiplas combinações. Ou (2009OU, H. Situated knowledge: a practice-based view on intercultural interaction. Journal of Management Proceedings, n. 1, p. 1-6, 2009.) diz que a aprendizagem organizacional é resultante dos momentos de interação intercultural e não é algo que possa ser transmitido ou internalizado sem a vivência prática.

AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E O COTIDIANO INTERCULTURAL

Ao entender que a TRS toma como ponto de partida “a diversidade dos indivíduos, atitudes e fenômenos, em toda sua estranheza e imprevisibilidade” e o ela tem por objetivo “descobrir como os indivíduos e grupos podem construir um mundo estável, previsível, a partir de tal diversidade”, segundo Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004., p. 79), optou-se por adotar essa perspectiva teórica para analisar o cotidiano de brasileiros e estrangeiros nas organizações pesquisadas. Também se levou em conta os argumentos de Bueno e Freitas (2015BUENO, J. M.; FREITAS, M. E. Representações sociais e ambiente intercultural nas organizações. In: MOURA, C. P.; FERRARI, M. F. Comunicação, interculturalidade e organizações: faces e dimensões da contemporaneidade. Porto Alegre: Ed. PUCRS, 2015. p. 193-211., p. 208-209) sobre como as representações sociais podem ajudar a formar uma “base para a familiarização das ações e interações e explicar, pelo menos em parte, como é o processo de construção de um cotidiano comum para profissionais estrangeiros e locais em ambientes organizacionais interculturais”.

Para Jodelet (1989JODELET, D. Représentations sociales. Paris: PUF, 1989., p. 36, tradução nossa), a representação social é “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, tendo uma visão prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”. Na interpretação de Leme (2004LEME, M. A. V. S. O impacto da teoria das representações sociais. IN: SPINK, M. J. (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 58-72., p. 47), as representações sociais são “um conjunto de conceitos, explicações e afirmações que se originam na vida diária no curso de comunicações interindividuais” e que são, para a nossa sociedade, o que os mitos e os sistemas de crenças foram para as sociedades tradicionais, em outras palavras, é o senso comum em sua versão mais contemporânea. Para a autora, o que difere nos dias de hoje, é que a maioria dos objetos, conceitos e analogias que permeiam nosso entendimento é originada pela pesquisa científica e, apesar de serem de nosso interesse e dizerem respeito à nossa existência, muitos são criados por grupos especializados e não a partir de nossa experiência direta e são, portanto, conhecimentos de “segunda mão”, mas que orientam e fornecem parâmetros para atitudes e decisões que criam um novo senso comum, mais acessível.

O que houve de novo nessa teoria, segundo Costa e Almeida (1999COSTA, W. A.; ALMEIDA, A. M. O. Teoria das Representações Sociais: uma abordagem alternativa para se compreender o comportamento cotidiano dos indivíduos e dos grupos sociais. Revista de Educação Pública, v. 8, n. 13, 1999., p. 251), não foi o reconhecimento da interação entre indivíduo e o meio, mas sim a interface dessa relação: “uma vez que a representação é uma construção do indivíduo, mas sua origem é social, e mais, seu destino também é social”. Nesse sentido, o foco não é estudar aspectos da relação entre sujeito e meio social, “nem tão pouco constatar que, nessa relação, o indivíduo vai ampliando suas capacidades cognitivas, motoras etc.”. A importância está no entendimento do dinamismo dessa relação: “como o social interfere na elaboração das representações sociais dos indivíduos e como estas interferem na elaboração das representações sociais do grupo a que pertencem”. Para Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.), as representações não podem ser vistas como variáveis explicativas, ao contrário, pois é a construção das representações que deve ser debatida.

Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.) aponta dois tipos diferentes de pensamento: os universos consensuais e os universos reificados. Nos universos reificados é que se criam e se movimentam as ciências e o pensamento erudito, com sua objetividade e seu rigor tanto lógico quanto metodológico, com sua abstração teórica, suas divisões, suas especialidades e sua hierarquia. Já os universos consensuais são aqueles das atividades intelectuais da interação social no cotidiano. É o espaço da produção das representações sociais. Suas “teorias” não conhecem limites especializados, seguem outra lógica, denominada “natural” e utilizam outros mecanismos de verificação que são menos sensíveis à objetividade e mais atentos aos sentimentos compartilhados de verossimilhança ou plausibilidade (SÁ, 2004SÁ, C. P. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, M. J. (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 19-45.).

O ponto de partida, a matéria-prima para a construção dessas realidades consensuais, vem dos universos reificados, por meio de suas representações. Assim, em nossa contemporaneidade, surge um novo tipo de senso comum, novos conhecimentos populares que são conhecimentos de segunda mão e que consistem na apropriação contínua das informações, das imagens, da linguagem que a ciência não para de inventar, afirma Sá (2004SÁ, C. P. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, M. J. (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 19-45.).

Já sobre os universos consensuais, Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.) declara que eles existem porque todos querem sentir-se em casa, livres de ameaças ou disputas. Aquilo que é dito e feito confirma as crenças e interpretações já adquiridas. De acordo com Sá (2004SÁ, C. P. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, M. J. (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 19-45.), uma realidade social é gerada somente quando algo novo ou não familiar é incorporado ao universo consensual. A partir desse momento, operam-se os processos que tornam o estranho familiar; o que era novo perde sua novidade e, assim, torna-se conhecido e “real”.

Sempre existe uma tensão entre o familiar e o não familiar no universo consensual: “antes de ver e ouvir a pessoa, nós já a julgamos; nós já a classificamos e criamos uma imagem dela” (MOSCOVICI, 2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004., p. 58). Assim, todos os nossos esforços para sabermos mais e obtermos mais informações servem antes de tudo para confirmar a imagem que já formamos a respeito. Apesar desse processo ocorrer sob o peso da “tradição, da memória, do passado, não significa que não esteja criando e acrescentando novos elementos à realidade consensual, que não se esteja produzindo mudanças no sistema de pensamento social” (MOSCOVICI, 2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004., p. 58). O resultado desse processo, comprovado por estudos empíricos, conforme relata Sá (2004)SÁ, C. P. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, M. J. (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 19-45., é muito criativo e inovador no espaço de nossa vida cotidiana.

Além da diferenciação dos universos reificados e consensuais, Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.) apresenta uma estrutura para a representação que é formada por duas faces: a figurativa e a simbólica. Essa estrutura é formada pela objetivação e ancoragem. A função de dar um sentido para uma figura, propiciar um contexto inteligível ao objeto e interpretá-lo, é o processo de ancoragem. Ela é a integração cognitiva do objeto representado dentro de um sistema preexistente de pensamento social e nas transformações implicadas. O objeto representado pode designar ideias, acontecimentos, pessoas, relações etc. Desse processo decorre o enraizamento ou ancoragem social da representação e do seu objeto representado.

A ancoragem é um processo de classificação a partir de referenciais ou protótipos armazenados na memória dos indivíduos. Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.) comenta que dessa forma, o objeto adquire características da classe e é reajustado para se ajustar a ela. Mesmo observando alguma discrepância, há transferência das características da classe para o objeto, a fim de garantir o mínimo de coerência entre o familiar e o não familiar. É pelo processo de classificação daquilo que não estava classificado que se consegue imaginá-lo, representá-lo, dar-lhe algum sentido.

O encontro intercultural é, pois, um reencontro na lógica das representações sociais porque, para Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004., p. 63), “nós não podemos nunca dizer que conhecemos um indivíduo, nem que nós tentamos compreendê-lo, mas somente que nós tentamos reconhecê-lo, isto é, descobrir que tipo de pessoa ele é, a que categoria pertence”. Isso é a ancoragem de forma concreta e significa a “prioridade do veredicto sobre o julgamento” e do “predicado sobre o sujeito”. Nessa lógica de categorização são seguidos dois caminhos: a generalização ou a particularização. Na generalização, uma opinião vem rapidamente à mente e é preciso descobrir a informação que se ajusta a ela, que confirma que algo ou alguém faz jus àquela opinião já formada. Na particularização, o indivíduo, objeto ou situação é colocado a distância para análise, pois é divergente do protótipo e torna-se necessário encontrar onde está essa diferença. E, assim, por meio da localização da diferença conseguimos enquadrar em alguma classificação já existente ou criar uma nova categoria.

Um conceito que emerge da ancoragem é o da denominação. Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004., p. 66, grifo do autor) declara que é impossível classificar sem nominar; são duas atividades distintas, mas que se relacionam, e ao tirar algo de um “anonimato perturbador para dotá-lo de uma genealogia e incluí-la em um complexo de palavras específicas, para localizá-la, de fato, na matriz de identidade da nossa cultura” ocorre uma denominação. Quando nomeamos algo ou alguém, tornamos uma imagem comunicável ou que seja ligada a outras imagens. Esse “algo” ou “alguém” sai do mundo da confusão, da incerteza e da desarticulação, e por meio da nominação e da invenção de palavras que o descrevem é possível representar uma realidade. Moscovici (2004) diz que suas considerações provam que nominar uma pessoa ou algo é como precipitá-la, da mesma forma como uma solução química, e que os resultados desse processo são três:

A) uma vez nomeada, a pessoa ou coisa pode ser descrita e adquire certas características, tendências etc.; B) a pessoa, ou coisa, torna-se distinta de outras pessoas ou objetos, através dessas características e tendências; c) a pessoa ou coisa torna-se o objeto de uma convenção entre os que adotam e partilham a mesma convenção (MOSCOVICI, 2004SÁ, C. P. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, M. J. (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 19-45., p. 67).

Existe uma necessidade de identificar indivíduos e coisas de modo a ajustá-los em uma representação social já existente e, assim, quem nomeia e a quem é dado o nome são forçados em uma matriz de identidade na qual eles não escolheram e não possuem controle. Nesse ponto, Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004., p. 68) afirma que “essa é a maneira como todas as manifestações normais e divergentes da existência social são rotuladas - indivíduos e grupos são estigmatizados, seja psicológica, seja politicamente”.

Nesse momento, a TRS traz duas consequências. Primeiro, não existe ideia ou pensamento que não tenha ancoragem e isso leva a dizer, segundo Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004., p. 70), que não é possível ter um sistema geral sem que existam vieses, mas que “os vieses [...] não expressam [...] um déficit ou limitação social ou cognitiva, mas uma diferença normal de perspectiva, entre indivíduos ou grupos heterogêneos dentro de uma sociedade”. Em segundo lugar, o objetivo principal da classificação e da nomeação é “facilitar a interpretação de características, a compreensão de intenções e motivos subjacentes às ações das pessoas, na realidade, formar opiniões”.

A outra face da ancoragem é a objetivação que, de acordo Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.), é quando se dá materialidade a um objeto abstrato, é o processo e “naturalizá-lo”. E significa “a operação imaginante e estruturante” por meio da qual se dá uma “forma” própria ao conhecimento acerca do objeto, de modo a torná-lo concreto, o conceito tangível materializado, é a forma de transformar um conceito em uma imagem (MOSCOVICI, 2004SÁ, C. P. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, M. J. (Org.). O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 19-45., p. 71). Segundo o autor, a objetivação é um processo mais atuante do que a ancoragem e ela une a noção de não familiaridade com a noção de realidade, dessa forma tornando-se a “verdadeira essência da realidade”. Toda a representação social torna real determinado nível de realidade e esses níveis existem pela coletividade e nela se esvaem não existindo por si.

As imagens que têm a capacidade de ser representadas vão sendo integradas em um padrão que Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.) chamou de “núcleo figurativo”, que é um complexo de imagens que reproduzem um complexo de ideias. As palavras que se referem ao núcleo figurativo são aquelas usadas mais frequentemente e daí emergem as fórmulas e clichês que resumem o núcleo figurativo que se torna um modo de entender os outros e a si e que ajuda na tomada de decisão em variadas situações sociais.

As representações sociais são dependentes da memória e a solidez da memória protege as representações de mudanças bruscas, fornecendo uma dose de independência dos acontecimentos atuais. Para Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004., p. 78) “é dessa soma de experiências e memórias comuns que nós extraímos as imagens, linguagem e gestos necessários para superar o não familiar [...]. As experiências e memórias são dinâmicas e imortais”. E, assim, a ancoragem e a objetivação são formas de lidar com a memória. Para Moscovici (2004), a finalidade de todas as representações é tornar familiar algo não familiar, ou a própria não familiaridade. O que o autor procura dizer é que os universos consensuais são locais onde todos querem sentir-se em casa, a salvo de qualquer risco, atrito ou conflito. Tudo o que é dito ou feito ali apenas confirma as crenças e as interpretações adquiridas, corrobora, mais do que contradiz, a tradição.

Ao buscar pesquisas no contexto intercultural que tenham utilizado a TRS na área de Administração nas bases de dados Scopus e Web of Science, foi encontrado um número muito pequeno de artigos, todos com foco em outras áreas, como Marketing (ELFRIEDE, 2006ELFRIEDE, P. Researching the socio-cultural context: putting social representations theory into action. International Marketing Review, v. 23, n. 4, p. 418-437, 2006.; STEWART e LACASSAGNE, 2005STEWART, I.; LACASSAGNE, M. F. Social representations as a diagnostic tool for identifying cultural and other group differences. Psychology & Marketing, v. 22, n. 9, p. 721-738, 2005.). Outros trabalhos envolvem questões mais amplas, como organização das cidades e migração (KEMPNY, 2013KEMPNY, M. Tales from the borderlands: Polish migrants’ representations of the Northern Irish conflict in Belfast. Space and Culture, v. 16, n. 4, p. 435-446, 2013.). Isso representa uma importante oportunidade de contribuição e ineditismo que este artigo pode oferecer.

Da mesma forma, a pesquisa na biblioteca eletrônica SPELL não encontrou nenhum artigo que reunisse o tema administração intercultural com a TRS. Em um estudo bibliométrico sobre o uso da TRS nos estudos organizacionais no Brasil, no período de 2001 a 2014, Martins-Silva, Silva Júnior, Peroni et al. (2016)MARTINS-SILVA, P. O. et al. Teoria das representações sociais nos estudos organizacionais no Brasil: análise bibliométrica de 2001 a 2014. Cadernos EBAPE.BR, v. 14, n. 4, p. 891-919, 2016. mostram que 23 artigos foram publicados, em variadas temáticas e usando diferentes recortes da teoria. Os autores concluem que há necessidade de evolução e amadurecimento da TRS nos estudos organizacionais, tanto do ponto de vista quantitativo, com aumento do volume de artigos publicados, quanto em termos qualitativos, pois as pesquisas a têm usado de modo superficial, sem explorar seu potencial para o entendimento dos fenômenos sociais.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Esta pesquisa é descritiva, de natureza qualitativa, pois essa abordagem possibilita a análise interpretativista necessária para compreender o mundo dos significados, das representações e das percepções (DENZIN e LINCOLN, 2006DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. Introdução: a disciplina e a prática da pesquisa qualitativa. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. p. 15-41.). Em outras palavras, seu objeto de estudo se refere ao mundo dos símbolos, dos significados, da subjetividade e da intencionalidade. Foram feitos contatos iniciais informais com pessoas conhecidas das três organizações (colegas professores que trabalham nessas organizações, além de alunos e ex-alunos). Esse contato informal facilitou o acesso às áreas de recursos humanos de três subsidiárias de multinacionais que identificaram cada equipe multicultural e seus membros. Com a indicação dos recursos humanos, um dos membros de cada equipe foi contatado; em seguida, este membro indicou outro, e assim por diante, caracterizando o método denominado “bola de neve” para determinação dos participantes. Com isso, procurou-se evitar ou diminuir um viés de pesquisa, sem o direcionamento por parte da área de recursos humanos ou da gestão de mobilidade internacional de pessoas que poderiam replicar o discurso oficial da organização. Assim, os participantes, no momento de suas entrevistas, indicavam seus colegas, suas chefias e seus subordinados.

Nesta pesquisa, a busca pela validação e verificação da veracidade das informações foi um processo contínuo, para isso, foram realizadas entrevistas com sujeitos (brasileiros e estrangeiros); com os gestores de mobilidade internacional, responsáveis pela gestão da mobilidade internacional; além de pesquisa nos documentos oficiais disponibilizados pelos gestores de recursos humanos.

No total, foram entrevistadas 33 pessoas. A maior parte dos sujeitos atua na área financeira dessas organizações ou em funções relacionadas à operação financeira ou projetos dessa área. Contudo, também participaram da pesquisa alguns de seus colegas de outras áreas que, cotidianamente, interagem com eles em atividades e projetos em conjunto, e também participou um cônjuge de um profissional estrangeiro. A decisão de fazer a entrevista com o cônjuge de um dos membros de equipe multicultural deu-se porque, ao entrevistá-lo, ficou evidenciado o papel das relações informais dentro e, principalmente, fora do ambiente de trabalho, entre locais e estrangeiros em uma das empresas multinacionais, que contribuiu para o processo de adaptação dos profissionais estrangeiros à cidade, à cultura brasileira e aos aspectos cotidianos da família que tiveram reflexo no desenvolvimento e na integração do trabalho em equipe. Essas informações foram detalhadas e corroboradas na entrevista com o cônjuge. Os profissionais entrevistados ocupam diferentes posições hierárquicas e têm idades variadas, sendo 16 mulheres e 17 homens. As nacionalidades foram bastante variadas, além da brasileira: sueca, finlandesa, chilena, peruana, argentina, inglesa, cubana/americana, portuguesa e equatoriana. Foram entrevistados 12 estrangeiros e 18 brasileiros.

As entrevistas seguiram 2 roteiros semiestruturados distintos com perguntas baseadas na fundamentação teórica sobre mobilidade internacional, cotidiano organizacional de trabalho e as relações interculturais de equipes. A pesquisa documental foi feita com base em documentos oficiais das 3 instituições, fornecidos pelos gestores de recursos humanos, acerca das políticas e práticas voltadas à gestão de mobilidade internacional, como seleção, treinamento, trâmites legais, mudança, acompanhamento e repatriação, bem como as adaptações e especificações do gerenciamento dessa área nas subsidiárias brasileiras, além de documentos que ajudaram a compreender os valores e pressupostos presentes na cultura organizacional de cada empresa.

Como referência metodológica para apreender e analisar as representações sociais, Possamai e Guareschi (2007POSSAMAI, H.; GUARESCHI, P. A. Minha culpa, meu destino: representações sociais do acidente de trabalho. In: VERONESE, M. V.; GUARESCHI, P. A. (Org.). Psicologia do cotidiano: representações sociais em ação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. p. 225-246., p. 234) comentam que são consideradas “as respostas individuais enquanto manifestações e tendências do grupo ao qual ele pertence e participa e não enquanto indivíduo isoladamente”. É a análise do indivíduo no campo social, e é aí que se torna possível “estudar como é que se produzem os saberes sociais, as Representações Sociais” (POSSAMAI e GUARESCHI, 2007POSSAMAI, H.; GUARESCHI, P. A. Minha culpa, meu destino: representações sociais do acidente de trabalho. In: VERONESE, M. V.; GUARESCHI, P. A. (Org.). Psicologia do cotidiano: representações sociais em ação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. p. 225-246., p. 234) e como os indivíduos, grupos e sociedade constroem essas formas de saber do senso comum. Spink (2007SPINK, M. J. Desvendando as teorias implícitas: uma metodologia de análise das representações sociais. In: GUARESCHI, P.; JOVCHELOVITCH, S. (Orgs.). Textos em representações sociais. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. p. 117-148.) diz que, para identificar o processo de elaboração das representações no cotidiano por meio das explicações cognitivas, as práticas concretas e o investimento afetivo, é preciso mais do que seguir as indicações de análise de conteúdo e de discurso. A autora sugere uma sequência de atividades que foram seguidas durante essa etapa da pesquisa:

  1. Fazer as transcrições das entrevistas sendo o mais fiel possível não só as palavras usadas, mas aos silêncios e as ênfases dadas.

  2. Fazer uma leitura flutuante do material transcrito, de forma intercalada com a escuta das entrevistas gravadas para deixar aflorar os temas, com atenção à retórica e à identificação dos investimentos afetivos.

  3. Retornar aos objetivos de pesquisa e procurar definir com clareza qual é o objeto da representação.

  4. Com base nos temas encontrados, elaborar os gráficos que demonstram as relações entre os elementos de cognição, as práticas e os investimentos afetivos (constituídos por argumentação e atribuição de valores).

É importante destacar que apesar de seguir as indicações metodológicas, estudar o saber cotidiano de um grupo ou sociedade é fazer a interpretação da interpretação, é saber que o momento histórico e social do pesquisador também pode influenciar a leitura que ele faz das representações dos outros.

Com a análise baseada na leitura flutuante das transcrições e entremeada pela escuta das gravações das entrevistas foram observados os temas emergentes e, a partir deles, foram criados mapas de ideias e representações dos grupos de sujeitos entrevistados, seguindo a orientação de Spink (2007SPINK, M. J. Desvendando as teorias implícitas: uma metodologia de análise das representações sociais. In: GUARESCHI, P.; JOVCHELOVITCH, S. (Orgs.). Textos em representações sociais. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. p. 117-148.). Em seguida, houve análise conjunta das três organizações pesquisadas, a fim de identificar algumas representações comuns a elas. Essas representações foram criadas e recriadas pelos entrevistados acerca de sua vivência e rotina de trabalho no contexto intercultural, por meio dos processos de ancoragem e objetivação.

Depois de identificadas as representações, os entrevistados foram contatados para confirmar as informações relatadas e para analisar se as representações destacadas estavam corretas e esclarecimentos adicionais foram solicitados e recebidos.

Vale esclarecer que não há interação entre as 3 empresas pesquisadas, mas elas apresentam pontos em comum em relação às suas diretrizes e políticas de mobilidade internacional e o trabalho de equipes multiculturais.

RESULTADOS

A Empresa A é, na verdade, um grupo de empresas onde são desenvolvidas atividades ligadas à industrialização e comercialização de diferentes produtos. No Brasil, a organização opera desde o final dos anos de 1970, com unidades em Curitiba (PR) Pederneiras (SP).

A Empresa B também é um grupo de empresas, todas do ramo financeiro e sua vinda para o Brasil se deu por meio de aquisição de uma empresa brasileira. Com o uso de tecnologia de informação, a organização possui uma rede global que oferece uma gama de serviços financeiros. O grupo começou a operar no Brasil no final dos anos 1990 e a sede brasileira encontra-se instalada em Curitiba.

Em relação à Empresa C, trata-se de uma organização do setor industrial, uma das líderes internacionais de seu setor de atividade, dentro do ramo do agronegócio. A abrangência de suas atividades cobre cerca de 160 países. A operação no Brasil começou na década de 1980 e a sede administrativa e financeira também fica em Curitiba.

As empresas A e B atuam de forma transnacional, segundo o conceito de Bartlett e Ghoshal (1992BARTLETT, C. A.; GHOSHAL, S. Gerenciando empresas no exterior: a solução transnacional. São Paulo: Makron, 1992.), de controle dos negócios e integração globais, mas com operação e customização locais. Nesse sentido, cada matriz fornece diretrizes e políticas globais que devem nortear a operação em cada local, porém, há espaço para o atendimento de necessidades locais, bem como a adoção por parte da matriz e outras subsidiárias de soluções inovadoras encontradas, inicialmente, em uma subsidiária por meio de um processo de gestão integrado e dinâmico. Já a empresa C trabalha para a construção de políticas e procedimentos globais, o que condiz com o conceito de gestão global de Bartlett e Ghoshal (1992), com poucos ajustes às situações locais, pois seu mix de produtos permite esse tipo de estratégia, são produtos que não necessitam de adequação ou customização em sua produção ou comercialização.

As principais representações sociais comuns identificadas foram: a cultura organizacional global; o profissional global; a diversidade cultural como valor e como recurso; a mobilidade internacional é para poucos; a comunicação como um processo de construção compartilhada; e aprendizagem e erros. Essas representações estão imbricadas e formam uma rede interconectada onde os profissionais envolvidos reforçam e ressignificam essas representações o tempo todo, criando uma dinâmica que sustenta a relação entre brasileiros e estrangeiros.

A cultura organizacional global representa a percepção compartilhada de que os valores e as diretrizes da organização dão sentido ao cotidiano, deixando entrever o conceito e significado da cultura de cada organização na sua dimensão global. Além da história inicial e dos caminhos percorridos, os valores das 3 organizações são continuamente lembrados e carregam a ideia dos negócios além-fronteiras. Nas 3 organizações existem políticas de reforço e disseminação da cultura organizacional, principalmente de um estilo próprio de ser de cada uma delas que direciona para os valores e condutas esperados de seus membros.

Para os cargos gerenciais e de diretoria são implementados programas de imersão na matriz, de integração e projetos entre subsidiárias. E os sujeitos assimilam, ao longo do tempo, os valores e pressupostos da cultura de suas organizações e seus comportamentos vão sofrendo um processo de adequação e aumento do comprometimento. O nível de comprometimento e o tipo de resposta são diferentes entre as 3 organizações devido ao estágio de amadurecimento de cada subsidiária. Nas 2 empresas que atuam há mais tempo no Brasil foram percebidas culturas organizacionais mais enraizadas, comportamentos mais homogêneos e alto grau de comprometimento.

A Figura 1 consiste no gráfico construído a partir de trechos dos relatos dos entrevistados das 3 organizações sobre essa representação.

Figura 1
Gráfico da cultura organizacional global

Observa-se que as organizações passam a ser mais importantes do que os países nos quais elas operam. E são as premissas e as diretrizes delas, enaltecendo a diversidade e a pluralidade de ideias, que perpassam seus discursos oficiais e norteiam as ações dos indivíduos. Elas experimentam a realidade diária de tentar transformar a diversidade em ganhos e, ao mesmo tempo, evitar que ocorra a perda de sua consistência interna, destacado por Freitas (2008FREITAS, M. E. O imperativo intercultural na vida e na gestão contemporânea. Revista Organizações & Sociedade, v. 15, n. 45, p. 79-89, 2008.) como um grande desafio das organizações globais.

Os sujeitos vão se tornando profissionais globais à medida que vivenciam missões internacionais, participam de projetos internacionais, convivem em ambiente multicultural em funções globalizadas e estão sujeitos às mesmas políticas globais. Eles são capazes de estabelecer uma identificação mais forte com a identidade organizacional, com o jeito de ser de cada uma delas. E são reconhecidos por seus colegas locais como mais globalizados, onde pouco se percebe da cultura nacional de cada um e muito se vê da cultura da organização e de suas personalidades.

A impressão é de que esses sujeitos são menos suscetíveis às diferenças de entendimento e de comportamento do que aqueles que convivem só com pessoas de sua própria nacionalidade ou que têm um contato mais restrito com outros países. E, por outro lado, têm mais sensibilidade para reconhecer as diferenças e buscar a própria adaptação, conforme já apontado por Mahajan e Silva (2012MAHAJAN, A.; DE SILVA, S. R. Unmet role expectations of expatriates, host-country national support, and expatriate adjustment. International Journal of Cross Cultural Management, v. 12, n. 3, p. 349-360, 2012.).

A Figura 2 consiste no gráfico construído com exemplos de percepções compartilhadas pelos entrevistados.

Figura 2
Gráfico do profissional global

O desenvolvimento do profissional global com competências interculturais é um processo que demanda tempo e dedicação, como já declararam Matveev e Nelson (2004MATVEEV, A.; NELSON, P. E. Cross cultural communication competence and multicultural team performance perceptions of American and Russian managers. International Journal of Cross Cultural Management, v. 4, n. 2, p. 253-270, 2004.) e Adler e Gundersen (2008ADLER, A.; GUNDERSEN, N. International dimensions of organizational behavior. 5. ed.Cincinnati, OH: Thomson South-Western, 2008.). Os recursos e esforços devem ser providenciados não somente pelos sujeitos participantes de missões internacionais, mas também das organizações, como argumenta Freitas (2005FREITAS, M. E. Executivos brasileiros expatriados na França: uma contribuição aos estudos organizacionais interculturais. Relatório de professor titular submetido à banca avaliadora da Fundação Getulio Vargas. São Paulo: FGV, 2005.), pois são elas as maiores interessadas em ter profissionais capazes de fazer a melhor integração entre o global e o local e de identificar práticas e características inovadoras em cada operação.

Foi identificada, nos discursos oficiais das 3 organizações, a importância da diversidade cultural como valor e como recurso para a implementação das estratégias e para a negociação entre as perspectivas global e local. Os entrevistados também comentaram que a diversidade cultural é vista como um dos pilares de sustentação das organizações em mercados com características tão distintas.

A busca pela diversidade de perspectivas, de decisões e de resoluções de problemas não só faz parte dos discursos oficiais como também se mostra uma prática do cotidiano organizacional, principalmente nas execuções de tarefas das equipes multiculturais. A partir do momento que a diversidade cultural é incentivada no cotidiano organizacional, ela passa a ser um recurso que as organizações podem lançar mão para resolver problemas de forma mais elaborada e completa e pensar na sobrevivência de longo prazo, como apontado por Adler e Gundersen (2008ADLER, A.; GUNDERSEN, N. International dimensions of organizational behavior. 5. ed.Cincinnati, OH: Thomson South-Western, 2008.) ao evidenciarem as vantagens do trabalho de equipes multiculturais.

A Figura 3 representa a construção da representação da diversidade como valor e como recurso para as organizações.

Figura 3
Gráfico da diversidade cultural como valor e como recurso

Incentivar a aprendizagem organizacional via diversidade cultural significa aceitar que as ideias devem ser apresentadas, analisadas e discutidas até que se chegue à conclusão do que é o melhor a ser feito. Isso demanda tempo, paciência, respeito e dedicação dos participantes e das organizações. Sem falar no potencial de conflitos e desentendimentos que surgem quando opiniões e expectativas diferentes são colocadas em evidência, como relatado por sujeitos das 3 organizações. Por isso, Chevrier (2000CHEVRIER, S. Le management des équipes interculturelles. Paris: PUF, 2000.) e Freitas (2005FREITAS, M. E. Executivos brasileiros expatriados na França: uma contribuição aos estudos organizacionais interculturais. Relatório de professor titular submetido à banca avaliadora da Fundação Getulio Vargas. São Paulo: FGV, 2005.) comentam que as organizações, muitas vezes, não conseguem aproveitar o potencial da diversidade cultural e muito da riqueza da experiência intercultural fica restrita aos sujeitos que participam diretamente do processo.

Para aqueles que já passaram pela experiência de viver em outro país em uma missão internacional, seja por um período mais curto (menos de 1 ano), seja por vários anos, a percepção parece ser a mesma: a mobilidade internacional é para poucos, pois não basta a vontade e a disposição de enfrentar esse tipo de desafio, é preciso ter uma abertura ao novo, ao diferente que pressupõe uma capacidade de abrir mão da zona de conforto criada ao redor de si no ambiente de trabalho e, principalmente, no que diz respeito aos aspectos fora do trabalho.

Além disso, esse é um tipo de escolha que envolve mais instâncias da vida dos sujeitos do que somente o trabalho. É uma decisão de vida que diz respeito à família e ao seu futuro. Em muitos países, o cônjuge não consegue visto de trabalho e precisa deixar sua carreira em suspenso até a volta. Planos traçados precisam ser modificados ou adiados, expectativas precisam ser balizadas e o período que vem depois da missão internacional também precisa ser pensado. Todos os entrevistados que já vivenciaram uma missão internacional afirmaram que conseguiram se adaptar, que tiveram êxito e alguns já participaram de novas missões. Entretanto, sempre recordavam um caso de alguém que “não teve tanta sorte”. Mesmo aqueles que nunca passaram por uma experiência de trabalho no exterior comentaram que é perceptível quando um indivíduo não está preparado ou não tem o perfil para esse tipo de situação.

A Figura 4 apresenta como essa representação social foi constituída.

Figura 4
Gráfico da missão internacional É Para Poucos

O gosto pelo desafio e a abertura ao diferente foram citados como as características principais para quem quer participar de uma missão internacional. Alguns comentaram, também, sobre a importância do planejamento da carreira e da vida familiar como táticas fundamentais utilizadas para aumentar as chances de êxito de uma missão internacional. Além de ter curiosidade de conhecer lugares e pessoas diferentes, ser flexível e conseguir viver sem determinados produtos ou serviços muito específicos de seu país. O apoio da organização foi apontado como fundamental, tanto para resolver questões domésticas quanto para apresentação e acompanhamento no ambiente de trabalho. Os comentários se aproximam do que autores como Cerdin (2002CERDIN, J. L. L’expatriation. 10. ed. Paris: Organisation, 2002.), Adler e Gundersen (2008ADLER, A.; GUNDERSEN, N. International dimensions of organizational behavior. 5. ed.Cincinnati, OH: Thomson South-Western, 2008.) e Freitas (2005FREITAS, M. E. Executivos brasileiros expatriados na França: uma contribuição aos estudos organizacionais interculturais. Relatório de professor titular submetido à banca avaliadora da Fundação Getulio Vargas. São Paulo: FGV, 2005.) argumentam ser necessário para que a experiência possa ser positiva.

O convívio com estrangeiros foi citado como um dos melhores testes para os locais avaliarem quem têm o perfil para uma missão internacional, o que falta para estar preparado ou mesmo para concluir que não é isso que se quer.

A comunicação como um processo de construção compartilhado advém da constatação de que a fluência no idioma oficial das organizações constitui, ainda, uma grande barreira no processo comunicativo nas subsidiárias brasileiras. Apesar de isso ser mais problemático no início do convívio, é algo que dificulta a interação e leva o estrangeiro a aprender o português ou, pelo menos, o espanhol e os brasileiros a fazerem um esforço maior de compreensão.

As falhas de comunicação fazem com que as reuniões sejam mais demoradas, os relacionamentos interpessoais tornem-se mais superficiais. A tensão aumenta na hora de negociar e cumprir prazos, porque as atividades são mais esticadas para resolver as dificuldades de comunicação. Sem falar no número de erros e atritos causados por falta de entendimento ou compreensão errônea das solicitações entre chefias, subordinados e colegas. No caso dos estrangeiros, a dificuldade de comunicação é um agravante para uma situação natural de tensão e frustração. Não conseguir fazer-se entender também atrapalha a vida doméstica e da família, isolando-os da vida social à sua volta.

A Figura 5 representa o gráfico da comunicação como uma construção compartilhada.

Figura 5
Gráfico da comunicação como um processo de construção compartilhada

Por parte dos profissionais brasileiros, é muito valorizado o fato do estrangeiro buscar aprender falar o português. A partir daí, é unânime a impressão de que há um esforço contínuo dos brasileiros para melhorar a comunicação. Outra tática usada é o jeito brincalhão e bem-humorado do brasileiro lidar, que ajuda a “quebrar o gelo”. Os estrangeiros percebem isso como uma demonstração de esforço e interesse em promover a boa comunicação e a integração e, por isso, também tentam falar português (um pouco, pelo menos) e compreender o inglês falado pelos brasileiros. Isso demonstra o entendimento de ambos os lados de que a comunicação e a cooperação precisam ocorrer no ambiente de trabalho.

Em relação à representação sobre aprendizagem organizacional e erros, o contexto intercultural contribui para o processo de aprendizagem das 3 organizações, mas nem sempre de maneira formal. Nenhuma delas tem política definida de como integrar a operação cotidiana com a experiência e os conhecimentos criados durante a interação intercultural ou o registro das atividades das equipes multiculturais.

O que elas têm são direcionamentos gerais para as missões internacionais, mas não há controle do que realmente é feito e como é feito. Quando um estrangeiro vem para transferir uma nova tecnologia ou processo, alguns acompanhamentos são feitos em linhas gerais e sem registro em sistema de informação específico, como um banco de práticas, por exemplo. Quando a missão é gerenciar uma área ou projeto, praticamente não há nenhum controle sobre possíveis transferências de conhecimento e aprendizagem dos locais.

A Figura 6 consiste no gráfico que representa a percepção dos entrevistados sobre aprendizagem e erros.

Figura 6
Gráfico de aprendizagem e erros

As pessoas envolvidas diretamente nas interações interculturais declaram que a constante aprendizagem não só de conhecimentos técnicos, mas de competências interculturais que ampliam a visão de mundo e de negócios, muda a forma dos comportamentos e relacionamentos, o que corrobora o que disse Ou (2009OU, H. Situated knowledge: a practice-based view on intercultural interaction. Journal of Management Proceedings, n. 1, p. 1-6, 2009.) acerca do processo de aprendizagem de equipes multiculturais. A interação intercultural é muito rica, mas precisa ser cultivada a todo o momento e ela também cansa. Conviver com as diferenças e com o desconhecido desgasta, mas traz recompensas.

A postura em relação aos erros é bem diferente entre as culturas. Em algumas culturas, a tentativa é incentivada, mesmo que leve ao erro. Este é visto como parte do processo de aprendizagem na cultura norte-americana e britânica, por exemplo. Os brasileiros correm mais riscos de errar se se trata de um erro do grupo e não de apenas um indivíduo. Eles ficam intimidados quando em contato com chefes norte-americanos que cobram maior ousadia e preferem continuar compartilhando os erros e acertos, mesmo que ninguém se sobressaia individualmente.

ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS COMUNS ÀS TRÊS EQUIPES MULTICULTURAIS

A riqueza de nacionalidades dos entrevistados garantiu um olhar abrangente da construção das representações sociais acerca de interações e cotidiano interculturais. Além dos profissionais brasileiros, participaram da pesquisa profissionais da Finlândia, Inglaterra, Peru, Suécia, Equador, Chile, Cuba/Estados Unidos, Portugal e Argentina, totalizando 33 entrevistados.

Nas 3 organizações pesquisadas surgiram pontos comuns, como as estratégias de gestão transnacional e global, ou seja, buscam fortalecer as diretrizes globais, mas também visam a atender as demandas locais, em menor ou maior grau, e com isso, percebeu-se a construção de culturas organizacionais com elementos globais; o incentivo à transformação de alguns profissionais em posições-chave em profissionais globais; o entendimento que a diversidade cultural é um capital que pode trazer muitos resultados positivos para as organizações e o desenvolvimento de competências interculturais para facilitar os processos de mobilidade internacional. Em contrapartida, foram observados, ainda, muitos problemas de comunicação e uma falta de preocupação com o processo de aprendizagem intercultural e as formas de registro e assimilação do conhecimento e experiência adquiridos.

Reforça-se o papel da cultura organizacional dessas empresas, que estabelece formas de conduta e valores para os sujeitos envolvidos. Dessa forma, tanto as políticas quanto a cultura organizacional funcionam como um “pano de fundo” que orienta os procedimentos de trabalho, principalmente as atividades de caráter mais técnico, e os comportamentos esperados em determinadas situações. Com isso, diminui-se a tensão e o desconforto iniciais - de ambas as partes, estrangeiros e locais - e menos estranhezas no que concerne ao desempenho das atividades profissionais. Ficou claro que quanto mais sólida a cultura de uma organização e o alcance de suas políticas, mais esse pano de fundo organizacional facilita a inserção de um novo indivíduo no grupo, pois ele já compartilha um conjunto de valores e pressupostos e já conhece as diretrizes da organização.

Nas 3 organizações, todos os participantes da pesquisa declararam que as interações interculturais enriquecem o cotidiano de trabalho e afirmaram que houve aprendizagem individual e organizacional, de modo que todos percebem ganho de experiência não só profissional, mas de vida, e que as organizações são beneficiadas com o processo. Apesar das dificuldades, eles têm conseguido superar as diferenças e aprenderam a conviver. Entretanto, eles confessam que o cotidiano intercultural exige mais e, portanto, cansa mais. No entanto, nenhuma das 3 organizações tem política definida para o processo de aprendizagem organizacional que ocorre em ambiente multicultural e entre equipes multiculturais. O registro e a sistematização das práticas do fazer intercultural podem servir de base para revisões de políticas e práticas de mobilidade internacional e de processos de trabalho nessas organizações, aumentando, assim, seus ganhos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com esta pesquisa, buscou-se contribuir com a administração intercultural a partir da análise da interação entre membros de equipes multiculturais. Entende-se que essa fase é posterior às fases de seleção e transferência inseridas no processo de mobilidade internacional, mas que depende de como estas foram negociadas e implementadas. Também é fato que a forma como os membros das equipes multiculturais interagem entre si, as representações sociais que criam para tornar o não familiar em familiar, afetam os resultados da mobilidade internacional e influenciam o trabalho das equipes e seus resultados.

A visão de Simmel (1983SIMMEL, G. O Estrangeiro. In: MORAES FILHO, E. (Org.). Georg Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. (Coleção Grandes Cientistas Sociais; 34). p. 182-188.) sobre a posição do estrangeiro no grupo e a dialética que se cria - do perto e longe; do familiar e estranho; do conhecido e desconhecido - foi observada nos depoimentos feitos pelos participantes da pesquisa que mostram que a convivência com estrangeiros cria uma janela que possibilita olhar para fora, para o diferente, para elementos mais distantes e que eram desconhecidos. Ao mesmo tempo, faz com que cada um olhe para dentro por meio dos olhos do estrangeiro. E, assim, são percebidas coisas que estavam invisíveis, seja pelo desconhecimento, seja pelo esquecimento.

O fato de todos os participantes da pesquisa relatarem a experiência intercultural como positiva, mesmo com todas as dificuldades encontradas, pode ser explicado pela necessidade que temos de transformar tudo o que é desconhecido, diferente, em conhecido, como defende Moscovici (2004MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.). E, para isso, são criadas e recriadas representações daquilo que está presente no contexto intercultural e no cotidiano de equipes multiculturais. Conclui-se que, apesar dos problemas e desafios, as equipes multiculturais contribuem, por meio da interação cotidiana e das representações sociais criadas, com a aprendizagem organizacional, o desenvolvimento e a consolidação da cultura e de rotinas globais nas organizações.

Como contribuição, este artigo demonstra que o uso da TRS para analisar o contexto intercultural pode proporcionar uma visão mais dinâmica da interação e construção de um cotidiano de trabalho de equipes multiculturais, em um contexto intercultural. Mapear e analisar as representações compartilhadas ajudam a compreender como as significações são construídas, como os significados são compartilhados e como as práticas transformam o não familiar em familiar.

Além disso, como contribuição prática, a pesquisa demonstra que pode haver traços comuns na cultura organizacional de empresas multinacionais com equipes multiculturais, o que pode auxiliar as empresas a compreender melhor o contexto intercultural e como este afeta e influencia suas práticas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2018

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2016
  • Aceito
    27 Jun 2017
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