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Henri Fayol e o método experimental de Claude Bernard

Henri Fayol y el método experimental de Claude Bernard

Resumo

O objetivo do artigo é analisar a relação entre o fayolismo e o método experimental de Claude Bernard, em que o próprio Fayol argumentou estar fundamentado para a elaboração de sua obra magna. A abordagem utilizada foi a história da ciência administrativa metodologicamente baseada na análise interna dos textos dos autores. A pesquisa sugere divergências entre o fayolismo e o método experimental, além de evidências do período do itinerário de Fayol, no qual teria, de fato e tardiamente, tomado contato direto com a obra de Bernard. A conclusão principal é que são fortes as evidências que sugerem que Fayol fez um estudo pouco sistemático de Bernard e só procedeu de fato ao estudo após 1916, ano de sua obra principal, de modo que não pôde ter praticado o método ao qual se disse aderente.

Palavras-chave:
Henri Fayol; Método experimental; Claude Bernard; História da ciência administrativa

Resumen

El objetivo del artículo es analizar la relación entre el fayolismo y el método experimental de Claude Bernard, método en el que el propio Fayol argumentó basarse para la elaboración de su obra magna. El enfoque utilizado fue la historia de la ciencia administrativa basada metodológicamente en el análisis interno de los textos de dichos autores. La investigación sugiere divergencias entre el fayolismo y el método experimental, así como evidencias del período del itinerario de Fayol en el que, de hecho y tardíamente, habría entrado en contacto directo con la obra de Bernard. La conclusión principal es que hay pruebas sólidas que sugieren que Fayol hizo un estudio poco sistemático de Bernard y que sólo procedió efectivamente a su estudio después de 1916, año de su obra principal, por lo que no pudo haber practicado el método al que afirmaba adherirse.

Palabras clave:
Henri Fayol; Método experimental; Claude Bernard; História da ciência administrativa

Abstract

The article aims to analyze the relationship between Fayolism and Claude Bernard’s experimental method, a method Fayol argued to be based on for the elaboration of his magnum opus. The study used the history of administrative science methodologically based on the internal analysis of the authors’ texts. The findings suggest divergences between Fayolism and the experimental method, besides evidence of the period of Fayol’s itinerary in which he would, in fact and belatedly, have had direct contact with Bernard’s work. The main conclusion is that there is strong evidence to suggest that Fayol did an unsystematic study of Bernard and only really proceeded with the study after 1916, the year of his main work, and could not have practiced the method to which he said he adhered.

Keywords:
Henri Fayol; Experimental method; Claude Bernard; History of administrative science

“[É] desdobramento ordenado de um pensamento prático impulsionado por algumas grandes ideias gerais” (Maxime Leroy, em 1917, sobre a doutrina fayolista).

INTRODUÇÃO

As ideias de Henri Fayol sobre administração são amplamente conhecidas nessa área e ficaram consagradas na literatura mais frequentada no quadro de uma abordagem clássica de inspiração mecânica. Mesmo os comentaristas mais auspiciosos assumiram essa posição, como no exemplo de Morgan (1996Morgan, G. (1996). Imagens da organização (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas .). No entanto, a leitura mais detida de Administração geral e industrial (Fayol, 1931Fayol, H. (1931). Administration industrielle et générale. Paris, France: Dunod., 1964Peaucelle, J. L., & Gutherie, C. (2013). Henri Fayol. In M. Witzel, & M. Warner (Eds.), The Oxford handbook of management theorists. Oxford, UK: Oxford University Press.), de 1916, produz inúmeras impressões diferentes, sobretudo com respeito ao lugar e à importância da biologia no principal livro do autor.

As repercussões disso são múltiplas, especialmente se considerarmos as questões ligadas ao método científico. Nos registros sobre a presença da biologia na reflexão fayolista (Peaucelle, 2000Peaucelle, J. L. (2000). Henri Fayol et la recherche-action. Gérer & Comprendre. Annales Des Mines. Recuperado de http://www.annales.org/gc/2000/gc12-2000/73-87.pdf
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; Peaucelle & Guthrie, 2013Peaucelle, J. L., & Gutherie, C. (2013). Henri Fayol. In M. Witzel, & M. Warner (Eds.), The Oxford handbook of management theorists. Oxford, UK: Oxford University Press.) é bastante frequente a indicação dos vínculos com Claude Bernard (1949Bernard, C. (1949). An introduction to the study of experimental medicine. New York, NY: Henry Schuman Inc.) e seu material, original de 1865, Introduction à l’étude de la médecine expérimentale. As indicações sugerem sempre que Fayol alimentou profunda admiração pelo fisiólogo. O próprio Fayol (1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod.) deixou registrado tamanho reconhecimento em passagens explícitas em L’éveil de l’esprit public, publicado primeiramente em 1918. Nesse material, é notória a tentativa de estabelecer uma “administração experimental” à luz da “medicina experimental” inspirada no fisiólogo francês.

Claude Bernard, por sua vez, recebeu muitas comendas de seus contemporâneos e também após sua morte (Virtanen, 1960Virtanen, R. (1960). Claude Bernard and his place in the history of ideas. Lincoln, NE: University of Nebraska Press.). Bergson (1969Bergson, H. (1969). La pensée et le mouvant: essais et coférences datant de 1903 à 1923. Paris, France: Les Presses Universitaires de France., p. 125) expressou-se de modo peculiar, em discurso de 1913, na ocasião do centenário do nascimento de Bernard, ao declarar que o celebrado livro de 1865 era, para os seus contemporâneos daquele início de século, como foi o Discurso sobre o método de Descartes para os séculos XVII e XVIII.

As ideias de Bernard atravessaram, assim, o Atlântico. O conceito de “meio interior” (milieu intérieu) do organismo serviu de base para Cannon (1932Cannon, W. B. (1932). The wisdom of the body. New York, NY: W. W. Norton.) desenvolver a ideia de homeostase e as suas notórias repercussões para além da biologia. Como ele próprio registrou, “foi o grande fisiólogo francês, Claude Bernard, quem primeiro sugeriu que um fator de suma importância no estabelecimento e na manutenção de estados de equilíbrio no corpo é o ambiente interno” (Cannon, 1932Cannon, W. B. (1932). The wisdom of the body. New York, NY: W. W. Norton., p. 37), complementando mais adiante que o autor francês “viu que a preservação da constância é a condição para a vida livre e independente” (Cannon, 1932Cannon, W. B. (1932). The wisdom of the body. New York, NY: W. W. Norton., p. 249).

As ideias de Bernard também alcançaram Lawrence Henderson, em Harvard, com amplos efeitos entre os anos 1920 e 1930. Henderson (1949Henderson, L. (1935). Pareto’s general sociology: a physiologist’s interpretation. Cambridge, MA: Harvard University Press.), também com formação nas ciências naturais e interessado nas aquisições da fisiologia e na sociologia, escreveu o texto de abertura da tradução de 1927 da Introduction, de Bernard, nos Estados Unidos. Mais importante, a ideia do “ambiente interno” contribuiu para a forja e a consolidação do conceito de “sistema social”, que pressupõe os mecanismos de equilíbrio. Henderson (1935Henderson, L. (1949). An introduction to the study of experimental medicine. New York, NY: Henry Schuman Inc .) ainda desenvolveu as aproximações entre Pareto, Cannon e Bernard precisamente por médio desses componentes. Ele registrou que:

Pareto observa que o estado do sistema social é determinado por suas condições. Assim, se uma modificação pequena do estado do sistema é a ele imposto, a reação tomará lugar e isso tenderá a restaurar o estado original, rapidamente modificado pela experiência (Henderson, 1935Henderson, L. (1935). Pareto’s general sociology: a physiologist’s interpretation. Cambridge, MA: Harvard University Press., p. 46).

Depois de considerar que tais aspectos são de amplo conhecimento comum, Henderson (1935Henderson, L. (1935). Pareto’s general sociology: a physiologist’s interpretation. Cambridge, MA: Harvard University Press.) sugeriu que o “caso do equilíbrio fisiológico é similar. De fato, é logicamente idêntico. [...]. A discussão de Claude Bernard a respeito da constância do milieu intérieu toca no mesmo ponto assim como a recente discussão de Cannon sobre a homeostase” (Henderson, 1935Henderson, L. (1935). Pareto’s general sociology: a physiologist’s interpretation. Cambridge, MA: Harvard University Press., p. 46). Em Harvard, Henderson também estabeleceu as bases para a aceitação do “sistema” e de “equilíbrio”, transpondo tais conceitos para o plano social não sem influência direta da fisiologia de Bernard (Russett, 1966Russett, C. E. (1966). The concept of equilibrium in American social thought. New Haven, CT: Yale University Press.). Esse modo de abordagem da sociedade e das organizações alcançou extraordinária importância para Parsons, Mayo, Barnard, para citar os mais frequentados (Heyl, 1968Heyl, B. S. (1968). The Harvard “Pareto circle”. Journal of the History of the Behavioral Sciences, 4(4), 316-34. Recuperado dehttps://doi.org/10.1002/1520-6696(196810)4:4 <316::AID-JHBS2300040403>3.0.CO;2-Z
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). Junto com Elton Mayo (Henderson, Whitehead, & Mayo, 1937Henderson, L., Whitehead, T. N., & Mayo, E. (1937). The effects of social environment. In L. Gulick, & L. Urwick (Eds.), Papers on the science of administration. New York, NY: Columbia University.), desenvolveu o laboratório para estudos sobre fadiga e aplicação do método experimental para além dos muros de Harvard, alcançando Hawthorne e os estudos de antropologia e de psicologia industrial (Baritz, 1960Baritz, J. H. (1960). The servants of power. Middletown, CT: Wesleyan University.). Seria mesmo possível dizer que a fisiologia de Bernard está na base da teoria das organizações desenvolvida naqueles anos em Harvard, o que coloca em evidência a importância desse autor para além da fisiologia.

Antes de Harvard, porém, Fayol já teria transposto elementos da fisiologia para a administração alegadamente sob influência de Bernard. É fácil admitir que a fundamentação de uma “administração experimental” na fisiologia de Bernard proporcionaria visibilidade e aceitação tanto nos círculos dos agentes práticos quanto além deles. Não por menos, em L’éveil de l’esprit public, Fayol (1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod.) declarou-se “discípulo fervoroso” (Fayol, 1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 4) dos métodos positivo (Comte) e experimental (Bernard). Seus colaboradores não hesitaram em reafirmar essa associação, do mais comedido (Vanuxem, 1927Vanuxem, P. (1927). Introduction théorique et pratique a l’etude de l’administration experimentale. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod.) ao mais exuberante (Verney, 1925Verney, H. (1925). Le caractère de la doctrine administrative et son expansion. In Le fondateur de la doctrine administrative. discours prononcés au banquet du 7 juin 1925: résumé de la doctrine administrative/étude de M. Henri Verney. Paris, France: Dunod.).

Entretanto, não aparece uma adesão tão textualmente explícita no principal material de Fayol de 1916, Administração geral e industrial. A única passagem desse material trazida à baila por Fayol e seus colaboradores para estabelecer a associação ao método experimental é passível de discussão, como veremos adiante. Apenas a partir de 1918, é que essa adesão e associação diretas são reivindicadas e disseminadas textualmente. Não que não houvesse, antes de 1918, elementos da transposição da biologia e certos aspectos que ascendessem ao método científico, além de farta referência à experiência prática como gestor. Muito pelo contrário, as marcas da biologia e as exigências por uma administração sistemática já estavam postas desde 1900 pelo menos (Fayol, 1931Fayol, H. (1931). Administration industrielle et générale. Paris, France: Dunod., 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas.). Mas o fato de a adesão e a associação estarem demarcadas apenas a partir de 1918 é suficientemente intrigante por sugerir que a ascendência ao método experimental de Bernard não tenha sido integral durante os anos que levaram ao principal texto de 1916 e que consagrou, de fato, o fayolismo.

Sobre tais aspectos científicos, já foram colecionadas críticas genéricas ao movimento “clássico” mais amplo no qual Fayol é frequentemente inserido, sobretudo pela ausência de rigor e o excesso de empirismo (March & Simon, 1970March, J. G., & Simon, H. A. (1970). Teoria das organizações (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: FGV.). Entretanto, o que teria se passado entre a reinvindicação da adesão do fayolismo ao método experimental de Bernard e o efetivamente realizado não foi ainda considerado devidamente. Trata-se de uma lacuna a ser resolvida.

Assim, o objetivo desta investigação foi analisar a relação do fayolismo desenhado pela pena de Henri Fayol e o método experimental de Claude Bernard. Perseguir essa finalidade se justifica na medida da contribuição para uma história da ciência administrativa interessada nos processos gerais que envolvem a aquisição do conhecimento, sobretudo por agente prático e teórico cuja trajetória se confunde com o próprio desenvolvimento da área de administração e dos estudos sobre organizações. Na figura de Fayol, o prático e o teórico estão entrelaçados na medida em que foi alguém que esteve à frente de grande corporação francesa e, ao mesmo tempo, teorizou sobre a realidade e difundiu suas ideias com ampla repercussão para além da França. Analisar, portanto, a relação entre o fayolismo e o método experimental desenhado no século XIX tem o papel de jogar luz nos problemas epistemológicos envolvidos e levantar a determinação histórica desses mesmos problemas.

Em termos teórico-metodológicos, a pesquisa se ocupou do itinerário epistemológico de Fayol, isto é, o percurso que reflete a tradição na qual o autor se situou e as heranças que dali recebeu, além do procedimento adotado para a investigação que embasou suas proposituras fundamentais. A abordagem desenvolvida para tanto faz referência ao materialismo que se debruça sobre os estudos das formações ideais, incluindo as administrativas (Paço-Cunha, 2020Paço-Cunha, E. (2020). Gênese do taylorismo como ideologia: acumulação, crise e luta de classes. Organizações & Sociedade, 27(95), 674-704. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9270953
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, 2021Paço-Cunha, E. (2021). Henri Fayol na encruzilhada da terceira via: organização da grande corporação e conflito social na forja do ideário fayolista. Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, 20(2), 233-261. Recuperado de https://doi.org/10.21529/RECADM.2021008
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; Paço-Cunha & Guedes, 2016Paço-Cunha, E., & Guedes, L. T. (2016). Teoria das relações humanas como ideologia na particularidade brasileira (1929-1963). Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 3(8), 957-1018. Recuperado de https://doi.org/10.25113/farol.v3i8.3783
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). A abordagem materialista mobilizada no presente esforço de história da ciência administrativa atende às exigências de objetividade e de realismo históricos (Bunge, 2006Bunge, M. (2006). Chasing reality: strife over realism. Toronto, ON: University of Toronto Press.; Cardoso & Brignoli, 1983Cardoso, C. F., & Brignoli, H. (1983). Os métodos da história (3a ed.). São Paulo, SP: Graal.) como consolidada alternativa à hoje predominante, mas nem sempre declarada, tendência relativista nos estudos históricos em gestão e em estudos organizacionais (Coraiola, Barros, Maclean, & Foster, 2021Coraiola, D. M., Barros, A., Maclean, M., & Foster, W. M. (2021). História, memória e passado em estudos organizacionais e de gestão. Revista de Administração de Empresas, 61(1), e00000002. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0034-759020210102
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). Na abordagem materialista em questão, as formações ideais não são autônomas, não têm história própria. Ao contrário, elas se articulam às condições histórico-concretas que as possibilitam, possuem enraizamento prático e desaguam sobre as próprias condições que as possibilitaram, produzindo diferentes efeitos e em direções diversas - vez por outra em contradição às ambições manifestas. O itinerário epistemológico não ocorre, pois, como movimento autônomo do plano das ideias. Argumentamos, no entanto, que é possível realizar abstração provisória da análise das condições histórico-concretas em si para destacar as problemáticas internas de um itinerário particular, deixando o aprofundamento daquela análise para um momento oportuno e dedicado.

Adicionalmente e em termos procedimentais, a tomada histórica do itinerário epistemológico de Fayol se concentrou, sobretudo, na “análise imanente” dos textos do autor. Seguimos o expediente analítico já adotado no estudo do pensamento administrativo (Paço-Cunha, 2015Paço-Cunha, E. (2015). Continuidade Hegel-Marx? Solução especulativa em burocracia e ideologia para a relação entre estado e sociedade no modo de produção asiático. Cadernos EBAPE.BR, 13(3), 493-515. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1679-395116965
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, 2020Paço-Cunha, E. (2018). Ontogênese e formas particulares da função de direção: introdução aos fundamentos históricos para a crítica marxista da administração. In E. Paço-Cunha, & D. Ferraz (Eds.), Crítica marxista da administração: fundamentos. São Paulo, SP: Rizoma., 2021Paço-Cunha, E. (2020). Gênese do taylorismo como ideologia: acumulação, crise e luta de classes. Organizações & Sociedade, 27(95), 674-704. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9270953
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), no qual se tomam as estruturas argumentativas, correspondências e contradições próprias. E, para o presente caso, o material de Bernard também foi abordado para fins comparativos. Uma vez que, como argumentado, realizamos uma abstração das condições histórico-concretas para nos concentrar na problemática interna do itinerário epistemológico, a análise levada adiante não tem pretensão de realizar crítica imanente propriamente dita, já feita parcialmente por outras pesquisas sobre o pensamento fayolista (Paço-Cunha, 2021Paço-Cunha, E. (2020). Gênese do taylorismo como ideologia: acumulação, crise e luta de classes. Organizações & Sociedade, 27(95), 674-704. Recuperado de https://doi.org/10.1590/1984-9270953
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).

Assim, o artigo está dividido em quatro partes além desta introdução. Na primeira parte, trataremos especificamente da diferença entre o método experimental de Bernard e aquilo que Fayol reivindicou para explicitar sua adesão a tal método. Na segunda parte, exploraremos o aspecto cronológico da relação entre Fayol e o método experimental, sugerindo o período do itinerário do autor em que seu estudo de Bernard teria ocorrido. Na terceira parte, trataremos da natureza mais delimitada do procedimento de Fayol para a realização de seus estudos com base no cotidiano prático-administrativo, diferenciando-o do método experimental de Bernard. Por fim, apresentaremos as considerações finais do artigo.

MÉTODO EXPERIMENTAL SEM EXPERIMENTO

O texto mais antigo de Fayol (1931Fayol, H. (1931). Administration industrielle et générale. Paris, France: Dunod., 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas.) a que o público teve acesso data de 1900, quando da ocasião do discurso no congresso de metalurgia. Fayol já desfrutava de prestígio por vários motivos. Um deles, sem dúvida, era devido aos experimentos químicos realizados na mina e na usina que comandava (Fayol, 1918Fayol, H. (1918). Notice sur les travaux scientifiques et techniques. Paris, France: Gauthier-Villars e Cia. Éditeurs.), além de ter autorizado levantamentos fósseis em suas dependências (Brongniart, 1893Brongniart, C. (1893). Faune entomologique. Études sur le terrain houiller de Commetry(Vol. 3). Paris, France: Imprimerie Théolier et Cie.; Renault & Zeiller, 1888Renault, M. B., & Zeiller, R. (1888). Flore fossile. Études sur le terrain houiller de Commetry (Vol. 10). Paris, France: Imprimerie Théolier et Cie .). No referido discurso, Fayol insistiu na ausência de preocupação com os aspectos gerenciais, o que se refletia nas discussões do congresso, as quais não tocaram nas prementes questões comerciais da época.

Nesse contexto, ao tematizar o assunto administrativo, recorreu à “comparação com a fisiologia” (Fayol, 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas., p. 152). Antecipando em 16 anos o que seria dito mais tarde, nosso autor defendeu que, assim como “o serviço administrativo de uma sociedade industrial [empresa], o sistema nervoso humano não é visível para o observador superficial”. Na sequência, lemos que a “sociedade industrial também tem seus reflexos ou atos ganglionares que ocorrem sem a intervenção imediata de uma autoridade superior” (Fayol, 1931Fayol, H. (1931). Administration industrielle et générale. Paris, France: Dunod., p. 163, 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas., p. 152).

Dezesseis anos mais tarde, Fayol aprofundaria essa fundamentação na fisiologia em diferentes momentos de sua obra principal. Como chegou a repetir, o “sistema nervoso, principalmente, tem grandes analogias com o serviço administrativo” (Fayol, 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas., p. 85). A presença dessa fundamentação é tão extensa que permite a constatação de que a organização social, na forma da empresa ou do Estado, é tomada por meio da analogia com o organismo vivo em que o “homem desempenha no corpo social um papel análogo ao da célula no animal” (Fayol, 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas., p. 85). Não é por menos que se estabeleceu a tese de que a identificação das funções (comercial, técnica, segurança, financeira, contábil e administrativa) e, portanto, das capacidades correspondentes provém da analogia com os órgãos, os sistemas e as funções conforme a fisiologia dos seres vivos (Paço-Cunha, 2021Paço-Cunha, E. (2021). Henri Fayol na encruzilhada da terceira via: organização da grande corporação e conflito social na forja do ideário fayolista. Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, 20(2), 233-261. Recuperado de https://doi.org/10.21529/RECADM.2021008
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). Isso se reforça pelo fato de que Fayol colaborou com seu genro Désaubliaux na redação de Les origines biologiques de la fonction administrative (Breeze, 2002Breeze, J. D. (2002). A discussion of the translation of some of Fayol’s important concepts. In M. C.Wood, & J. C. Wood(Eds.), Henri Fayol: critical evaluations in businesses and management (pp. 79-101). London, UK: Routledge., p. 87), cujo título ajuda a dar o tom da empreitada. Entre 1917 e 1918, esse quadro geral é confirmado pela repetição das ideias centrais, pela também adição de que estava convencido de que “os fenômenos sociais estão sujeitos, como os fenômenos físicos, a leis naturais independentes de nossa vontade” (Fayol, 1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 2) e, não por menos, introduziu o reconhecimento da existência das “doenças administrativas” para as quais buscar-se-iam remédio e cura (Fayol, 1927bFayol, H. (1927b). L’administration positive dans l’industrie. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 33, p. 48). De modo explícito, lemos que o

Administrador que lida com o corpo social tem as mesmas preocupações do médico que lida com o corpo humano. Uma e outra procuram “constituir organismos saudáveis, preservar a saúde e curar doenças”. Não é de estranhar, então, que o método que convém ao médico quando se trata de indivíduos, convém também ao administrador que cuida dos corpos sociais (Fayol, 1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 2).

Já em 1921, certos elementos ainda estão presentes, porém, mais diluídos, talvez em razão da matéria do debate na direção de evidenciar as limitações congênitas do Estado na administração econômica (Fayol, 1921Fayol, H. (1921). L’incapacité industrielle de l’Etat: les P.T.T. Revue Politique et Parlementaire: Questions Politiques, Sociales et Législatives. Recuperado de https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k141770
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). Se as marcas da fisiologia e da medicina são constantes ao longo da produção intelectual de Fayol, o mesmo não pode ser dito, sem reticências, sobre o método experimental de Bernard. Não há evidências fortes antes de 1918, como dito. Em geral, a adesão e associação entre o fayolismo e Bernard são dadas, em retrospecto, pela extração de uma passagem de Administração industrial e geral, de 1916, na qual podemos ler:

O método consiste em observar, recolher e classificar os fatos, interpretá-los, realizar experiências se preciso e tirar de todo esse conjunto de estudos regras que, sob o impulso do chefe, entrarão na prática dos negócios. A maior parte dos aperfeiçoamentos que elevaram a ciência dos negócios ao seu nível atual procede do mesmo método que não é outro, na realidade, senão o método cartesiano (Fayol, 1927bFayol, H. (1927b). L’administration positive dans l’industrie. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 268, 1931Fayol, H. (1931). Administration industrielle et générale. Paris, France: Dunod., p. 90, 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas., p. 90).

Fayol enfatizou essa passagem em 1918Fayol, H. (1918). Notice sur les travaux scientifiques et techniques. Paris, France: Gauthier-Villars e Cia. Éditeurs. como exemplo do método experimental e cartesiano. Disse ele que a

Administração escapou, até agora, do método experimental, como a medicina até Claude Bernard. No entanto, não há dúvida de que a maioria dos aperfeiçoamentos que elevaram a ciência dos negócios ao seu nível atual procedem do mesmo método, que não é outro senão o método cartesiano (Fayol, 1927bFayol, H. (1927b). L’administration positive dans l’industrie. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 268).

E mais de uma vez sinalizou que seu método de trabalho, seguindo Bernard, foi o de empregar “observação, experiência e raciocínio” (Fayol, 1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 2), expressando uma “administração positiva” em oposição à “administração empírica”, uma vez que a primeira repousaria, repitamos com o autor, sobre a “observação, experiência e raciocínio” (Fayol, 1927bFayol, H. (1927b). L’administration positive dans l’industrie. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 268). Seu colaborador, na sequência de citar tal passagem central, questionou: “Não é este todo o método experimental, definido em termos que Claude Bernard não negaria?” (Vanuxem, 1927Vanuxem, P. (1927). Introduction théorique et pratique a l’etude de l’administration experimentale. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 135).

Há algumas questões a serem consideradas e que ajudam a responder com negativa a essa interrogação.

Primeiramente, cabe a observação de que a passagem utilizada por Fayol e seu colaborador, para estabelecer a adesão e a associação ao método experimental, encontra-se no capítulo II do livro de 1916, a respeito dos elementos de administração, e no qual o assunto específico é a constituição do corpo social, sobretudo a direção-geral, aquela “encarregada de conduzir a empresa ao seu objetivo”, isto é, “é o poder executivo” (Fayol, 1964Fayol, H. (1927b). L’administration positive dans l’industrie. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 88). Entre as muitas obrigações dessa direção, encontra-se a “pesquisa de aperfeiçoamentos” (Fayol, 1964Fayol, H. (1927b). L’administration positive dans l’industrie. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 90). É por decorrência dessa obrigação que Fayol introduziu a passagem decisiva para ele e seus colaboradores, os quais visam estabelecer a conexão com Bernard. Observamos, entretanto, que o método serve à “pesquisa de aperfeiçoamentos” no contexto de sua apresentação como uma obrigação da direção geral, e não, o que é curioso, como fundamento para a chegada de Fayol aos seus princípios e regras (divisão do trabalho, autoridade, hierarquia etc.), isto é, não foi apresentado como o trajeto científico do próprio Fayol.

Uma segunda questão importante é a explícita referência, naquele contexto da passagem, à correspondência a Descartes, uma vez que, como escreveu Fayol no parágrafo imediatamente posterior à passagem, a “maior parte dos aperfeiçoamentos que elevaram a ciência dos negócios ao seu nível atual procede do mesmo método que não é outro, na realidade, senão o método cartesiano” (Fayol, 1964Fayol, H. (1927b). L’administration positive dans l’industrie. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 90). Por que “método cartesiano” e não “método experimental”?

Esse ponto abre a necessidade de considerar a propositura de Bernard a respeito de seu método. A leitura do material central sugere considerável influência de Descartes a respeito da “dúvida cartesiana”, uma vez que, como escreveu Bernard, o “grande princípio experimental é assim a dúvida, a dúvida filosófica que deixa ao espírito sua liberdade e sua iniciativa, e donde derivam as qualidades mais preciosas para um investigador em fisiologia e em medicina” (Bernard, 1865, p. 66, 1949, p. 37). Entretanto, todo o esforço de Bernard para o desenvolvimento do método experimental não se resume à dúvida cartesiana e, se assim fosse, bastaria a repetição pura e simples de Descartes, o que não foi o caso. Em suma, não há pura identidade entre o “método experimental” e o “método cartesiano”, sem mencionar que Fayol não tomou a “dúvida” com a mesma intensidade de Bernard; na verdade, é difícil encontrar algo de semelhante peso na doutrina fayolista que cumpra a função da “dúvida filosófica” no método experimental de Bernard, com exceção, talvez, do “senso de medida”, como veremos, mas em direção particular para aprofundar a distância entre Fayol e o fisiólogo.

Cabe, como terceira questão, o registro de que Fayol procedeu por identificação. Nosso autor chegou a escrever que seguiu o “método que é recomendado por Auguste Comte sob o nome de método positivo; por Claude Bernard, sob método experimental, e que eu considerei científico em me apoiar sobre os princípios de Descartes” (Fayol, 1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 2). Para Fayol, método positivo, experimental e cartesiano são a mesma coisa sob nomes distintos. Mas se não há pura identidade entre Bernard e Descartes, menos ainda haveria entre o primeiro e Comte, uma vez que o material de 1865 do fisiólogo alimentou considerável hostilidade ao positivismo comtiano por suas tendências sistematizantes a partir de derivações lógicas e de excessiva convicção no raciocínio (Bernard, 1949Bergson, H. (2012). Le bon sens ou l’esprit français. Paris, France: Arthème Fayard., p. 37, p. 221). De fato, uma leitura atenta do material leva à conclusão de que “Bernard é um positivista apenas em um sentido vago e genérico” (Virtanen, 1960Virtanen, R. (1960). Claude Bernard and his place in the history of ideas. Lincoln, NE: University of Nebraska Press., p. 63). Assim, para Fayol, toda posição que evoque alguma exigência científica poderia ser identificada como nomes diferentes de uma mesma coisa sob, porém, patronagem da leitura superficial.

Há também uma quarta e importante questão, em referência às discrepâncias entre Fayol e Bernard. Podemos nos concentrar nas essenciais. Como visto, na passagem central que serve ao propósito da adesão e associação ao método experimental, lemos a recomendação de Fayol para empreender “experiências se preciso” (Fayol, 1927bFayol, H. (1927b). L’administration positive dans l’industrie. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 268). É importante sublinhar a expressão da necessidade eventual. Em contraste com Bernard, para quem o método experimental é decisivo, é o cerne da cientificidade da fisiologia e da medicina, para Fayol, fica sugerido que a realização de experiências pode ocorrer sob certas circunstâncias que as tornem necessárias. Não é pequena coisa. Fayol parece mais atento à observação, coleta, classificação e interpretação dos fatos. Ao contrário, para Bernard, a cientificidade da fisiologia e da medicina se fundaria no método experimental, isto é, ele é sempre necessário; é mesmo uma condição. A via experimental de Fayol parece enfatizar a observação, enquanto Bernard fazia exigências de ir muito além do momento mais empírico. Para ele, o “verdadeiro método experimental consiste em uma união lógica de empirismo e experimentação”, uma vez que o primeiro “nada mais é do que o primeiro passo do método experimental”. Desta feita, o “empirismo não pode ser um estágio final; a vaga experiência inconsciente, que pode ser chamada de tato médico, é posteriormente transformada em ideia científica, pelo método experimental que é consciente e lógico” (Bernard, 1949Bergson, H. (1969). La pensée et le mouvant: essais et coférences datant de 1903 à 1923. Paris, France: Les Presses Universitaires de France., p. 210). Nesse diapasão, é possível ver a diferença de operação e acento. Fayol é aderente, como já indicamos, ao operatório que consiste na “observação, experiência e raciocínio”. Há nessa adesão um acento no raciocínio, pois sustenta a “aplicação imediata e rigorosa do raciocínio aos fatos que a observação e a experiência fornecem” (Fayol, 1927a, p. 3). É curioso que as próprias passagens de Bernard citadas por Fayol (1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., pp. 3-4) em 1918 digam algo diferente. Para Bernard, o operatório, aliás com conexões recíprocas entre os fatores, pode ser observado na relação entre “sentimento, razão e experimento”:

No progresso natural das coisas, apareceu o método experimental que tudo inclui e que [...] apoia-se sucessivamente nas três divisões desse tripé imutável; sentimento, razão e experimento. Na busca da verdade por meio desse método, o sentimento sempre lidera, gera a ideia ou intuição a priori; a razão ou raciocínio desenvolve a ideia e deduz suas consequências lógicas. Mas se o sentimento deve ser esclarecido pela luz da razão, a razão, por sua vez, deve ser guiada pelo experimento (Bernard, 1949Bernard, C. (1949). An introduction to the study of experimental medicine. New York, NY: Henry Schuman Inc., p. 28).

Observamos com facilidade a diferença entre “observação, experiência e raciocínio” de Fayol e “sentimento, razão e experimento”, em que o acento é marcado no experimento, no último caso, e não no raciocínio, como no primeiro. A comparação de conjunto produz a impressão de haver diferenças marcantes, pois Fayol parece aderente à observação e ao raciocínio, enquanto Bernard enfatiza decisivamente mais o experimento, ainda que com reciprocidades entre os fatores.

Nesse ponto, há ainda uma questão fundamental. Tudo sugere que a exigência mais rigorosa do método experimental em proceder experimentos é apresentada de modo diluído no fayolismo e ganha uma conotação bem menos sistemática e mais expressiva da experiência prática de talhe pessoal, conforme aprofundaremos adiante. É um método experimental sem experimento, digamos. É o experimento diluído em experiência prática advinda do cotidiano administrativo. À guisa de exemplo, Bernard explicou que um

Médico que observa uma doença em diferentes circunstâncias, raciocina sobre a influência dessas circunstâncias e deduz consequências que são controladas por outras observações - esse médico raciocina experimentalmente, embora não faça experimentos. Mas se ele deseja ir mais longe e conhecer o mecanismo interno da doença, terá que lidar com fenômenos ocultos e, assim, experimentará; mas ele ainda raciocinará da mesma maneira (1949, pp. 16-17).

O experimento mais sistemático é o passo adiante, o cume da cientificidade no diapasão de Bernard. E o contraste com Fayol é exemplar quando este explicou seu procedimento geral. Escreveu que “os princípios e regras de administração podem ser deduzidos da observação e da experiência, como princípios e regras de qualquer outra ciência” (Fayol, 1927cFayol, H. (1927c). De l’importance de la fonction adminsitrative dans le gouvernement des affairs. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 11) aplicáveis a todos os negócios. E como se deu a experiência, base para a referida dedução? Ele mesmo pôde responder páginas antes:

Enquanto observava de perto a indústria de mineração e metal, minha atenção também foi atraída para negócios de todos os tipos, bem como para a família e o Estado. Gradualmente, fui reconhecendo que certos princípios administrativos são aplicáveis a todos os empreendimentos, qualquer que seja sua natureza, finalidade e proporções. É do agrupamento desses princípios, dessas regras e desses produtos que emergiu a doutrina exposta no primeiro volume desses estudos (Fayol, 1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 4).

Sua experiência pessoal na empresa que geria, baseada na observação cotidiana, serviu de base de um “reconhecimento”, para, digamos, inferências ao Estado, por exemplo, no qual não teve observação direta e sistemática ou experiência pessoal propriamente dita, como foi o caso do acúmulo na corporação que geria. Nisso vemos que a inferência com base na observação equiparada à experiência pessoal é o elemento mais constante. E tudo isso coloca Fayol muito genericamente associado ao método experimental e de aderência discutível; talvez paralisado no momento empírico do método, sem o passo decisivo adiante. Nessa direção, é possível alimentar dúvida a respeito da qualidade do estudo que Fayol empreendeu sobre a Introduction de Bernard. Não há na letra fayolista a tentativa de transposição e adaptação do método experimental para os “fenômenos sociais”, nenhum escrutínio a respeito. A área de administração testemunharia algo mais aproximado do método experimental apenas por meio das influências de Bernard sentidas na relação Harvard-Hawthorne, como já anotamos, mas não sem agudas críticas quanto às tendências manipulatórias concretizadas (Baritz, 1960Baritz, J. H. (1960). The servants of power. Middletown, CT: Wesleyan University.).

Fayol: leitor tardio de Bernard

Ao explorar a temática fundamentada em um comparativo com elementos essenciais, sobressalta outra questão igualmente intrigante: considerando que, de fato, Fayol estudou Bernard na qualidade de um “discípulo fervoroso”, como alegado pelo primeiro, quando isso teria ocorrido? Uma maneira de responder a essa questão é acompanhar as pistas deixadas por Fayol no prefácio de 1918, em que contém certos traços autobiográficos.

Nele, Fayol (1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod.) esclareceu que realizou sua “instrução pessoal” durante meio século sem interrupções, “constantemente esclarecido, guiado e controlado pela experiência” (Fayol, 1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 2) em que tais estudos o ajudaram nas atribuições profissionais até sua posição de diretor-geral. Explicou que iniciou sua preocupação com os “fatos administrativos” muito cedo em sua carreira, registrando que empregou o mesmo método para o “estudo dos fatos de ordem material, isto é, observação, experiência e raciocínio” (Fayol, 1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 2). De maneira distante de um estudo sistemático, escreveu que “soube, depois de pouco tempo, que esse método foi admiravelmente descrito por Claude Bernard em Introdução ao estudo do método experimental” (Fayol, 1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 2). A maneira e profundidade pela qual então soube não ficam esclarecidas. Fayol recomendou, em seguida, a leitura do livro de Bernard para todos aqueles a quem a “Administração interesse”, para que possam “servir do método experimental” uma vez que encontrariam na obra “um guia e um suporte” (Fayol, 1927a, p. 2). Acrescentou que, de fato, procedeu, sem mencionar a que tempo, à leitura de Bernard e que ratificou sua convicção de que os “fenômenos sociais estão sujeitos, como os fenômenos físicos, a leis naturais independentes de nossa vontade” (Fayol, 1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 2) - embora, para Bernard, essa transposição não encontre possibilidade, uma vez que, estritamente, o “objeto de uma ciência experimental é descobrir as leis do fenômeno natural” (Bernard, 1949Bergson, H. (1969). La pensée et le mouvant: essais et coférences datant de 1903 à 1923. Paris, France: Les Presses Universitaires de France., p. 197).

Não obstante, na sequência da linha autobiográfica, Fayol acresceu uma informação decisiva. Registrou que ficou “satisfeito em ter seguido instintivamente o método que é recomendado por Auguste Comte sob o nome de método positivo; por Claude Bernard, sob método experimental, e que considerei científico em me apoiar sobre os princípios de Descartes” (Fayol, 1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 2). Como reforço, escreveu mais adiante que era “sem o saber, um discípulo fervoroso” de Bernard (Comte e Descartes) e que ficou “convencido da excelência do método experimental no estudo das questões sociais” (Fayol, 1927aFayol, H. (1927a). Préface à l’Eveil de l’esprit public. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 4).

Embora não haja indicação de datas no esboço de autobiografia, apenas depois dessas considerações é que Fayol registrou o que já sublinhamos, que deduziu os princípios da observação na empresa que gerenciava e que os inferiu para outros tipos de empreendimento, agrupando os princípios na doutrina exposta em sua obra central. A linha temporal e as dessemelhanças que colecionamos antes podem sugerir que Fayol, se não foi apenas um mau discípulo, procedeu tardiamente à leitura direta de Bernard após 1916 e que, portanto, o método experimental suportado por Bernard não serviu sistematicamente a todo o itinerário epistemológico que culminou na obra fayolista principal daquele ano. Afinal, proceder “instintivamente”, tornar-se um “discípulo fervoroso” e “sem o saber” não é postura que condiz com as exigências do método experimental enunciadas por seu mestre.

Some-se a isso, ainda, uma passagem de L’administration positive dans l’industrie, que alimenta a problemática em tela. Imediatamente após citar sua passagem utilizada para estabelecer a adesão e a associação ao “método experimental”, escreveu que tal “é o método que, desde 1860 até hoje, apliquei sem cessar tanto aos fatos administrativos que se desdobraram à minha volta quanto aos fatos de ordem material” (Fayol, 1927bFayol, H. (1927b). L’administration positive dans l’industrie. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 268). Segundo o autor, somos informados de que aplicava o método julgado experimental antes mesmo da publicação original de Bernard, em 1865Bernard, C. (1865). Introduction a l’etude de la médicine expérimentale. Paris, France: J. B. Bailliére et Fils., no qual teria se inspirado. Lapsos também podem ser sintomáticos.

A reivindicação tardia de adesão e associação ao método experimental talvez possa ser uma expressão das necessidades de difusão do fayolismo a partir de 1916. Dadas a repercussão do livro cerne do fayolismo naquele ano e a fundação do Centro de Estudos Administrativos em 1917, era necessário que a doutrina recebesse adesão de ideólogos e praticantes nas empresas, no Estado e nas escolas. Fundamentar o fayolismo no método científico, mesmo que em um amálgama desajeitado entre Descartes, Comte e Bernard, poderia fazer parte dessas pretensões às quais o devido estudo do último foi submetido tardiamente.

La éprouvette fayolista

Como sugerimos antes, o que para Bernard se encontrava no experimento mais sistemático, praticamente laboratorial, para Fayol estava mais restrito à experiência prática na empresa. Bernard era enfático ao dizer que “como experimentos são de fato somente julgamentos, eles necessariamente requerem comparações entre duas coisas; e o elemento intencional e ativo em um experimento é realmente a comparação que a mente pretende realizar” (Bernard, 1949Bergson, H. (1969). La pensée et le mouvant: essais et coférences datant de 1903 à 1923. Paris, France: Les Presses Universitaires de France., p. 10). Acrescentou, pouco depois, que uma “ciência experimental, ou ciência da experimentação, é a ciência feita de experimentos, isto é, uma ciência na qual raciocinamos sobre fatos experimentais obtidos em condições criadas e determinadas pelo próprio experimentador” (Bernard, 1949Bergson, H. (1969). La pensée et le mouvant: essais et coférences datant de 1903 à 1923. Paris, France: Les Presses Universitaires de France., p. 16). No entanto, as possibilidades laboratoriais não estavam dadas a Fayol para as “questões sociais”, e não há indicativos de que tenha feito experimentos comparativos com a introdução, por exemplo, do princípio da divisão do trabalho.

Sabemos que Fayol procedeu a experimentos químicos em laboratório (Fayol, 1918Fayol, H. (1918). Notice sur les travaux scientifiques et techniques. Paris, France: Gauthier-Villars e Cia. Éditeurs.). Mas não temos evidências para as “questões sociais”. Em certa medida, o próprio lugar da experiência pessoal e o sentido da atuação administrativa são elementos que reafirmam as tendências que já colhemos. A “experiência”, no sentido de Fayol, é decorrência da prática administrativa em um laboratório do cotidiano administrativo, por assim dizer, na figura da empresa como um campo de experimentação prática.

A divisão do trabalho é um bom exemplo disso, apesar de não condensar todas as questões. Não obstante, aceitemos que todas as organizações possuem alguma divisão do trabalho. Para Fayol, aliás, a divisão do trabalho é um traço da “Natureza” (Fayol, 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas., p. 30). Sejamos complacentes provisoriamente com esse último ponto e admitamos que tanto empresa quanto Estado têm uma dada divisão do trabalho. Do ponto de vista administrativo que Fayol desenvolveu, dividir o trabalho é um imperativo que, no entanto, está submetido às circunstâncias e aos resultados. Há, nessa direção, um grau de divisão do trabalho que pode ser prejudicial aos resultados da organização. Cabe à ação administrativa identificar o problema e obter uma divisão do trabalho que faça com que a organização retorne ao seu “estado harmônico”, ao estado de “saúde e bom funcionamento do corpo social” (Fayol, 1964, p. 29). Em suma, à luz das “circunstâncias diversas e variáveis, homens igualmente variáveis e diferentes e muitos elementos também variáveis” (Fayol, 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas., p. 29), a ação administrativa, como mecanismo estabilizador necessário ao equilíbrio, procura estabelecer a medida adequada da divisão do trabalho que produza os melhores resultados, porque em “matéria administrativa”, registrou, “tudo nela é uma questão de medida”. Essa, escreveu Fayol no mesmo lugar, é “uma arte difícil que exige inteligência, experiência, decisão e medida” (Fayol, 1931Fayol, H. (1931). Administration industrielle et générale. Paris, France: Dunod., p. 25, 1964, p. 29). Mudando as circunstâncias, muda-se também a medida adequada continuamente, pois “constituída de tato e de experiência, a medida é uma das principais qualidades do administrador” (Fayol, 1931Fayol, H. (1931). Administration industrielle et générale. Paris, France: Dunod., p. 26, 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas., p. 29). Essa mesma posição é repetida mais tarde em outros materiais (Fayol, 1921Fayol, H. (1921). L’incapacité industrielle de l’Etat: les P.T.T. Revue Politique et Parlementaire: Questions Politiques, Sociales et Législatives. Recuperado de https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k141770
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1...
, p. 416, 1927cFayol, H. (1927c). De l’importance de la fonction adminsitrative dans le gouvernement des affairs. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod.), e não há evidências de comparações experimentais sobre os efeitos de certa divisão do trabalho em empresas diferentes, os detalhes de tais experimentos, os modos de controle etc.

Nesse diapasão, sobressalta-se o “senso de medida” que indicamos antes como um fator importante na letra fayolista (se comparada com a dúvida cartesiana para o caso de Bernard). Esse senso de medida, porém, não é presente em Fayol sob tratamento sistemático ou dedicado, uma vez que, entre os princípios que ele listou, há aqueles de natureza relativa, aos quais corresponde a medida, como a divisão do trabalho acima, e aqueles absolutos, como a unidade de direção, contrariando o próprio argumento de partida de que todos os princípios seriam flexíveis e que nada é “rígido nem absoluto em matéria administrativa” (Fayol, 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas., p. 29). Ainda assim, é interessante destacar o senso de medida por ajudar a enfatizar a experiência prática, com um certo sentido de arte, na acepção do autor. E esse elemento parece ser tão antigo no fayolismo quanto a inspiração geral na fisiologia que fazia época no final do século XIX. Não por menos, no discurso de 1900, Fayol fez duras críticas à formação dos engenheiros, sobretudo pelo excesso de matemática. Chegou a questionar diretamente: “É necessário estudar matemática, estamos de acordo; mas em que medida?” (Fayol, 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas., p. 154). E ele mesmo respondeu: “Nessa questão de medida, sou de parecer que a indústria deve ter voz preponderante” (Fayol, 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas., p. 155), isto é, as necessidades fáticas da atuação na produção devem dar a medida do ensino de matemática nas escolas.

Em seu livro de 1916, a questão da medida aparece em inúmeros momentos como “medida”, “espírito de medida”, “questão de medida”, “sentimento de medida”. O lugar disso não é desimportante. Retomando o princípio universal anterior, Fayol escreveu que a “divisão do trabalho tem suas limitações que a experiência e o senso de medida ensinam a não ultrapassar” (Fayol, 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas., p. 31). Essa mesma posição, como sugerimos, ressurge nos princípios de natureza relativa. Entretanto, também se marca no desfecho do tratamento dos princípios de conjunto, reforçando seu peso geral. Ao final do capítulo dedicado ao tema, podemos ler:

Sem princípios, vivemos na obscuridade, no caos; sem experiência e sem medida, continuamos muito embaraçados, mesmo com os melhores princípios. O princípio é o farol que permite orientar-se: dele não se pode servir senão aqueles que conhecem o caminho do porto (Fayol, 1931Fayol, H. (1931). Administration industrielle et générale. Paris, France: Dunod., p. 56, 1964Fayol, H. (1964). Administração industrial e geral (5a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Atlas., p. 58).

Estamos diante de uma consciência prática em que o “senso de medida” pode ser facilmente identificado com o “bom senso”. Como perguntou um dos colaboradores principais, ao exaltar a passagem que comprovaria a já tratada adesão ao método experimental, não seria a propositura metodológica de Fayol “o fundamento da fé positiva, a expressão filosófica desta forma essencial do bom senso que é o senso de realidade?” (Vanuxem, 1927Vanuxem, P. (1927). Introduction théorique et pratique a l’etude de l’administration experimentale. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 135, ver também Verney, 1925Verney, H. (1925). Le caractère de la doctrine administrative et son expansion. In Le fondateur de la doctrine administrative. discours prononcés au banquet du 7 juin 1925: résumé de la doctrine administrative/étude de M. Henri Verney. Paris, France: Dunod., p. 42). Fayol mesmo dava vasão para essa identificação do bom senso, ao ter sugerido que sua doutrina administrativa não tinha nada de tão novo, constituindo um “conjunto de ideias que estão no espírito de todo mundo, mas que são aplicadas ainda por um pequeno número de pessoas” (Fayol, 1927cFayol, H. (1927b). L’administration positive dans l’industrie. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 19). É o bom senso, não um método experimental rigoroso nos termos vistos antes.

O “senso de medida” (e suas variantes) é um elemento antiquíssimo entre os gregos, como Hipócrates e a medida entre alimentação e exercícios físicos. Posição semelhante se encontra em Pseudo-Xenofonte (2012Pseudo-Xenofonte. (2012). A Constituição dos atenienses. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra.), para quem a medida aparece como expressão política no exemplo do elogio a Sólon, como sujeito proveniente da “classe média” e, por isso, como meio-termo entre interesses antagônicos dos proprietários de terras e dos gregos tornados escravos por dívidas. É curioso também que Aristóteles (1984)Aristóteles. (1984). Ética a Nicômaco. São Paulo, SP: Abril. tenha derivado a mediania (meio-termo) em um contexto de discussão sobre a ética dedicada a seu pai, um médico de profissão. Esse elemento provavelmente deriva de tempos imemoriais do trabalho dos hominídeos no esforço primitivo de produzir determinados efeitos e, mais tarde, ao transformar os materiais em outros objetos de necessidade em que tem lugar uma medida adequada de força, medida adequada de materiais combinados etc. à luz de resultados esperados (Paço-Cunha, 2018Paço-Cunha, E. (2018). Ontogênese e formas particulares da função de direção: introdução aos fundamentos históricos para a crítica marxista da administração. In E. Paço-Cunha, & D. Ferraz (Eds.), Crítica marxista da administração: fundamentos. São Paulo, SP: Rizoma.), apresentando-se também hodiernamente em uma série de problemas práticos cotidianos, como a dosagem de ingredientes no preparo de refeições ou, mais distanciados, como a proporção adequada de substâncias químicas em laboratórios. Encontra também inúmeras aproximações com a prática médica, como a dosagem certa das medicações. E há indicações de que esse elemento da medida estava amplamente presente no contexto cotidiano francês na transição entre os séculos XIX e XX. Sobre isso, Bergson (2012Bergson, H. (2012). Le bon sens ou l’esprit français. Paris, France: Arthème Fayard.) é sintomático ao expressar a existência de um “espírito de precisão” que ecoava com a aliança entre a filosofia francesa e a ciência positiva da época. Não é por acaso a curvatura que a ideologia médico-social produziu, antes, no pensamento comtiano e presumivelmente no ambiente francês posterior (Carrion, 1977Carrion, R. (1977). A ideologia médico-social no sistema de A. Comte (Cadernos do IFCH-UFRGS, n. 1). Porto Alegre, RS: UFRGS.).

Fayol estava imerso nesse contexto, sobretudo sob a ventania positivista. E o lugar decisivo do senso de medida dá o contorno do entendimento de que o experimento de Bernard assume, na letra fayolista, o limite da experiência prática, que é alimentada pelo senso prático ao passo que o corrige. Os elementos sugerem que Fayol, em 1918, encontrou em Bernard uma possibilidade de espelhamento tardio para uma aproximação entre a administração e a prática médica, uma vez que o fisiólogo francês ansiava verter a medicina em ciência visando “conservar e curar doenças” (Bernard, 1949Bergson, H. (1969). La pensée et le mouvant: essais et coférences datant de 1903 à 1923. Paris, France: Les Presses Universitaires de France., p. 1) e o engenheiro de minas, por sua vez, procurava estabelecer “primeiramente os fatos, [...] em seguida as causas, e, se possível for, os remédios” (Fayol, 1927cFayol, H. (1927c). De l’importance de la fonction adminsitrative dans le gouvernement des affairs. In Bulletin de la Société de l’Industrie Minérale (Vol. 4). Paris, France: Dunod., p. 33).

Entretanto, por mais que Fayol tenha encontrado tal possibilidade de aproximação, há uma diferença abissal entre as suas proposituras não apenas quanto aos objetos imediatos. Bernard tinha clareza de que, a despeito das diferenças e até da diferenciação de função entre o pesquisador e o praticante, a medicina empírica e experimental são inseparáveis. Entretanto, não deixou de pontuar que o método experimental vai além do momento empírico, embora permaneça dependente dele:

Médicos empíricos se dão por satisfeitos, com a ajuda do empirismo, quando descobrem que um dado remédio cura uma dada doença, quando aprendem a exata dose de sua administração, e os casos nos quais eles devem ser usados; eles podem acreditar ter alcançado os limites da ciência médica [...] [No entanto,] não é suficiente para médicos experimentadores saber que a quinina cura febre, mas o que é mais significativo para eles é saber o que a febre é e registrar o mecanismo pelo qual o medicamento cura (Bernard, 1949Bernard, C. (1949). An introduction to the study of experimental medicine. New York, NY: Henry Schuman Inc., pp. 208-209).

Fayol não foi além de indicar que certa medida de divisão do trabalho é salutar para o corpo social, não se perguntou o que é a divisão do trabalho ou seus problemas decorrentes, não se importou em prescrutar sua natureza histórica, sua função em dado contexto econômico vis a vis o político, não efetivou questões e procedimentos que o levassem além das necessidades fáticas das suas experiências cotidianas. Não fez perguntas propriamente científicas que ultrapassassem o momento imediato regido pelas necessidades econômicas fáticas. Satisfez-se em atribuir a divisão do trabalho à natureza, submetendo o princípio à arte da medida adequada à cura da “doença” que restabelece o equilíbrio do corpo social. No limite, não ultrapassou o momento empírico. Tratou-se da experiência prática teleológica, fisiologicamente informada, orientada ao equilíbrio e à harmonização sociais sob a égide da capitulação às necessidades econômicas.

Esses pontos reforçam que as exigências científicas do método experimental são diluídas em experiência pessoal no laboratório do cotidiano administrativo. O peso e o lugar central do senso de medida na propositura geral fayolista são muito sintomáticos para essa conclusão geral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve por objetivo analisar a relação de Fayol com o método experimental de Claude Bernard. Diante desse objetivo, adotamos uma abordagem histórica sobre a ciência administrativa na figura do notório gestor e teórico de ascendência francesa.

Em termos conclusivos, vimos que o método experimental de Bernard fazia exigências científicas a que Fayol não poderia atender, e isso ajuda a explicar por que, em Fayol, experimento e experiência pessoal se confundem, porém, com ausência absoluta do primeiro quanto aos “fenômenos sociais”. Em suma, em lugar de método experimental propriamente, temos a experiência prática pessoal localizada nas empresas que comandava, a observação cotidiana, a dedução e a inferência. Fica sugerido um estudo tardio do material de Bernard, depois de 1916, e realizado por um discípulo pouco dedicado ao seu mestre. E não é possível descartar a possibilidade de a adesão tardia ao método experimental ser uma alternativa declaratória diante da fundação do Centro de Estudos Administrativos, em 1917, e das suas ambições de difusão do fayolismo para amplos setores da sociedade francesa de então.

Nosso conhecimento a respeito do itinerário epistemológico de notáveis da área da administração se amplifica por meio do estudo histórico desse processo do conhecimento. Contribui para, entre outras coisas, preencher certas lacunas, como, por exemplo, a indicação geral de que o fayolismo foi constituído em bases muito empíricas. A correção dessa indicação não pode obstruir nosso conhecimento a respeito do processo, isto é, do que teria ocorrido de fato para que a alegada adesão ao método experimental cientificamente orientado não possa ser confirmada nos detalhes.

Assim, a história da ciência administrativa se apresenta como campo promissor para estudos acadêmico-científicos. Não apenas Fayol, mas igualmente muitos outros autores ou conjuntos de autores podem ser tomados como objeto de investigação histórica a respeito do processo do conhecimento em geral, ampliando nosso entendimento das aquisições que ajudaram a forjar os estudos e a prática em gestão e organizações.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2021
  • Aceito
    24 Fev 2022
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