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A natureza volitiva da motivação e a criatividade cultural: uma investigação antropológica

Resumo

Examinamos a natureza volitiva e não-racional da motivação, e seu impacto na produção simbólica no trabalho. Com base em uma etnografia de longo prazo em uma força especial policial no Brasil, argumentamos que a estabilidade institucional e os quadros simbólicos de referências têm sido largamente ignorados em estudos de motivação, deixando de lado o papel da demanda estética na produção de elaboração simbólica ativa no trabalho. Os quadros de referência institucionais instáveis são relevantes para entender os esforços de integração interna, construção de identidade e relações de alteridade no trabalho. Nesse sentido, este artigo tem como objetivo principal contribuir para os estudos sobre a motivação intrínseca dentro das organizações.

Palavras-chave:
Motivação; Identidade; Alteridade; Metafísica; Simbolismo; Significado

Abstract:

We examine the volitional, non-rational nature of motivation and its impact on symbolic production at work. Based on a ethnographic study on a Brazilian special police force we argue that institutional stability and stable symbolic frames of references have long been taken for granted in studies of motivation, thus leaving aside the role of aesthetical demand in producing active symbolic elaboration at work. Unstable institutional frames of reference are relevant to understand the efforts of internal integration, identity building and relations of alterity at work. In this sense, this article has the main objective of contributing to the studies on intrinsic motivation within organizations.

Keywords:
Motivation; Identity; Alterity; Metaphysics; Symbolism; Meaning

Resumen:

Examinamos la naturaleza volitiva y no racional de la motivación y su impacto en la producción simbólica en el trabajo. Basándonos en un estudio etnográfico en una fuerza especial de policía en Brasil, sostenemos que la estabilidad institucional y la estabilidad de marcos de referencia simbólicos se han dado por sentado en los estudios de motivación, dejando de lado el papel de la demanda estética en la producción de la elaboración simbólica activa en el trabajo. Los marcos institucionales de referencia inestables son relevantes para comprender los esfuerzos de integración interna, construcción de identidad y relaciones de alteridad en el trabajo. En este sentido, este artículo tiene el objetivo principal de contribuir a los estudios sobre la motivación intrínseca dentro de las organizaciones.

Palabras clave:
Motivación; Identidad; Alteridad; Metafísica; Simbolismo; Significado.

INTRODUÇÃO

A motivação é um tópico de pesquisa recorrente e desafiador no campo dos estudos organizacionais. Mudanças recentes na natureza do trabalho e da força de trabalho aumentaram a necessidade de novos conhecimentos sobre esse tema (KANFER, FRESE e JOHNSON, 2017KANFER, Ruth; FRESE, Michael; JOHNSON, Russell E. Motivation related to work: A century of progress. Journal of Applied Psychology, v. 102, n. 3, p. 338, 2017.), mas nossa compreensão sobre a motivação ainda está restrita à divisão do trabalho em um ambiente hierárquico (FOSTER e MICHON, 2014FOSTER, Mary K.; MICHON, Richard. Insights into Motivation to Participate in Online Surveys. MIS REVIEW: An International Journal, v. 20, n. 1, p. 1-30, 2014.; GÜSS, BURGER e DÖRNER, 2017GÜSS, C. Dominik; BURGER, Madison Lee; DÖRNER, Dietrich. The Role of Motivation in Complex Problem Solving. Frontiers in psychology, v. 8, p. 851, 2017.; ELLIOT, ALDHOBAIBAN, MURAYAMA et al., 2018ELLIOT, Andrew J. et al. Impression management and achievement motivation: Investigating substantive links. International Journal of Psychology, v. 53, n. 1, p. 16-22, 2018.), com quadros de referência de certa forma estáveis para a organização das atividades. Do nosso ponto de vista, quadros de referência inadequados (L’ESTOILE, 2014L’ESTOILE, B. Money Is Good, but a Friend Is Better” Uncertainty, Orientation to the Future, and “the Economy. Current Anthropology, v. 55, n. S9, p. S62-S73, 2014., p. S64) implicam em outro entendimento em relação ao desejo de poder e ao alcance de metas socialmente desejáveis, um entendimento que não foi totalmente comtemplado nos estudo organizacionais, uma vez que o autointeresse, a autossatisfação e os quadros estáveis de referências são frequentemente tidos como óbvios. Até mesmo os estudos acerca da motivação intrínseca (CERASOLI, NICKLIN e FORD, 2014CERASOLI, C. P.; NICKLIN, J. M.; FORD, M. T. Intrinsic motivation and extrinsic incentives jointly predict performance: A 40-year meta-analysis. Psychological Bulletin, v. 140, n. 4, p. 980, 2014.) não abordam o mesmo fenômeno. Um olhar mais amplo sobre os indivíduos em sua inserção social e cultural é capaz de lançar luz a outras possibilidades de se pensar em motivação (MIGUELES, 1999aMIGUELES, C. Alienação, motivação e as implicações políticas da crise de identidade nas ciências humanas e sociais. Estudos de Sociologia, ano 4, n. 7, 1999a.; 1999b; 2003), especialmente do ponto de vista de seu enquadramento social e também da compreensão sobre o desejo por poder e por efetividade. O que tem sido negligenciado é a possibilidade de melhoria contínua do desenho organizacional e de suas estratégias de integração interna como formas de poder, ou seja, a possibilidade de submeter o desenho organizacional e seus mecanismos internos de cooperação ao esforço ativo do indivíduo, aumentando sua efetividade como membro da equipe em busca de um objetivo comum. Propomos aqui olhar para o desenvolvimento organizacional e, especialmente, para a produção simbólica como um produto humano, considerando o esforço dinâmico, contínuo, ativo e criativo dos indivíduos em descobrir as formas de aumentar a efetividade, criando referências, limites e regras para sua própria ação.

O argumento aqui é que há aspectos da motivação duradoura que não podem ser concebidos dentro de um quadro de relações contratuais racionais, despersonalizadas, abstratas e calculistas, nem adequadamente concebidos dentro do quadro da “economia substantiva”, que é a crença de que as condições materiais da vida são logicamente distintas das condições políticas e espirituais (L’ESTOILE, 2014L’ESTOILE, B. Money Is Good, but a Friend Is Better” Uncertainty, Orientation to the Future, and “the Economy. Current Anthropology, v. 55, n. S9, p. S62-S73, 2014.). Nossa pesquisa foi realizada em uma Organização de Ação Crítica (OAC) que, segundo Hannah, Uhl-Bien, Avolio et al. (2009HANNAH, S. T. et al. A framework for examining leadership in extreme contexts. The Leadership Quarterly, v. 20, n. 6, p. 897-919, 2009.), são organizações que lidam com eventos de extrema incerteza e alta probabilidade de consequências críticas de grande magnitude, envolvendo riscos à vida de membros e não-membros. A OAC pesquisada representa um caso extremo (ZANINI, MIGUELES, COLMERAUER et al., 2013ZANINI, M. et al. Os elementos de coordenação informal em uma unidade policial de Operações Especiais. Revista de Administração Contemporânea, v. 17, n. 1, 2013.; ZANINI, MIGUELES e COLMERAUER, 2014ZANINI, M.; MIGUELES, C.; COLMERAUER, M. A Ponta da Lança - Intangíveis Em Equipes de Alto Desempenho. São Paulo: Elsevier Campus, 2014.), com operações diárias em circunstâncias severas, nas quais a vida dos agentes está constantemente sob ameaça e o número de vítimas civis e militares é comparativamente maior do que em outros casos (LIMA, BUENO, PRÖGLHÖF et al., 2017LIMA, R. et al. 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2017.). No princípio, a ideia da pesquisa era entender em profundidade como os limites de confiança são estabelecidos em uma sociedade de baixa confiança (ZAK e KNACK, 2001ZAK, Paul J.; KNACK, Stephen. Trust and growth. The economic journal, v. 111, n. 470, p. 295-321, 2001.; ZANINI, 2016ZANINI, M. T. Confiança - O Principal Ativo Intangível de uma Empresa. Rio de Janeiro: FGV, 2016.), observando, no curso da interação humana, os arranjos concretos que permitem a participação e o engajamento, de onde esses limites podem ser estabelecidos e se tornarem duradouros. Entretanto, as observações feitas no decorrer da pesquisa acabaram levando a investigação para outra direção.

De acordo com Decéné (2009)DENÉCÉ, E. A História Secreta das Forças Especiais: De 1939 a nossos dias. São Paulo: Larousse, 2009., as OACs foram criadas durante a Segunda Guerra Mundial para usar a violência de maneira planejada e pontual, alcançando melhores resultados do que aqueles apresentados pelas forças convencionais. As OAC são organizadas em unidades menores e autônomas, com menos soldados e uma nova combinação de informação, tecnologia e estratégia. É uma organização importante para aumentar a efetividade em ações com características da guerrilha urbana. São unidades projetadas para serem alternativas eficazes para a crescente complexidade e incerteza dos combates, dados os riscos para civis, soldados e criminosos, já que nesses casos o controle centralizado tende a ser ineficiente (SPULAK, 2007SPULAK, R. A Theory of Special Operations: The Origin, Qualities, and use of SOF, JSOU Report. Albuquerque: Sandia National Labs, 2007.). A liderança compartilhada e a autonomia são fundamentais para o sucesso, mas aumentam a demanda por elementos intangíveis de coordenação (como confiança, motivação e cooperação ativa) e reduz a efetividade do comando e controle centralizados (ZANINI, MIGUELES e COLMERAUER, 2014ZANINI, M.; MIGUELES, C.; COLMERAUER, M. A Ponta da Lança - Intangíveis Em Equipes de Alto Desempenho. São Paulo: Elsevier Campus, 2014.). Essas unidades geralmente têm forte coesão interna e forte senso de devoção a uma causa comum (WEBER, 1968WEBER, M. On Charisma and Institution Building. London: The University of Chicago Press, 1968.; CLAUSEWITZ, 1979CLAUSEWITZ, C. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 1979.; STORANI, 2006STORANI, P. Vitória sobre a morte: a glória prometida. O “rito de passagem” na construção da identidade das operações especiais do BOPE/PMERJ. 2006. Thesis (Master Degree in Social Anthropology) - Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2006.; SPULAK, 2007SPULAK, R. A Theory of Special Operations: The Origin, Qualities, and use of SOF, JSOU Report. Albuquerque: Sandia National Labs, 2007.; DECÉNÉ, 2009DENÉCÉ, E. A História Secreta das Forças Especiais: De 1939 a nossos dias. São Paulo: Larousse, 2009.; ZANINI, COLMERAUER e LIMA, 2015ZANINI, M; COLMERAUER, M.; LIMA, D. A influência do estilo de liderança consultivo nas relações de confiança e comprometimento no Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio de Janeiro. Revista de Administração, v. 50, n. 1, p. 105-120, 2015.).

Este artigo faz parte de um estudo longitudinal de 6 anos sobre os aspectos intangíveis da disciplina operacional e da confiança no Brasil, realizado por meio de uma combinação de análise quantitativa e qualitativa. Durante esse período, foi adotada a abordagem da observação participante (por dois anos ininterruptos), com retorno posterior a organização durante um período de três meses em cada um dos quatro anos seguintes, para a compreensão mais profunda das questões levantadas a partir dos dados obtidos com o método quantitativo.

O presente artigo é o resultado de uma parte etnográfica deste estudo longitudinal em uma Unidade Especial de Operação da Polícia Militar do Rio de Janeiro (BOPE), que conta com uma tropa de cerca de 450 membros, localizada no bairro Laranjeiras, no Rio de Janeiro (um tipo de organização em que, para nós, seria improvável a realização de estudos sobre aspectos metafísicos da motivação no trabalho). Nessa pesquisa percebemos um fenômeno que inicialmente poderia ser confundido com uma motivação excepcional, como apontada por Zanini, Migueles, Colmerauer et al. (2013ZANINI, M. et al. Os elementos de coordenação informal em uma unidade policial de Operações Especiais. Revista de Administração Contemporânea, v. 17, n. 1, 2013.; 2014ZANINI, M.; MIGUELES, C.; COLMERAUER, M. A Ponta da Lança - Intangíveis Em Equipes de Alto Desempenho. São Paulo: Elsevier Campus, 2014.; 2015ZANINI, M; COLMERAUER, M.; LIMA, D. A influência do estilo de liderança consultivo nas relações de confiança e comprometimento no Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio de Janeiro. Revista de Administração, v. 50, n. 1, p. 105-120, 2015.). Entretanto, nem os conceitos nem as perspectivas teóricas sobre motivação foram suficientes para apreender o que pudemos observar. Havia uma vontade, um desejo de ‘domar’ o que os atores chamavam de “caos”, um desejo que não conseguimos explicar. A experiência desses atores no trabalho é frequentemente descrita como uma “incursão no caos”. E essa expressão é uma descrição bastante literal do que eles pretendem comunicar. Sua atividade é realizada, segundo os próprios atores, “no limite”, na fronteira entre a civilização e o “outro lado”. Durante as observações do trabalho de campo, ao ouvir toda a descrição das dificuldades que esses homens encontram no cotidiano, as muitas situações que ameaçam a vida, a rotina que fere gravemente, o crescente número de fatalidades policiais (VILLARREAL e SILVA, 2006VILLARREAL, A.; SILVA, B. Social Cohesion, Criminal Victimization and Perceived Risk of Crime in Brazilian Neighborhoods. Social Forces, v. 84, n. 3, p. 1725-1753, 2006.; LIMA, BUENO, PRÖGLHÖF et al., 2017LIMA, R. et al. 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2017.), os salários relativamente baixos e a precariedade do sistema de saúde para tratar os feridos, perguntamos: por que vocês fazem isso? As respostas foram principalmente: “Porque alguém tem que fazer alguma coisa e nós somos esse alguém”. Ainda: “O cativo não tem mais ninguém com quem contar, nós somos seu último recurso”; “Porque se desistirmos, a cidade vai cair”; “Porque se não fizermos isso, logo estaremos ajoelhados diante do crime”. O que produz esse senso de dever e sua aceitação? Estamos conscientes de que esse é um tema extremamente complexo, que não se enquadra nos limites de um artigo acadêmico. Assim, propomos aqui examinar um elemento específico que tem nos intrigado desde que iniciamos nosso estudo em 2010: a motivação excepcional e o esforço observável para melhorar continuamente a disciplina operacional por meio do desenvolvimento individual e organizacional, especialmente através de uma produção simbólica ativa.

O que encontramos durante a pesquisa extrapolou em muito nossas intenções originais. Como frequentemente ocorre nas pesquisas qualitativas indutivas, o trabalho de campo traz surpresas e elementos imprevisíveis que demandam uma busca por explicações novas e plausíveis. Encontramos uma semiose ativa, uma busca por vezes claramente consciente e outras parcialmente inconsciente pelos símbolos e ordenação simbólica de sua atividade, o que nos colocou diretamente em contato com a inquietação deles a respeito da natureza incompleta de sua organização e suas imperfeições - e seu esforço para completar continuamente sua “criação”. A ideia de incompletude, a necessidade de uma identidade clara, de limites e de efetividade estava presente desde o início de nosso processo de pesquisa, como na entrevista com o coronel aposentado que, em 1978, trouxe para si a tarefa de criar um símbolo nos momentos iniciais da organização:

“Eu precisava de um símbolo, algo para representar a nova unidade que estávamos criando. Então eu continuei procurando por referências e inspirações… A caveira é um símbolo tradicional para os militares. E ela tem muitas interpretações, que vão da ferocidade e resistência à morte, da missão às dificuldades da vida militar. As duas garruchas cruzadas são um símbolo da polícia militar. A faca na caveira significa a vitória sobre a morte, neste sentido significa a missão específica de uma tropa especial criada para lutar pela desterritorialização do crime arraigado na sociedade civil, que usa as cercas humanas como mecanismo de defesa. O vermelho no círculo tem muitas associações: desde prevenir a perda de sangue até a força de lealdade que precisa cercar uma unidade especial… Eu investi algum tempo em busca do melhor símbolo... e acho que funcionou”.

De fato, como Storani (2006STORANI, P. Vitória sobre a morte: a glória prometida. O “rito de passagem” na construção da identidade das operações especiais do BOPE/PMERJ. 2006. Thesis (Master Degree in Social Anthropology) - Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2006.) aponta, a caveira tornou-se um totem para a unidade, um elemento que provê clareza e força como referências de identidade e como guardiã da disciplina. Seu uso pode ser observado em muitos momentos diferentes, desde a tatuagem altamente arriscada no corpo (que é vista tanto como símbolo da força do laço com a unidade quanto como um risco, pois pode colocar o soldado em perigo ao permitir sua identificação como membro da unidade em caso de ser capturado por algum criminoso ou grupo de criminosos), em saudações ou em gritos de guerra: “Caveira!”. A referência à caveira é constante também em momentos disciplinadores em que há esforço um para explicitar o que é um comportamento adequado ou inadequado para um “caveira”, como eles se referem a si mesmos.

A relevância dessa criação simbólica ativa apareceu em entrevistas de história oral, nas quais buscamos compreender a origem dos elementos observáveis ​​e dos arranjos presentes, recorrendo à memória dos fundadores e daqueles que estão na organização há bastante tempo. Durante a observação participante - que é descrita a seguir - pudemos observar novos elementos sendo adicionados ao repertório simbólico do grupo, em um refinamento contínuo da compreensão de sua missão e sua identidade. Utilizando os procedimentos de Newell (2018NEWELL, S. Uncontained accumulation: Hidden heterotopias of storage and spillage. History and Anthropology, v. 29, n. 1, p. 37-41, 2018.), observamos a semiose contínua, na tentativa de compreender os signos e símbolos menos como representações delimitadas fixadas em estruturas e mais como elementos indeterminados e ambíguos, que no fluxo da interação ganhavam continuamente eficácia social, alguns sendo abandonados e outros incorporados como base para maior elaboração. Em um determinado momento, embora estivéssemos observando o processo de criação e refinamento, percebemos que ainda estávamos presos à análise simbólica, procedendo da maneira sugerida por Geertz (1989GEERTZ, C. Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1989.), buscando a teia de significados e procurando, dentro dela, as chaves para a motivação e suas razões. Neste momento lembramos da insatisfação de Turner (1985TURNER, V. On the edge of the bush: Anthropology as experience. University of Arizona Press, 1985.) com a ideia de cultura como um mero derivado da estrutura social, reconhecendo ritos e símbolos como fatores na ação social, “uma força positiva em um campo de atividade”, que não exclui psicologia e religião (p. 3). Nesse sentido, lembramos que o próprio Geertz nunca perdeu contato com o aspecto dinâmico da cultura, o que o levou a definir a cultura como uma “teia de significados em fluxo” (GEERTZ, 1989GEERTZ, C. Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1989.; OLIVEIRA, 2012OLIVEIRA, R. Antropologia e Filosofia: Estética e Experiência em Clifford Geertz e Walter Benjamin. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 209-234, Jan./June2012).

Essa mudança nos leva a três questões: como podemos pensar no elemento dinâmico desse fluxo? Ou: o que é essa força que produz esforço contínuo para domar a realidade em termos simbólicos, produzindo uma elaboração tão visível e ativa? Ou ainda: por que esses homens, que descrevem de maneira tão clara e dramática o caos, as dificuldades e os riscos envolvidos em seu trabalho, temiam a expulsão da unidade como o pior tipo de punição possível? Uma coisa estava certa: eles queriam muito fazer este trabalho. É isso o que chamamos aqui de motivação. Como podemos entender essa “vontade”? E eles querem fazer seu trabalho da forma correta. Dado que uma definição clara de “forma correta” não está prontamente disponível (é isso que chamamos aqui de quadros de referência inadequados, como em L’ESTOILE, 2014L’ESTOILE, B. Money Is Good, but a Friend Is Better” Uncertainty, Orientation to the Future, and “the Economy. Current Anthropology, v. 55, n. S9, p. S62-S73, 2014.), membros da unidade assumiram a tarefa de criar as referências para si mesmos. Isso é o que chamamos aqui de criatividade cultural (sua própria produção acadêmica é uma evidência desse fato: sua inquietação foi relevante para nós e sua própria produção acadêmica atesta esse fato1 1 CIRILO, B. O psicólogo em ocorrências policiais com tomada de reféns: que lugar é este?. 2015. Thesis (Doctor Degree in Psychology) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015. -- COLMENAUER, M. A influência da liderança consultiva nas relações de confiança e comprometimento no BOPE/RJ. 2013. Thesis (Master Degree in Administration) - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2013. -- CONCEIÇÃO, M. N. Estudo sobre a coordenação informal em uma equipe de operações especiais: aprofundando a análise da confiança e seus antecedentes no BOPE. 2015. Thesis (Master Degree in Business management) - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2015. --PINHEIRO NETO, A. A Competência Essencial do BOPE: uma análise exploratória. 2013. Thesis (Master Degree in Business management) - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2013. -- STORANI, P. Vitória sobre a morte: a glória prometida. O “rito de passagem” na construção da identidade das operações especiais do BOPE/PMERJ. 2006. Thesis (Master Degree in Social Anthropology) - Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2006. ).

Dividimos este artigo em duas seções: na primeira, chamamos a atenção para a necessidade de pensar a motivação prévia ao engajamento na produção simbólica ativa. Enfrentávamos uma questão ontológica e epistemológica que conectava o sofrimento com a situação, o desejo de contribuir para a solução e a criação de um quadro simbólico para proporcionar uma compreensão estável e compartilhada da situação, o que possibilitaria uma cooperação focada e efetiva. O sofrimento com o caos, a desordem e a injustiça nos pareciam, ao menos em nosso esforço interpretativo (GEERTZ, 1989GEERTZ, C. Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1989.), produzir a vontade e a determinação para resolver os problemas, que levam ao engajamento na busca dos meios para corrigi-los e conduzir ao estado desejado de ordem e paz. Esse estado imaginado e desejado de ordem e paz, ao mesmo tempo um ideal ético e estético, vislumbra uma sociedade ordenada onde o cativo não está mais sob a posição impotente de uma vítima sem apoio, um estado antecipado no desejo e na imaginação, uma espécie de “devir”, onde a vitória final seria a cidade pacífica, onde a unidade seria mais eficaz como um mito (inibindo o crime de planejar seu retorno devido à força simbólica) do que como uma força atuante.

Para pensar nessa vontade, recorremos ao trabalho de Schopenhauer. A relação de causalidade nasce da experiência interior, uma possibilidade que gostaríamos de explorar, um “devir” ideal, que leva a uma percepção do terrível “inapto”, que por sua vez leva a uma busca intuitiva que é guiada por uma ideia de uma sociedade ideal. Entre o “pensar em si”, ou na vida como uma “representação” que é apreendida por indivíduos, e este “devir”, presente na vontade, faltam elementos de conexão que demandem criatividade. O “devir” aparece frequentemente em referência a uma ideia abstrata do contrato social. Para explicá-lo, os entrevistados frequentemente recorrem a Rousseau, dizendo: “O contrato social de Rousseau não está presente aqui!”, onde o contrato social de Rousseau não representa necessariamente um autor com sua teoria, mas a expressão que postula e condensa o absurdo dessa ausência. Subjacente à ideia de ordem, paz e justiça, há um entendimento implícito deste “devir”, que é tão óbvio que nem precisaria ser dito. Este “devir”, ainda que não esteja claramente formulado, está na base da busca pelo aperfeiçoamento da autodisciplina e do trabalho em equipe, bem como da capacidade de oferecer resistência ao que é percebido como ameaça, ou seja, desordem social e institucional. A inquietação com a desordem econômica, política e simbólica observadas produz um desejo por significado e ordem que, para nós, parece ser o fio condutor que concentra todos os esforços de aperfeiçoamento contínuo e sua busca por um pensar por si mesmo e na sua missão, em uma posição marcada por inúmeras dúvidas existenciais. É essa vontade, para a qual os membros falham em fornecer uma explicação racional, que nos levou ao cerne de um desafio que mais se assemelha ao objeto de uma antropologia filosófica do que cultural, olhando para a produção semiótica como uma manifestação de um processamento estético da experiência vivida, da qual a dimensão simbólica é o produto de uma inquietação anterior a ela. Para analisar essa criatividade e a produção simbólica engendrada por ela, selecionamos a dinâmica de um processo específico de elaboração simbólica: a substituição de São Jorge, como o patrono da unidade, pelo Arcanjo Miguel, fato que acabou com as fronteiras turvas entre seu trabalho e a atividade dos criminosos, seu “outro” em relação ao qual sua própria identidade é refinada e adquire significado (PIRC, 2017PIRC, G. The Awareness of Human Finitude and Creativity: Hermeneutic Phenomenology In Response to the Contemporary Ethical and Political Challenges. Metodo: International Studies in Phenomenology and Philosophy, v. 5, n. 2, 2017.). Essa relação de alteridade com os criminosos é ao mesmo tempo uma fonte de sofrimento, a razão de sua existência e a chave para entender o dinamismo da articulação entre identidade e alteridade (BAUMANN e GRINGRICH, 2004BAUMANN, G; GINGRICH, A(Ed.). Grammars of identity/alterity: A structural approach. New York: Berghahn Books, 2005., p. xi). Sua atividade de alguma forma se mistura, no sentido de que ambos, eventualmente, terminam na morte e no sofrimento. Os dois lados são opostos, no sentido de que existem para eliminar esse outro, que é, ao mesmo tempo, a razão de sua existência.

Esta não é a única referência religiosa ou metafísica empregada na unidade. A busca de inspiração e fontes para refinar a identidade da unidade varia desde o “bushido” japonês, o antigo código de ética e comportamento dos samurais, até elementos contemporâneos de religiões evangélicas, neopentecostais e a católica. A internet com sua pronta disponibilidade de informação é parcialmente um facilitadora desse processo. Nossa escolha por essa substituição específica tem por objetivo fornecer evidências empíricas dessa elaboração contínua e de sua relação com a identidade e a alteridade.

Esse processo se assemelha ao engajamento ativo na “bricolagem organizacional”: atividades de reestruturação, troca de papéis, reorganização e remontagem do trabalho em uma unidade de força especial foram observadas por Bechky e Okhuysen (2011BECHKY, B.; OKHUYSEN, G. Expecting the unexpected? How SWAT officers and film crews handle surprises. Academy of Management Journal, v. 54, n. 2, p. 239-261, 2011.), em que a principal habilidade dos bricoleurs (articuladores desta bricolagem organizacional) é extrair do conjunto de recursos disponíveis as maneiras de responder a uma nova situação, mas, no caso da corporação, isso ocorre no campo concreto da atividade, não no domínio simbólico abstrato. O que observamos aqui está de acordo com o processo que Lévi-Strauss (1997)LÉVI-STRAUSS, C. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Papirus, 1997. já havia notado como parte da produção cultural da base para o pensamento.

OBJETO DE ANÁLISE E METODOLOGIA

A compreensão da importância de um universo simbólico e metafísico para a organização militar remonta ao início da sua história, e há um forte elemento de irracionalidade nesses laços de lealdade e compromisso (WEBER, 1968WEBER, M. On Charisma and Institution Building. London: The University of Chicago Press, 1968.). Há uma busca clara pelo aumento do poder sobre o caos, trazendo uma intenção de ordem que produz criatividade cultural. O que chamamos aqui de dimensão metafísica é, a priori, essa forma de pensar que produz certo conteúdo, linguagem e, com isso, define a experiência, dando a ela um senso de ordem. A racionalidade e o edifício simbólico emergem em resposta a uma necessidade percebida na experiência como uma violação ética e estética. A motivação excepcional, então, neste caso específico, é entendida não apenas como a busca pela satisfação das necessidades humanas, mas também como sua negação.

Schopenhauer (2001SCHOPENHAUER, A. Metafísica do Belo. São Paulo: Unesp, 2001., p. 114) apresenta a distinção entre o sublime e o excitante no domínio da experiência e isso pode lançar luz sobre esse fenômeno. O sublime é a negação da disposição individual, subjetiva e de auto-satisfação, o empenho para direcionar o esforço de alguém para algo objetivo, diferente do próprio bem-estar, como fonte de grandeza. O excitante refere-se a satisfazer (quase imediatamente) um desejo que é totalmente sensível e, portanto, subjetivo. A experiência da autonegação e do auto sacrifício, observada na disposição para o risco extremo, parece estar conectada à ideia do sublime, da disposição heroica, do auto sacrifício por uma missão ou uma causa válida, por algum tipo de “seleção” anônima. Segundo a psicóloga da tropa:

“Há um profundo aspecto narcisista neste trabalho… o soldado que erroneamente atirou em um civil que segurava uma furadeira durante uma operação não pode perdoar a si mesmo, não apenas por “falhar em proteger o civil”, mas por falhar na própria missão por causa de uma inaceitável (para ele) falha humana, trazendo assim “vergonha” à instituição. A dor do soldado não ocorreu devido ao erro humano: um soldado que confundiu uma furadeira com uma arma de fogo durante uma operação ocorrida no final da tarde. Mas pelo que se considera uma falha inaceitável para aqueles que deveriam estar acima das possibilidades comuns de erros, a quem é negada a possibilidade de “fraqueza comum”, e que está longe de explicar tudo…”

Por outro lado, existe o domínio do excitante. De uma rotina diária em batalha, de uma vida vivenciada no domínio da aventura, que representa o “vício na adrenalina” que também aparece nas entrevistas. Equilibrar essas duas dimensões e “ter domínio das tropas, assegurando o máximo controle de agressividade e máxima disciplina operacional e foco na missão” é, nas palavras dos líderes (um coronel, um tenente e dois comandantes mencionaram esse equilíbrio, durante as entrevistas) uma tarefa central, a atividade mais difícil e relevante para os que estão no comando. A tensão entre essas duas dimensões é essencial para entender a noção de disciplina operacional. O resultado motivacional da autonegação de uma causa precisa ser considerado. No entanto, os recentes estudos sobre auto sacrifício são mais um assunto de análise da motivação dos terroristas do que dos militares (BLOOM, 2009BLOOM, M. Chasing butterflies and rainbows: A critique of Kruglanski et al.’s “Fully committed: suicide bombers’ Motivation and the quest for personal significance”. Political Psychology, v. 30, n. 3, p. 387-395, 2009.; KRUGLANSKI, 2009KRUGLANSKI, A. W. et al. Fully committed: Suicide bombers’ motivation and the quest for personal significance. Political Psychology, v. 30, n. 3, p. 331-357, 2009.).

Esse desejo de ordem, controle e justiça (tendo como oposto o caos, a desordem e a violência), que traria “liberdade para os cativos”, categoria central no imaginário cultural dos membros da OAC. O elemento estruturante em torno do qual a maior parte da elaboração simbólica desenvolve o cativo - uma dupla vítima do crime e da omissão da sociedade, sujeito a riscos e violência inaceitáveis - é o objeto externo de todo o seu esforço. Sua fragilidade exige o sacrifício, na ausência de todos os outros: incluindo políticos e sociedade civil.

A etnografia (GEERTZ, 1989GEERTZ, C. Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1989.; RAPPORT, 2015RAPPORT, Nigel. Anthopology through Levinas: knowing the uniqueness of ego and the mystery of otherness. Current Anthropology, 56, 2, p. 256-276, 2015. ; SKOGGARD e WATERSTON, 2015SKOGGARD, I.; WATERSTON, A. Introduction: toward an anthropology of affect and evocative ethnography. Anthropology of Consciousness, v. 26, n. 2, p. 109-120, 2015.) revelou uma busca ativa pela construção de fronteiras, estabelecendo os conteúdos para a natureza da missão e seus limites. Um trabalho simbólico inacabado, elaborado no esforço pela diferenciação em que o criminoso é o outro, que precisa ser controlado, parado e salvo. Controlados e parados pelo caos e violência que produziram, mas de alguma forma também salvos da escolha equivocada para “o outro lado” e sua posição na sociedade, de sua dupla posição de produtor e vítima de violência e exclusão.

Essa dualidade, presente tanto na necessidade do uso da força quanto na necessidade de controlar a agressividade, é expressa no símbolo da OAC, a faca na caveira, que também diferencia os membros de uma tropa especial da polícia, de um exército. A polícia lidando com indivíduos que fazem parte de uma mesma sociedade, que devem ser levados à justiça e ao domínio da lei, enquanto que o exército é treinado para lidar com o inimigo, um completo “outro”, que demanda um outro tipo de esforço, tem outra identidade e alteridade.

Esse dualismo do trabalho policial, lidando com membros de uma sociedade que precisa ser controlada e protegida, explica grande parte dos desafios e esforços da produção simbólica observada neste estudo. As OCAs são uma novidade em termos de organização de cumprimento da lei, que precisa lidar com a escalada da criminalidade dentro da sociedade civil e que tem desafios significativos em fornecer uma identidade central para o desenvolvimento de estratégias de integração interna e para a construção de acordos tácitos de como agir.

É nesse contexto que surge o sobrenatural, com seus santos, demônios e anjos, no “segundo mundo do pensamento e da imaginação” (SCHOPENHAUER, 2005SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005., p. 13). É nesse sentido que a questão da espiritualidade no trabalho pode ser considerada ao mesmo tempo como questões metafísicas e instrumentais, sem contradição.

Schopenhauer (2001SCHOPENHAUER, A. Metafísica do Belo. São Paulo: Unesp, 2001.) observa que nem a razão nem a ciência são capazes de cruzar a fronteira da representação. A racionalidade buscada e expressada por elas é produto de uma elaboração secundária, e são, por si só, produtos de edifícios simbólicos imperfeitos construídos para expressar a experiência. A descrição das imagens, nesse sentido, revela uma realidade que precisa ser acomodada na linguagem e na ordem simbólica a ser trazida à consciência, organizando, assim, a necessária racionalidade exigida para ordenar a ação.

Schopenhauer observa que a investigação (na ciência e na vida) é uma necessidade metafísica, intrínseca à humanidade, que nos mantém constantemente insatisfeitos com o mero fenômeno. Incapaz de apreender a essência da coisa em si, a busca de conhecimento emerge em torno de algo desconhecido, que é furtivo ao intelecto e impossível de ser reconhecido no tempo e no espaço. Os membros da OAC, como “cientistas”, investigam constantemente sua própria criação e buscam estratégias para melhorá-la (como é o bricoleur, em LÉVI-STRAUSS, 1997LÉVI-STRAUSS, C. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Papirus, 1997.).

Estão em constante busca por apreender a essência de sua instituição, de sua identidade e de sua missão sem nunca estar satisfeitos com os resultados. Schopenhauer observa que, em certo momento, os cientistas chegam ao limite de suas investigações. Nesse momento, chegam a um limite que mantém uma qualitas oculta (qualidade oculta). É precisamente aqui, onde a física atinge seus limites, que a metafísica começa: a “meta-efetividade”, como Schopenhauer a chama, onde encontramos o espaço para a criação simbólica. Diante dos limites da razão, o sentimento assumirá um papel crucial, segundo Schopenhauer (2001)SCHOPENHAUER, A. Metafísica do Belo. São Paulo: Unesp, 2001., como o oposto do conceito. A necessidade metafísica não é resolvida pela ciência e tampouco pela razão.

O corpo torna-se o locus da objetividade da vontade, princípio volitivo, sem fundamento, irracional, em cujo núcleo está a vontade. Nesse ponto, ele descobre que “o mundo é minha representação, mas também minha vontade” (p. 11). Múltiplas possibilidades lutam entre si na consciência humana até que uma delas vença. O Arcanjo Miguel, apresentado abaixo, é um desses exemplos. A ordem, como vimos anteriormente, aparece como parte de uma noção de bem comum e da participação necessária de todos os cidadãos. Uma ideia já presente em Aristóteles (2001)ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2001., que descreve o homem como ser político, inclinado não apenas a pertencer à polis, mas também a participar de suas instituições, refletindo inconscientemente a sobrevivência da antiga compreensão da natureza da sociedade civil no mundo contemporâneo (BELLAH e JOAS, 2012BELLAH, R. N.; JOAS, H. The axial age and its consequences. Harvard University Press, 2012.).

A OBSERVAÇÃO ETNOGRÁFICA

A busca por fundamentos metafísicos para a construção da identidade de uma OAC está profundamente relacionada ao quadro institucional dentro do qual sua atividade ocorre. A diversidade institucional importa, especialmente na configuração do contexto em que a espiritualidade pode emergir como uma forma de compreender a realidade, impor significado à experiência e moldar o modo de interagir em deparando-se cursos instáveis de ação social (WEBER, 1968WEBER, M. On Charisma and Institution Building. London: The University of Chicago Press, 1968.). A metafísica é relevante para produzir referências estáveis, bases para a cognição e quadros de referência para a interpretação da realidade e do julgamento (DOUGLAS, 1966DOUGLAS, M. Purity and Danger. London: Routledge and Kegan Paul, 1966.; 1986; ELIADE, 1992ELIADE, M. O Sagrado e o Profano São Paulo: Martins Fontes, 1992.) na ausência de tudo o mais. Isso é ainda mais verdadeiro em arranjos institucionais onde os regimes de pensamento disponíveis falham em fornecer os fundamentos necessários para a decisão e a ação. A espiritualidade e o desejo de estar conectado a outras esferas podem ser uma maneira de nos sentirmos saturados de poder (ELIADE, 1992ELIADE, M. O Sagrado e o Profano São Paulo: Martins Fontes, 1992.), e pode ser extremamente relevante se a atividade diária de alguém lida com situações de alto risco e de proximidade com a morte. A experiência do trabalho, que para a consciência moderna é primordialmente uma atividade econômica, pode ser vivida como uma conexão com o sagrado, dando-lhe outra dimensão existencial. Como pode ser confirmado nas entrevistas:

“Sim, de alguma forma, temos permissão social para matar. E há momentos em que é inevitável. Não há outra maneira de combater o crime em um estado como o Rio. Mas nós nos esforçamos para não chegar a esse ponto. É isso que nos faz diferentes deles (os criminosos). Somos agentes da lei. Soldados bem treinados. E somos leais à caveira: uma operação bem-sucedida é aquela da vitória sobre a morte - e isso significa que nenhum civil, nenhum soldado e nenhum criminoso seja vítima fatal da operação. Cada operação é um passo mais perto do cativo sendo liberado. Os criminosos atiram para matar. Nós lutamos para não fazer o mesmo. Nossa missão é levá-los para a justiça”.

Mas o que precisamente significa esta permissão? Quais são os limites? Matar em nome de quê, em uma sociedade em que a lei e a ordem parecem tão distantes para muitos? (GROSSMAN, 2009GROSSMAN, D. On Killing. The psychological cost of learning to kill in war and society. New York: Back Bay Books, 2009.). Estas são perguntas com as quais os membros da OAC continuamente se deparam para encontrar respostas. Em um estado violento e caótico e em sua principal e mais populosa cidade, como podem alegar ser diferentes dos criminosos, dos políticos corruptos e dos policiais corruptos de outras organizações ou pertencentes à outras unidades da polícia? Como eles podem ter certeza da nobreza de sua causa, da legitimidade das ações e escolhas e da pureza de suas intenções? Em uma instituição manchada como a da polícia (BITTNER, 2003BITTNER, E. Aspectos do Trabalho Policial. São Paulo: Edusp, 2003.; ZANINI, MIGUELES e COLMERAUER, 2014ZANINI, M.; MIGUELES, C.; COLMERAUER, M. A Ponta da Lança - Intangíveis Em Equipes de Alto Desempenho. São Paulo: Elsevier Campus, 2014.), como podem ter certeza de que não estão do lado da injustiça? Como, sendo membro do estado, eles podem ter certeza de que são efetivamente a “ponta da lança da lei que alcança o coração do crime”, como às vezes eles se referem a si mesmos?

CAOS, DESORDEM E IMAGINAÇÃO

As entrevistas realizadas para este estudo produziram depoimentos repletos de descrições de imagens. As imagens são claras nas mentes dos membros da OAC. Elas produziram uma ideia que os entrevistados pareciam acreditar que somente descrevê-la já seria suficiente para que fosse comunicada, para que estivesse clara. As descrições nas entrevistas muitas vezes soavam como um pedido de empatia e apoio. Muitas coisas parecem estar claramente erradas para eles. A dificuldade que encontramos foi compreender sua intenção por trás das descrições, pois a descrição da realidade, do fenômeno “em si”, não é outra coisa senão o produto da consciência do observador (DURAND, 1989DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Editorial Presença, 1989.). É ​​nos elementos dessa consciência que nós estávamos interessados. A intensa descrição das imagens revelou uma realidade difícil de se encaixar na linguagem. Para dar sentido à realidade observada, foi necessário recorrer à imaginação. Queríamos entender como eles fizeram isso. A repetição das narrativas e a descrição detalhada das cenas faziam parte do esforço para deixar as imagens falarem por si só, como se a crueldade das cenas fosse a melhor síntese que pudessem produzir da mensagem que a ser transmitida.

As imagens evidenciaram o sofrimento, a violência, a covardia, a injustiça e a vulnerabilidade dos inocentes. As cenas vívidas faziam parte do seu trauma e os motivos para justificar a importância do seu trabalho. Por si mesmas, poderiam ter produzido medo, um desejo de escapar, assim como sentimentos de depressão e outras emoções negativas. No entanto, eles produziram motivação, engajamento e desejo pelo poder. Sua “relação com o inferno” não era nem passiva e nem destrutiva de sua vontade.

O conceito da vontade cega e do surgimento cego do desejo como causal para ofuscar a representação do mundo aparece em Schopenhauer (2005SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.) como “abrindo a porta para a vontade livre da razão e da representação, como um ímpeto cego” (p. 12). O corpo é a fonte do “princípio volitivo”, sem fundamentos, e irracional em si mesmo. Para sair de sua invisibilidade, a vontade se manifestará por meio das ideias e dos arquétipos eternos das coisas. São atos originais da vontade (ursprüngliche Willensakte), ou seja, suas objetificações.

Para Schopenhauer, a metafísica da beleza refere-se à beleza na natureza, nas artes e como teoria do conhecimento, que é o aspecto que mais nos interessa. Nesse sentido, a metafísica da beleza refere-se ao conteúdo arquetípico de todas as coisas transitórias, a essência última da beleza que orienta a demanda estética. A beleza é uma forma de conhecimento em nós, como uma forma específica de conhecimento, e está relacionada a toda a nossa concepção do mundo. A beleza, como qualidade de conhecimento que não pode ser empiricamente conhecida ou imediatamente demonstrada aos sentidos, só pode ser apreendida intuitivamente, como neste caso o ideal de justiça sob um contrato social. Em seu imaginário cultural, o herói e o fora-da-lei, o bem e o mal, o anjo e o demônio eram arquétipos comuns implantados em imagens descritas em nosso trabalho de campo (DURAND, 1989DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Editorial Presença, 1989.; MERLEAU-PONTY, 1999MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: WSF Martins Fontes, 1999.).

O sofrimento é inseparável da existência e há uma relação entre a insatisfação produzida pelo sofrimento e a busca estética (SCHOPENHAUER, 2001SCHOPENHAUER, A. Metafísica do Belo. São Paulo: Unesp, 2001.). A desordem social é resultado de elementos negativos, que são confrontados pelo sofrimento e pela busca estética que emergem como elementos restauradores.

A identidade dos membros da OAC como “guardiões da última porta para o inferno” é produzida em oposição à “porta para a paz e prosperidade inclusiva” que seria a capacidade de organizar a sociedade segundo um ideal, onde a perfeição institucional produz laços éticos entre seus membros. Essa sociedade ideal seria o produto da virtude individual, cujo cerne seria a coragem de se fazer a coisa certa e a solidariedade para com aqueles em maior vulnerabilidade. O cultivo das virtudes traria o apoio social para ao seu trabalho, ampliando sua capacidade de restaurar a ordem social.

O PROCESSO DA PRODUÇÃO SIMBÓLICA

Lévi-Strauss (1977)LÉVI-STRAUSS, C. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Papirus, 1997. observa que a demanda por ordem, observada tanto no pensamento “primitivo” quanto no “civilizado”, produz esforços de ordem e possui uma eminente dimensão estética. A ordem do pensamento, da natureza e da metafísica, é, ao mesmo tempo, precondição para o pensamento e demanda estética, ideia que Douglas (1966DOUGLAS, M. Purity and Danger. London: Routledge and Kegan Paul, 1966.) adota. A ideia de “ordem” como dimensão estética, e o esforço cultural de trazer ordem ao mundo como base para a capacidade do pensar, conecta a ordem à experiência estética. A necessidade de ordem é uma exigência de todo pensamento (LÉVI-STRAUSS, 1997LÉVI-STRAUSS, C. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Papirus, 1997.). O primeiro objeto deste modo de conhecer corresponde às demandas intelectuais, anteriores à satisfação de quaisquer outras necessidades práticas. Se falharmos em impor ordem à experiência, mesmo que isso seja feito apenas no pensamento, é como se “toda a ordem do universo pudesse ser destruída” (LÉVI-STRAUSS, 1997LÉVI-STRAUSS, C. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Papirus, 1997., p. 24). As invocações que emergem desses esforços de ordem correspondem à capacidade de “prosseguir com segurança” (IBID, p. 25). Essa demanda por organização, primeiro em pensamento, é fundamental para pensar e agir. A próxima seção fornece evidências disso na OAC.

A SUBSTITUIÇÃO DE SÃO JORGE PELO ARCANJO MIGUEL: UM TIJOLO NA CONSTRUÇÃO DO PROCESSO DE DIFERENCIAÇÃO

Somos os indesejáveis, comandados pelos incompetentes, fazendo o indispensável para os ingratos (Tenente do BOPE).

BUSCANDO UMA IDENTIDADE CLARA

De acordo com Bittner (2003BITTNER, E. Aspectos do Trabalho Policial. São Paulo: Edusp, 2003.), guardas medievais na Europa eram recrutados dos grupos desfavorecidos. Eles sofriam com muitas representações satíricas e eram percebidos como originários dos mesmos grupos que deveriam conter. Durante o período absolutista, eles representaram os aspectos mais sombrios da tirania. Por essa razão, sua atividade foi percebida com ambiguidade e ambivalência, um grupo a ser temido e admirado ao mesmo tempo. O trabalho policial, pela própria natureza da atividade, ainda é o mesmo hoje. A polícia impede a sociedade de entrar em contato direto com um mundo assustador, perverso, cruel e perigoso. Douglas (1966DOUGLAS, M. Purity and Danger. London: Routledge and Kegan Paul, 1966.) observa que as categorias liminares são aquelas que mais representam risco para a mente humana. No Brasil, essa liminaridade é aprofundada pela desigualdade (ZANINI, MIGUELES e COLMERAUER, 2014ZANINI, M.; MIGUELES, C.; COLMERAUER, M. A Ponta da Lança - Intangíveis Em Equipes de Alto Desempenho. São Paulo: Elsevier Campus, 2014.).

Superficialmente, a substituição de São Jorge pelo Arcanjo Miguel pode parecer motivada pelas preferências de um objeto de devoção pelo outro. Mas o que estava em questão não era o catolicismo ou a devoção de um santo, mas um processo de forjar a identidade do grupo, na qual o santo e o arcanjo são referências culturais empregadas na busca de fundamentar o pensamento em representações fixas. A mudança tem menos a ver com a posição dos membros da OAC na religião formal do que no imaginário cultural, da religião popular e da associação tanto com grupos sociais na sociedade como um todo e com diferentes unidades nas forças policiais militares. A escolha do Arcanjo elimina as ambiguidades produzidas pela imagem folclórica de São Jorge e sua associação com o crime e a religiosidade afro nas favelas. Ao mesmo tempo elimina uma religiosidade de parte do cativo e serve como fonte de proteção espiritual dos criminosos. O processo de diferenciação foi necessário para a construção de significados positivos ligados à “sua atividade no caos”.

Na cosmologia católica, São Jorge era um soldado romano de origem grega e oficial da Guarda do imperador romano Diocleciano. Ele foi um mártir cristão e um dos santos mais venerados. Acredita-se que sua intercessão seja particularmente eficaz e que ele seja um dos santos militares mais proeminentes. No Brasil, devido a fortes movimentos sincréticos, a imagem do santo, mesclada com as religiões africanas, o colocou na “zona crepuscular”, a perigosa área cinzenta onde os membros do BOPE se encontravam ao mesmo tempo simbolicamente encurralados e tentando se diferenciar de si mesmos.

Durante os períodos colonial e imperial, os escravos, proibidos de adorar suas divindades, usaram imagens católicas para camuflar suas práticas religiosas, selecionando o santo que mais se assemelhava a suas divindades africanas como objeto de devoção. Isso é bem observado na pesquisa histórica e teológica no Brasil (SANCHES, 1973SANCHES, P. Percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: Verj, 2001.; VERGER, 1999VERGER, P. F. Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns. São Paulo, BR: EDUSP, 1999.; PRANDI, 2000PRANDI, Reginaldo. De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião. Revista USP, n. 46, p. 52-65, 2000.). São Jorge é venerado em vários cultos de religiões afro-brasileiras, onde, de acordo com esse processo de sincretismo, também representa Ogum. Ogule (Ògún), na língua e na mitologia de Iorubá, são ancestrais africanos divinizados que correspondem às forças da natureza e seus arquétipos. Ogum, em um de seus aspectos, é um ferreiro que forjou suas próprias ferramentas para a agricultura, a caça e a guerra. Na religião do Candomblé, Ogum é o dono de todas as estradas e cruzamentos, junto com Exu, outra divindade neste panteão. Na religião popular e no imaginário cultural, Exu, em um de seus aspectos, é o próprio diabo. Em uma de suas manifestações, Ogum pode ser poderoso e triunfal, mas também pode encher-se de ira e ser destrutivo, assim como pode usar sua força de guerreiro contra a comunidade que ele mesmo serve. Ele também é venerado na Umbanda, onde Zé Pilintra, o arquétipo do malandro, protetor dos portos, cabarés, bares, apostadores e sarjetas é um protegido de Ogum e, consequentemente, de São Jorge.

São Jorge é um dos Quatorze Santos Auxiliares, e o protetor da Polícia Militar no Rio de Janeiro, uma polícia “que mata”. Barcellos (2003BARCELLOS, C. Rota 66: a história da polícia que mata. Rio de Janeiro: Record, 2003.) observa o mesmo em São Paulo, mas isso é uma característica do trabalho policial em todo o Brasil, como apontado pelos próprios oficiais do BOPE, mas ele também é Ogum, protetor de Zé Pilintra. O Santo representa as múltiplas ambiguidades que constituem uma característica da cultura brasileira (DA MATTA, 2000DA MATTA, R. Relativizando: uma Introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.), e representa, portanto, todas as categorias mescladas que põem em risco a clareza e a busca de referências estáveis ​​necessárias à construção de uma tropa que pretende ser a referência institucional na excelência no trabalho policial.

A imagem sincrética de São Jorge e sua associação com os grupos dos quais o processo de construção da identidade deveria se diferenciar foi responsável pelo contágio simbólico e uma fonte de confusão que de alguma forma precisava ser eliminada. São Jorge, ao invés de se apresentar em uma posição clara ao lado da lei, da ética e do bem comum, produziu uma posição híbrida, reforçando a imagem manchada da polícia e a promiscuidade entre lei e crime, bem e mal, certo e errado.

É nesse contexto que observamos a criatividade cultural em um movimento descrito por Buber (1977BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cen, 1977.; 1992BUBER, Martin. Imagens do bem e do mal. Petrópolis: Vozes, 1992.): um constante movimento entre “eu”, “você” e a “coisa”, em que novos significados emergem no curso da dialética da intersubjetividade que leva em conta o objeto externo, a realidade específica de uma OAC em um contexto tomado pela violência.

O Arcanjo Miguel apareceu pela primeira vez na OAC em um momento de crise na vida de um dos seus líderes: Durante as operações para ocupar o Complexo de favelas do Alemão, o bebê de dois meses de um dos policiais estava sendo submetido à sua segunda cirurgia cardíaca. Nas orações que precedem as operações da OAC, a luta da criança pela vida e a missão do batalhão, de alcançar a “vitória sobre a morte” se misturaram, criando uma atmosfera emocional especial. O grupo de alguma maneira teve o mesmo questionamento do pai: o destino do seu bebê teria sido causado por sua atividade profissional? “ - Devo me sentir culpado? Eu sou um grave infrator, um terrível pecador? Qual é o papel de um soldado nesta situação de vida e morte? ”

A dúvida: estamos do lado certo? Merecemos punição? Foi fundamental para aquela crise que o policial estava vivendo. A crise do indivíduo foi uma expressão de um questionamento que esteve oculto por entre os indivíduos do grupo. A dúvida do indivíduo trouxe à tona o desconforto do grupo. Meses se passaram e o dúvida permaneceu. Na conversa, a ideologia de algumas facções criminosas em que a propriedade é uma forma de crime, a ideia do criminoso como vítima do sistema, entre outros, estava de alguma forma presente. O Arcanjo Miguel, enquanto metáfora, apareceu nesse contexto. Como aquele com o papel de lutar contra os poderes do mal, lidando com as forças escuras, sem se misturar a elas. Com o tempo, as referências ao Arcanjo Miguel gradualmente ocuparam o papel da metáfora adequada para expressar a relação dos soldados com sua atividade laboral e com a situação. Nosso ponto aqui é que a metáfora funcionou bem porque resolveu uma crise de identidade coletiva. Um ano depois, havia imagens do Arcanjo Miguel em diferentes partes da sede como a evidência concreta dessa identidade. Simbolismo: um patrono, um totem: a caveira - eram todos mecanismos de controle do que eles chamavam de “energia excessiva” e seus efeitos dispersivos. O patrono tornou-se o guardião das virtudes necessárias e da missão.

Douglas (1986DOUGLAS, M. How Institutions Think. New York: Syracuse University Press, 1986.), em sua análise de como as instituições enquadram o processo de pensamento dos indivíduos, aponta para o papel das convenções sociais que ancoram a mente. O processo de enquadrar a ideia do bem coletivo só pode ser resolvido quando os indivíduos entranham suas mentes em um modelo de ordem social. Para adquirir legitimidade, toda instituição precisa de uma fórmula que encontre sua retidão na razão e na natureza (DOUGLAS, 1986DOUGLAS, M. How Institutions Think. New York: Syracuse University Press, 1986., p. 45), que em termos fenomenológicos significa que a razão, sozinha, não pode fazer seu trabalho sem uma ontologia que fixe a cognição em algum outro lugar do que na própria razão. Analogias, sobre as quais os acordos necessários são construídos, conferem uniformidade e dissipam elementos de conflito dos quais a mente precisa ser isolada (IBIDEM, p. 59). A indefinição e a ambiguidade então desaparecem. A proximidade não significa ameaças contagiosas, o que elimina, portanto, as coisas que não podem ser misturadas ou confundidas sem risco considerável (DOUGLAS, 1966DOUGLAS, M. Purity and Danger. London: Routledge and Kegan Paul, 1966.).

Para concluir, estudos sobre motivação tendem a ter quadros de referência como dados. Quadros de referência são relevantes no mundo social, permitindo uma compreensão comum da realidade e orientação mútua. Envolvem aspectos ontológicos, éticos e políticos (L’ESTOILE, 2014L’ESTOILE, B. Money Is Good, but a Friend Is Better” Uncertainty, Orientation to the Future, and “the Economy. Current Anthropology, v. 55, n. S9, p. S62-S73, 2014., p. S64). Quando esses aspectos não são claros, como pode ocorrer quando o desenvolvimento institucional é inadequado (seja qual for a razão, histórica (ZANINI, MIGUELES e COLMERAUER, 2014ZANINI, M.; MIGUELES, C.; COLMERAUER, M. A Ponta da Lança - Intangíveis Em Equipes de Alto Desempenho. São Paulo: Elsevier Campus, 2014., capítulo 4) ou antropológica, que certamente vale a pena investigar). Os quadros de referência podem ser inadequados em estabilizar a compreensão da natureza da organização e das atividades dos servidores públicos, e dessa forma, impactar negativamente sua atividade. Nesse contexto, referências pouco claras parecem comprometer a organização e suas atividades críticas, o que é especialmente sério em uma OAC, que envolve decisões sobre situações de vida ou morte. A organização para a ação exige o seu desenvolvimento, sem o qual os limites e as oportunidades da ação tornam-se ameaçadoras e pouco claras. O processo ativo de busca por esses quadros parece ser relevante para se entender o desenvolvimento institucional e a estabilidade, bem como os desafios do trabalho policial. Esta pesquisa pretende contribuir com essa questão.

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  • {Versão traduzida}

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
  • Data do Fascículo
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2017
  • Aceito
    14 Mar 2018
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